quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O "fazer musical criativo" de Murray Schafer


Por Francisco José dos Santos Braga


Este artigo foi publicado pelo informativo ARRUIA, órgão da Associação Artística Coral Júlia Pardini, em duas partes: no seu nº 599 e 600, respectivamente, dos meses de maio e junho de 2014.


Nesta minha primeira abordagem ao tema musical, escolhi fazer a análise de uma "didática de invenção" na educação musical contemporânea. Esta é representada pelo pensamento do canadense Raymond Murray Schafer, o qual, nascido em 1933, é compositor, libretista, pedagogo musical, escritor, educador e investigador do ambiente sonoro, além de artista plástico e cenógrafo. É claro que existem outros pedagogos desenvolvendo hoje diferentes tecnologias de abordagem à educação musical, dentre os quais cabe mencionar o trabalho da pesquisadora norte-americana Viola Spolin junto a grupos de teatro improvisacional, a proposta do inglês John Paynter e, aqui no Brasil, entre outros, o trabalho realizado pelos professores Conrado Silva, Maria Cristina de Carvalho Azevedo e Renato Vasconcellos na Universidade de Brasília, bem como as oficinas de educação midiática da Associação Imagem Comunitária coordenadas por Ana Tereza Melo Brandão em Belo Horizonte.

Da vida de Schafer cabe destacar que em 1963 iniciou um período de ensino que se estendeu por doze anos, primeiro como artista residente na Memorial University e depois na Simon Fraser University. É dessa época sua produção teórica mais consistente, em que desenvolve questões da educação musical.

O Ouvido Pensante, lançado apenas em 1986 (Ed. Unesp, 1991, 399 pp.), é a obra que compila uma série de textos e relatos de experiências em sala de aula durante esse período. Nesse livro, Schafer introduz conceitos de John Cage sobre audição criativa e consciência sensorial para seus alunos.

No final da década de 60 e começo dos anos 70, desenvolveu um trabalho coletivo e pioneiro, The World Soundscape Project (WSP), voltado para a pesquisa do ambiente sonoro. O projeto surgiu como um grupo de pesquisa educacional com ênfase na ecologia acústica. O objetivo era chamar a atenção para a proliferação de ruídos, tendo em vista o desgosto pessoal de Schafer com a poluição sonora que vinha transformando rapidamente os aspectos de Vancouver. Sua preocupação era alertar para os efeitos prejudiciais dos sons tecnológicos sobre os homens.

Em 1974 Schafer decidiu abandonar seu emprego na universidade e mudar-se para uma fazenda, situada em Monteagle Valley, Ontário. Ali, no novo ambiente, ele pôde sentir e vivenciar quão importantes para a natureza humana eram os sons saudáveis - isto é, aqueles em equilíbrio com a capacidade de audição, percepção e assimilação dos sons e da música para o homem, uma questão a que o WSP se dedicara desde o início.

Seu novo livro, expressão dessa fase de sua vida, A Afinação do Mundo, lançado em 1977 (Ed. Unesp, 2001, 381 pp.), é a obra que resume a pesquisa do WSP, bem como o conceito de soundscape (paisagem sonora).

Dos anos 80 em diante, Schafer desenvolveu uma série de projetos relacionados à integração da música, teatro, ritual e ecologia. A peça ritual-dramática Apocalypsis, formada por cerca de quinhentos artistas é um exemplo dessa sua nova fase. Até hoje continua desenvolvendo rituais ecológicos artísticos, ligados a aspectos simbólicos ancestrais, como a série Patria e The Wolf Project, alguns envolvendo a comunidade local, tentando uma espécie de integração total, contrária aos movimentos culturais de uma única via cidade-campo.

Do livro O Ouvido Pensante, vou inicialmente comentar o ensaio "Quando as palavras cantam", título esse tomado de uma definição de poesia, enunciada por um menino de seis anos. Teria dito: "Poesia é quando as palavras cantam."

Esse ensaio investiga o que se acha a meio caminho entre música e palavras ou entre canto e fala, uma área que tanto os compositores contemporâneos quanto os poetas concretistas exploram. Como pedagogo otimista, Schafer acha que o desenvolvimento nesse trabalho didático está ao alcance de qualquer leigo: basta, com sua voz, imitar os sons da natureza e deixar a "flauta de seu corpo" expressar-se. Esse treinamento não deixa de ser uma brincadeira com os sons. O som como tal é um encantamento.

Entre muitos exercícios sugeridos para o canto, está o mantra, em que Schafer trabalha com o som puro dentro do aparelho fonador, preenchendo cada milímetro de espaço dentro das diversas cavidades envolvidas, enquanto percebe as suas vibrações.

Outra sugestão é uma vocalização prolongada sobre uma vogal, acompanhada ou não de consoante, ao mesmo tempo que se faz uso da imaginação criativa brincando com os sons (som mais agudo, som mais grave, som mais leve, som mais triste, som mais engraçado, etc.).

Por outro lado, é importante, ao cantar, prestar atenção naquilo que entra na formação do objeto sonoro: letras ou fonemas. Recomenda encantar-se com a biografia de cada letra do alfabeto. Cada letra tem sua história e cabe ao cantor descobrir o sentido de cada uma. Oferece, para tanto, o seu guia para 26 diferentes fonemas na língua inglesa: o A, por exemplo, é elemental; o B e o D são agressivos; o K e o P são explosivos, etc. Para a excelência dos efeitos sonoros, recomenda especial atenção à entoação das vogais; os antigos humanistas rabínicos costumavam chamar as consoantes, os esqueletos das palavras, e as vogais, sua alma; sem estas é praticamente impossível a existência do canto.

Em que as palavras se distinguem da música? Numa tentativa de definição, Schafer explica que "linguagem é comunicação através de organizações simbólicas de fonemas", enquanto "música é comunicação através de organizações de sons e objetos sonoros". E completa: "Para que a língua funcione como música, é necessário, primeiramente, fazê-la soar e, então, fazer desses sons algo festivo e importante. À medida que o som ganha vida, o sentido definha e morre ... , quando a fala se torna canção, o significado verbal deve morrer." (op. cit., p. 239-240)

Na sua prática com o canto, Schafer acha que o regente deve tomar do coro grego elementos que permitem a exploração de texturas corais, já que é imprecisa a paisagem sonora grafada pelo compositor através de notações aproximadas, o qual atribuiu ao regente a fixação de todas as outras qualidades de efeito sonoro específico (peso, densidade, dinâmica, coloração, etc.) e a manipulação de todos os elementos disponíveis para a criação de efeitos sonoros (vocais) desejados.

Reconhece que, durante a Idade Média, é que foi conseguido o melhor equilíbrio entre palavra e som, na prática dos trovadores de Provença (motz el son, ou seja, palavra e som) e na arte do cantochão. Como regente, Schafer também tira proveito de experiências mais recentes feitas pelos poetas dadaístas, futuristas e concretistas que, através de efeitos originais, arrancaram suas palavras-mensagem para fora do invólucro silencioso da linha impressa.

Em seguida, convém fazer algumas reflexões sobre o papel do compositor que foram expostas no ensaio "O compositor na sala de aula" no livro O Ouvido Pensante. Schafer defende o ponto de vista de que é preciso resgatar o compositor que adormece em todo estudante, na maioria das vezes pelo entorpecimento causado pela teoria musical normativa. A criação composicional está ao alcance de todos os indivíduos, independentemente da profundidade de seu conhecimento musical.

A primeira observação que ele coloca para os alunos meditarem é a enorme variedade de estilos musicais existentes e de gostos individuais. E constata: a preferência de alguém por determinado tipo de música o leva a associar-se a certo grupo de pessoas. A partir dessa constatação, o texto centra-se basicamente na questão: O que é música?

Normalmente as pessoas tendem a definir música a partir de suas preferências individuais. Quando os alunos começam a identificar todos os possíveis sons existentes, desde o simples ruído de se abrir uma porta até a o da freada de um carro, surgem as primeiras dúvidas: "Seriam esses sons, música? Ou música seria somente um som agradável ao ouvido?" É quando Schafer introduz o conceito de que todo som pode ser música: tudo depende da intenção do compositor que o utiliza.

Todos os passos envolvidos nessa discussão são transformados em exercícios práticos de criação, utilizando todos os recursos sonoros possíveis (o corpo, as vozes e os instrumentos, musicais ou não) e fazendo da sala de aula uma grande oficina de experimentação sonora. A princípio, a base desse trabalho coletivo é a música descritiva, com a qual ele explora a potencialidade de improvisação, com a proposta de reproduzir sons como vento, chilrear de pássaros, etc. e fenômenos da natureza como neblina, escuridão numa floresta tropical, etc. Ele explica aos alunos como os mais diversos sons que eles podem extrair, desde a manipulação de objetos até os sons provenientes da natureza, podem ser elementos que, se colocados de forma ordenada e estruturada, constituem motivos, períodos ou frases de uma autêntica peça musical.

Schafer, no seu trabalho com alunos de escolas secundárias, destaca ainda a relação da brincadeira com a criação artística. No lúdico o ser humano está inteiro: o jogo, o faz-de-conta constituem o principal processo de conhecimento do mundo e a construção da identidade do sujeito.

Noutra parte do livro, ele vai lembrar sua crença: "sempre resisti à leitura musical, nos primeiros estágios da educação, porque ela incita muito facilamente a um desvio da atenção para o papel e para o quadro-negro, que não são os sons." (ibid., p. 307)

Outra idéia fundamental é levar os alunos à observação dos sons e ruídos mais comuns que os cercam, passíveis de serem postos a serviço da música. Defende que passem a notar sons que na verdade nunca haviam percebido, também a ouvir avidamente os sons de seu ambiente e ainda os que eles próprios injetam nesse mesmo ambiente. A isso Schafer chama "limpeza de ouvidos", objeto de outro ensaio no livro O Ouvido Pensante.

Vale frisar a importância do exercício de ouvir, pois é um quesito imprescindível na criação. Além de saber ouvir, são necessários outros elementos: atenção permanente, concentração e curiosidade de investigação criativa em qualquer lugar que alguém esteja, na sala de aula, em casa, no campo, nas ruas da cidade, etc.

Outra idéia de Schafer, tomada de John Cage, é a importância do contraste entre som e silêncio. Acredito que isso caiba perfeitamente nas artes plásticas, onde o silêncio pode ser visto como uma tela branca, o que por si só pode ser uma composição, como provou ser a mais famosa composição musical de John Cage, intitulada 4'33", peça para piano constiuída apenas por pausas com duração de quatro minutos e trinta e três segundos.

Curiosamente, o que Schafer coloca voltado para a arte musical pode ser perfeitamente interpretado através de pinturas, desenhos, objetos. No próprio final do ensaio, quando relata a experiência de criação a partir da "Máscara do Demônio da Maldade", ele, antes de tudo, fala de criação, forma, textura, improvisação, organização, cores, representação - elementos presentes na música e nas artes plásticas.

Finalmente, vou ainda abordar o penúltimo ensaio no livro O Ouvido Pensante, intitulado "O rinoceronte na sala de aula" para o leitor ganhar uma "comprehensive" visão do texto. Ali, Schafer apresenta uma nova filosofia para o ensino da música (mais especificamente nas escolas públicas).

Logo no início, ele descarta os antigos moldes da educação tradicional, principalmente no que diz respeito à atuação do professor de música como "transmissor" de conhecimentos a alunos de cabeça completamente vazia, numa referência à tabula rasa de John Locke. Também descarta uma pedagogia dirigida especialmente a alunos dotados e capazes de se tornarem virtuoses. Portanto, nem uma coisa, nem outra. Qual é então a sua filosofia de educação musical?

"A aula de música é sempre uma sociedade em microcosmo... Nela deve haver um lugar, no currículo, para a expressão individual; porém currículos organizados previamente não concedem oportunidade para isso, pelo fato de seu objetivo ser o treinamento de virtuoses, e, nesse caso, geralmente falha. O principal objetivo de meu trabalho tem sido o fazer musical criativo, e embora seja distinto das principais vertentes da educação, concentradas sobretudo nas habilidades de execução de jovens músicos, nenhuma dessas atividades pode ser considerada substituta da outra." (ibid., p. 279-280)

Schafer propõe que o professor, ao invés de se fechar atrás de sua máscara de sabe-tudo e daquele que tem todas as respostas (a analogia do rinoceronte cabe aqui), procure mostrar aos alunos que a música é uma descoberta diária dos sons (ou do silêncio) que o meio ambiente produz e se faça também de aprendiz, deixando que a curiosidade musical brote nos alunos, sem ser algo imposto. Ou, conforme ele diz: "numa classe programada para a criação não há professores: há somente uma comunidade de aprendizes." (ibid., p. 286)

Também recomenda o ensino da música feito por profissionais, pois, embora possa ocorrer bizarras descobertas musicais por qualquer um, a música não se limita a isso, sendo que as questões teóricas e práticas de um instrumento específico devem e só podem ser repassadas por um profissional da música, sob pena de danos irreparáveis no corpo do aprendiz (pregas vocais do cantor, mãos do pianista, e assim por diante). "Somente o aluno altamente qualificado e com aptidões musicais deveria ser encorajado a empreender o extensivo programa de treinamento necessário ao ensino de música, no sentido tradicional. Sem concessões." (ibid., pp. 303-304)

Ele também propõe uma visão integrada de todas as artes, do contrário ocorre uma fragmentação dos sentidos humanos. Não que o estudo específico de uma determinada arte não deva ser visto em suas peculiaridades, mas é preciso ressaltar que no dia-a-dia as artes não estão desgarradas da experiência humana.

Os impactos das práticas acima propostas nas escolas públicas - a proposta de trabalho de Schafer é para estas - exerceriam sensíveis mudanças tanto no aspecto particular quanto no aspecto social da música.

Tais aspectos, sob uma perspectiva puramente educacional, sem levar em conta a especificidade musical, lembram o ideário defendido no Brasil por Paulo Freire, que também propôs novas posturas para professores e novas filosofias de ensino tanto em escolas públicas quanto nas particulares, mas visando principalmente à educação de adultos.

A filosofia de educação musical de Schafer identifica-se também com a proposta de outros pedagogos. Menciona literalmente os nomes de Peter Maxwell Davies, John Paynter e George Self na Inglaterra, além dos envolvidos no Projeto Manhattanville nos Estados Unidos, os quais têm uma característica em comum: "experimentaram colocar o fazer musical criativo no centro dos currículos." (ibid., p. 278)

Há um momento do ensaio que parece que Schafer se trai, como se negasse a sua proposta de mudança no ensino musical, deixasse de lado sua experiência na escola pública e ficasse contaminado pelo preconceito, quando constata na América o surgimento de uma "tendência desanimadora" (sic) face à impossibilidade de atingir padrões ilimitados no paradigma da virtuosidade. "A introdução da música pop nas aulas é um exemplo desse relaxamento; não porque a música pop seja necessariamente ruim, mas porque é um fenômeno social em vez de musical e, desse modo, impróprio como o estudo abstrato que a música deve ser, caso se pretenda que seja considerada arte e ciência, por seus próprios méritos." (ibid., p. 280) Em nota de rodapé reconhece ser esse um assunto controvertido, mas em seguida emite um novo preconceito: "... qualidade musical, sociologia e negócios de dinheiro não se beneficiam quando se misturam - o que vale dizer que é impossível analisar uma canção pop antes dela completar dez anos de idade."

Parece que estamos a ler Theodor W. Adorno. A meu ver, separar música dos aspectos sociais é separá-la do homem propriamente dito; dizer que não há benefícios quanto aos aspectos financeiros ou "negócios de dinheiro" é descartar um aspecto crucial da sociedade atual capitalista; e, por fim, produção musical em massa não quer dizer necessariamente má qualidade musical.

Cabe ainda um outro tipo de questionamento: seriam essas propostas de Schafer aplicáveis à sociedade brasileira? Como ele mesmo diz que o professor deve fazer-se aprendiz, o professor de música brasileiro teria que aprender, no contato com seus jovens alunos, novas filosofias de ensino musical que se aplicassem à realidade social brasileira, visando despertar neles a criatividade, a descoberta de nosso modo musical de ser, a valorização da cultura nacional, entre outras coisas.


* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre Eduardo Frieiro ( I )


Por Francisco José dos Santos Braga


Hoje vou tratar de um assunto mais leve, porque ninguém é de ferro. Sem sombra de dúvida, o erro tipográfico já constituiu tema de mais de um grosso calhamaço em todos os idiomas conhecidos: arrisco-me a dizê-lo, tão frequente é esse acidente inevitável. Para nós, autores, o erro tipográfico representa um ultraje ao nosso texto e nos faz corar a sua presença.

Engana-se quem imagina que ele nasceu com a nossa técnica contemporânea. Em sua obra clássica sobre os manuscritos alquímicos da Antiguidade, "Les Origines de l' Alchimie", o "prêmio Nobel" Marcelin Berthelot deixou inúmeras indicações de sua indignação para com a forma como foram tratados tais manuscritos e papiros. Em certo trecho, comenta: "Estes escritos sofreram mais tarde, como sucede frequentemente em manuscritos antigos, diversas adições tardias, assim como interpolações e adições evidentes, por parte dos monges bizantinos... Aos erros dos copistas foram acrescentados os dos comentaristas do século XVIII e XIX... Esses manuscritos trazem os vestígios do estudo apaixonado de que foram então objeto, a saber: notas nas margens, mementos, apagamentos de páginas, palavras novas sobre outras, acréscimos nas capas e nos espaços vazios, manchas feitas com substâncias químicas, tais como os sais de cobre." (op. cit., p. 85-86 da tradução para o castelhano, mra ediciones, S.L., Barcelona, 2001) Essa última referência faz lembrar o romance de Umberto Eco, "O Nome da Rosa" acompanhado de todas as suas trágicas ocorrências.

Hoje em dia, as redações de jornais e de editoras contam com a colaboração de programas de processamento de texto que permitem automaticamente a correção dos erros mais comuns em determinado idioma ainda durante a fase de escrita e amiúde recorrem ao trabalho especializado de revisores, com pelo menos duas leituras por pessoas diferentes. Cumpridas essas etapas, o texto é revisto em última leitura, após o que é considerado apto a ser publicado.

Dá-se o nome de gralha, piolho ou gato ao emprego errado de uma letra por outra na composição. Já o termo pastel é usado quando ocorre o desmanche de uma fôrma (coluna ou linha da composição).

Tenho em mãos um exemplar de "Os Livros, nossos Amigos" (volume 80 das Edições do Senado Federal), um livro de ensaios do escritor mineiro Eduardo Frieiro, "um hino de amor incondicional ao livro", que, entre outras matérias muito agradáveis, faz interessantes comentários sobre os erros tipográficos, à página 137 e seguintes. Esse autor começou sua carreira na Imprensa Oficial do Estado. De simples tipógrafo, valeu-se de seu grande esforço de autodidata para chegar a professor catedrático de Literatura Espanhola e Hispano-Americana da UFMG e tornou-se autor de uma obra digna de respeito, independente das posições doutrinárias que adotou e defendeu com ardor e das quais se possa eventualmente divergir. Como primeiro Diretor da Biblioteca Pública de Minas Gerais, cuidou de sua organização, transformando-a numa das melhores do País. Deixou inúmeras obras literárias, que deixarei de citar neste curto texto. Mas gostaria de mencionar que, além desse curioso livro de ensaios que ora comento, é o autor muito festejado de "Feijão, Angu e Couve: ensaio sobre a comida dos mineiros", outro livro que merece minha atenção num próximo texto deste blog.

Embora o erro tipográfico seja desastroso principalmente para os autores neófitos ("Quem se imprime se oprime"), Frieiro lembra um caso de erro feliz que raramente ocorre. Trata-se de erro de um tipógrafo num verso de Malherbe, no poema "Consolation a M. du Périer", um panegírico para prantear a morte da filhinha de um amigo, Monsieur du Périer, chamada Roselle. O poeta Malherbe teria escrito:

Et Roselle a vécu ce que vivent les roses,
L' espace d' un matin.
(E Roselle viveu o que vivem as rosas,
O espaço de uma manhã.)

O tipógrafo, distraidamente, ao compor aquele verso alexandrino, deixou escapar:

Et rose elle a vécu ce que vivent les roses ...
(E como rosa ela viveu o que vivem as rosas,
O espaço de uma manhã.)

Frieiro arremata: "Com o erro de leitura e a involuntária emenda, o verso ficou mil vezes melhor. Maravilhoso erro que deu à poesia francesa um de seus mais citados versos!"

Dá também um exemplo de pastel. Na notícia sobre as matanças da véspera, o austero Minas Gerais, de Belo Horizonte, órgão oficial dos poderes do Estado, em certa data retratava: "No Matadouro Municipal, abateram-se ontem 32 reses, 12 porcos, 8 carneiros e o deputado Fulano de Tal." O tal deputado fazia anos naquele dia e a linha com o seu nome se deslocara perfidamente da seção de aniversários para a de matanças. Procura-se até hoje o responsável pelo tal "furo" de reportagem.

Frieiro narra também uma visita que Ramalho Ortigão fazia ao Rio de Janeiro. A direção da Gazeta de Notícias solicitou do consagrado escritor português um artigo destinado a uma edição especial. O artigo escrito saiu então com o título: "O pássaro e as penas", que causou estranheza a muitos leitores, pois o artigo tratava do tempo, sem qualquer alusão a pássaros ou a penas. No dia seguinte o jornal reconhecia o engano, com a seguinte corrigenda: "Por um engano de revisão saiu deturpado o título do artigo do nosso ilustre colaborador Senhor Ramalho Ortigão, que publicamos ontem. Onde se lê O pássaro e as penas deve ler-se: O pássaro e o presunto." Pior a emenda que o soneto: o título não era ainda esse, mas simplesmente O passado e o presente. Frieiro conclui: "Não adianta. As erratas, no melhor dos casos, são inúteis. Ninguém as lê."

Narra também anedotas muito interessantes sobre a edição da Bíblia na Alemanha, Inglaterra e França. A mais engraçada a meu ver aconteceu na Alemanha: conta-se que certo impressor decidira editar a única Bíblia sem erros. A sua esposa colaborava no trabalho de revisão com excelente maestria até o dia em que teve um bate-boca com o marido. Foi o suficiente para ela querer vingar-se dele. Entrando à noite na oficina onde se compunha a Bíblia, maldosamente alterou na composição a sentença pronunciada pelo Senhor contra Eva, que era "Teu marido será teu senhor (dein Herr)" (Gn 3, 16), para "Teu marido será teu bobo (dein Narr)", bastando para isso alterar as duas primeiras letras do substantivo. Frieiro deu seu pitaco: "Afirma-se que os exemplares desta Bíblia 'feminista' foram disputados entre os bibliófilos por preços exorbitantes."

Diante de tantos e variados exemplos listados, Frieiro atribui ao Capeta, Diabo ou Caapora e a suas malas-artes a ocorrência desses erros "não propositais" nas redações. E sentencia: "Os autores e leitores muito exigentes têm de se resignar à idéia de que um texto tipograficamente perfeito é uma quimera."



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Sobre a Teoria da Informação

Por Francisco José dos Santos Braga

Um amigo de São Paulo, Professor José Luiz Celeste, também ex-Professor da Fundação Getúlio Vargas, envia-me texto deveras interessante sobre um teste de capacidade de leitura através de letras e algaritmos - não somente através de letras - e a sua utilidade em prevenir o aparecimento do Mal de Alzheimer. Em seguida ao texto, faz inúmeras observações judiciosas sobre o seu conhecimento de algumas línguas ocidentais.

"Inicialmente fixe seus olhos no texto abaixo e deixe que a sua mente leia corretamente o que está escrito:

3573 P3QU3N0 73X70

53RV3 4P3N45 P4R4

M057R4R C0M0 N0554

C4B3Ç4 C0NS3GU3

F423R C01545

1MPR3551ON4N735!!!

R3P4R3 N1550!!!

N0 C0M3Ç0 3574V4

M310 C0MPL1C4D0,

M45 N3574 L1NH4

5U4 M3N73 V41

D3C1FR4ND0 0

C0D1G0 QU453

4UTOM471C4M3N73,

53M PR3C1S4R P3N54R

MU170, C3R70?

P0D3 F1C4R B3M

0RGULH050 D1550!!!

5U4 C4P4C1D4D3 M3R3C3!

P4R4B3N5!!!

(Se você conseguiu identificar o texto com os seguintes dizeres: "Este pequeno texto serve apenas para mostrar como nossa cabeça consegue fazer coisas impressionantes!!! Repare nisso!!! No começo estava muito complicado, mas nesta linha sua mente vai decifrando o código quase automaticamente, sem precisar pensar muito, certo? Pode ficar bem orgulhoso disso!!! Sua capacidade merece! Parabéns!!! ", certamente, além de estar com sua vista boa ou pelo menos usando óculos com grau certo, você também está longe de um possível Mal de Alzheimer.)

Essa mensagem é mesmo muito interessante. Existe um estudo matemático sobre isso, na teoria da informação, de C. E. Shannon e W. Weaver. Há um limite além do qual os ruídos não podem mais ser reparados. Isso é importante na transmissão de dados, situação em que sempre há uma probabilidade não nula de enviar letras ou símbolos errados. Até um certo limite quem recebe uma mensagem pode corrigir os erros de transmissão e entender corretamente. Aí, também é interessante ver que as línguas mais redundantes - e há uma maneira de calcular o nível de redundância de um idioma! - permitem uma regeneração melhor dos erros de transmissão. Por exemplo, o Português, língua analítica por excelência, é mais redundante que o Latim, língua sintética, que é uma das línguas menos redundantes. Uns dos primeiros a tratarem desse assunto, senão os primeiros, foram Shannon e Weaver em seu livro " The Mathematical Theory of Communication", em 1949.

Eu tenho uma amiga que foi para os Estados Unidos da América , depois para a Inglaterra e finalmente para a Itália. Quando voltou ao Brasil, depois de 10 anos, ela me dizia: "Ai, como o Português é redundante !" E é mesmo.

Até em relação ao Italiano o Português é redundante. Por exemplo, em Português existe uma forma verbal para cada pessoa: eu vou, tu vais, ele vai... etc. que repetimos ao falar, quando não seria necessário. Em Italiano não se diz o pronome nas flexões verbais.

Eu falava sobre isso nas minhas aulas de Estatística, e inclusive alguns alunos fizeram trabalhos sobre o assunto, mas era uma voz no deserto. Nenhum professor se interessava, não havia com quem conversar. E nisso, meu caro, de acreditar em mim mesmo, eu sou muito ruim. Ao invés de prosseguir nesta senda, nesta rota, nesta vereda, eu desistia.

O negócio é ouvir Picasso. "Saia de casa, faça uma viagem á cidade vizinha, ou uma grande viagem, mas não viaje ao passado. É muito doloroso."

Gostaria ainda de acrescentar mais um comentário de que me esqueci acima. É sobre o Alemão. Essa língua, que é a dos meus avós maternos e era falada em sua casa, é , em princípio, sintética. Além de declinações, tem a célebre característica de aparecerem os verbos no final da frase, empurrados por conjunções subordinativas. Pois bem, não obstante essas características linguísticas, pode reparar que o Alemão é das línguas mais prolixas, fato esse que pode ser notado nas tabuletas de avisos que aparecem nos aviões e aeroportos. Quando ocorre uma instrução em vários idiomas, uma ao lado da outra, pode reparar que a que aparece em Alemão é sempre a mais longa. Isso foi observado por um colega nosso da FGV. Também aquela atriz que fez a Escrava Isaura, Lucélia Santos, falou disso num programa de tv. Dizia ela que não dava tempo para dublar as próprias falas em Alemão, ou seja , a mesma coisa dita em Alemão tinha mais palavras que em Português. Quer dizer, esse negócio de língua sintética parece que não funciona, pelo menos no sentido da extensão. Não sei se foi calculada a entropia, que é o nível de redundância, do Alemão naquele livro do Shanon que citei. Mas acredito que sim, senão lá, então alhures.

Outro comentário é sobre um trabalho de alunos meus comparando a extensão do Português e do Inglês. Como tenho a tradução de alguns romances do Machado de Assis para o Inglês, fez-se uma comparação para ver se o Inglês dizia as coisas com um número menor de palavras. Adotou-se, do que me lembro, um teste de comparação de duas médias. Foram selecionadas amostras, ou seja, trechos do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, e suas correspondentes versões para o Inglês. Contaram-se as palavras contidas nesses trechos, e aplicou-se o teste de duas médias, se bem me lembro. Sabe qual foi o resultado? Surpreendente: não se pode afirmar que haja diferenças significativas entre a extensão das duas Línguas. Quer dizer, o fato de ser o Inglês menos entrópico não significa que é menos extenso. Pois não é interessante?"

Até aqui o texto do Professor. Quanto ao jargão estatístico passado pela sua mensagem, vale lembrar que a teoria da informação é um ramo da matemática aplicada e da engenharia elétrica envolvendo a quantificação da informação. Historicamente, a teoria da informação se desenvolveu para encontrar os limites fundamentais ao comprimir dados e comunicá-los com fidelidade. Sua aplicação ampliou-se para outras áreas, incluindo inferência estatística, processamento de linguagem natural, criptografia, redes fora do âmbito da comunicação como é o caso na neurobiologia, e assim por diante.

Uma medida-chave de informação na teoria é conhecida como entropia, que é comumente expressa pelo número médio de bits necessários à armazenagem ou à comunicação.



* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...