quarta-feira, 9 de novembro de 2022

MINHA PALESTRA NA AMULMIG, INTITULADA “HIPÁTIA: FILÓSOFA ASSASSINADA”

Por Francisco José dos Santos Braga 

HIPÁTIA DE ALEXANDRIA, professora, filósofa neoplatônica, astrônoma e matemática


 

Ilustríssima Presidente da Amulmig, Profª Maria Inês de Moraes Marreco, 
Ilustríssimo Secretário-Geral, Sr. João Quintino da Silva Galinari, 
Minhas senhoras, meus senhores, acadêmicas e acadêmicos, colegas das Letras, minha amada esposa Rute Pardini, minhas amigas e meus amigos de hoje e de longa data, 
 
Gostaria inicialmente de consignar minha reverência a esta Casa, fundada em 08/03/1963, que tem como patrono São Francisco de Assis e, entre seus membros, JK (sócio nº 64), Desembargador Caetano Levi Lopes, Dom Barroso, Profª Hebe Rôla, Ângela Maria Rodrigues Laguardia, dentre uma plêiade de escritores, destacando-se alguns são-joanenses: nomeadamente, os saudosos Edmundo Dantés Passos (1918-1983) (sócio nº 10), filho adotivo, e Fábio Nelson Guimarães (1932-1996) (nº 11), bem como os acadêmicos vivos Abgar Antônio Campos Tirado (nº 146), prefeito e deputado estadual Nélson José Lombardi (nº 239) e Luiz Alberto de Almeida Magalhães (nº 295). Dedico aos citados acadêmicos conterrâneos a palestra que vem a seguir. 
Vale lembrar que São João del-Rei foi honrada com a visita de uma comitiva desta Casa, chefiada pelo presidente Alfredo Marques Viana de Góes, tendo sediado em 06/09/1964 reunião solene, para que tomassem posse os saudosos Acadêmicos Edmundo Dantés Passos e Fábio Nelson Guimarães em concorrida comemoração. Tendo aberto a sessão, o presidente passou a presidência ao Prof. Aires da Mata Machado Filho.
 
Gentilmente convidado pela Profª Maria Inês de Moraes Marreco, DD. Presidente desta AMULMIG-Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, para falar sobre minha recente pesquisa sobre Hipátia de Alexandria em andamento, inicio esta palestra com meu mais profundo agradecimento pela honra que me distinguiu de poder falar para uma plateia tão seleta como a que se reúne aqui nesta tarde. Hoje me encontro na posição privilegiada de palestrante nesta Casa de São Francisco e JK, mas reconheço humildemente que é esta douta Arcádia que faz conhecimento e cultura e, diante da sua magnitude, é que eu me apresento como um colaborador, conforme preceito divino recomendado pelo evangelista Lucas 17:10: 
Assim também vocês, depois de terem feito tudo o que lhes foi ordenado, digam: 'Somos servos inúteis; apenas cumprimos com o nosso dever'.
 
Gostaria de começar minha fala com um dístico do poeta latino, lírico e satirista, Horácio (Epístola 1 do Livro II, linhas 156-7): 
Graecia capta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio. 
A Grécia conquistada subjugou o (seu) feroz vencedor e levou as (suas) artes para o agreste Lácio. (Ou dito de outra forma: Roma, tendo vencido a Grécia, apropriou-se das artes gregas e as trouxe para o Lácio inculto.) 
 
Assim pensava o grande escritor latino que via com gratidão a influência grega como algo muito proveitoso aos romanos. Horácio era um dos grandes expoentes da Era de Ouro ou período clássico da literatura latina, representada, além dele, por Virgílio, Ovídio, Catulo, Cícero, Tito Lívio e Tácito, pelo menos. Como todo apogeu vem seguido por épocas menos privilegiadas, em seguida vem a Era de Prata seguida pelo período da Antiguidade tardia, que constituirá objeto da presente palestra e, dentro da linha do tempo, é considerada a época de declínio do Império Romano em que os "bárbaros" ameaçam e finalmente invadem suas fronteiras, conquistando Roma em 476 d.C.
Já a outra porção oriental do Império Romano, com sede em Constantinopla, continuou como território unificado até 1453.
 
Uma das questões sociológicas muito debatidas ao longo da história é a questão de saber se o Cristianismo contribuiu ou não para a queda do Império Romano do Ocidente. Santo Agostinho, filósofo cristão do século V, refutava essa conexão. Já o escritor inglês Edward Gibbon e o filósofo empirista escocês David Hume, propagadores da ideologia antirreligiosa do Iluminismo no século XVIII, acreditavam nessa conexão: cf. Gibbon in A História do Declínio e Queda do Império Romano (cap. 38). O Cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano em 391 d.C., com o imperador Teodósio I. O Império Romano do Ocidente cairia cerca de 100 anos depois, em 476 d.C., data da deposição do último imperador romano, Rômulo Augusto, por um grupo de mercenários; também os comandantes e chefes que tentavam manter o Estado romano nos últimos anos, na maioria do casos, eram de origem bárbara. Com o advento do Cristianismo, passou-se a contestar até então a reconhecidamente boa influência da cultura grega sobre o Lácio, em oposição ao que pregava Horácio.  Neste contexto social, impregnado pela nova crença cristã, os gregos, até então imitados devido à sua avançada mitologia e seu politeísmo, acabaram sendo considerados "pagãos". 
 
O tema desta palestra é a intolerância instigada pelo fanatismo religioso. Aqui vamos analisar brevemente a manifestação desta (intolerância) na Antiguidade tardia em relação aos "pagãos" do Mediterrâneo Oriental, máxime do Egito, e as reações imediatas e atitudes de longo prazo que ela provocou neles (isto é, nos "pagãos"). A perseguição dos cultos tradicionais e de seus adeptos no Império Romano nunca foi vista como tal e as razões, apesar das muitas evidências, são óbvias: por um lado, nenhuma igreja pagã emergiu da desordem social para canonizar seus mortos e expor uma teologia do martírio e, por outro, quaisquer que sejam suas crenças religiosas conscientes, os estudiosos da Antiguidade tardia, em sua esmagadora maioria, foram formados em sociedades cujos fundamentos éticos e lógicos são irreversivelmente cristãos. É certo que foram ocasionalmente abordadas algumas facetas desse assunto complexo, como o fechamento da Academia Ateniense, a demolição de templos ou sua conversão em igrejas e a decapitação de estátuas de deuses e semideuses; mas ainda não constituiu objeto de pesquisa acadêmica a perseguição pagã em si mesma, em todas as suas dimensões físicas, artísticas, sociais, políticas, intelectuais e psicológicas. Apresentarei aqui os resultados ainda iniciais de minha pesquisa, que é um modesto contributo para preencher esse vácuo supracitado e visa ao resgate da reconhecidamente escassa documentação para análise dos fatos determinantes em Alexandria do século V d.C. 
 
Para fins desta palestra, divido as fontes sobre a vida e obra de Hipátia de Alexandria em duas categorias: fontes primárias e fontes secundárias ou ficcionais. As primeiras estão geralmente escritas em grego patrístico ou latim, cujas traduções estão publicadas principalmente em inglês; estas são bem escassas. As outras, que são a maioria e estão escritas em quase todas as línguas, não se preocupam com a Hipátia histórica, apresentando um mito de Hipátia com diferentes narrativas, como a que a identifica como mártir, com evidentes exageros, e cujos elementos individuais são facilmente explicados pelos diversos motivos e diferentes intenções de seus autores.
 
FONTES PRIMÁRIAS SOBRE A VIDA E OBRA DE HIPÁTIA DE ALEXANDRIA
 
1) SÓCRATES ESCOLÁSTICO ¹, de Constantinopla (380 d.C.- ?)
É geralmente aceito que ele terminou sua História Eclesiástica (HE) em c. 439 d.C.
Sua HE cobre o período entre os anos de 305 e 439 d.C. Em seu prefácio menciona seus mestres: os gramáticos Eládio de Cesareia e Amônio, que chegaram a Constantinopla procedentes de Alexandria, onde eram sacerdotes pagãos. Foram obrigados a exilar-se no ano de 391 d.C.  depois de uma rebelião cristã contra os pagãos, na qual o templo Serapeum foi destroçado e a célebre Biblioteca destruída.
O seu relato é bastante neutro. Sua qualidade de seguidor do movimento minoritário novaciano permite-lhe observar os acontecimentos de uma posição relativamente alheia ao desenvolvimento da Igreja oficial.
Segue o exemplo de Eusébio de Cesareia de enfatizar o papel do imperador nos assuntos da Igreja.

O capítulo 13 da HE de Sócrates Escolástico é a fonte mais importante (se não a única) sobre o confronto cristão-judaico em Alexandria. Ele não dá tempo preciso, mas a ordem de sua narração parece colocar o primeiro motim em algum momento entre a ascensão de Cirilo a bispo (412 d.C.) e o assassinato de Hipátia (415 d.C.).

[DZIELSKA, 1996] ² considera Sócrates Escolástico o mais fidedigno historiador dos motins em Alexandria (e que não foram poucos); atribui as atitudes à cidade e seu clima como um todo, e não apenas a uma parcela da população, expressando, como outras fontes  antigas, "uma incapacidade de explicar a tendência dos alexandrinenses para a violência e crimes".

Segundo Sócrates Escolástico (HE Livro VII, cap. 13):

"(...) O público alexandrinense se deleita mais com o tumulto do que qualquer outro povo: e se em algum momento encontrar um pretexto, irrompe nos excessos mais intoleráveis; pois nunca cessa sua turbulência sem derramamento de sangue. (...)" 
O assassinato da sábia Hipátia de Alexandria em 415 d.C., vítima do fanatismo religioso, nunca foi adequadamente explicado.

"Morte da filósofa Hipátia" (1866), ilustração por Louis Figuier in "Vidas de sábios ilustres, desde a antiguidade até o século XIX", representando o que o autor imaginava ter sido o massacre de Hipátia pela multidão religiosa em 415 d.C.

A turba de Alexandria não é apenas responsável pela morte horrível de Hipátia na Páscoa de 415 d.C., mas também pela morte igualmente horrível do bispo Jorge durante o reinado de Juliano em 361 d.C., bem como pelo assassinato do Patriarca Protério em 457 d.C. Em todos os casos, "seus cadáveres, como aconteceu com Hipátia, foram arrastados por toda a cidade e depois entregues à pira", enquanto os responsáveis escapavam da punição, o que "muitas vezes acontece em casos de tumultos". Entretanto, Sócrates Escolástico opõe a conduta intempestiva, violenta e desrespeitosa de uma turba de cristãos, liderados por Pedro, em nítido contraste com a postura moderada e com a dignidade de Hipátia,  assumidas ao longo de sua vida. 
É geralmente aceito que ele terminou sua História Eclesiástica (HE) c. 439 d.C.
O capítulo 13 da HE de Sócrates Escolástico é a fonte mais importante (se não a única) sobre o confronto cristão-judaico de 417 em Alexandria. Ele não dá tempo preciso, mas a ordem de sua narração parece colocar o primeiro motim em algum momento entre a ascensão de Cirilo a bispo (412 d.C.) e o assassinato de Hipátia (415 d.C.).
 
Trecho da HE cap. 13, intitulado "Conflito entre cristãos e judeus em Alexandria: e ruptura entre o bispo Cirilo e o prefeito Orestes": 
"(...) Aconteceu na presente ocasião que surgiu um distúrbio entre a população, não por uma causa de grande importância, mas por um mal que se tornou muito popular em quase todas as cidades, a saber, um gosto por exibições de dança. Em consequência dos Judeus estarem desobrigados de negociarem no Sábado e de passarem seu tempo, não em ouvir a Lei, mas em diversões teatrais, os dançarinos frequentemente reúnem grandes multidões naquele dia, e uma desordem é produzida quase invariavelmente. E embora isso fosse em certo grau controlado pelo governador de Alexandria, no entanto os Judeus continuavam a se opor a essas medidas. Quando, por isso, o prefeito Orestes estava publicando um edito no teatro para a regulação dos shows, alguns da facção do bispo Cirilo estavam presentes para tomar conhecimento da natureza das ordens prestes a serem expedidas. Havia entre eles um certo Hierax, professor dos ramos rudimentares da literatura, e que era um ouvinte muito entusiasmado dos sermões do bispo Cirilo, e se destacou por sua ousadia em aplaudir. Quando os judeus observaram essa pessoa no teatro, eles imediatamente clamaram que ele tinha vindo ali com o único propósito de excitar a sedição entre o povo. Ora, Orestes há muito via com ciúmes o crescente poder dos bispos, porque eles usurpavam a jurisdição das autoridades nomeadas pelo imperador, especialmente porque Cirilo desejava espionar seus procedimentos; ele, portanto, ordenou que Hierax fosse preso e o submeteu publicamente à tortura no teatro. Cirilo, ao ser informado disso, mandou chamar os principais judeus e os ameaçou com a maior severidade, a menos que desistissem de molestar os cristãos. A população judaica ao ouvir essas ameaças, em vez de reprimir sua violência, só ficou mais furiosa e foi levada a formar conspirações para a destruição dos cristãos; um deles era de caráter tão desesperado que causou sua expulsão total de Alexandria; isso vou agora descrever. Tendo sido acordado que cada um deles deveria usar um anel no dedo feito da casca de um ramo de palmeira ³, para o reconhecimento mútuo, eles decidiram fazer um ataque noturno aos cristãos. Eles, portanto, enviaram pessoas para as ruas para levantar um protesto por estar em chamas a igreja com o nome de Alexandre. Assim, muitos cristãos ao ouvir isso correram, alguns, de uma direção, e outros, de outra, em grande aflição para salvar sua igreja. Os judeus imediatamente os atacaram e os mataram; facilmente distinguindo um ao outro por seus anéis. Ao raiar do dia, os autores dessa atrocidade não podiam ser escondidos: e Cirilo, acompanhado por uma imensa multidão de pessoas, indo às sinagogas deles – pois assim os judeus chamam sua casa de oração – tirou-os delas e expulsou os judeus para fora da cidade, permitindo que a multidão saqueasse seus bens. Assim, os judeus que habitavam a cidade desde o tempo de Alexandre, o Macedônio, foram expulsos dela, despojados de tudo o que possuíam, e dispersos alguns, em uma direção, e outros, em outra.(...)" (grifo nosso)

Ao ler Sócrates, Bright (1860) chegou à seguinte conclusão: “Se não houvesse ataque às sinagogas, sem dúvida não haveria nenhum assassinato de Hipátia”. Embora isso pareça apenas um palpite, vamos desenvolver a ideia nesta palestra.

 

2) DAMÁSCIO (458-538), natural de Damasco e escolarca da Escola de Atenas (conhecido como "o último dos neoplatônicos"), estudou retórica em Alexandria e então veio para Atenas como professor de retórica. Escreveu Vida do filósofo Isidoro (seu professor), escrita entre 517 e 526. Dentro desse livro, há um longo trecho referente a Hipátia, cujo parágrafo final, referindo-se à morte de Hipátia em 415 d.C. e às providências tomadas para apurar os responsáveis pelo seu crime, apreciarei abaixo:

“(...) Foi assim que eles infligiram a seu país essa mancha monstruosa e essa ignomínia. O imperador ficou indignado com isso [e ele teria sem dúvida punido severamente os culpados] se Edésio não tivesse se deixado subornar. Assim o Imperador impediu a punição dos assassinos, mas a atraiu sobre sua cabeça e sua descendência e seu descendente pagou o preço. A memória desses eventos ainda é vívida entre os alexandrinenses.”

Embora eu não tenha formação jurídica, aventuro-me a fazer algumas ponderações sobre a existência ou não de vestígios após o linchamento, esfolamento e, por fim, a condução do corpo de Hipátia à pira pelos responsáveis pelo massacre de Hipátia em 415 d.C.

Inicialmente, o que um perito judicial da época poderia ter feito além do exame do corpo de delito que provavelmente não tenha deixado vestígios?

Sabe-se que, neste caso de ausência de vestígios pelo fato de terem desaparecido, provas testemunhais poderiam suprir o exame do corpo de delito, considerado impossível. Certamente para coleta dessas provas testemunhais foi enviado Edésio, o investigador vindo de Constantinopla a Alexandria.

Podemos ainda supor que as provas testemunhais que Edésio obteve eram frágeis demais e não foram suficientes para identificar os reais autores do fato delituoso. Outra possibilidade também é que sua acusação não tenha prosperado por faltar-lhe a efetividade necessária na peça inicial da ação penal.

Embora o suborno nesses casos fosse comum, como defendem muitos autores, não posso garantir também que Edésio tenha feito uso do mesmo ardil, embora tenha passado para a História como tal. 

O problema no caso vertente é que o crime foi cometido por uma multidão insana e amotinada e fica muito difícil apontar culpados em motins e rebeliões.

Seja como for, Edésio concluiu algo incontestável: que os parabolanos eram uma ameaça à segurança pública. Como consequência, limitou-se o número deles a quinhentos; além disto, o grupo passaria a estar subordinado ao prefeito e não mais ao patriarca. A nova legislação ainda admoestava o bispo a manter-se distante da política: "(...) apraz Nossa Clemência [o imperador] que os clérigos não devam ter nada em comum com questões públicas ou temas pertinentes ao senado municipal." (Código Teodosiano, Livro XVI, 16.2.42)

Entretanto, dois anos depois, houve uma notável restauração do poder de Cirilo: o número de parabolanos subiu para 600 e eles foram novamente colocados sob direção do patriarca.
 
3) JOÃO MALALAS, cronista bizantino de Antioquia (c. 491-578)
 
4) FILOSTÓRGIO, natural da Capadócia, historiador da igreja anomoeana, uma divisão extrema dos Arianos. Ele escreveu uma história da controvérsia ariana intitulando História Eclesiástica, da qual apenas uma epítome, feita por Fócio, sobrevive.
 
5) JOÃO, bispo copta egípcio de Nikiu
Trecho de sua Crônica 84.87-103:
“E naqueles dias apareceu em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipátia, e ela era sempre dedicada à magia, astrolábios e instrumentos musicais, e ela seduzia muitas pessoas através de ciladas do demônio. E o governador da cidade (Orestes) a honrou muito; pois ela o havia seduzido através de sua magia. E ele deixou de frequentar a igreja como era seu costume. Mas ele foi uma vez em circunstâncias de perigo. E ele não apenas fez isso, mas atraiu muitos fiéis para ela, e ele mesmo recebeu os pagãos em sua casa.” 
Em seguida, em sua narração, apresenta um detalhe curioso: “E depois disso uma multidão de crentes em Deus se levantou sob a direção de Pedro, o magistrado, e eles continuaram a procurar a mulher pagã que havia enganado o povo da cidade e o prefeito com seus encantamentos. E quando souberam o lugar onde ela estava, foram até ela e a encontraram sentada em uma cadeira (alta)...”  (grifo nosso)
Essa referência a uma cadeira alta pode sugerir que Hipátia estava envolvida em observações astronômicas? Parece que sim. 
Finalmente, relata incidentes da disputa entre cristãos e judeus e a morte de Hipátia, após o que concluiu: 
"E todo o povo juntou-se ao patriarca Cirilo e o aclamou "o novo Teófilo"; pois ele tinha destruído os últimos resquícios de idolatria na cidade."  

6) SUDA LÉXIKON, uma enciclopédia do mundo mediterrâneo do século X 

Há trechos de dois verbetes na Suda Léxikon, a saber:

"Théon": "o do Museu , egípcio, filósofo, contemporâneo do filósofo Pappos, este também alexandrinense. Ambos floresceram sob o imperador Teodósio, o mais velho. Ele escreveu sobre assuntos matemáticos, aritméticos, Sobre as características e ângulo de visão dos pássaros e a voz dos corvos; Sobre o comando do cão; Sobre a subida do Nilo; Para o cânone fácil de Ptolomeu e Para a notícia sobre o astrolábio."

Théon (c. 335 – c. 405) foi um estudioso e matemático egípcio que viveu em Alexandria; foi o último diretor da Biblioteca de Alexandria antes de sua destruição em 391 d.C., bem como foi o último diretor do "Museu", até que este deixou de funcionar por ordem do imperador Teodósio em 391 d.C. Théon era o pai da famosa matemática, astrônoma e filósofa neoplatônica Hipátia.

 

"Hipátia": "filha do geômetra Théon, o filósofo alexandrinense, ela também filósofa conhecida por muitos; mulher de Isídoro, o filósofo; floresceu sob o imperador Arcádio; escreveu comentário para Diofanto, para o Cânone Astronômico de Ptolomeu, para as Cônicas de Apolônio; ela era por natureza mais dotada e capaz do que seu pai".

Hipátia escreveu um volume intitulado "Cânone Astronômico" enquanto procurava estudar e se aprofundar mais nas áreas de matemática e astronomia de seu pai do que ele tinha feito. Alguns estudiosos acreditam que o "Cânone Astronômico" era simplesmente uma coleção de tabelas astronômicas, enquanto outros acreditam que era um comentário sobre Ptolomeu. 
Um dos livros mais importantes de Ptolomeu é o Almagest. Comentários sobre o Livro Três foram feitos por Theon, onde ele diz que a obra está "na revisão crítica da filósofa Hipátia, minha filha".
Hipátia, segundo a Suda Léxikon, era “extremamente bela e formosa... em sua forma de articular a fala e a lógica, em suas ações prudentes e de espírito público, e o resto da cidade deu-lhe boas-vindas adequadas e reconhecendo seu respeito especial. 
Quanto à morte de Hipátia, a relação de Cirilo com o ocorrido é controversa. Sócrates Escolástico afirma que sua morte trouxe opróbrio para a Igreja de Alexandria e seu patriarca e bispo Cirilo, mas não menciona o envolvimento pessoal deste.  Damáscio, por sua vez, atribui explicitamente o assassinato ao patriarca, que teria inveja de Hipátia;  porém, a Enciclopédia Católica lembra que Damáscio escreveu muito depois do fato e afirma que ele repudiava os cristãos. Para João de Nikiu, não houve participação de Cirilo na morte de Hipátia. Vários autores tendem a atribuir culpa ou responsabilidade indireta ao patriarca Cirilo: ele teria incitado as multidões com seus discursos, mesmo não dando ordens explícitas. Outros afirmam que as multidões agiram por iniciativa própria e que Cirilo não tinha controle da situação. De qualquer forma, o episódio ficou associado a Cirilo.
Com base nas vários relatos, pode-se concluir que o bispo Cirilo se sentia incomodado e até enciumado com o brilho e a popularidade da professora, filósofa, matemática e astrônoma (quiçá escritora) Hipátia, mas não se deve ser leviano afirmando que a multidão criminosa tenha cometido o ato delituoso por ordem do bispo, a menos que se possa dispor ao mesmo tempo de uma prova documental consistente, pois, do contrário, corre-se o risco de ser acusado isto sim de cometer o crime de destruição de reputação, já que o bispo Cirilo é doutor da Igreja pelo papa Leão XIII e santo em várias Igrejas (Ortodoxa, Ortodoxa Oriental, Anglicana e Luterana); além disso, é considerado um dos Padres gregos que escreveu extensivamente e foi protagonista nas controvérsias cristológicas do final do século IV e do século V d.C., tendo combatido várias seitas.

 

CONCLUSÃO PESSOAL EXTRAÍDA DAS FONTES PRIMÁRIAS 

Comungo da opinião de que a morte cruenta de Hipátia durante a Páscoa de 415 d.C. pode estar relacionada com o contexto religioso contrapondo cristãos a judeus. Aventuro ainda a conjecturar que a pura "filantropia" que animava Hipátia em relação aos judeus e a influência que exercia sobre o prefeito Orestes foram os fatores determinantes da morte de uma provável "judia helenizada". Nada sabemos sobre a genealogia da filha de Théon, especialmente quanto à sua ascendência materna. Ora, na ocasião dois quintos da população alexandrinense era constituída de judeus; logo, não é improvável que sua mãe fosse uma judia. Se for possível comprovar essa hipótese algum dia, estamos diante de um indício claro de intolerância religiosa e discriminação racial.
Por ora, entretanto, desconheço se já existe qualquer confirmação de Hipátia ser filha de mãe judia, sendo amplamente conhecido que ela era uma "pagã" que falava publicamente sobre o neoplatonismo, um ramo da filosofia grega, não-cristã, mantendo um círculo de filósofos como divulgadora da filosofia neoplatônica. Diante do exposto, concluo reiterando a hipótese de que o assassinato da filósofa alexandrinense Hipátia por um grupo de fanáticos do bispo Cirilo foi o resultado do envolvimento dela no conflito entre a comunidade judaica (equivalente a quase dois quintos da população total) e a comunidade cristã. 

FONTES SECUNDÁRIAS OU FICCIONAIS  

Apresento as várias Hipátias, objeto das assim chamadas seitas anticristãs pelos defensores de Cirilo, Patriarca e bispo de Alexandria (412 d.C. - 444): 
a) Protestantismo: Principal representante: John Toland, anticlericalista protestante 
b) Iluminismo: Principais representantes: Voltaire e Edward Gibbon (autor de A História do Declínio e Queda do Império Romano, livro em 6 volumes publicados de 1776 a 1788) 
c) Romantismo: Principais representantes: poeta Leconte de Lisle (Hipátia para Lisle seria "o espírito de Platão e o corpo de Afrodite"); romancista histórico Charles Kingsley; romancista Maurice Barrès (que emprega a expressão "a última dos gregos" para Hipátia).  
d) Romancistas do século XX: Johann Rudolf Asmus (autor de Hypatia in Tradition und Dichtung), Mario Luzi, Andre Ferretti, Jean Marcel e Arnulf Zitelmann.  
e) Feminismo: A Hipátia do feminismo é uma mulher símbolo, uma feminista pioneira com uma vida libertadora, que é vítima do establishment dominado pelos homens, que não a tolerava.  
f) Cinema: Ágora, dirigido por Alejandro Amenábar. O mais recente filme sobre o tema da filósofa Hipátia e seu hediondo assassinato na Ágora de Alexandria, produzido em 2009 e estreado na Grécia no início de 2010 (com uma excelente Rachel Weisz no papel principal).
 
DESTRUIÇÃO DO SERAPEUM, DO MUSEU E DA BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA   
 
1) BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA
 

A Biblioteca foi construída no Brucheion (Bairro Real) no estilo do Lyceum de Aristóteles, adjacente a (e a serviço do) Mouseion (um templo grego ou "Casa das Musas", daí o termo "museu"). Seu principal objetivo era mostrar a riqueza do Egito, com a pesquisa como um objetivo menor, mas seu conteúdo foi usado para ajudar o governante do Egito.

Um terremoto no ano de 365 arrasou parte da construção. Nesta ocasião, 40.000 rolos foram transladados a uma biblioteca menor, o Serapeum (Σεραπεῖον em grego), templo dedicado a Serápis/Osíris que se localizava na periferia, em Canopo (ou Canobo) à sudoeste de Alexandria. Isto foi uma medida brilhante, pois parte do acervo que chegou aos nossos dias provém daí.Canopo (ou Canobo) era um distrito conectado a Alexandria por meio de um canal próximo ao rio Nilo, famoso pelo estilo de vida luxuoso de seus habitantes. Consta que os adoradores de Serápis, que dormiam no templo, relatavam curas milagrosas, o que contribuía para atrair peregrinos ao local.  

Mapa da antiga Alexandria. O Mouseion foi localizado no bairro real de Broucheion (listado neste mapa como "Bruchium") na parte central da cidade perto do Grande Porto ("Portus Magnus" no mapa).

Os suspeitos pela destruição da Biblioteca de Alexandria são um romano, um cristão e, finalmente, um muçulmano – Júlio César incendiou-a, não intencionalmente, em sua perseguição à frota de Pompeu, durante o cerco de Alexandria (48 a.C.); o patriarca Teófilo de Alexandria (tio do patriarca Cirilo, que o sucedeu) e o califa Omar de Damasco.

Em 64 d.C., Alexandria foi capturada pelo exército muçulmano de 'Amr ibn al-'As. Várias fontes árabes posteriores descrevem a destruição da Biblioteca pela ordem do califa Omar, o qual teria dito: "Se esses livros estão de acordo com o Alcorão, não temos necessidade deles; e se estes se opõem ao Alcorão, destruí-los".

Padre Eusèbe Renaudot (1646-1720) mostrou-se cético em relação a essas histórias, dado o intervalo de tempo que havia passado antes de serem escritas e levando-se em consideração as motivações políticas dos vários escritores.

Tentaremos chegar à história mais confiável sobre a destruição da Biblioteca analisando a abundância de fontes relevantes.

 

Um papel marcante teve Teófilo, o arcebispo que destruiu o último remanescente da grande Biblioteca de Alexandria, tendo sido sucedido em 412 d.C. por seu sobrinho, Cirilo, que continuou a tradição de seu tio das hostilidades em relação a outras religiões. (Uma de suas primeiras ações foi fechar e saquear as igrejas pertencentes à seita cristã Novaciana ).

Quando o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, a Biblioteca foi invadida e incendiada por cristãos que destruíram os livros que não estavam de acordo com sua fé.

Hoje em dia, não existem vestígios do complexo de edifícios onde estava a Biblioteca, o Museu e o instituto de pesquisa. No entanto, é possível visitar as ruínas e alguns túneis do Templo de Serápis (Σεραπεῖον em grego ou Serapeum em latim) onde foi guardada parte do acervo da Biblioteca.

Nenhum dos livros que escreveu Hipátia, estudiosa que ensinava e pesquisava fenômenos naturais, chegou até os dias de hoje; entretanto, sobreviveram aqueles que ela fez com seu pai, o filósofo Théon de Alexandria.

Cf. https://www.universoarabe.com/2019/01/historia-da-grande-e-antiga-biblioteca.html

 

2) SERAPEUM


O Serapeum (originalmente a "biblioteca-filha" da Grande Biblioteca) em Alexandria templo dedicado a Serápis/Osíris que se localizava na periferia, em Canopo (ou Canobo) à sudoeste de Alexandria. Foi destruído por uma multidão cristã ou soldados romanos em 391 (embora a data seja debatida). Existem vários relatos conflitantes para o contexto da destruição do Serapeum.

 

Reconstituição gráfica de como teria sido o Serapeum

Para [HAAS, ​1996:​128-72],​ o ​conflito ​entre ​pagãos e cristãos​ em​ torno ​do  ​Serapeum ​se ​iniciou​ com ​o ​projeto ​de ​renovação de uma basílica que havia sido cedida pelo imperador Constâncio ao bispo​ ariano ​Jorge​ da ​ Capadócia​ (356-361 d.C.). A​ tentativa​ de ​reforma​ da​ basílica​ trouxe  ​à​ tona​ instalações ​subterrâneas; o detonador dos conflitos derivou da postura dos cristãos em exporem publicamente no meio da Ágora objetos ​cultuais encontrados pelos cristãos ​que​ provavelmente remontavam ao culto mitraico. Haas nos conta que um​ pagão, ​Heládio,​ mais​ tarde,​ vangloriou-se​ junto ​a ​ Sócrates​ Escolástico por ter pessoalmente matado nove cristãos ​(1996:​162). Após​ tais​ investidas contra os cristãos, os pagãos se recolheram rapidamente no templo​ (Serapeum),​ junto ​a ​alguns​ reféns ​que ​foram ​ obrigados ​a​ realizar​ sacrifícios a Serápis sob pena de tortura ou morte. Autoridades civis e militares tentaram mediar o impasse, mas os pagãos aquartelados no templo mantiveram-se hostis a qualquer negociação.

Em​  resposta,​ Teodósio​ emite um​ edito​ pelo qual declarava​ que​ os​ cristãos alexandrinos assassinados deveriam ser considerados ‘mártires’ e os pagãos revoltosos anistiados, mas também ordenou a supressão dos cultos pagãos, responsáveis pelo desencadeamento dos atos violentos. O referido edito foi lido por Evágrio e Romano à frente dos soldados e diante dos pagãos aquartelados no templo e da multidão de cristãos sedenta pela resposta do imperador. ​Após ​a​ leitura, ​as​ reações foram imediatas: os pagãos apressaram-se em fugir do Serapeum e os soldados passaram a ocupar o templo abandonado. Depois de o templo ter sido abandonado pelos pagãos, vários alexandrinos curiosos teriam vagado pelos arredores apoderando-se​ dos​ objetos ​ do ​lugar.

Embora as narrativas se diferenciem em muitos aspectos, a historiografia​ cristã​ da Antiguidade tardia​ destaca​ a​ destruição​ do​ Serapeum​ como​ marca do triunfo do Cristianismo e, consequentemente, do deus cristão frente às religiões de matriz helênica ou romana.

 

Ruínas atuais do Serapeum de Alexandria, para onde a Biblioteca de Alexandria transferiu parte de sua coleção depois que ficou sem espaço de armazenamento no prédio principal.


Quaisquer que tenham sido os eventos anteriores, o Serapeum de Alexandria não foi reconstruído. Após a destruição de um mosteiro, foi construída uma igreja para São João Batista, conhecida como Angelium ou Evangelium. No entanto, a igreja caiu em ruínas por volta de 600 d.C., restaurada pelo patriarca Isaac (681-684 d.C.) e finalmente destruída no século X. Mais recentemente, um cemitério de Bab Sidra Moslem foi localizado no local.

Cf. https://www.universoarabe.com/2019/01/serapeum-da-alexandria-filha-da-antiga.html

 

 

FOTOS DE CATACUMBAS SOB O SERAPEUM





 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 


3) MUSEU

 

Mapa da antiga Alexandria. O Mouseion foi localizado no bairro real de Broucheion (listado neste mapa como "Bruchium") na parte central da cidade perto do Grande Porto ("Portus Magnus" no mapa).

 

 

Além de colecionar obras do passado, o Mouseion, que abrigava parte do acervo da Biblioteca, também serviu de lar a uma série de estudiosos, poetas, filósofos e pesquisadores internacionais. De acordo com o geógrafo grego Estrabão, do século I a.C, receberam um grande salário, alimentação e alojamento gratuitos e isenção de impostos. Eles tinham um grande refeitório circular com um teto alto e abobadado no qual eles faziam refeições comunitariamente. Havia também inúmeras salas de aula, onde se esperava que os acadêmicos, pelo menos ocasionalmente, ensinassem aos alunos.

 
 

4) REMANESCENTES DE HOJE

 

 

Pilar de Pompeu em 3 ângulos diferentes


 

 

 

 

 

 

 


 

Seu nome é enganoso. Esta única coluna em pé sobre uma colina rochosa no meio de Alexandria não tem nada a ver com o cônsul romano e general Gaius Pompeu, que foi rival de Júlio César em uma guerra civil e foi assassinado por um faraó ptolemaico em 48 a.C., quando fugiu para Alexandria. Pilar de Pompeu também é conhecido como Pilar da Vitória.

Cf. https://www.universoarabe.com/2019/01/serapeum-da-alexandria-filha-da-antiga.html

 

VISÃO RESPEITÁVEL DE MARIA DZIELSKA

 

Hipátia não foi a última pagã em Alexandria, nem foi a última filósofa neoplatônica. Neoplatonismo e paganismo sobreviveram em Alexandria e em todo o Mediterrâneo oriental por séculos após sua morte.

Em todo caso, [DZIELSKA, 1996] entende que, mesmo que Cirilo quisesse dar cabo da filósofa, "era difícil atacar ou perseguir Hipátia a pretexto de seu paganismo, porque, ao contrário de seus contemporâneos, ela não era uma pagã ativa e devotada. Ela não cultivou a filosofia mágica neoplatônica, não ia aos santuários pagãos, bem como não reagia à sua conversão em igrejas cristãs. Na verdade, ela gostou do Cristianismo e protegeu seus discípulos cristãos. Com seu secularismo e compreensão plena das questões metafísicas, ela os ajudou a alcançar a realização espiritual e religiosa. Dois deles se tornaram bispos. Os pagãos e os cristãos que estudavam com ela eram amigos entre si".

Além disso, como se depreende das fontes, nenhum caso de ciúme sexual poderia existir contra uma mulher com idade entre 45-60 anos, cuja modéstia, ascetismo e abstinência consciente de qualquer atividade sexual eram conhecidos de todos.

A historiadora polaca ainda teceu interessante argumentação a respeito do delito monstruoso. O assassinato da sábia Hipátia de Alexandria nunca foi adequadamente explicado, quando tombou vítima do fanatismo cristão.

Aparentemente, Hipátia não foi perseguida por suas ideias religiosas ou filosóficas. Como Crawford e Rist, entre outros, argumentaram, a morte de Hipátia foi resultado dos tumultos em Alexandria com causas mais políticas do que religiosas. A cidade sofria de conflitos, e a multidão cristã estava certa de que a influência de Hipátia estava exacerbando o conflito e acreditava que, se ela saísse do caminho, a reconciliação (entre o prefeito Orestes e o patriarca Cirilo de Alexandria) poderia ser concretizada. Assim, eles a assassinaram por iniciativa própria, não como inimiga da fé, mas como um suposto obstáculo à sua paz. 

 

"HIPÁTIA" NA ENCICLOPÉDIA PAPYRUS LAROUSSE BRITANNICA, vol. 59

 

Vamos apreciar finalmente o que registra a Enciclopédia Papyrus Larousse Britannica, vol. 59, no seu verbete "Hipátia":

De acordo com a enciclopédia Suda, Hipátia escreveu comentários sobre a Aritmética de Diofanto de Alexandria, as Cônicas de Apolônio de Perga e o cânone astronômico de Ptolomeu. Essas obras estão perdidas, mas seus títulos combinados com as cartas do discípulo dela, Sinésio, que a aconselhou em assuntos como a construção de um astrolábio, mostram que ela se dedicava particularmente à astronomia e à matemática, enquanto é desconhecida a existência de algumas obras estritamente filosófica dela. As cartas de Sinésio falam de sua importância no reino do espírito com admiração e grande respeito, mas, ao contrário, Damáscio de Damasco formulou julgamentos bastante desdenhosos sobre ela; como sabemos que os trabalhos matemáticos de Hipátia eram muito populares entre os gerações subsequentes de seus alunos, em seu relato de sua vida, Damáscio usa esse fato para diminuí-la como intelectual e sugerir que ela era uma erudita comum. 

No entanto, "seu escritor eclesiástico contemporâneo Sócrates, narrando seu martírio, exalta seu comportamento modesto, sua venerável presença e a superioridade dos filósofos contra ela". Sócrates ainda escreve: "alcançou tal altura de erudição que superou todos os filósofos de seu tempo, assumiu a escola platônica fundada por Plotino e deu suas palestras filosóficas a todos aqueles que queriam ouvi-la". Assim, o tipo de filosofia que Hipátia ensinou a seus alunos, que é inferido principalmente com base nas descrições de Sinésio, também é confirmado por outras fontes. Sócrates, sem dúvida, significa que a importância de Hipátia excedeu a dos outros filósofos alexandrinos do final do século IV e início do século V. De fato, os filósofos remanescentes daquele período mencionados nas fontes parecem ter caído na obscuridade. 

Seus alunos regulares e mais dedicados encontravam Hipátia com frequência, e seu relacionamento com o professor refletia um contato duradouro de afeto e devoção duradoura. Eles consideravam Hipátia não apenas uma professora de filosofia, mas também uma mãe ou irmã. Seu sentimento de devoção à professora era tão profundo que Sinésio estava disposto a deixar sua terra natal por causa dela. Este círculo fechado de estudantes, dentro do qual preferiam ser chamados de "parceiros", tinha os laços mais profundos.

Parece que Hipátia não apresentou um ensinamento filosófico que carregasse sua marca pessoal. Hipátia ensinava diariamente em sua casa, para alunos que vinham "de todos os lugares", mas também dava palestras para o público em geral, sempre sobre a filosofia de Platão e Aristóteles ou comentários sobre a obra de certos matemáticos e astrônomos.
 

INTOLERÂNCIA LUSO-BRASILEIRA

Os eventos ao redor da morte de Hipátia, identificados com a existência de Estados religiosos, são indicativos de seu "caráter policial" que parece ter perdurado para além do Renascimento, inclusive atingindo até mesmo o Brasil em plena época colonial, representado pelo famigerado Tribunal do Santo Ofício. Com efeito, no ano passado, comemoramos o bicentenário do término da Inquisição luso-brasileira (1821-2021). 

(Palestra pronunciada em 08 de novembro de 2022 na sede da AMULMIG-Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais em Belo Horizonte) 


 

NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹ Do século III ao VII d.C., o número de pessoas conhecidas como "escolásticas" é particularmente alto. Essas pessoas eram bem formadas em retórica e conhecimento jurídico. O termo não designava uma profissão específica; embora muitas vezes durante esse período um σχολαστικός reunisse as características de um jurista no sentido atual, podia o termo ser aplicado a consultor jurídico, professor de direito, juiz, notário, etc. Embora não estivesse diretamente relacionado com o sistema educativo como professor ou professor de retórica, ocasionalmente um σχολαστικός  poderia ter sido, em determinadas circunstâncias, professor particular de gramática (grammaticus em latim, γραμματικός em grego).
 
² O livro desta autora polonesa, intitulado "Hipátia de Alexandria", descreve a morte de Hipátia mais como um assassinato político do que apenas nas mãos de uma multidão muito enfurecida. Sugere que Hipátia se envolveu em uma rivalidade entre Cirilo, o bispo de Alexandria, e Orestes, a autoridade civil da cidade que chegou algum tempo depois que Cirilo assumiu o cargo de bispo, após a morte de Teófilo, seu tio. Hipátia ficou do lado de Orestes. Sua influência foi tão grande que isso prejudicou Cirilo e ele se moveu contra ela, acabando por matá-la, embora ele não tenha se envolvido pessoalmente.
 
³ Qualquer semelhança não é mera coincidência. No presente, a utilização de anel do tipo anel de tucum, feito a partir de uma palmeira da Amazônia, foi resgatada por fiéis cristãos, especialmente por católicos após o Concílio Vaticano II e as Conferências Episcopais de Medellín e de Puebla e por adeptos da teologia da libertação.
 
A alusão designa Valentiniano III, imperador romano do Ocidente de 425 a 455 d.C., que morreu assassinado. Valentiniano III era, na verdade, não o "descendente", mas o primo por parentesco com Teodósio II que o narrador julga responsável pela impunidade assegurada aos assassinos de Hipátia.
 
Conforme a Wikipedia, "parabolanos" era a denominação dos membros de uma irmandade cristã que, nos primeiros séculos da Igreja, se encarregavam, de forma voluntária, de realizar obras de misericórdia, tais como cuidar dos enfermos e  enterrar os mortos. Geralmente extraídos dos estratos mais baixos da sociedade, eles também funcionavam como assistentes de bispos locais e às vezes eram usados ​​por eles como guarda-costas e em violentos confrontos com seus oponentes. Os parabolanos não tinham ordens nem votos, mas eram enumerados entre o clero e gozavam de privilégios e imunidades clericais. Sua presença em reuniões públicas ou nos teatros era proibida por lei.

De acordo com muitos autores, esta expressão provavelmente se refira à denominação da escola “Museu” de Théon, e não ao fato de ter sido o último diretor do monumento arquitetônico de Alexandria.

Seita fundada no século III pelo primeiro antipapa, Novaciano, que pretendia que a apostasia, por receio de perseguições, não podia ter perdão. A doutrina intransigente preconizada por Novaciano caracterizava-se, entre outras coisas, pela exaltação da castidade e da fidelidade conjugal (mesmo após a morte do cônjuge não se poderia a voltar a casar) e pela proibição da assistência a espetáculos como o circo.

Cirilo fechou as comunidades dos novacianos e tomou seus objetos sacros. Os novacianos eram a seita dos seguidores do antipapa Novaciano que se separaram da Igreja basicamente porque acreditavam que os cristãos que apostataram durante a perseguição de Décio (os lapsi) não podiam ser perdoados e nem readmitidos. Entretanto, suas práticas condiziam com a dos cristãos em quase todos os demais aspectos, e Gibbon os descreve como "os mais inocentes e inofensivos dos sectários".

 

Certificado concedido ao palestrante pela presidente da AMULMIG

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRAGA, Francisco José dos Santos: HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte 1, postado no Blog do Braga em 17/09/2022
 
–––––––––––––––––––––: SÃO JOÃO DEL-REI SEDIOU REUNIÃO DA ACADEMIA MUNICIPALISTA DE LETRAS DE MINAS GERAIS (AMULMIG) EM 1964

BRIGHT, William: Socrates' Ecclesiastical History, according to the text of Hussey, 2ª edição, 1893

DZIELSKA, Maria: HYPATIA OF ALEXANDRIA,  Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1996, 176 p.

FARIAS JÚNIOR, José Petrúcio de: Hipátia de Alexandria: História e Cinema, Belém: RFB Editora, 2022, 180 pp. (p. 78 a 118)

FREITAS, Cris: História da Grande e Antiga Biblioteca da Alexandria, postado no Blog Universo Árabe
Serapeum da Alexandria, a Filha da Antiga Biblioteca de Alexandria, postado no Blog Universo Árabe

HAAS, Christopher: ALEXANDRIA IN LATE ANTIQUITY: Topography and Social Conflict. Londres: The Johns Hopkins University Press, 1997, 494 p.

ΣΟΥΔΑ ΛΕΞΙΚΟΝ από τον εκδότη Οδυσσέα Χατζόπουλου, Atenas: ΕΚΔΟΣΕΙΣ ΚΑΚΤΟΣ, 2004, 8 volumes