terça-feira, 3 de novembro de 2020

GERAÇÃO DE IDEIAS PELO DIA DE FINADOS

 
Por Francisco José dos Santos Braga

 

PRIMEIRA ESTAÇÃO 

Nesta data de 2 de novembro em que reverenciamos a memória dos nossos entes queridos falecidos, valho-me do carme 101 do poeta Catulo (Gaius Valerius Catullus, ✰ Verona, 87 ✞ Roma, 54 a.C.), composto de 10 versos escritos em dísticos elegíacos, isto é, formados por cinco pares de hexâmetro seguido de pentâmetro. 

Catulo foi integrante do grupo de "poetas novos" em Roma, que desempenharam um papel essencial no desenvolvimento da poesia na época de Augusto, tendo ajudado a criar a possibilidade da profissão de poeta. Atribui-se ao mesmo grupo a iniciativa de ter trazido para Roma o estilo culto e constrangido da poesia helenística, contribuindo para criar e explorar aqueles interesses pela patologia erótica que deu origem à elegia de amor. Mais tarde, durante o Império, Catulo se tornou o modelo para os epigramas de Marcial, poemas que eram espirituosos, frequentemente com observações vulgares e satíricas da vida em Roma, fazendo amplo uso da linguagem coloquial. Por tais razões, sua poesia praticamente ficou esquecida com raras exceções ao longo dos séculos. Só bem mais tarde, os sábios renascentistas o ressuscitaram como mestre de talento e brevidade, principalmente após vir à tona o manuscrito conhecido como V em Verona cerca do ano de 1305, apenas para desaparecer antes do fim do século. A descoberta fortuita de V deu uma segunda vida a Catulo e sua poesia, pois felizmente duas cópias foram feitas de V: O e X. Daquela época até hoje, só tem aumentado a admiração pelo poeta Catulo. Logo ele se tornou um dos favoritos da lírica europeia, à medida que seu verso respondeu bem a diferentes leitores anglo-saxões em diferentes épocas: Robert Herrick, John Milton, o romântico William Butler Yeats e os modernos T. S. Eliot, Ezra Pound e Robert Frost. 

Segue abaixo o texto latino no formato de elegia (em dísticos) do Carme 101 de Catulo: 

Multas per gentes et multa per aequora vectus 
advenio has miseras, frater, ad inferias, 
 
ut te postremo donarem munere mortis 
et mutam nequiquam alloquerer cinerem. 
 
Quandoquidem fortuna mihi tete abstulit ipsum. 
Heu miser indigne frater adempte mihi, 
 
nunc tamen interea haec, prisco quae more parentum 
tradita sunt tristi munere ad inferias, 
 
accipe fraterno multum manantia fletu, 
atque in perpetuum, frater, ave atque vale. 
 
Minha tradução do latim:
 
Tendo sido transportado por muitos povos e muitos mares, 
cheguei, ó irmão, a estas tristes ofertas fúnebres 
 
para prestar-te a derradeira homenagem de morte, 
e falar inutilmente com as tuas mudas cinzas. 
 
Já que a sorte te afastou de mim, 
ai, pobre irmão, cruelmente arrebatado de mim, 
 
ao menos aceita agora, conforme antigo costume de nossos ancestrais, 
essas tristes ofertas que te são trazidas, 
 
banhadas de muito pranto fraterno. 
Irmão, eu te saúdo. Adeus para sempre. 
 
 
SEGUNDA ESTAÇÃO 
 
David Eagleman, PhD, é neurocientista e autor de best-sellers traduzidos para várias línguas. Ele leciona na Universidade de Stanford, é o criador e apresentador da série de televisão indicada ao Emmy, O Cérebro, e é o CEO da Neosensory, uma empresa que constrói a próxima geração de hardware de neurociência. Autor de sete outros livros, ele mora no Vale do Silício, na Califórnia. 
Um de seus livros mais lidos tem título curioso "Sum: Forty Tales from the Afterlives", cuja tradução literal para o português ficaria: Eu sou: Quarenta Contos do Além, ou com o título português bem mais prolixo: Cogito Ergo Sum: Quarenta Histórias da Vida para além da Morte, Lisboa: Editorial Presença, 2010, 104 páginas, cuja sinopse diz: "Este é um livro para que não existe termo de comparação. Estes contos ressumam humor e ironia na mesma medida da sua originalidade e desafiadora subtileza, criando em certa medida intrigantes novas perspectivas sobre o nosso presente. (...)". 
Esse livro foi escrito como obra de ficção onde imagina 40 diferentes pós-vidas. Sobressai na coletânea dos 40 contos, um que se intitula "Metamorfose", para cujo texto impactante ofereço abaixo a...
 
Minha tradução do inglês: 
 
"Há três mortes. A primeira é quando o corpo deixa de funcionar. A segunda é quando o corpo é colocado na tumba. A terceira é aquele momento no futuro, em que o nome da pessoa é pronunciado pela última vez. 
Então você espera neste saguão até a terceira morte. Há mesas compridas com café, chá e biscoitos; você mesmo pode servir-se. Há pessoas aqui de todo o mundo e, com um pouco de esforço, você pode começar uma conversa animada. Esteja ciente de que a conversa de vocês pode ser interrompida a qualquer momento pelos Porta-vozes, que anunciam o nome do seu novo amigo para indicar que nunca mais haverá outra lembrança dele por ninguém na Terra. Seu amigo despenca: seu rosto como um prato quebrado e colado de novo, desconsolado, embora os Porta-vozes lhe digam gentilmente que ele está indo para um lugar melhor. Ninguém sabe onde esse lugar melhor está ou o que ele oferece, porque ninguém que sai por aquela porta voltou para nos contar. 
Todo o lugar parece uma infinita sala de espera de um aeroporto, mas a companhia é ótima. Há muitas pessoas famosas dos livros de história aqui. Se ficar entediado, você pode avançar com independência em qualquer direção, passando por alas e alas de assentos. Depois de muitos dias de caminhada, você começará a notar que as pessoas parecem diferentes e ouvirá sons de línguas estrangeiras. As pessoas se reúnem com os de sua própria espécie, e o que se vê é o surgimento espontâneo de territórios que refletem a forma como foram constituídos na superfície do planeta. Com exceção dos oceanos, você está atravessando um mapa da Terra. Além de nenhum oceano, não há fusos horários também. Ninguém dorme aqui, embora a maioria desejasse poder. O local é uniformemente iluminado por lâmpadas fluorescentes. 
Nem todo o mundo fica triste quando os Porta-vozes gritam seus nomes, enquanto anunciam a partida do próximo vôo. Pelo contrário, algumas pessoas pedem e imploram quando os Porta-vozes entram. Eles se prostram aos pés dos Porta-vozes enquanto os próximos nomes são lidos. Geralmente são as pessoas que estão aqui há muito, muito tempo, principalmente aquelas que são lembradas por motivos desleais. Por exemplo, tome o fazendeiro ali, que se afogou em um pequeno rio há 200 anos. Agora, sua fazenda é o local de um pequeno colégio, e os guias turísticos contam sua história toda semana. Então ele está apegado e infeliz. Pois quanto mais sua história é contada, mais ela se espalha. Ele está totalmente alienado de seu nome; não mais se identifica com ele, mas continua a apegar-se a ele. A mulher desanimada do outro lado é louvada como santa, embora os caminhos em seu coração tenham sido complicados. O homem de cabelos grisalhos na máquina de venda automática foi celebrizado como herói de guerra, depois demonizado como chefe de bando e finalmente canonizado como agitador necessário entre dois momentos na história. Ele espera com o coração dolorido que suas estátuas caiam. E essa é a maldição desta sala: uma vez que permanecemos vivos na cabeça daqueles que se lembram de nós, perdemos o controle de nossas vidas e nos tornamos quem eles querem que sejamos." ¹
 
 
Fiquemos no primeiro parágrafo do texto, em que David Eagleman diz que cada pessoa morre três vezes: a primeira ocorre no momento em que suas funções vitais cessam; a segunda é quando o seu corpo é colocado na tumba; e a terceira acontece em algum momento no futuro, no qual o nome dela é pronunciado pela última vez. Aí então a pessoa realmente morre. 
Pois é! Consta que é no México que existe essa curiosa crença. 
De qualquer forma, é uma crença que estimula muito todos os genealogistas, pois, consciente ou inconscientemente, eles se habituam a repetir muitos nomes de ascendentes, o que favorece a preservação de sua memória, mas mais importante ainda, contribui para não deixar advir a terceira morte àquelas pessoas que se encontram no pós-vida. A ideia é que a pessoa realmente morre apenas quando seu nome deixa de ser mencionado ou lembrado.
 
 
ÚLTIMA ESTAÇÃO 
 
No dia de Finados, uma pessoa que já não está entre nós tomou conta de minha memória: minha finada mãe Celina dos Santos Braga. Recordei diversas passagens de sua vida, a saber: seu nascimento em 23/01/1928, a quarta de 10 crianças ao todo, que foram fruto da união de Francisco Nestor dos Santos, natural de Barroso-MG, e de Brasilina Sebastiana dos Santos, nascida no distrito de Vitoriano Veloso ("Bichinho") da cidade de Prados-MG. De todos os seus 8 filhos que sobreviveram, apenas minha mãe teve um curso secundário, tendo obtido seu diploma de normalista em 1944 e dando muito orgulho a seus pais. Imaginei as dificuldades que enfrentou, dividindo seu tempo entre dois misteres: preparar as atividades prescritas pelas professoras e ao mesmo tempo ajudar seu pai nas correspondências comerciais dos vários empreendimentos em que ele se meteu, com muita competência diga-se de passagem. Mas a sorte estava lançada para a curta existência de seu pai: em 06/02/1946 a moira cortou-lhe o fio da vida de forma cruenta e atroz, tendo morrido eletrocutado. 
 
Quadro de formatura de normalistas de 1944
 
Normalista de 1944: Celina dos Santos
 
Convite para a cerimônia de formatura das normalistas em 8/12/1944
 
Desde que minha mãe se formou normalista (1944) até uma data próxima a seu casamento com meu pai, o bancário Roque da Fonseca Braga, em 15/02/1947, exerceu a profissão de professora rural numa sala da Estação Ferroviária César de Pina (que funcionou ininterruptamente de 1923 a 1966) nas Águas Santas em Tiradentes-MG. Com o casamento veio a decisão de abandonar o magistério para cuidar exclusivamente da educação de sua futura família constituída de 8 filhos, todos com formação universitária. Minha mãe retomou sua carreira pedagógica um pouco antes da morte de meu pai (26/09/1984) e se prolongou por 30 anos, até cerca de 4 anos antes de sua morte em 29/05/2014, colaborando com as aulas de catecismo para moradores do Alto das Mercês e da Rua do Ouro em São João del-Rei, no âmbito das Obras Sociais da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, sob a direção do Monsenhor Sebastião Raimundo de Paiva. Até onde pôde, resistiu e perseverou na fé cristã, ensinando e formando crianças, adolescentes e adultos. Sua vida consistiu numa luta renhida, personificando um princípio enunciado por Guimarães Rosa: "O que a vida quer da gente é coragem.
 
Em todos os dias do ano e particularmente no dia de Finados, eu leio em voz alta o nome de meus ancestrais e especialmente o de minha genitora, e, dentro daquela crença mexicana, também contribuo para não deixar acontecer sua terceira morte. 
 
 
 

I. AGRADECIMENTO



Agradeço carinhosamente à minha esposa Rute Pardini Braga pelo trabalho fotográfico, edição e formatação das fotos.
 


II. BIBLIOGRAFIA



¹   EAGLEMAN, David: Sum: Forty Tales from the Afterlives,  Pantheon Books, 2009, 110 p.