quarta-feira, 31 de maio de 2017

FELIX MENDELSSOHN: REVITALIZANDO AS OBRAS DE JOHANN SEBASTIAN BACH


Por Performing Arts Encyclopedia e Klaus Winkler

Traduzido por Francisco José dos Santos Braga

Felix Mendelssohn Bartholdy (☆ Hamburgo, 1809-✞ Leipzig, 1847)


A estatura de Johann Sebastian Bach como compositor de extraordinário gênio e ampla influência está tão firmemente estabelecida na cultura ocidental que é difícil imaginar que, apenas há pouco mais de um século e meio, sua música e reputação se esvaíam na obscuridade, virtualmente desconhecidas por todos, exceto por alguns especialistas. Foi através do reconhecimento de Mendelssohn do gênio de Bach e dos esforços do primeiro em tornar as obras de Bach acessíveis a um público mais amplo que essas obras hoje são reconhecidas como ápices da expressão musical.
Felix Mendelssohn Bartholdy, descendente de Johann Sebastian Bach
Devido ao curioso número de coincidências envolvendo os cruzamentos de membros tanto da família Bach quanto da família Mendelssohn, foi talvez inevitável em retrospectiva que Felix Mendelssohn salvasse a música de Bach do esquecimento iminente. A tia-avó Sarah Itzig Levy(1761-1854) uma irmã de Bella Salomon, avó materna de Mendelssohn deu apoio a um ativo salão de música em sua casa berlinense onde cultivava devoção à música de Johann Sebastian Bach. Sarah era uma musicista consumada, tendo estudado o clavicórdio com o filho primogênito de Bach, Wilhelm Friedemann Bach ou W.F. Bach; também encarregou obras e adquiriu manuscritos de outro filho de Bach, o segundo mais velho, Carl Philipp Emanuel Bach. R. Larry Todd, estudioso especializado em Mendelssohn, aponta que o "estilo galante" de várias sinfonias para cordas do jovem Felix, datando da década de 1820, pode ter sido influenciado pelas obras de C.P.E. Bach.

A admiração de Sarah Levy pela música de J.S. Bach também incentivou-a a tornar-se membro no coro da respeitável Berlin Singakademie, que tinha sido fundada em 1791 por Carl Friedrich Christian Fasch a fim de promover o repertório coral sacro alemão. C.F.C. Fasch, ele próprio um entendido nos motetos de Bach, dirigiu a instituição até sua morte em 1800; seu sucessor, Carl Friedrich Zelter (1758-1832), foi contratado mais tarde (1819), talvez por recomendação de Sarah, como tutor musical dos jovens Felix e Fanny. Sob a direção de Zelter, muitas obras do repertório alemão (tanto corais quanto instrumentais) que tinham caído em desuso inclusive as de Bach (a saber, sua Missa em si menor) foram desenterradas e estudadas. Tanto Felix quanto Fanny se juntaram ao coro da Singakademie, e assim participaram ativamente da redescoberta desse repertório.
Felix Mendelssohn e sua irmã, Fanny Mendelssohn Hensel

Enquanto Zelter era principalmente conhecido como compositor, regente e professor durante sua vida, seu maior legado foi ter criado programas abrangentes de educação musical e instituições de treinamento por toda a Alemanha. Para o jovem Felix, contudo, e durante os sete anos que estudou com Zelter, o velho compositor permaneceu uma influência musical dominante, munindo seu aluno com um sólido treinamento musical arraigado nas tradições do século XVIII.

Também coincidiu que, à época do nascimento de Felix, seu pai Abraham entrou na posse  de uma coleção de manuscritos de obras de J.S. Bach, adquiridos num leilão em Hamburgo em 1805; quarenta e três desses manuscritos foram subsequentemente (em 1811) enviados à Berlin Singakademie para custódia. De acordo com R. Larry Todd, Zelter pressionou Abraham a prosseguir em seus esforços de "salvar" outras obras de Bach, com a seguinte ressalva: excetuando os entendidos, "quem mais nestes nossos tempos compreenderia tais coisas?

Em 1823 (ou possivelmente 1824), a avó materna de Felix, Bella Salomon, brindou-o com um presente que deveria alterar o curso de vida dele: a partitura manuscrita da Paixão segundo São Mateus de J.S. Bach, feita por um copista. Enquanto Felix ficava familiarizado com apenas alguns trechos da obra durante a época em que foi corista na Singakademie, deve ter sido nada menos do que uma revelação seu primeiro encontro com a partitura integral de uma das obras mais profundas e grandiosamente concebidas. (Deve ser creditado a Bella e à sua sensibilidade musical, que reconheceu na Paixão, obra que era essencialmente desconhecida naquela época, um dos trabalhos mais profundamente espirituais jamais escritos; aparentemente ela enfrentou alguma dificuldade debatendo com Zelter quando tentou resgatar dele a cópia da obra para mandá-la copiar por Eduard Rietz para seu neto.)

A partitura assaltou a imaginação de Felix. Apesar de a reputação de Bach ser geralmente desfavorável naquela época (era considerado um pouco mais do que um "matemático" musical, referência àquilo que eventualmente seria reconhecido como seu uso extraordinário do contraponto e da simetria musical) e às inúmeras dificuldades apresentadas pela partitura (isto é, a complexidade e a estranheza de sua linguagem), Felix contudo concebeu a ideia de preparar toda a Paixão segundo São Mateus para apresentação.  

Embora o próprio Zelter tivesse anteriormente tentado montar a apresentação da Paixão sem sucesso, essa tarefa monumental iria requerer os esforços de um indivíduo com a visão e gênio para completá-la uma tarefa para a qual Mendelssohn convinha perfeitamente. Cinco anos mais tarde, realizava-se o sonho de Mendelssohn: foi preparada e também ensaiada e regida por ele, numa apresentação na Singakademie em 11 de março de 1829, uma versão reduzida da obra (incluindo cortes e alterações de algum material, compromissos julgados necessários na esperança de tornar mais acessível às audiências da época). Pela primeira vez em um século, a beleza da Paixão segundo São Mateus foi revelada ao público alemão, provocando uma recepção não diferente daquela experimentada pelo jovem Felix ao ver a partitura da obra pela primeira vez. A histórica apresentação, devido em grande parte à visão de Mendelssohn (ele tinha apenas quinze anos quando viu pela primeira vez a partitura da Paixão, e vinte, quando seus esforços de apresentar a obra foram concretizados), resultou num ressurgimento em larga escala e reavaliação das obras de Bach por toda a Alemanha e além, e num reconhecimento universal do seu gênio e significância.

Nas suas preparações para apresentar outras obras de Bach, o próprio Mendelssohn copiava as partes instrumentais. Entre as poucas partes que foram preservadas, estão as do manuscrito de Mendelssohn para clarineta e fagote para a Cantata BWV 106 de Bach, "Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit", que constitui acervo das coleções da Biblioteca do Congresso.

Durante os últimos anos de sua vida, Mendelssohn prestou homenagem adicional a J.S. Bach preparando uma edição das obras para órgão deste último (publicada em Londres por Coventry e Hollier, 1845-46). As próprias (i.e. por Mendelssohn) Seis Sonatas para órgão, op. 65 (1845) não apenas renovaram o interesse no repertório para órgão, e especialmente no de Bach, mas também impeliram à composição de novas obras para órgão por outros compositores importantes. 
Uma das gravações da música integral para órgão composta por Mendelssohn

O ressurgimento das obras de Bach que Mendelssohn tinha iniciado quase vinte anos antes, continuou a ser cultivado ao longo da vida do compositor: os resultados desses esforços altruístas não estão menos diminuídos em nossos dias.


Crédito: Biblioteca do Congresso, Divisão de Música.

Fonte: Felix Mendelssohn: Reviving the Works of J.S. Bach. Online Text. Retrieved from the Library of Congress, https://www.loc.gov/item/ihas.200156436/. (Accessed May 26, 2017.)



Felix Mendelssohn apresentou a Paixão segundo São Mateus em Berlim em 1829 e 1841. Em 11 de março de 1829, a Paixão foi ouvida de novo pela primeira vez em 100 anos. A apresentação marcou a redescoberta de Bach como compositor, tendo começado uma revitalização de suas obras. Como parte dos "Concertos Históricos", uma apresentação da Paixão se deu em 4 de abril de 1841, no Domingo de Ramos, na igreja de São Tomás, em Leipzig, o local de sua primeira apresentação.

As circunstâncias do concerto de Berlim estão excepcionalmente bem documentadas. Conta-se que Felix Mendelssohn ganhou de sua avó uma cópia da partitura da Paixão segundo São Mateus pelo Natal de 1823 ou pelo aniversário em 3 de fevereiro de 1824. 

Os ensaios começaram em 2 de fevereiro de 1829 na Singakademie; os ensaios orquestrais, em 6 de março. O coro era composto de 158 cantores. Mendelssohn regeu a apresentação, de um piano de cauda com uma batuta. O Rei com sua corte, os preeminentes intelectuais da época, inclusindo Schleiermacher, Heine, Hegel, Spontini, Zelter e a nata da sociedade berlinense assistiram à performance. Em 21 de março de 1829, aniversário de Bach, realizou-se uma segunda apresentação. A obra foi ouvida uma terceira vez na Sexta-feira Santa, 17 de abril de 1829, regida por Zelter.

A música usada para ambas as apresentações é igualmente bem documentada, e está preservada na Bodleian Library em Oxford. Igualmente sobreviveram, como a cópia da partitura já mencionada, todas as partes instrumentais para as apresentações de 1829 e 1841, juntamente com um conjunto de partes corais para ambos os coros.

Para a primeira apresentação, Mendelssohn fez anotações na partitura a lápis, e as poucas alterações subsequentes para a segunda apresentação se destacam a caneta de tinta vermelha e a lápis comum, bem como com diferentes estilos caligráficos.

Felix Mendelssohn encurtou a Paixão segundo São Mateus para a apresentação berlinense em dez árias, quatro recitativos "accompagnato" e seis corais. Para a apresentação de 1841 ele então readmitiu cinco movimentos.

Sua ideia básica com o arranjo era, por um lado, produzir uma concentração dramática do conteúdo sobre o texto bíblico e, por outro lado, acentuar as emoções no sentido do período romântico, e atingir isso omitindo aquelas partes que eram tributárias da doutrina barroca dos afetos ¹ e que podiam apenas ser reconstruídas cem anos mais tarde.

Os recitativos "secco" ², que o próprio Mendelssohn tinha acompanhado ao piano em 1829, foram alocados a dois violoncelos (usando duas cordas numa mão e o arco na outra) e um contrabaixo na apresentação de 1841. Precisamente aqueles recitativos que fazem avançar o conteúdo do enredo receberam um arranjo particular de Mendelssohn. Como a cópia da partitura disponível a ele não contivesse nenhum cifra abaixo ou acima da linha do baixo, ele procedeu à harmonização dos recitativos que desejava por conta própria (sua harmonização diferindo fundamentalmente da de Bach em muitos lugares). As fermatas ocasionais sobre notas individuais, indicações de tempo, instruções quanto à dinâmica, articulação e acentos, sobretudo na parte do Christus, também melhoram a concentração do conteúdo. O arranjo de Mendelssohn é concebido, em outras palavras, com vista a destacar os momentos cruciais, para dar expressão a emoções humanas de uma forma exacerbada.

As instruções de tempo de Mendelssohn para os coros da turba devem também ser entendidas nesse contexto. Seu objetivo era retratar o enredo dramático enfaticamente com pessoas de "carne e sangue". Os coros de abertura e final da primeira parte ³, "O Mensch, bewein dein Sünde groß" (Ó homem, chora sobre teu grande pecado), contêm marcações mais cuidadosas no estilo romântico.

A orquestração de Bach foi alterada em alguns movimentos. O uso de clarinetas, substituindo os oboés baixos (oboé d'amore e oboé da caccia), é impactante. Mendelssohn não deu mais ao órgão uma função de destaque, de modo que os recitativos "secco" eram ou acompanhados por ele ao piano, ou pelos violoncelos e contrabaixo. O órgão foi usado nos corais e em pontos selecionados em algumas árias e coros como um timbre adicional.

Com o arranjo de Mendelssohn, agora está disponível uma versão durando um pouco mais de duas horas, que oferece uma interessante alternativa para audiências dos dias atuais .

Autoria: Klaus Winkler (trad. Elisabeth Robinson) from (t)akte 1/2009
Cf in https://messianicjewishhistory.wordpress.com/2016/03/11/11-march-1829-mendelssohn-performs-bachs-st-matthew-passion-otdimjh/



NOTAS  EXPLICATIVAS, por Francisco José dos Santos Braga



¹  Para uma discussão mais detalhada sobre a "teoria dos afetos", queira consultar http://historiadamusica2011.blogspot.com.br/2011/07/teoria-dos-afetos-teoria-dos-afetos.html

²   Bach concebeu as leituras do Evangelho, arranjadas como recitativo "secco" para o Evangelista, complementadas por recitativos e coros da turba. Bach destinou os recitativos "accompagnato" (não extraídos dos Evangelhos) para precederem as árias

³   Esquematicamente, esta é a estrutura das Paixões de Bach:

Primeira Parte 
•   Grande coro de abertura com "tutti" orquestral e coral 
•  Leitura de alguns versos do texto do Evangelho com um recitativo (secco), concluídos pela turba, coral e/ou (recitativo e) ária
•  Leitura da seção seguinte do texto do Evangelho da mesma forma, e concluído da mesma maneira.
•   (... continua com unidades semelhantes...)
•  Último recitativo da Primeira Parte: esta unidade é sempre concluída com um movimento com coro

Segunda Parte
•   Movimento com coro e/ou solista vocal abrindo a Segunda Parte
•   (... sequência de unidades como na Primeira Parte...)
•  Movimento(s) de encerramento da Paixão incluindo um movimento de grande coral. 
Exemplo de turba: "Lass ihn kreuzigen" (Que ele seja crucificado), repetido por 2 coros, no manuscrito da Paixão segundo São Mateus de Bach, começando em si menor e terminando em dó # maior (tonalidade com 7 "sustenidos" ou "Kreuzen" em alemão, também "cruzes" em português). Isto significa que todas as 7 notas da escala carregam cruzes (sustenidos), ou seja, a totalidade de notas na partitura (o orbe inteiro) pede a crucificação de Jesus. (Mt 27, 23b)
  A versão arranjada por Mendelssohn (Leipzig, 1841) para a Paixão segundo São Mateus de J.S. Bach está disponível na Internet com duração de 2h 12min 42seg. Execução: Chorus Musicus e Das Neue Orchester, sob a regência de Christoph Spering.
1ª parte: https://youtu.be/xJNs6-FRWE0 

2ª parte: https://youtu.be/G0HDRQnMhLU 

sábado, 20 de maio de 2017

ÁRIA DO CACHIMBO NO "PEQUENO LIVRO PARA ANNA MAGDALENA BACH" DE 1725


Por Francisco José dos Santos Braga


Dedico este artigo a meu saudoso primo Eduardo José Braga de Oliveira, o "Eduardinho" (19/02/1932-23/04/2005) e a  meu irmão Carlos Fernando dos Santos Braga, notórios fumantes de cachimbo, ambos são-joanenses.


MAGRITTE, René: A Traição das Imagens (Isto não é um cachimbo), 1928. Inspirador de FOUCAULT, Michel: "Ceci n' est pas une pipe: Sur Magritte", 1973, Éd. Fata Morgana, (Scholies).

I.  VERDADEIRO AUTOR DA ÁRIA DO CACHIMBO


Os estudiosos da vida e obra de Johann Sebastian Bach (Eisenach, 21/03/1685 - Leipzig, 28/07/1750) asseguram que ele escreveu 3 coletâneas ou "pequenos livros" para cravo (Clavier-Büchlein), a saber:
1) o primeiro "pequeno livro", começado em 1720 e dedicado a seu filho mais velho Wilhelm Friedemann Bach (1710-1784), continha, principalmente, as invenções a duas e três vozes;
2) o segundo, datado de 1722, já composto em homenagem à sua segunda esposa Anna Magdalena Bach (com quem havia casado em 03/12/1721), continha principalmente as cinco primeiras Suítes Francesas (BWV 812-16), assim como alguns fragmentos e pequenas peças insignificantes. Embora o manuscrito original esteja hoje muito incompleto e em mau estado, esse "pequeno livro" de 1722 (o 1º escrito para Anna Magdalena) ainda nos dá uma boa ideia do gênero de música que Bach apreciava ver executada em sua própria casa;
3) o terceiro, datado de 1725 (que corresponde ao 2º "pequeno livro" dedicado a Anna Magdalena), cujo manuscrito original está quase completo e em bom estado, com 67 folhas longas, teve ali inseridas pelo próprio Bach as Partitas nº III e VI (BWV 827, 830), deixando que as restantes folhas desse "pequeno livro" fossem preenchidas pela esposa e para que fizesse delas o que lhe aprouvesse.

[GEIRINGER, 1966, 279] anota sobre esse último "pequeno livro" de 1725: 
"(...) O livro contém um certo número de pequenas danças (minuetos, polonaises, marchas, uma musette), as quais não foram compostas por Sebastian e podem nem mesmo refletir o gosto de Magdalena, que as incluiu no livro. Essas representantes agradáveis e tecnicamente muito simples do 'style galant' destinavam-se provavelmente às pequenas mãos de Emanuel, então com 11 anos, e das crianças menores. Também eram perfeitamente adequadas para uso nas lições de dança que, de acordo com os costumes da época, todos os rapazes e moças tinham que tomar. (...)"

No 2º "pequeno livro" dedicado a Anna Magdalena, datado de 1725, encontra-se uma ária que aparece em duas versões:
1) a primeira, BWV 515 em ré menor, cuja melodia é atribuída a Gottfried Heinrich Bach ¹ pelos "experts" em Bach. 
2) Há também outra versão transposta para uma quarta acima da primeira, em sol menor (ária para soprano e contínuo BWV 515ª), com baixo realizado por Johann Sebastian Bach, onde se lê a seguinte anotação: "copiada e transposta por Anna Magdalena", acompanhada de texto completo (6 estrofes), copiado pela mesma Anna Magdalena ², do poema "So oft ich meine Tobackspfeife", também conhecido por "Erbauliche Gedanken eines Tobacksrauchers" (Edificantes Pensamentos de um Fumante de Cachimbo), de um autor desconhecido. É possível que Gottfried Heinrich Bach seja também o autor da conhecida ária. ³

Uma excelente demonstração do frescor genial de Gottfried Heinrich nos é dada por uma gravação da ária transcrita para sol menor (para soprano e contínuo BWV 515ª), tendo Olivier Baumont no cravo e Christine Plubeau na viola da gamba, ambos acompanhando a soprano Anne Magouët
Link: https://youtu.be/RhFIGwHnGGg

Outra gravação antológica da mesma ária tem o cravista Ton Koopman acompanhando o barítono Klaus Mertens. 
Link: 
-->https://youtu.be/fkgKdVzexsI
Vejamos então o poema completo de "Edificantes Pensamentos de um Fumante de Cachimbo" ou "So oft ich meine Tobackspfeife": 

So oft ich meine Tobackspfeife,
Mit gutem Knaster angefüllt,
Zur Lust und Zeitvertreib ergreife,
So gibt sie mir ein Trauerbild -
Und füget diese Lehre bei,
Dass ich derselben ähnlich sei. (bis)

Die Pfeife stammt von Ton und Erde,
Auch ich bin gleichfalls draus gemacht.
Auch ich muss einst zur Erde werden -
Sie fällt und bricht, eh ihr's gedacht,
Mir oftmals in der Hand entzwei,
Mein Schicksal ist auch einerlei. (bis)

Die Pfeife pflegt man nicht zu färben,
Sie bleibet weiß. Also der Schluss,
Dass ich auch dermaleinst im Sterben
Dem Leibe nach erblassen muss.
Im Grabe wird der Körper auch
So schwarz wie sie nach langem Brauch. (bis)

Wenn nun die Pfeife angezündet,
So sieht man, wie im Augenblick
Der Rauch in freier Luft verschwindet,
Nichts als die Asche bleibt zurück.
So wird des Menschen Ruhm verzehrt
Und dessen Leib in Staub verkehrt. (bis)

Wie oft geschieht's nicht bei dem Rauchen,
Dass, wenn der Stopfer nicht zur Hand,
Man pflegt den Finger zu gebrauchen.
Dann denk ich, wenn ich mich verbrannt:
O, macht die Kohle solche Pein,
Wie heiss mag erst die Hölle sein? (bis)

Ich kann bei so gestalten Sachen
Mir bei dem Toback jederzeit
Erbauliche Gedanken machen.
Drum schmauch ich voll Zufriedenheit
Zu Land, zu Wasser und zu Haus
Mein Pfeifchen stets in Andacht aus. (bis)

Cf. in http://www.klavier-noten.com/bach/anna-magdalena/tobak-aria-515.htm

Abaixo ofereço uma tradução livre do poema alemão para o português:

Sempre que eu pego no meu cachimbo, 
Fornido com bom fumo,
Para prazer e passatempo,
Assim ele me dá uma triste figura - 
E leva à conclusão de que
Sou parecido com ele. (bis)

O cachimbo foi feito de argila e terra
E também fui eu.
Um dia eu serei terra novamente -
Ele frequentemente me cai da mão
E se quebra antes que eu o saiba,
Idêntico é o meu destino. (bis)

Não agrada a ninguém colori-lo.
Então fica branco. Também concluo
Que ao chamado da morte eu preciso ouvir,
Meu corpo também ficará todo pálido,
Debaixo da relva se tornará preto
Como o cachimbo, depois de longo uso. (bis)

Quando o cachimbo está aceso,
Percebe-se como, neste momento,
A fumaça se desvanece no ar livre,
Nada restando senão cinza.
Assim também a fama do homem arderá
Até que pó seu corpo vire. (bis)

Quão frequente acontece quando alguém fuma,
Que o calcador não esteja disponível,
E agrade-lhe usar seu dedo.
Então me imagino queimando:
Se o carvão causa tanta dor,
Quão quente deve só ser o inferno! (bis)

Assim sobre meu cachimbo com essas ideias formadas
A todo instante me permito
Fazer meditações edificantes.
Por isso, cheio de contentamento eu pito
Em terra, no mar e em casa
Com devoção, meu cachimbinho sempre. (bis) 



II.  NOTAS  EXPLICATIVAS 



¹  Gottfried Heinrich Bach (Leipzig, 26/02/1724-Naumburg, 12/02/1763) foi o primeiro filho do casamento de Bach com sua segunda esposa, Anna Magdalena. Nasceu em Leipzig, para onde seus pais tinham se mudado um ano antes de seu nascimento. 

Em uma idade precoce Gottfried Heinrich mostrou grande habilidade no cravo, mas conforme cresceu, passou a ficar com uma deficiência mental, o que levou seu irmão Carl Philipp Emanuel Bach, também conhecido pelas iniciais C.P.E. Bach (1714-1788), a dizer que ele mostrava "um grande gênio, que no entanto não conseguiu desenvolver-se" ("War ein großes Genie, welches aber nicht entwickelt wurde"). Contudo, Anna Magdalena teve a alegria de ter também filhos altamente dotados. Em 1732 deu à luz Johann Christoph Friedrich (1732-1795) e, três anos depois, Johann Christian (1735-1782), ambos destinados a serem músicos eminentes.

A partir da morte de seu pai em 1750, Gottfried Heinrich passou a morar com sua irmã mais jovem, Elisabeth Juliane Friederica e seu marido Johann Christoph Altnikol, músico que residia e trabalhava em Naumburg, a cerca de 60 km sudoeste de Leipzig. Com a morte de seu cunhado em 1759, Gottfried Heinrich permaneceu em Naumburg em companhia de sua irmã, até que ocorreu sua própria morte poucos anos depois (1763).

A sua autoria da melodia da ária "So oft ich meine Tobackspfeife" é confirmada por Dr. Georg von Dadelsen, da Universidade de Tübingen, no seu livro (Bemerkungen zur Handschrift Johann Sebastian Bachs, seiner Familie und seines Kreises. Hohner Trossingen 1957, p. 19) e no epílogo do livro J. S. Bach: Klavierbüchlein für Anna Magdalena Bach 1725. Faksimile der Originalhandschrift. Bärenreiter, Kassel u. a. 1986, p. 6f.

Eis a melodia da ária citada da autoria de Gottfried Heinrich, com baixo realizado por seu pai J. S. Bach:


Observe que o equívoco de se atribuir a Johann Sebastian Bach a autoria dessa ária não é exclusividade da Caux Music Publishing (2012), conforme a imagem da partitura acima. Antes, é algo mais ou menos geral: quase todas as edições o cometem. A tendência dessas edições é considerar quase tudo existente no "pequeno livro" de 1725 como da autoria de J.S. Bach, o que é contestado pelos "experts". Muitas peças que aparecem no "Pequeno Livro para Anna Magdalena Bach", atribuídas a J.S. Bach, hoje os experts colocam em dúvida ou já descobriram seus reais compositores. No Brasil equivocadamente a Editora Arthur Napoleão Ltda. não só publicou e divulgou uma coletânea com 20 peças com o título "Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach", como incorreu num segundo erro quando considerou que todas as "20 peças fáceis selecionadas" para piano eram  da lavra de J. S. Bach. Refiro-me aqui à partitura de 1960, que ainda possuo em bom estado.
Por mais decepcionante que possa ser para nós, que tocamos esse "pequeno livro", distribuído por todo o País, convencidos de que todas aquelas peças eram da autoria de Bach, hoje já está estabelecido que algumas peças, atribuídas anteriormente a Bach, na realidade são da autoria de Christian Petzold e outros. 
Índice do "Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach", editado pela Editora Arthur Napoleão Ltda na década de 1960

Tomemos, por exemplo, as primeiras 5 peças da coletânea divulgada no Brasil como da autoria de J. S. Bach desde 1960, conforme a imagem postada acima. O minueto em sol maior que abre a coletânea e o minueto em sol menor que vem em 3º lugar no índice são da autoria de Petzold. O minueto que vem em 2º lugar ainda não teve a autoria de Bach colocada em dúvida. Não foi o caso do minueto em fá maior que aparece em 4º lugar no índice, nem do minueto em sol maior em 5º lugar no índice, os quais os "experts" ainda estão relutantes em atribuir a J. S. Bach. Observemos apenas neste exemplo citado que, das cinco primeiras peças do "pequeno livro", apenas o minueto que aparece em 2º lugar no índice é considerado ter sido realmente composto por Bach. 
Finalmente, também a única e delicada musette (peça nº 18 no índice acima, constante da coletânea) hoje tem a autoria de Bach questionada pelos mesmos "experts".
Cf. in https://en.wikipedia.org/wiki/Notebook_for_Anna_Magdalena_Bach


²   Anna Magdalena Wilcke era filha de um trompetista (Johann Caspar Wilcke), que tinha feito carreira nas cortes de Zeitz e Weißenfels. Ela possuía excelente voz de soprano e trabalhava na corte de Cöthen desde o outono de 1721. Bach já estava trabalhando ali como Kapellmeister, ou diretor de música, desde dezembro de 1717. É possível que J.S. Bach a tenha ouvido cantar em Weißenfels, em cuja corte é sabido que ele se apresentou. O seu casamento foi celebrado em 03/12/1721 em Cöthen. Parece que Anna Magdalena renunciou à carreira artística e à sua renda própria quando Bach assumiu o cargo de "Kantor" (responsável pela música litúrgica) de São Tomás em Leipzig em 31/05/1723, sendo as obrigações dele "a programação musical, regência de coro, apresentar uma cantata todos os domingos, lecionar latim para os jovens". Entretanto, sabe-se que Anna Magdalena retornou a Cöthen em 1729 para cantar no funeral do Príncipe Leopold. O interesse compartilhado da família Bach em música contribuiu para o feliz matrimônio dela. Trabalhou regularmente como copista, transcrevendo a música de seu marido, que ela vendia como meio de contribuir para a renda familiar. Durante a época em que a família Bach viveu em Leipzig, Anna Magdalena organizava saraus regulares, nos quais se apresentava toda a família Bach, quando ela cantava junto com amigos que os visitavam. A casa dos Bach tornou-se um centro musical em Leipzig.

Além das 2 Partitas que o próprio Johann Sebastian inseriu no "Pequeno Livro para Anna Magdalena Bach", de 1725, Anna Magdalena copiou ali a música que ela amava, preenchendo as folhas que ficaram à sua disposição. Assim é que ali se encontram peças do enteado Carl Philipp Emanuel Bach, bem como dos filhos Johann Christian Bach (1735-1782) e Gottfried Heinrich Bach, anotando suas tentativas de composição. Essa coletânea tornou-se essencialmente o livro de música da família Bach, embora também tenha acolhido compositores da época. Por exemplo, ali se encontram cópias de obras de autores consagrados, tais como François Couperin (rondó), Giovannini , Georg (?) Böhm (minueto), Christian Petzold, Gottfried Heinrich Stölzel e Johann Adolf Hasse (polonaise em sol maior-BWV Anh. 130), que encontraram guarida nesta coletânea de 45 números, cujas páginas para cravo, em maior número, alternavam às vezes com algumas páginas vocais. 
No fim do "pequeno livro" de 1725, havia ainda algumas regras de realização de baixo contínuo que fixavam, sem dúvida, o ensino que Anna Magdalena e as crianças receberam de Johann Sebastian. [GEIRINGER, 1966, 279] escreveu:

"Parece que Sebastian queria, além disso, proporcionar a seus filhos um curso sistemático na realização de um baixo figurado. Após a décima quinta regra, entretanto, o professor desistiu, com a desculpa de que 'o resto podia ser melhor explicado oralmente'." 
O manuscrito autógrafo (P 225) desse "pequeno livro" pode ser localizado na Biblioteca Nacional de Berlim (atualmente na Biblioteca de Marburg an der Lahn).

³  Alfred Dürr, Yoshitake Kobayashi (eds.), Kirsten Beißwenger. Bach Werke Verzeichnis: Kleine Ausgabe, nach der von Wolfgang Schmieder vorgelegten 2. Ausgabe. Preface in English and German. Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1998, pp. 308–309.

⁴  Autor de uma pequena canção de amor, ária Willst du dein Herz mir schenken (BWV 518), subtitulada "Ária de Giovannini".

⁵  Autor de um rudimentar poema nupcial, Bist du bei mir (BWV 508). De acordo com uma declaração de von Dadelsen (KB, pp. 92 e 124), a terna ária pode ter como autor G. H. Stöltzel. Até 1945, a Berliner Singakademie possuía um manuscrito intitulado Airs divers comp. par M. Stöltzel. Esse volume, hoje perdido, continha a ária Bist du bei mir numa versão para soprano, cordas e baixo, com a melodia que figura também no Clavier-Büchlein.
A referida ária tinha sido atribuída a Bach. Descobriu-se no ano de 2000, no Conservatório de Kiev, o manuscrito da ópera Diomedes, ou a Inocência Triunfante (Diomedes, oder die triumphierende Unschuld), de Gottfried Heinrich Stölzel, que inclui a referida ária e foi apresentada em Bayreuth em 16/11/1718.
Essa ária é mais conhecida na versão para voz e contínuo encontrada naquele "pequeno livro".
Cf. in http://www.loff.it/the-music/clasica/bist-du-bei-mir-del-pequeno-libro-de-anna-magdalena-bach-de-stolzel-264780/

O texto da ária por um autor desconhecido é o seguinte:
Bist du bei mir, geh ich mit Freuden
zum Sterben und zu meiner Ruh.
Ach, wie vergnügt wär so mein Ende,
es drückten deine schöne Hände
mir die getreuen Augen zu!

Eis minha tradução para o belo poema:
Se estiveres comigo, então eu irei alegremente
para a morte e a paz.
Ah, como então seria agradável meu fim
se suas belas mãos
cerrassem meus olhos fiéis.



III.  BIBLIOGRAFIA




DADELSEN, Georg von:  Bemerkungen zur Handschrift Johann Sebastian Bachs, seiner Familie und seines Kreises. Tübinger Bach-Studien 1, Trossingen: Hohner Verlag, 1957
           Beiträge zur Chronologie der Werke J.S. Bachs, Tübinger Bach-Studien 4/5, Trossingen: Hohner Verlag, 1958 

DÜRR, Alfred & KOBAYASHI, Yoshitake (eds.), BEISSWENGER, Kirsten: Bach Werke Verzeichnis: Kleine Ausgabe, nach der von Wolfgang Schmieder vorgelegten 2. Ausgabe. Preface in English and German. Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1998


GEIRINGER, Karl: Johann Sebastian Bach: o Apogeu de uma Era (copyright 1966, Oxford University Press Inc.), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, 366 p. 

Wikipedia: verbete "Anna Magdalena Bach", cf. in https://en.m.wikipedia.org/wiki/Anna_Magdalena_Bach