quarta-feira, 31 de março de 2021

NO MAR

(com base no conto de V. Marshak


Por Francisco José dos Santos Braga
 

Um pintor vai com o seu filho de sete anos pela orla marítima. O pintor carrega um cavalete, e o garoto uma bolsa com a caixa de cores em tubos. O mar está calmo. Toda a orla está coberta de pedras e parece cinzenta. 
O pintor para e começa a trabalhar. 
E o garoto está dentro d'água e recolhe do fundo do mar pequenas pedras. Na água elas parecem muito lindas. Na palma de sua mão já há pedras brancas, amarelas, vermelhas, pretas, verdes. 
Em seguida, o garoto coloca suas pedras sobre um jornal e corre para banhar-se. Ele provavelmente está no mar pela primeira vez. Ele se banha por muito tempo, até que o pai o chama. Finalmente, ele volta para a praia e fala ao pai: 
Papai! tu viste que pedras eu ajuntei? grita ele para o pai. Elas estão perto de ti sobre o jornal. 
O garoto correndo aproxima-se do jornal e para. Ele olha para o jornal e não consegue acreditar no que está vendo. Sobre o jornal estão pedras cinzentas feias. 
Eu tinha pedras bonitas, mas essas não são aquelas... 
Não, são as pedras que tu ajuntaste, sim diz o pai. Apenas elas secaram e ficaram cinzentas. 
Por que? 
E então o pai lhe conta uma lenda:
Escuta, filhinho. Contam que há muito tempo aqui se erguiam montanhas altas. Certa vez uma montanha caiu e partiu-se em pedacinhos pequenos. Assim, dela nasceram essas pedrinhas no fundo do mar. O mar brincou com elas, acariciou-as e ei-las que ficaram tão lindas. Mas sem o mar, sem sua pátria, elas perdem a beleza, ficam cinzentas e desinteressantes. 
O menino vai novamente à água, recolhe pedras bonitas e vê como elas gradualmente perdem suas cores. 
E o artista, em sua tela, tenta transmitir a beleza das pedras cinzentas. 
 
♧                    ♧                    ♧ 
 
УЛЫБКА/SONRISA, Editorial Progreso, Moscú, 1971(?), 111 p.
                                                                         
 
 
O  texto aqui traduzido do russo por mim foi extraído de uma coletânea de piadas, anedotas e historietas, intitulada УЛЫБКА (SONRISA em espanhol), livro I, 2ª parte, p. 57-8 e enriquecido por outras versões existentes em manuais de língua russa, tais como RUS' A Comprehensive Course in Russian, by Sarah Smyth and Elena V. Crosbie, Cambridge University Press, 2002, p. 351, dentre outros. Abaixo transcrevo a versão final russa pela qual me responsabilizo e que utilizei neste post:
 
У МОРЯ
(по рассказу В. Маршака)
 
Художник с семилетним сыном идёт по берегу моря. Художник несёт мольберт, а мальчик - сумку с красками. Море спокойное. Весь берег покрыт камнями и кажется серым. 
Художник останавливается и начинает работать. А мальчик стоит в воде и собирает со дна моря маленькие камни. В воде они кажутся очень красивыми. На ладони у него лежат белые, жёлтые, красные, чёрные, зелёные камни. 
Потом мальчик кладёт камни на газету и идёт купаться. Он, наверно, первый раз на море. Он купается долго, пока отец не зовёт его. Наконец, возвращается на берег и говорит отцу: 
Папа, а ты видел, какие камни я собрал? кричит он отцу. Они лежат около тебя на газете! Мальчик подбегает к газете и останавливается. Он смотрит на газету, но не может поверить своим глазам: там лежат серые некрасивые камни. 
Это не те камни! У меня были красивые, а эти! Почему они стали серыми и некрасивыми? 
Нет, это камни, которые ты собрал, говорит отец. Только они высохли и стали серыми.
Почему?
И тогда отец рассказывает ему легенду: 
Говорят, что очень давно здесь стояли высокие горы. Однажды одна гора упала и и разбилась на мелкие кусочки. Так из неё родились эти маленькие камни на дне моря. Море играло с ними, ласкало их и вот они стали такими красивыми. Но без моря, без своей родины, они теряют красоту, становятся серыми, неинтересными. 
Мальчик снова идёт к воде, собирает красивые камни и смотрит, как они постепенно теряют свои краски. 
А художник в своей картине старается передать красоту серых камней.
 
(по рассказу В. Маршака, Progress Publishers, 2ª edição, Moscou, 1971: 59)

sexta-feira, 26 de março de 2021

CONTO TSAKONIANO: O PESCADOR E SUA MULHER

Por Michael Deffner
Traduzido do dialeto tsakoniano através do grego por Francisco José dos Santos Braga

 
Conto intitulado Ο ψαρά τζαί α γουναίκα σι, recolhido pelo filólogo alemão Michael Deffner (1848-1934) 

 

À beira-mar, dentro de uma choupana viviam desde muitos anos confortável e tranquilamente um pescador e sua esposa. Ele trabalhava todo dia e pegava peixe suficiente e ganhavam dinheiro desse trabalho. Um dia, ele estava sentado na praia e tinha toda a atenção no seu anzol e seus olhos fixados nas águas brilhantes e olhava e olhava. De repente, moveu-se seu anzol por incomum sacudidela e afundou sem parar mais fundo e então o pescador, puxando com muito esforço, pegou um golfinho maravilhoso em comprimento e em formosura. 

Após o golfinho se acalmar, fulminou com o olhar o pescador e lhe disse com voz de gente: "Ouça, meu amigo, eu não sou peixe, como pareço, eu sou um príncipe encantado. O que ganhas, se me matares? Joga-me de novo ao mar e deixa-me nadar livremente!" 
"Vai em paz!", respondeu-lhe o pescador, "eu não quero ter a companhia de peixes que falam." 
E assim jogou o golfinho dentro d'água e ele, ao mergulhar, deixou atrás de si um risco comprido de sangue. Então o pescador levantou-se da pedra em que estava sentado, e voltou para sua casa. 
"Meu marido", disse a mulher, quando o viu, "não pegaste nada hoje?" 
"Nada!", respondeu o pescador. "Peguei um golfinho, mas ele me disse que era um príncipe encantado, e assim o joguei no mar e deixei-o ir-se embora!" 
"Mas não lhe pediste nenhum favor em troca pelo bem que lhe fizeste?" 
"Não, nenhum, e que favor querias que lhe pedisse?" 
"Ora! não tiveste pena de morarmos nesta choupana, imunda e nojenta, com o frio do inverno e o calor ardente do verão, enquanto poderias ter-lhe pedido alguma casa bonita? Vai e chama-o e diz-lhe para nos dar uma casa. Faz rápido antes que vá embora!" 
O pescador não tinha desejo de ir, mas para a sua mulher não ficar de mau humor, decidiu ir. Quando chegou, parou e gritou: 
"Golfinho, golfinho meu que eu peguei no meu anzol e que eu deixei livre, vem ouvir de mim o que minha mulher quer!" 
Então o golfinho emergiu das ondas e disse: 
"Diz o que tua mulher quer de mim." 
"Assim que te peguei e de novo te soltei," disse ela, "devia pedir-te um favor. Ela não pode mais viver numa choupana. Quer uma casa." 
"Vai, ela já a tem!" 
Quando voltou o pescador, encontrou sua mulher sentada em frente a uma casa bonita. 
"Vem ver dentro", disse-lhe, "uma sala mobiliada, um quarto de dormir com duas camas, uma cozinha com muitos utensílios de cobre e ao fundo um quintal com galinhas e pombas e um pomar com legumes, flores e poucas árvores. Não é lindo tudo isso?" 
"Claro, agora somos verdadeiramente ricos!", disse o homem. 
Passaram duas semanas. Quando começou a terceira, disse a mulher a seu marido: 
"Que desgraça! esta casa é muito apertada para nós, o jardim e o quintal são muito pequenos. O golfinho poderia facilmente nos dar de presente uma casa maior!" 
"Valha-me Deus, mulher", replicou o homem, "a casa é bonita e muito grande para nós dois. Para que queremos uma maior?" 
"Que dizes, homem! Vai, encontra o golfinho e pede-lhe outra casa, mas que seja grande como um pequeno palácio!" 
"Mulher, não posso de novo pedir-lhe nada; pode zangar-se." 
"Vai, te digo, o golfinho pode te fazer esse favor; não vai recusá-lo". 
Com o coração oprimido, o pescador decidiu ir. No seu íntimo matutou que não estava agindo bem, mas foi, temendo as rabugices da sua mulher. Quando chegou ao mar, parou de novo e gritou. 
"Golfinho, golfinho meu, que meu anzol pegou e que eu deixei livre, vem cá ouvir de mim o que quer de novo minha mulher!" 
Então o golfinho emergiu das águas e disse: 
"Pois bem, o que quer de novo tua mulher?" 
"Ai de mim", respondeu o pescador com voz tristonha, "quer agora uma casa grande de pedras, um pequeno palácio". 
"Vai e a encontrarás lá fora", diz o golfinho. 
O homem partiu para voltar à sua casa, mas naquele lugar viu um palácio de pedra e do lado de fora sua mulher que se preparava para subir as escadas. Ela o tomou pela mão e lhe disse: 
"Vem comigo!" 
Então subiram ambos, e numa grande varanda estavam de pé quatro pajens uniformizados, que faziam reverências e abriam as portas. As paredes brilhavam como se fossem feitas de diamantes. Uma mesa imensa estava posta no meio do salão enorme e, ao redor, cadeiras de ouro puro. De fora do palácio havia um pomar com muitas árvores e flores e mais para lá se chegava por uma alameda a um estábulo com divisórias, onde eram alimentados os cavalos, os bois e muitos outros animais. Ali havia também dois lindos carros de passeio. 
"Olha!, disse a mulher, "não é lindo tudo isso?" 
"Claro", respondeu o homem, "agora acho que neste palácio formoso encontrarás o que desejas!" "Veremos! Vamos jantar e depois dormir. A noite me guiará!" 
Bem cedinho, antes do nascer do sol, a mulher despertou e da sua cama olhou para o bonito lugar. O homem ainda dormia um sono profundo. Ela o sacudiu com o seu cotovelo e lhe disse: 
"Levanta para olhares da janela! Olha! Não poderíamos virar reis em todo esse país? Vai encontrar o golfinho e diz-lhe que queremos virar reis." 
"Valha-me Deus, mulher, eu não quero virar rei." 
"Se não queres, quero eu! Vai rápido e diz ao golfinho que quero que me faça rainha!" 
"Mas eu não quero ir, não posso pedir-lhe tal coisa." 
"Vai rápido", te digo, "entrou na minha cabeça virar rainha e vou virar. E cala a boca! Vai embora rápido!" 
Então o infeliz partiu desolado e tomou o caminho da praia. 
"Esta coisa não é certa, não é boa!", dizia para si mesmo, mas foi. Quando chegou, viu o mar, que estava negro e turvo. Não atinou com o que fazer; por fim decidiu e gritou: 
"Golfinho, golfinho meu, que meu anzol pegou e que eu deixei livre, vem cá ouvir de mim o que quer de novo minha mulher!" 
Então o golfinho emergiu das ondas e perguntou-lhe: 
"Ai, o que quer de novo a tua mulher?" 
Suspirando, respondeu o pescador: 
"Agora minha mulher quer virar rainha!" 
"Vai, tua mulher virou rainha!" 
Quando o homem voltou por trás do palácio, viu muitos soldados e cavaleiros, e dentro da sala estava sentada sua esposa sobre um trono de ouro e sobre sua cabeça viu uma coroa de ouro com diamantes. Ao redor viu várias damas uniformizadas que estavam às ordens dela. 
Para não falarmos demais, porque se aproxima a meia noite, a mulher louca, que o verme da cobiça consumia, quis virar tanto um imperador quanto um papa, e o golfinho tornou-a um e outro. 
Uma noite, ela não podia conciliar o sono, porque pensava em tudo o que ainda podia tornar-se. Quando de manhãzinha viu o céu que ficava vermelho e o sol que emergia do mar, veio-lhe o pensamento: 
"Não podia ordenar ao sol nascer e por-se, quando quisesse?"
Seu marido ainda estava dormindo. E com o seu cotovelo o sacudiu nas costelas e lhe disse: 
"Levanta-te para ir ao mar encontrar o golfinho; quero virar Deus". 
O homem assustou-se tanto que caiu da cama. Julgava não ter ouvido bem, esfregava os seus olhos e disse: 
"Oh mulher, o que disseste?" 
"Homem", replicou ela, "não posso repousar, vendo o sol e a lua nascerem e eu própria não posso ordenar-lhes nascerem quando eu quiser." 
Assim que ela dizia essas palavras, olhou para ele tão brava que tremeu de medo. 
"Ai de mim, mulher", diz e ajoelha diante dela. "Isso o golfinho não pode." 
Então ela ficou louca e gritou: 
"Não posso mais tolerar ver que nasçam o sol e a lua, e as estrelas ainda, sem que eu lhes ordene." "Mas, mulher, o golfinho não tem esse poder, somente Deus o tem." 
"Some da minha vista e diz ao golfinho que quero virar Deus." 
O homem foi embora como louco. Do lado de fora, Fortuna começou com tanta força que desenraizava árvores, o céu estava completamente negro e era cruzado pelos raios. Quando chegou à praia, as ondas estavam altas como montanhas e metiam pavor. Com voz trêmula e cortada chamou o golfinho. "Golfinho, golfinho meu, que meu anzol pegou e eu deixei livre, vem ouvir o que quer de novo minha mulher!" 
"O que é, de novo?", perguntou o golfinho com voz forte. 
"Ai de mim, ela quer agora virar todo-poderosa como Deus!" 
"Vai, volta para tua pobre choupana! Lá encontrarás também a tua mulher!" 
Ali moram até hoje, se viverem ainda. 
Este conto quer dizer: "Se a sorte também enriquecer repentinamente uma mulher pobre, nem o diabo pode segurá-la mais; é como uma mula enfurecida pelas varejeiras."
 

Fontes: https://www.tsakonianarchives.gr/a-mamou-a-grousa-na-mou/   (capítulo retirado do livro Α μαμού α γρούσσα να μουΗ Γιαγιά η γλώσσα μας ou, em português, Vovó nossa língua, escritor: coletivo (8 contos de Deffner, 1 de Geórgios Stratígis e 1 de Thanássis Kostákis), Atenas: Αρχείο της Τσακωνιάς, 1984, p. 96-99)

https://www.tsakonianarchives.gr/paramithi-psaras-gynaika/ (conto de fadas tsakoniano de Deffner conforme foi ilustrado por crianças durante uma mostra do Arquivo de Tsakoniá intitulada "A casa dos contos de fadas")

"O Pescador e o Peixe Dourado", obra do escultor Venelin Bozhidarov, numa praça com fontes em Varna, porta de entrada da Bulgária e localizada na costa do Mar Negro.




 
Selo soviético de 1975 (ilustração de I. Vakourov)

 
RETROSPECTO HISTÓRICO E CRÍTICA DO CONTO 

 
No verbete "O conto do pescador e do peixinho" em francês, a Wikipedia proporciona excelente discussão e farta bibliografia sobre o conto de Pushkin (1799-1837), além de uma visada sobre a literatura de outros países para identificar a sua filiação. Aqui serão tratados vários tópicos abordados naquela matéria.

O conto Do Pescador e sua Mulher (em dialeto hamburguês, Vom Fischer un syner Fru) é um conto popular alemão que figura entre os recolhidos pelos irmãos Grimm no primeiro volume de Contos da infância e domésticos (Kinder- und Hausmärchen, 1812). Consta que sua fonte foi o pintor alemão Philipp Otto Runge (1770-1810), de quem os Grimm obtiveram um manuscrito do conto em 1809. Johann Gustav Büsching publicou outra versão do manuscrito de Runge alguns meses antes, em Volkssagen, Märchen und Legenden, com algumas discrepâncias em relação à versão dos Grimm.
O conto dos Grimm inspirou, dentre muitos outros, os seguintes autores:
Alexandr Pushkin para seu Conto sobre o pescador e o peixinho em versos (em russo: Сказка о рыбаке и рыбке, escrito em 14/10/1833 e publicado pela primeira vez em 1835 na revista Biblioteca para a Leitura). A versão russa de Alexandr Afanassiev  de 1864 para o conto "O peixinho de ouro" (na sua coletânea de Contos populares russos) é muito próxima à de Pushkin de 30 anos antes;
o compositor russo Othmar Schoeck para sua cantata dramática Vom Fischer un syner Fru (1930) e
o escritor Günter Grass para seu romance Der Butt (1977, O Pregado ou linguado em português, que tem como ponto de partida o referido conto dos Grimm). 

Em 1853, Antoine Joseph Glinski publica uma coletânea de contos poloneses, entre os quais O Velho, a Velha e o Peixinho de ouro, que lembra admiravelmente a versão de Pushkin e a de Afanassiev. Em 1878, uma revista sueca publica uma história muito próxima também, O Peixinho de ouro, apresentado como conto tradicional sueco. Medrich sugere que as versões polonesa e sueca, bem como a versão afanassieviana, são todas inspiradas na versão de Pushkin. 
Fique-se ciente de que, na época, o conto é conhecido sob uma forma ou outra no mundo inteiro, tanto na Índia ou na China quanto na Inglaterra ou na França.
Os estudiosos consideram que Pushkin tomou o conto dos irmãos Grimm e o adaptou ao contexto russo, abandonando as últimas exigências da mulher do pescador que, na versão alemã, queria ser papa, e finalmente, tornar-se o próprio bom Deus.

TEMA
O conto evoca a insatisfação e a ganância desmesurada e sem limite, e mostra-se claramente misógino: o personagem da velha, insuportável megera gananciosa, rabugenta, brutal (quando rainha, ela insulta e manda maltratar seu marido), se opõe ao personagem do velho, indulgente, respeitoso, conciliador (ele nunca reclama nada para si), embora um pouco frouxo. Quanto ao peixinho com poderes sobrenaturais, respeita fielmente e sem comentário sua promessa a cada nova exigência da velha, até onde o limite do tolerável esteja franqueado, a partir do qual vira tudo de cabeça para baixo e traz a situação de volta ao ponto de partida, mas de maneira definitiva, sem qualquer outra chance.
É verificável a misoginia em maior grau no conto russo de Pushkin.
Uma versão ucraniana coloca em cena um camponês que se prepara para derrubar uma tília que promete ao lenhador que atenderá seus desejos, se for poupada. Nesse conto é o camponês não sua mulher que se mostra ganancioso, ao ponto de exigir da tília virar czar/czarina e até deuses. A tília então transforma ambos num casal de ursos que fogem na floresta.

RESUMO DO CONTO DE PUSHKIN
Um velho pescador e sua velha vivem em uma cabana pobre à beira-mar. Um dia, o velho, depois de várias tentativas infrutíferas, recolhe em sua rede um peixinho de ouro, que se dirige a ele com uma voz humana. E implora que o jogue de volta ao mar, prometendo-lhe em troca satisfazer todos os seus desejos. O velho o liberta sem exigir nada. De volta para casa, ele conta a história para a esposa, que o chama de idiota e manda que ele vá pedir ao peixe uma nova bacia de roupa, substituindo a deles, que está quebrada. 
O velho assim o faz e, voltando à praia, chama respeitosamente o peixinho, que aparece e pergunta o que ele quer. Informado do pedido da velha, garante ao velho que terão uma nova bacia: é o que acontece. Mas novamente a velha critica violentamente o marido e manda-o de volta ao peixinho, desta vez para reclamar uma isba (casa russa tradicional dos camponeses russos, construída de madeira, semelhante a um chalé). O velho faz. O peixinho, emergindo de um mar já menos tranquilo, realiza o desejo: voltando para casa, o velho encontra uma bela isba no lugar da cabana. Mas a velha, ainda insatisfeita, agora afirma ser nobre. O peixinho concede-lhes um rico terem (palácio russo), onde a velha reina, rodeada de criados e tratando o marido como um servo. (Sempre que o velho, cada mais constrangido, sai ao encontro do peixinho, o mar fica cada vez mais agitado, depois escuro e ameaçador). 
A velha então consegue ser czarina no palácio, mas isso ainda não lhe basta: a partir de agora ela quer ser soberana do mar, e que o próprio peixinho esteja às suas ordens. Diante de um mar revolto, o velho, infeliz, anuncia essas exigências exorbitantes: mas desta vez, o peixinho, sem dizer uma palavra, com um abano da cauda desaparece nas ondas. 
Vendo que não obteve resposta, o velho finalmente voltou para casa: em vez do palácio, da czarina e dos criados, ele encontrou sua pobre cabana, sua velha sentada na soleira, e na frente dela, a quebrada bacia de roupa.

A FILIAÇÃO DO CONTO
A gênese do conto é muito controvertida. Circularam inúmeras versões do conto no século XIX em diferentes países (Alemanha, Rússia, Polônia, Suécia, etc.)

MORAL DA HISTÓRIA
Contente-se com pouco, para não perder tudo.

DIVERGÊNCIA
Na fábula de La Fontaine intitulada O Peixinho e o Pescador, o peixe capturado pede também para devolvê-lo à água, fazendo promessa de vantagens futuras. Mas o pescador, bem mais pragmático, manda fritar o peixe, com base no fato de que "um na mão hoje vale mais do que dois no futuro ("un tiens vaut mieux que deux tu l'auras"). E não trata de sua mulher.

Link
: https://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Conte_du_p%C3%AAcheur_et_du_petit_poisson#cite_ref-8 
 
 
BREVE ANÁLISE LITERÁRIA DO CONTO TSAKONIANO

 
Conforme visto, a gênese do conto é muito controvertida. Circularam inúmeras versões do conto no século XIX em diversos países. Certamente Deffner, o filólogo que coligiu o conto tsakoniano, estava ciente de que, ao recolher a versão tsakoniana de "O pescador e sua mulher", estava pondo um tempero novo na salada da dúvida: "Qual país teria dado origem ao singular conto? Por que não a Grécia?" 
Claro que o filólogo alemão percebeu, no conto que recolhera, que havia no conto tsakoniano elementos estranhos à linhagem localizada na Europa ocidental e oriental, estendendo-se à Ásia. 
Permito-me a esta altura levantar algumas particularidades do conto tsakoniano não encontradas nas outras versões das diferentes línguas (em especial, alemão, russo, ukraniano, polaco, sueco, etc.). Eis as observações mais substantivas: 
O personagem do peixe é desempenhado por um golfinho, e não por um pregado, nem um linguado, caracterizado no conto tsakoniano como "maravilhoso em comprimento e em formosura". Observe que não fala de um "golfinho de ouro" (em contraposição às imagens da escultura acima postadas), embora tivesse "voz de gente", e em suas próprias palavras ser "um príncipe encantado". 
O golfinho cai no anzol da vara do pescador, e não em nenhuma rede. 
Conforme as exigências da velha vão num "crescendo", a aparência do mar vai se modificando como se prenunciasse um desastre iminente, indicando que a generosidade do peixe estava próxima a uma gota d'água. É interessante a descrição dos elementos da natureza e principalmente do mar onde vive o peixe, o regulador da história. O mar ameaça e incha dependendo da ganância que a mulher do pescador exibe a cada vez. Quando busca se tornar Deus, a natureza (deusa Fortuna) fica furiosa e se rebela contra tal insulto. As cenas são uma reminiscência do Apocalipse.
O enredo do conto evidencia o desajuste conjugal, a velha querendo sempre mais distinções e posições sociais e o velho sentindo-se desconfortável de ser seu porta-voz com o peixe, embora estivesse indisposto e submisso às crescentes exigências da sua mulher. Às vezes, ele se abria ou com o peixe ou com a velha. Ex.: "vem ouvir de mim o que minha mulher quer"; "O pescador não tinha desejo de ir, mas para a sua mulher não ficar de mau humor, decidiu ir" ou "Eu não quero virar rei", mostrando sua inconformidade com a ganância dela sempre crescente. Ele é o homem que tem medo de sua esposa e é forçado a violar seus próprios limites morais para não discordar e romper com ela. O velho tenta a cada vez contê-la, dizer para ela até aqui: "Basta! Você deveria estar feliz, não pedir tantas coisas." Ela, porém, entrou na dança e não hesita em pisar nos outros. Na verdade, o único em que ela pisa é o marido. Claro, a motivação para pedir mais é reforçada pela facilidade com que o peixe lhe concede favores. 
Observe a grande quantidade do verbo "querer", ao longo de todo o conto, referindo-se quase sempre à ganância da velha. 
De acordo com o poema em versos de Pushkin, à exigência da velha de querer ser soberana do mar ou deus (com o peixe sendo submetido ao seu domínio) "o peixe não respondeu palavra", expressando que sua generosidade tinha chegado ao fim. Ничего не ответила рыбка, «лишь хвостом по воде плеснула и ушла в глубокое море» (O peixe não respondeu, "ele apenas abanou a cauda na água e foi para o fundo do mar"). Na versão tsakoniana, é o peixe que tem a última palavra: "Vai, volta para tua pobre choupana! Lá encontrarás também a tua mulher!
Na moral da história, o conto utiliza conceitos comuns ao ambiente rural: "mula enfurecida pelas varejeiras", inimaginável nas versões alemã e russa. 
 
Tomando como base o desejo da velha de ser soberana do mar, cabe aqui fazer um breve comentário sobre o livro Homo Deus: Após Deus e o Homem, os Algoritmos vão tomar as decisões, da autoria do israelense Yuval Noah Harari. No seu livro, Harari descreve como o Humanismo substituiu Deus, quando a mente humana passou a ser vista como a maior autoridade, e agora o Humanismo está sendo substituído por um mundo em que algoritmos e dados tomam as decisões. 
Os algoritmos, num futuro próximo, não só aperfeiçoarão nossas habilidades, mas também melhorarão no conhecimento do que sentimos. Chegarão até a nos conhecer melhor do que somos capazes de nos conhecer. 
Com isso, o fim do homo sapiens já está à vista. Harari pensa que a ideia de que o homem é autônomo e tem livre arbítrio está chegando ao fim. "No século XXI a autoridade voltará às nuvens, mas não às dos deuses, mas às da Microsoft, Google e Facebook. Com todos os dados coletados por essas companhias, serão desenvolvidos os algoritmos que compreendam os humanos, que nos compreendam melhor do que nós mesmos. Então, cada vez mais autoridade se moverá de nós para o algoritmo. 
O autor acredita a esperança é a última que morre! que, ao discutirmos cenários perigosos para nós mesmos, podemos atuar e preveni-los de acontecerem.

sexta-feira, 19 de março de 2021

O DIALETO TSAKONIANO, AMEAÇADO DE EXTINÇÃO



Por Francisco José dos Santos Braga

 
“Nossa língua é o tsakoniano. Pede às pessoas que o falem contigo” - Cartaz bilíngue (tsakoniano/grego moderno) de Leonídio ou Tyrós (Kyronía no Peloponeso) - Crédito: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Leonidio-Tsakonian-sign.jpg

 

Vamos começar o presente artigo com um texto mais simples, traduzido do espanhol por mim, para facilitar a compreensão, intitulado “El Tsakonio es el único linguaje griego actual que proviene del que hablaban los espartanos”, por Guillermo Carvajal. 

O dialeto tsakoniano é a única língua grega atual que vem do que os Espartanos falavam 

Embora oficialmente considerado um dialeto, o tsakoniano é uma variedade divergente do grego, muitas vezes classificada como uma língua separada, pois não é inteligível para os falantes do grego moderno padrão. 

Hoje é falado em uma pequena área montanhosa no interior da costa leste da península do Peloponeso, no Golfo de Argos, ao redor das cidades de Leonídio e Tyrós (embora anteriormente se estendesse muito mais ao sul), e é uma língua única entre as variedades do grego. A razão é que se acredita que ele não venha do antigo koine do ático e do jônico (de onde vêm as demais línguas gregas, incluindo o grego moderno), mas sim do dórico ou de uma variedade antiga e tardia do koiné influenciada pelo dórico que era falado anteriormente em uma área mais ampla do Peloponeso, incluída a Lacônia. Quer dizer, da língua que os Espartanos falavam. 

Em azul, a pequena zona de fala tsakoniana em um mapa de 1890 – Crédito: Foto in https://en.wikipedia.org/wiki/File:Pelopones_ethnic.JPG

Assim, ele é considerado o único descendente vivo da língua dórica (embora os especialistas ainda discutam se devem incluir aqui o dialeto maniota). Em qualquer caso, restam apenas algumas centenas de falantes do tsakoniano, considerando-se hoje que está ameaçada de extinção. ¹

O vocabulário tsakoniano é, de acordo com os especialistas, reconhecidamente dórico, embora ao longo dos anos tenha tomado vários empréstimos do grego moderno e inclusive do turco. Para representá-lo, o alfabeto grego padrão é tradicionalmente usado, ao qual são adicionados dígrafos e símbolos para representar aqueles sons que não existem no grego demótico. 

A região onde é falado é chamada de Tsakoniá, embora não seja uma entidade política dentro do Estado grego. Em sua Breve Gramática do Dialeto Tsakoniano publicada em 1951, o professor Thanásis Kostákis definia Tsakoniá como a área que vai da cidade de Santo André em Kinouría ao sul de Leonídio e Tyrós, e no interior de Kastánitsa e Sítaina, mas afirma que em tempos anteriores a  área de língua tsakoniana se estendia até o Cabo Malea, no leste da Lacônia. 

A principal cidade de Tsakoniá na época do Império Otomano era Prastós, que se beneficiou de um privilégio comercial especial concedido pelas autoridades de Constantinopla. Prastós foi queimado por Ibrahim Pashá durante a Guerra da Independência da Grécia e foi abandonado, seus residentes fugiram para a área ao redor de Leonídio e Tyrós e outros locais no Golfo Argólico (também conhecido como Golfo de Argos ou de Náfplio), a área onde hoje se encontram os falantes do tsakoniano. 

Já o termo “tsakoniano” aparece pela primeira vez nos escritos dos cronistas bizantinos, que derivam o etnônimo de uma corruptela de Lakonas (lacônico-lacedemônico, isto é, espartano), uma referência às raízes dóricas da língua tsakoniana e da conversão relativamente tardia do povo ao Cristianismo e à prática dos costumes helênicos tradicionais. 

Link: https://www.labrujulaverde.com/2019/09/el-tsakonio-es-el-unico-lenguaje-griego-actual-que-proviene-del-que-hablaban-los-espartanos  (no vídeo há uma entrevista com um falante de tsakoniano que, em dois momentos, ao falar a sua língua, tenta explicar-se melhor em grego, prática que é coibida pelo entrevistador)

Outro link interessante de informações gerais sobre o tsakoniano em português, cuja leitura recomendo, é o seguinte da BBC:

Link: https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-55709316 

 

PRINCIPAIS AUTORIDADES NO DIALETO TSAKONIANO 

 
1) MICHAEL DEFFNER 
Filólogo, linguista, neo-helenista e arqueólogo alemão (Donauwörth, 1848 – Atenas, 1934). Estudou em Munique e depois em Leipzig. Escreveu sua dissertação na Universidade de Leipzig em 1871, intitulada Neograeca. Estabeleceu-se em Atenas em 1871 e recebeu cidadania grega. Foi nomeado professor de língua latina e alemão. Em seguida foi nomeado professor de Linguística Comparada e de Filologia Latina na Universidade de Atenas e vice-diretor da Biblioteca Nacional da Grécia. Seu trabalho científico é mencionado principalmente no estudo do dialeto tsakoniano, cuja antiguidade e origem provou. Publicou a "Gramática Tsakoniana" (Parte I, Berlim, 1881. Parte II permanece inédita), a “Flora de Tsakoniá” (Atenas, 1922), muitos artigos de conteúdo folclórico e linguístico sobre os Tsákones e o Tsakoniano e, finalmente, o "Dicionário de Dialeto Tsakoniano " (Atenas, 1923). O “Dicionário do Dialeto Trapezundiakó" que ele escreveu permanece inédito.
Para informações mais completas sobre Michael Deffner, recomendo a leitura das páginas 5 a 116 dos Mitteilungen des Historischen Vereins für Donauwörth und Umgebung (1997), todas referentes ao grande filólogo, neo-helenista e arqueólogo alemão. Ao longo dessas páginas, o interessado vai encontrar os seguintes artigos de notório interesse: 
Otto M. DEFFNER, Michael Deffner (1848-1934). Der Hellenist, der Graecophile, der Grieche, in: MittHVDonauwörth 1997, S. 5-11 
Ottmar SEUFFERT, Der Griechenlandforscher Dr. Michael Deffner im Spiegel seiner Briefe (1871-1891), in: MittHVDonauwörth 1997, S. 12-48 
Jutta STROSZECK, Der Sprachforscher Michael Deffner als Archäologie, in: MittHVDonauwörth 1997, S. 49-89 
Michael DEFFNER, Lebenslauf, in: MittHVDonauwörth 1997, S. 90-91 
Michael DEFFNER, Meine wissenschaftliche Laufbahn in Kürze (1881), in: MittHVDonauwörth 1997, S. 92-93 
Michael DEFFNER, Meine amtliche wissenschaftliche Tätigkeit während der 56 Jahre meines Lebens in Griechenland (1871-1927), in: MittHVDonauwörth 1997, S. 94-111 
Michael DEFFNER, Meine Verbannung nach Skyros und Kreta (1917-1919), in: MittHVDonauwörth 1997, S. 112-113 
Vereinsnachrichten, in: MittHVDonauwörth 1997, S. 114-116 

Link: http://wiki-de.genealogy.net/Historischer_Verein_f%C3%BCr_Donauw%C3%B6rth_und_Umgebung/Mitteilungen#Mitteilungen_1997

2) THANÁSIS KOSTÁKIS 
Folclorista, historiador, filólogo e lexicógrafo grego. Ele nasceu em Péra Mélana, Arcadía, em 1907. Em sua cidade natal era falado o tsakoniano. Lecionou em várias escolas secundárias e liceus em Atenas antes de ingressar na Academia de Atenas, onde contribuiu como autor do Dicionário Histórico da Academia. Ele lidou principalmente com o folclore de Tsakoniá e com o registro de dados para o dialeto tsakoniano. Ficou mundialmente conhecido por seu trabalho com o dialeto tsakoniano ameaçado ¹ de extinção, falado no leste do Peloponeso. Seu último trabalho científico é a publicação do terceiro volume do seu Dicionário do Dialeto Tsakoniano, pelo qual foi premiado pela Academia de Atenas. Faleceu em 2009. 
Kostákis participou de muitas conferências científicas sobre folclore, linguística e cultura, onde compartilhou sua experiência e os resultados de suas pesquisas sobre Tsakoniá e o dialeto tsakoniano. Ele é principalmente conhecido por seu trabalho na língua tsakoniana ameaçada de extinção, falada no leste do Peloponeso.  Além de seus trabalhos e estudos linguísticos, Kostákis publicou um volume sobre a arquitetura tradicional de Tsakoniá. 
Sua bibliografia é extensa, pelo que mereceu o título de "personalidade das letras e da cultura" pela Academia de Atenas: 
Breve gramática do dialeto tsakoniano, Instituto Francês da Grécia, Atenas 1951. 
Arquitetura tradicional de Tsakoniá, Academia de Atenas, Atenas 1961. 
O dialeto tsakoniano da Propôntida, Academia de Atenas, Atenas 1979. 
Vátika e Khavoutsí, as aldeias tsakonianas da Propôntida (1979) 
Amostras do dialeto tsakoniano, 80 p. (1980) 
Dicionário do dialeto tsakoniano (3º volume, 392 p.), Academia de Atenas, 1986. 
Ainda registrou dados históricos oriundos de Mistí da Capadócia. 
 
Veremos aqui apenas trechos de “Amostras do Dialeto Tsakoniano” traduzidos por mim e que mais chamaram minha atenção. Logo nas primeiras páginas (p. 4), Kostákis apresenta a bibliografia consultada por tema pesquisado. Ela se compõe principalmente de autores franceses, conforme abaixo: 
Tema: Vátika ou idioma vatikiótico 
Bourguet, Émile: Estudo do Dialeto Laconiano, Paris, Champion 1927. 
Deville, G.: Estudo do Dialeto Tsakoniano, tese de doutorado. Paris 1866. 
Tema: Idioma de Kastánitsa; Prastós ou idioma de Prastós 
Pernot, H.: Introdução ao estudo do dialeto tsaconiano. Paris 1934. 
Tema: Khavoutsí ou idioma de Khavoutsí 
Khatzidákis, G. N.: Breve história da língua grega (1967). Sociedade para a difusão de livros úteis, nº 21, Atenas. 
Em seguida, na Introdução (p. 5-21) do livro “Amostras do Dialeto Tsakoniano”, destaco os excertos que me pareceram mais relevantes para este estudo do dialeto tsakoniano: 
Pág. 5-6: “É conhecido que já na época antiga, nossos antepassados separavam a sua língua exceto os dialetos menores e os idiomas linguísticos em 4 dialetos principais: Jônico, Eólico (junto com o Acaico), Dórico e Ático. O Ático baseia-se principalmente no Jônico e sua evolução, diríamos, está em tempos mais recentes, no apogeu de Atenas. O mais antigo desses dialetos era o Jônico e o mais novo, o Dórico, uma vez que, como sabemos da história, os Dórios são a última das raças gregas que desceram ao país grego, onde as encontramos nos tempos históricos. (...) Quanto aos textos escritos em dialeto Dórico, eles são em menor número do que os que foram escritos em Jônico. Uma evolução do antigo Dórico do Peloponeso é o dialeto Lacônico, e deste nova evolução formou os atuais dialetos Tsakonianos.” (...) 
Pág. 7: “Do século V a.C., a separação entre os dialetos gregos começou a desabar em benefício do Ático, que aos poucos transforma-se em língua comum (koiné) pan-helênica, graças à irradiação de Atenas, que, com seu apogeu espiritual, social e político, ofuscou todos os outros centros gregos, sem isso significar que em certas regiões da Grécia não se conservassem restos dos mais antigos dialetos. Do dialeto Ático, essa língua pan-helênica, durante o IV século a.C., proveio o koiné alexandrino ou helenístico, que, conforme o próprio nome indica, se difundiu e foi imposto durante os tempos helenísticos, principalmente de fins do IV século a.C. até a época de Constantino Magno, embora, simplificado, encontremos o dialeto Ático em escritores mais antigos, tais como Aristóteles e Xenofonte.” (...) 
Pág. 9-10: “Assim, então, simplificado o dialeto Ático, na forma já do koiné, que é o precursor do grego moderno (demótico), encontramo-lo nos papiros, na tradução do Antigo Testamento pelos Septuaginta, no Novo Testamento, etc. (...) A evolução do koiné prosseguiu com o passar do tempo, e as simplificações avançaram tanto que no século XI d.C. a palavra εἴδησις, por exemplo, já é ouvida com três ιs, já que é ausente a diferença entre ει, η e ι, como acontece também hoje. (...) Como, porém, quase toda regra possui também suas exceções, assim também do patamar dos dialetos arcaicos e a sua substituição pelo koiné helenístico, ficaram excluídas certas regiões, isto é, receberam menos a sua influência. Uma dessas regiões foi o Póntos ², onde foram preservados poucos elementos do dialeto jônico e principalmente a Tsakoniá, onde seu dialeto preserva muitíssimos elementos lacônicos, isto é, dóricos. E dizemos que preservou muitos elementos lacônicos, porque não podemos dizer que absolutamente não sofreu a influência do koiné. Isso seria impossível, uma vez que nunca tenha sido cortado o contato entre as pessoas que falavam essas duas línguas.” (...)  
 
 
 
PROVÍNCIA DE KYNOURÍA
 
Vejamos agora o que a Wikipédia no idioma grego tem a nos dizer sobre Kynouría, uma localidade onde o tsakoniano era originalmente falado. De acordo com a minha tradução, eis o que foi encontrado:

“Kynouría deriva seu nome do antigo colono da área, Kynouros, filho de Perseu e líder dos Argivos que primitivamente a colonizaram. É uma área histórica e província da prefeitura de Arcadía. Inclui a parte costeira da prefeitura e a parte montanhosa localizada nas encostas do norte do Monte Párnon ou Malevós (cordilheira que está situada entre duas províncias: Lacônia e Arcadía. De seu cume é possível enxergar o sudeste da Arcadía, a Kynouría do Sul e o norte e centro da Lacônia até o Monte Taigeto, além de parte da prefeitura da Argólida.)

Além de Astrós e Leonídio, os assentamentos montanhosos de São Pedro e Prastós eram as sedes mais antigas da província. Uma parte sul da província de Kynouría inclui as aldeias dos Tsákones, um grupo populacional que se instalou no Peloponeso oriental, falante do dialeto tsakoniano.
 
O dialeto tsakoniano 

Em uma área do sul de Kynouría, conhecida como Tsakoniá, o dialeto tsakoniano é falado. O dialeto tsakoniano veio do dialeto dórico que prevaleceu na área na antiguidade devido ao estabelecimento de Dórios em Kynouría. O dialeto tsakoniano é encontrado em Kynouría do Sul (Leonídio, Tyrós, Sapounakaíïka, Péra Mélana, Pramateftís, Vaskína, Livadíou, Sampatikí) e em Kynouría do Norte: (Prastós, Sítaina, Kastánitsa e Santo André).

 

A antiga Kynouría

 

Nos tempos antigos, Kynouría era o país dos Kynourianos, um povo provavelmente de origem jônica. Após a descida dos dórios em Kynouría, ali se estabeleceram. O estado de Kynouría logo se tornou o alvo de seus poderosos vizinhos, os Espartanos de Árgos e os Tegeates da Arcádia. Foi principalmente o pomo da discórdia entre os Espartanos e os Argivos, por se situar entre os dois estados. Apesar da intensa pressão de seus vizinhos, Kynouría deve ter permanecido independente até a época do Tirano Feídonas, quando ficou sob o governo de Argos. Argos estava então no auge. Depois de Feídonas, no entanto, Argos começou gradualmente a declinar, enquanto Esparta ganhava força. O destino de Kynouría parece ter sido finalmente decidido em 546 a.C., na batalha de Thyréa  ou na batalha dos seiscentos escolhidos, quando Esparta prevaleceu sobre Argos e ganhou o controle de Kynouría. Esta permaneceu espartana até 338 a.C. Neste ano, Filipe II cedeu o norte de Kynouría aos Argivos, enquanto a região sul de Prasiá e Tyrós, que era a fronteira natural da antiga Esparta, permaneceu em Esparta. As cidades mais importantes da antiga Kynouría estavam na Kynouría do Norte, Thyréa e Anthíni, e, na  Kynouria do Sul, Prasiés, Tyrós, Políchni, Glypía e Mário.”

 

Link: https://el.wikipedia.org/wiki/ Κυνουρία#Η_Τσακωνική_Διάλεκτος

 

Além disso, do livro de Filipe Bekyros e Eléni Tsangoúri, intitulado A Dança Tsakoniana (1995), extraímos dois trechos (de interesse da Arqueologia e da Musicologia): 



A ORIGEM

 

O culto de Apolo na antiga Kynouría era de suma importância, pois também seria um elemento de identidade nacional para os seus habitantes. Apolo aparece com dois apelidos principais como Apolo Tyríta e Apolo Maleáta (mas também como Pythaieus e Lithíssius).

No santuário de Apolo Tyríta, no topo do Profeta Elias Melánon, foram descobertos um altar quadrado e um muro de contenção do 4º século a.C., por exemplo. A maioria das ofertas votivas, no entanto, pertence aos anos arcaicos. Sobre uma estátua de bronze de um touro está a inscrição ΑΠΕΛΟΝ ΚΛΕ; em uma fivela de bronze em forma de leão, ΑΠΟΛΟΝΟΣ ΕΜΙ; na borda de uma garrafa de bronze, ΑΠΕΛΟΝ ΤΥΡΙΤ[ΑΣ]. Em um vaso (taça lacônica) estava gravada a inscrição [ΕΥΓ]ΕΙΤΟΝΙΔΑΣ ΑΝΕΘΕΚΕ ΤΟΙ ΑΠΟΛΟΝΙ ΠΑΡ ΔΟΡΙΕΟΣ ΔΟΡΟΝ.

Provavelmente do mesmo santuário vem uma estátua masculina de bronze com a inscrição APELON TYRITAΣ. A figura é representada na posição agachada, como quando as ovelhas são ordenhadas, com uma caixa de couro pendurada entre os joelhos, com o auxílio de tiras que formam alças e um disco com inscrição gravada na superfície: ΜΕΛΑΣ Μ΄ΕΝΙΚΕ ΠΥΘΑΙΕΙ...

 

O culto no santuário de Tyríta começou no século VIII a.C. e foi mais intenso no VII, VI e V a.C com um vislumbre do século IV. Tyritas era provavelmente uma antiga divindade local que ajudava a produzir leite e queijo, mas com o tempo se identificou com Apolo, mantendo o antigo nome como um adjetivo. Seu santuário experimentou a maior prosperidade de todos os santuários da região no período arcaico, talvez devido à sua localização central em Kynouría.

O santuário de Apolo Maleáta estava localizado no D.BD. extremidade de Kosmás, onde hoje se encontra o Profeta Elias. Entre os muitos achados, destaca-se a estatueta de bronze de um guerreiro com a inscrição ΧΑΡΙΛΟΣ ΑΝΕΘΕΚΕ ΤΟΙ ΜΑΛΕΑΤΑΙ. (...) ”

Linkhttp://tsakoniandance.bekyros.gr/tsakon_002.htm

 
 
A DANÇA TSAKONIANA
 

A dança tsakoniana, como um conjunto indiviso, melodia, ritmo e dança, é, talvez, a única amostra de música da Grécia antiga que chegou aos nossos dias. E veio porque é uma dança sagrada, uma dança de culto. É bem sabido que os costumes cultuais são os únicos que perduram com o tempo. Na Grécia, apesar do ataque que receberam da nova fé, vários costumes cultuais sobreviveram. Aqueles que a nova fé não conseguiu eliminar incorporou em seu próprio culto ou tolera calado...”

 

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Encontrei igualmente no YouTube alguns vídeos que, sem dúvida, despertarão o interesse do leitor pela dança praticada na região em que o Tsakoniano é falado. Sugiro pelo menos que assista aos seguintes vídeos selecionados para uma só canção tradicional em tsakoniano:


1) Grupo de dança de Leonídio

Link: https://th-th.facebook.com/groups/110224242346401/

 

Letra:  

Σου ‘πα μάνα, μάνα μου πάντρεψέ με (δις)

Σου ‘πα μάνα πάντρεψέ με, σπιτονοικοκύρεψέ με (δις)

 

Εις τα ξένα μάνα μου μη με δώσεις (δις)

εις τα ξένα μη με δώσεις, γιατί θα το μετανιώσεις (δις)

 

Εις τα ξένα μάνα μου θ’ αρρωστήσω (δις)

εις τα ξένα θ’ αρρωστήσω και μανούλα θα ζητήσω (δις)

 

Θα ζητήσεις κόρη μου την κουνιάδα (δις)

θα ζητήσεις την κουνιάδα και την πρώτη συννυφάδα (δις)

 

Η κουνιάδα, μάνα μου δεν αδειάζει (δις)

η κουνιάδα δεν αδειάζει, συννυφάδα λογαριάζει (δις)

 

Η κουνιάδα, μάνα μου τα προικιά της (δις)

η κουνιάδα τα προικιά της, συννυφάδα τα παιδιά της (δις)

 

2) Linkhttps://www.youtube.com/watch?v=nnHe2murMd8

 

3) Link: https://www.youtube.com/watch?v=9e-VT4IkZ2Y (ΓΙΩΡΓΟΣ ΒΕΛΙΣΣΑΡΗΣ)

 

4) Link: https://www.youtube.com/watch?v=0JbS9CdLs6o

 

5) Link: https://www.youtube.com/watch?v=IFakDGY4mpI

 

Grupo de Dança Tsakoniana

 

 

NOTAS EXPLICATIVAS 


¹  Uma língua ameaçada é uma língua que está caindo fora de uso, geralmente porque tem poucos falantes sobreviventes. Se ela perder todos os seus falantes nativos, irá tornar-se uma língua extinta. A UNESCO, que distingue quatro níveis de risco para línguas ameaçadas, com base na sua transferência entre gerações, considera o tsakoniano uma língua criticamente ameaçada, isto é, quando "as mais novas gerações que a falam são avós e mais velhos, e ainda assim pouco frequentemente ou parcialmente". 

²  Póntos ou Pontus (em latim): nos trabalhos homéricos, esta palavra é usada para qualquer mar, porém mais tarde começou a referir-se especificamente ao Mar Negro, e eventualmente a uma região situada na sua costa sudeste. É nesta última acepção que o topônimo é usado aqui.

terça-feira, 16 de março de 2021

MAIAKÓVSKI EM PORTUGUÊS: ROTEIRO DE UMA TRADUÇÃO


Por Haroldo de Campos
Digitado por Francisco José dos Santos Braga

 
Bailarina americana Isadora Duncan e poeta russo Sierguéi Iessiênin

Quando me dispus a traduzir um poema de Maiakóvski, após pouco mais de três meses de estudo do idioma russo, conhecia minhas limitações, mas tinha também presente o problema específico da tradução de poesia, que, a meu ver, é modalidade que se inclui na categoria da criação. Traduzir poesia há de ser criar, sob pena de esterilização e petrificação, o que é pior do que a alternativa de trair. 
Mas não me propus uma tarefa absurda. Ezra Pound traduziu “nôs” japoneses, numa época em que não se tinha ainda iniciado no estudo do ideograma, ou em que estaria numa fase rudimentaríssima desse estudo, servindo-se do texto (versão) intermediário do orientalista Fenollosa, iluminado por sua prodigiosa intuição. E o resultado, como poesia, excede sem comparação ao do competente sinólogo e niponista Arthur Waley, e acabou, inclusive, por instigar o teatro criativo de Yeats (At the Hawk’s Well, 1916) ¹. Sem que se tenha a imodéstia de pretender repetir, no campo da tradução da poesia, as façanhas poundianas, não há dúvida de que dêste caso-paradigma decorre toda uma didática. 
Evidentemente, num poeta como Maiakóvski, o respeito ao conteúdo do texto seria fundamental, e para tanto, além do meu russo engatinhante, mas animado de um beneditino escrutínio, palavra por palavra, dicionário e gramática à mão, do texto original, vali-me de duas versões intermediárias: uma, em espanhol, de Lila Guerrero (Antologia de Maiacovski, Editorial Claridad, Buenos Aires, 1943); outra, em alemão, de Karl Dedecius (W. W. Mayakowskij - Gedichte, Russisch-Deutsch, Langewiesche-Brandt, Munique, 1959). A primeira é uma mera transposição em prosa, com apenas um aspecto exterior de verso-livre, utilíssima para se apanhar o sentido do original; a segunda é uma competente tentativa de reproduzir, em alemão, as virtualidades rítmicas e rímicas do original russo. 
Escolhi para esta primeira investida o poema Sierguéiu Iessiêninu (A Sierguéi Iessiênin), não só pelo fato prático de que tenha sido também selecionado pelos dois tradutores em questão, mas ainda e principalmente pela razão estética de se tratar, a meu ver e até onde posso imaginar, de uma das mais importantes realizações de Maiakóvski, de sua última fase (1925-30, o poema é de 1926), de maturidade criativa. Tão importante que o poeta o elegeu para demonstrar sua arte de compor, no admirável estudo "Como se fazem versos", traduzido incompletamente por Elsa Triolet (Maiakovski - Vers et Proses de 1913 à 1930, Les Éditeurs Français Réunis, Paris, 1952) e de maneira integral, sem saltos dos excertos mais "técnicos", por Lila Guerrero (obr. cit.). 
 
SITUAÇÃO DE MAIAKÓVSKI 
 
Primeiro, algumas observações de caráter geral. 
Maiakóvski é um dos poetas mais significativos do mundo contemporâneo. Procedendo das experiências futuristas ² e ligado, na revista "LEF" (sigla de "Frente Esquerda"), de que foi um dos editôres, aos críticos formalistas russos (Óssip Brik e outros) posteriormente proscritos, para êle "sem forma revolucionária não há arte revolucionária" ³. Sua participação ao nível ideológico não era inconciliável com as exigências de uma criação artística de vanguarda, e sempre se insurgiu em poemas, peças teatrais e artigos críticos contra os burocratas em geral e, em especial, contra os burocratas da sensibilidade, zoilos e criticastros bafejados pelo favor oficial, aos quais definia como "intermediários de gôsto bastante intermédio, interpostos entre o produtor e o consumidor de poesia" (basta ler um poema como "Mássam nieponiátno" / "Incompreensível para as massas", de 1927, na coletânea de Karl Dedecius, ou o artigo sôbre o mesmo tema: "Os operários e os camponeses não vos compreendem", de 1928, republicado recentemente em tradução francesa na revista "Recherches Soviétiques", Éditions de la Nouvelle Critique, Paris, 1957, n. 7). Sua morte, em 14 de abril de 1930 (suicídio), ocorreu antes que se implantasse, como dogma estatal, a doutrina do "realismo socialista" em arte , que levou de roldão, em prol de um academismo crescente, as reivindicações estèticamente revolucionárias dos artistas de vanguarda, inclusive daqueles como Maiakóvski e seu grupo da revista "LEF" alistados no ideário da Revolução de Outubro. 
Felizmente, de 1955 para cá, com a desestalinização, indícios de desburocratização artística começam a apontar na União Soviética e em alguns países socialistas. Um crítico como Georges Lukacs, que nunca rezou de boa índole pela cartilha ortodoxa dessa doutrina estética oficial, já apresenta uma posição consideràvelmente mais aberta no seu La Signification Présente du Réalisme Critique (Gallimard, Paris, 1960, tradução do alemão), embora ainda eivada de restrições mentais e esquematizações quanto ao verdadeiro significado da obra de um James Joyce, por exemplo . Na Polônia, repetem-se os festivais de música contemporânea (o já famoso "Outono de Varsóvia"), nos quais se incluem a música concreta e a eletrônica e composições instrumentais de vanguarda, existindo mesmo, junto à Rádio-Televisão polonesa, um Estúdio de Música Experimental dirigido por Josef Patkowski . Os jovens informalistas poloneses estiveram presentes na 5ª Bienal de São Paulo (1959), muito lucidamente apresentados no catálogo pelo crítico Mieczuslaw Porebski . A nova arquitetura principia a readquirir prestígio na União Soviética, reclamando uma reconsideração das idéias construtivistas  e Ilyá Ehrenburg já se permite reivindicar a franquia dos museus soviéticos aos próprios pintores supremacistas e construtivistas de ao redor dos anos 20 (Maliévitch, Tátlin, Popóva, Rosánova, etc.), cujas obras sofrem ainda a longa hibernação do veto oficial . Liberta da interdição, é exibida em 1958 na Exposição Internacional de Bruxelas e, no ano seguinte, em Paris, no Pagode, a segunda parte de Ivan, o Terrível, de Eisenstein, êsse extraordinário cineasta que tratou a montagem cinematográfica em têrmos de ideograma e que, em 1945, fôra tachado de "formalista" e "desviacionista" pelos censores stalinistas. Um filme como Quando voam as cegonhas (1957), premiado com a palma de ouro no festival de Cannes de 1958, indica que uma lufada de oxigênio bafeja de novo a cinematografia russa. Os inéditos de Maiakóvski são editados pela Academia Soviética, e segundo o depoimento de Etiemble, professor de Literatura Comparada da Sorbonne, que visitou Moscou em outubro de 1958, essa edição-bomba, - coligindo cartas e textos diversos do poeta, nos quais êle se bate por uma idéia de vanguarda em arte e por escritores e artistas posteriormente incluídos no índex do regime, - era àquela altura o tema predileto das conversas dos estudantes universitários moscovitas ¹. As peças de teatro do poeta, após um longo eclipse, são reexibidas com sucesso, inclusive Os Banhos, sátira contundente contra os burocratas ¹¹. Mas tudo isto são apenas augúrios, presságios de um renascimento que só o tempo poderá confirmar, pois o paternalismo do interregno Khruschóv ainda envolve uma forma autoritária de dirigismo artístico, se bem que sob um facies mais benevolente ¹². Ainda agora, na 6ª Bienal de São Paulo, vemos a parada antediluviana que é a secção soviética de artes plásticas, a contrastar com a representação tcheco-eslovaca de teatro, onde pontifica um cenógrafo de vanguarda do porte de Joseph Svoboda ¹³. A edição das obras completas de Maiakóvski, trabalho monumental organizado pela Academia de Ciências da U.R.S.S., surge provida de pífias contraditas "acacianas" às idéias estéticas do poeta (felizmente sob a forma de notas marginais, sem interferência no texto), e, o que é pior, expurgada puritanamente de palavras e mesmo frases consideradas obscenas!... Estas revelações foram feitas, em artigo recente, por Boris Schnaiderman, o mais autorizado expositor e crítico da literatura russa entre nós ¹⁴. Aquêles que querem ressuscitar a "Vênus" acadêmica em todos os domínios da arte estão atentos para tudo congelar de novo na sua reação obscurantista e paralisante, como se nesta esfera nenhuma revolução tivesse acontecido ¹⁵. Mas quando um escritor como Iúri Oliécha, em artigo intitulado "Evocação do Mestre", pode afirmar com tôdas as letras que Maiakóvski, se vivo, teria julgado com severidade a estátua que lhe erigiram em Moscou ¹ monumento que certamente consultou (e consulta ainda) ao gôsto oficial dominante , é porque a estrutura monolítica e fetichizada da "arte dirigida" já exibe uma fissura inocultável, cujo alastramento não se conseguirá mais conter, tanto mais que há toda uma tradição de arte russa de vanguarda a recuperar em poesia, em teatro, em música, em artes plásticas, em cinema, em crítica literária inclusive coincidindo com os primeiros anos da Revolução, até à parálise stalinista (1932, aproximadamente). É neste quadro complexo e contraditório, mas fermentado de sugestões, que se põe a idéia de uma reconsideração crítica da arte de Maiakóvski, a partir de um poema dado, com enfoque na sua contribuição criativa fundamental para a vanguarda poética de nosso tempo. 
 
ARQUITETURA ESPACIAL DO POEMA 
 
Sierguéiu Iessiêninu (S.I.) é um poema bàsicamente estruturado sôbre um módulo de quartetos (segmentos de 4 versos), de rimas cruzadas. São 19 módulos ao todo, sendo que o 14º foge à regra geral, consistindo num sexteto rimando aabcbc
Para que se compreenda a imperfeição com que êste esquema descreve a estrutura de S.I., é preciso ter presente que Maiakóvski rompia as leis da poética tradicional e considerava cada poema como um jôgo de xadrez, onde, embora haja algumas regras gerais para começar, não pode mais haver repetições de lances, por geniais que sejam, e o movimento inesperado é que desarma o inimigo. Assim, para início de conversa, digo que Maiakóvski é um poeta espacial, no sentido de que concebe seu poema como uma partitura de leitura, em que os ictos da emoção estão escondidos gràficamente no branco do papel, pois "a pontuação conhecida, com pontos, vírgulas, sinais de interrogação e exclamação é insuficiente, pobre e pouco expressiva em relação aos matizes da emoção de uma obra poética" ("Como se fazem versos"). Com razão Lila Guerrero colocou-o na linhagem mallarmaica, escrevendo: "Filho preferido de Walt Whitman, irmão maior de Arthur Rimbaud, tomou de Stéphane Mallarmé, e especialmente de O Lance de Dados, o verso escalonado que o grande poeta francês iniciou para fixar sua estranha sensibilidade numa estrofe nervosa, curta, vibrante. Estrofe para a melhor confissão escalonada do espírito, que serviu a Maiakóvski para conversar com as grandes multidões, desenvolvendo como ninguém a poesia tribunícia" ¹⁷. Nessa vertente, pode-se dizer que Maiakóvski fêz com a dialética espacial de Mallarmé, instrumento para a pura especulação abstrata, o que Marx fizera com a dialética hegeliana: colocou-a de pés sôbre a terra, reverteu-a em técnica de marcação evocatória, apta à linguagem do comício e da agitação. Sua poesia tem mais a ver com o mundo dos cartazes de propaganda (atividade a que o poeta dedicou muito de seu empenho, no período de 1919-1922, na agência soviética "Rósta", e de 1923 a 1925, a serviço do comércio do Estado) do que com a idéia tradicional de lírica ¹⁸. Evidentemente, esta fragmentação da estrofe tem propósitos rítmicos definidos (e Maiakóvski tinha do ritmo uma noção de extrema atualidade: "O ritmo é a fôrça principal, a energia fundamental do verso. É impossível de momento explicá-lo. Dêle só se pode falar como se fala do magnetismo ou da eletricidade") ¹. Eisenstein descreve o "corte" da estrofe em Maiakóvski em têrmos de montagem cinematográfica, assinalando que o poeta não escrevia em "linhas", mas em shots (dá como exemplo a estrofe inicial de S.I.); Hugh Kenner equaciona esta observação do grande criador do cinema russo com a idéia da estrutura poemática ideogrâmica, preconizada por Ezra Pound ²
Por outro lado, Maiakóvski é categórico quanto à noção acadêmica de métrica (algo que entre nós se confunde com uma persistente nostalgia "parnasiana"): "No que se refere à métrica, não conheço nenhuma de suas leis", e acrescenta que variava os versos em curtos e longos, segundo a emoção a transmitir: alegre (satírica) ou heróica e solene. "Para dizer a verdade, não conheço nem iambos nem troqueus, jamais os reconheci e não os pretendo reconhecer. Naturalmente, não porque seja uma coisa difícil, mas porque em meu trabalho poético não me fazem falta essas bugigangas" ²¹. Assim, na tradução, optei com tôda a naturalidade pelo verso livre e pela estrofação condicionada ao tonus do segmento considerado, no que respeita a versos de medida mais curta ou mais longa. 
Quanto à rima, é uma pedra de toque da arte de Maiakóvski. Não apenas a rima comum, consonante, mas a assonância e todo um feixe sutil de coincidências, respostas e contrastes sonoros. "A consonância do final é uma das infinitas possibilidades de enlaçar as estrofes, na realidade a mais simples e a mais grosseira" ("Como se fazem versos"). Maiakóvski costuma colocar a palavra mais característica no fim da estrofe e em seguida vinculá-la sonoramente ao material anterior tomando os sons mais típicos da palavra a rimar. Neste rimário imprevisto e heterodoxo, resulta muitas vêzes que o poeta (que também não deixa, quando calha, de usar a consonância) se apóie em recônditas afinidades fonéticas das últimas sílabas das palavras, como repara Karl Dedecius. Outras vêzes, faz verdadeiros retrógrados ou caranguejos fônicos, rimando ao arrepio da seqüência de fonemas, rimando às avessas por assim dizer, dentro de regiões sonoras que constrói no segmento do poema. Trata-se de uma rejeição até programática da "simetria gramatical" e da "congruência fonética", em prol da "assimetria morfológica", obtida através de "rimas difíceis", colhidas em "esferas semânticas díspares" ²². Êstes recursos de "orquestração verbal" poderiam encontrar uma tradição secular na poesia humorística russa, embora a sua utilização moderna nem sempre responda a motivações satíricas ²³. Óssip Brik, amigo da primeira hora e crítico de Maiakóvski, estudou mesmo as "figuras aliterativas", as "repetições sonoras" (de "grupos consonantais") na poesia dos futuristas russos, que recusavam o ideal simbolista da "melifluência" em favor da dissonância, ou seja, de "combinações sonoras difíceis", consideradas "não manipuláveis". Nesse sentido, Maiakóvski insistia que havia ainda "boas letras" no alfabeto russo deixadas à margem pelos poetas, tais como "er", "cha", "shcha"... ²⁴. Para recriar em português a resultante disto que Maiakóvski chamou de "trabalho fonético", vali-me de todos os recursos possíveis e à minha disposição: aliterações, coliterações, assonâncias, consonâncias, e, ainda, procurei estabelecer, dentro dos módulos estruturais do poema (quartetos bàsicamente), regiões de contágio, contraponto ou contraste fônico. Nem sempre adotei o esquema geral de rimas cruzadas do original; usei, conforme me impunha a elaboração do contexto, rimas emparelhadas ou mesmo apoios rítmicos extrapolados do fim de uma linha (ou mais exatamente, de um shot ou icto) para o meio (shot ou icto intermediário) de outra, etc., seguindo, ainda neste passo, a lição do poeta, quando adverte: "Pode-se rimar o comêço das linhas. Pode-se rimar o final da primeira e o da segunda simultâneamente com a última palavra da terceira ou da quarta linha. E assim uma infinita quantidade de variações". 
Uma consideração final, antes de entrar no exame do contexto do poema e na análise e justificação pormenorizada da tradução: a economia, para Maiakóvski, é a lei fundamental de tôda produção estética. Daí que a sua discursividade, num poema como S.I., seja constantemente contida nos diques da condensação e do despojamento, que as ligaduras lógicas sejam substituídas por uma técnica mais direta, "presentativa", ou como ficou dito acima de montagem do tipo ideogrâmico-analógico, própria aliás do que Max Bense chamou de "Plakatwelt" (mundo do cartaz de propaganda, da publicidade e do jornalismo). Sua retórica, sempre cortada cerce, se detém no Slogan-stil (expressão de Karl Dedecius). 
 
CONTEXTO DO POEMA 
 
No nível semântico se põe aquilo que, para Maiakóvski, é o encargo social do trabalho poético (considerado por êle como uma forma de produção: dificílima, complexíssima, porém "produção"). Essa participação, essa visada ideológica, para o grande poeta, como se viu, deve informar isomòrficamente uma forma nova, pois, são ainda suas palavras, "a novidade, a novidade do material e dos meios é indispensável para tôda obra poética" ²⁵
Sierguéi Iessiênin, poeta nascido em 1895, representa a variante russa do imagismo da literatura de língua inglêsa. Não certamente do imagismo à Pound, que é no fundo um exercício de despojamento e linguagem direta para uma dicção mais ambiciosa; mas do imagismo dos cromos líricos, do círculo daqueles poetas de pendência paisagística e bucólica ligados ao movimento por uma aparente solidariedade em tôrno do problema da imagem visual ². Iessiênin, o cantor nostálgico do ambiente rural, o "guitarrista gitano", é assim uma espécie de pólo oposto de Maiakóvski, o poeta-propagandista, vertiginosamente integrado no ritmo do futuro. Em seu último poema, Vo Viés Gólos (A Plenos Pulmões, - 1930), concebido como introdução a uma peça mais longa, de exaltação ao plano qüinquenal, que não chegou a ser escrita, Maiakóvski deixa patente êsse antagonismo: refere-se crìticamente às "serenatas iessieninianas proto-primevas" ou "arqui-arcaicas" ²⁷, identificando-as com uma idéia de poesia sentimental e mandolinante, ao passo em que se autodescreve como um "agitador", um "caudilho vociferante". De fato, para Maiakóvski, interessado em inserir a poesia na era industrial e para quem o trabalho formal do artista era uma "engenharia necessária à configuração de tôda a vida prática" ²⁸, Iessiênin surgia no outro extremo, como o poeta de concepção tradicional, alienante, disposto a erigir "a vaca em símbolo para enfrentar a locomotiva". 
Numa fase mais madura, todavia, Iessiênin parece ter sentido o chamado ideológico, procurando aproximar-se dos escritores engajados na Revolução, inclusive do grupo da revista "LEF". Continuou, porém, fiel a seu espírito boêmio, entregando-se à bebida com o dinheiro fácil que lhe advinha do sucesso de sua poesia e acabando por suicidar-se, numa crise de niilismo, no mais puro estilo romântico: num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado, cortou os pulsos, escreveu com sangue um poema de despedida, que concluía "Nesta vida morrer não é coisa nova/Viver, porém, tampouco é novidade" , e enforcou-se, pendurando-se do conduto de calefação. Seu fim (1925) provocou em Maiakóvski, que nos últimos tempos tivera mais contacto com êle, um sincero sentimento de pena, humano e simples (assim se expressa a respeito), embora o desfecho também lhe parecesse, de certa maneira, "natural e lógico". Logo, porém, o suicídio de Iessiênin se transformou num "acontecimento literário": de um lado, eram os críticos dogmáticos e burocratizados, os "fetichistas" da cultura oficial, a reprovar no suicida, de maneira esquemática e primária, a boêmia, a bebida, a ausência de sentimento de classe, a rebeldia ao dirigismo artístico, como se tudo fôsse uma simples mecânica de causa e efeito; de outro, a legião dos epígonos, a criar um suspeito culto iessieniniano, com a mística da autodestruição e do escapismo pela frente. 
Maiakóvski se propôs, como "objetivo conceitual" de seu poema, paralisar a ação dos últimos versos de Iessiênin, responder à negatividade de sua mensagem com uma afirmação construtiva e otimista, de confiança na sociedade futura e no fazer humano, quaisquer que fôssem as dificuldades do presente. E, paralelamente, defender a dignidade do poeta dessa esfera do fazer humano que é a criação artística, e que Iessiênin, apesar de tudo que o afastava de Maiakóvski, representava, pelas "dezenas de momentos de inovação poética que há em sua obra", como seu próprio antagonista lealmente reconhecia contra todos aquêles que a profanaram no episódio, tanto os que tentaram "enterrá-lo poeticamente pelo simples fato de se ter suicidado", como os que converteram o seu fim trágico e humanamente doloroso num pretexto para o lacrimatório desvirilizado e o falso sentimentalismo. 
 
ANÁLISE PORMENORIZADA E JUSTIFICAÇÃO DA TRADUÇÃO ²
 
1) A primeira estrofe é exemplar. Sôbre ela M. se detém longamente em seu "Como se fazem versos", onde relata sua paulatina elaboração. "Não se compreende o fenômeno do suicídio arrancado da complexa situação social e psicológica que o motivou. Negá-lo sem argumentos deprime por sua falsidade", escreve. E, no pórtico do poema, faz já a abordagem do tema em dois níveis: um solene, que corresponde ao sentimento do trágico no episódio; outro mais leve e conversacional, através do qual se afasta a idéia do "soluçar sem sentido" e o poeta se faz o interlocutor de Iessiênin, como num simples e direto diálogo de amigos. Contrastam, assim, versos longos e curtos no quarteto, o que reproduzi na tradução, mantendo, onde necessário, o modo coloquial e a frase cotidiana. Tratava-se também de despir o tema de um patetismo excessivo e de qualquer resíduo animista, de tipo religioso, que não correspondessem à cosmovisão do autor: assim, ao invés de usar uma fórmula correntia como "Você se foi... desta para a melhor", que implicaria um conceito hierárquico de "vida melhor" no sentido teológico, segui o original e as recomendações do poeta, empregando uma frase também usual, porém não impregnada de qualquer nuance mística de "vida extraterrena"; o outro mundo seria aí, após a finitude da vida física, o mundo das imagens e da cultura, a história enfim, onde Iessiênin projetou a legenda de si mesmo, onde, ao nível da hombridade, se converteu em metáfora de si próprio ("Man be my metaphor", Dylan Thomas); é como M. o vê, "entremeado às estrelas". 
Importante recurso do autor neste trecho é o uso substantivo e funcional da disposição gráfico-espacial. Quando margina e isola a palavra Pustotá (lê-se Pustatá, - Vácuo), tem um propósito deliberado: "Vácuo figura à parte, pois é a única palavra que caracteriza a paisagem, o céu". Eisenstein serve-se justamente desta segunda linha do quarteto para exemplificar o processo de construção fílmica em M.: "Vácuo se tivéssemos que filmar êste shot, apanharíamos as estrêlas de maneira a como que enfatizar o vazio; todavia, simultâneamente, tornaríamos sensível a presença delas". 
Neste quarteto e no fim desta 2ª linha (ou seqüência de shots) inscreve-se uma típica rima maiakovskiana: buscar o poeta, fônicamente, estabelecer afinidades entre o gerúndio reflexivo vriézivaias (que traduzi pelo particípio passado "entremeado", mas que poderia ser também vertido por "incrustando-se", não foram as exigências do meu esquema rítmico) e o substantivo Triézvost (Sobriedade), da quarta linha-membro. Ou seja, entre as séries consonantais vrzv e trzv. Para completar a faixa sonora desejada, apanha o st final da segunda palavra e o equaciona com o st e o t de Pustotá e - como salienta, para brindar o choque de tt - faz intervir a palavra Lietítie (Você voa), onde duas dentais (l, t) são seguidas do som dito "mole" ie. Citando os formalistas russos, repara V. Erlich: "É onde a rima inexata coloca um gerúndio em contraste com um substantivo... que a violência organizada cometida pelo verso sôbre a linguagem ordinária fica agudamente sublinhada". 
Já vê o leitor que os problemas para uma tradução não literal, meramente, mas com vontade criativa eram muitos. Mantive as rimas terminais (sem as quais, segundo M., "o verso desmorona") usando de consonâncias (mundo/fundo) e assonâncias (estrêlas/moedas). Estabeleci, além disso, "harmonizações" verticais ou regiões de correspondência e contraste fônico: assim os vv aliterando em Você/Vácuo/Você/Vôo e coliterando com o f de fundo; o aproveitamento geral das sibilantes, marcado principalmente em sobe/Sóbrio; o contraponto de consoantes e vogais em entremeado às estrêlas; finalmente a rima interna, irregular e acidentada, entre Vácuo/álcool (uma quase-toante...). Conservei a montagem original dos shots, o tonus ora solene, ora coloquial. Creio ter mantido o sentido literal: a ascensão de Iessiênin, desvinculado das contingências da bebida (álcool) e do dinheiro (moedas; literalmente: avánsa, genitivo de aváns empréstimo, adiantamento), numa sobriedade de pureza final e de identificação com a sua "metáfora" de poeta, muito acima dos criticastros medíocres que o invectivavam pòstumamente. Substituí Você voa por Você sobe por razões auditivas (excesso de aliterações em v e necessidade de responder sonoramente a sóbrio, minha solução para o Triézvost do original). Acrescentei liberdade que, penso, o esquema me autoriza o shot Vôo sem fundo, para completar o quadro de rimas terminais e não perder a idéia de vôo nessa subida de Iessiênin (portanto, puxei semânticamente a palavra do Lietítie original): o sem fundo extraí da própria idéia de profundidade que há em Pustotá (soa Pustatá) e que, para minha sensibilidade, Vácuo não traduz completamente: trata-se não só da profundidade do céu estrelado, onde Iessiênin se acrescenta como nova estrêla; mas do vazio que sua morte deixou entre seus amigos e, ainda, do vôo solitário do próprio suicida, desligado finalmente de seus hábitos (ou vícios) humanos e elevado à sobriedade exemplar da lenda; mais uma vez se afasta do contexto qualquer resquício animista, contrário às intenções do autor, pois o sem fundo exclui a visão de uma "abertura" transcendente, paradisíaca ou não. Mesmo na adição, forçada pela elaboração sonora, procurei ficar estritamente dentro da área semântica do poema e, mais precisamente, desta 1ª estrofe. 
 
 2) Neste 2º quarteto, uso, nas 3 primeiras linhas, de assonâncias muito próximas troça/mofa/frouxas) e deixo a palavra terminal do 4º verso ossos (de resto, não muito distante da região sonora dessas outras citadas) rimar com o segundo shot do primeiro verso (posso), além dos apoios fônicos que recebe de olho e invólucro. As correspondências (assonantais ou toantes) entre bôca/mofa e lasca/amarga tentam replicar ao jôgo coliterativo "v rlie/rie mon"(literalmente: "na garganta/uma bola de dor"): bôca, lasca e amarga ainda coliteram (kg), enquanto górlie/górie rimam toantemente. 
 
3) No 3º, rimas finais em assonância (senso/talento; rosto/poucos). A rima interna, em eco cal/mortal procura responder ao jôgo sonoro smiertiélnii miel (giz mortal) do texto russo. Impossível/hábil (contraponto de vogais e consoantes a partir da tônica) correspondem ao par zalivál (passado em função subjuntiva, do verbo zalivát: - inundar; na tradução, cobrir)/zaguibát (verbo no infinitivo: dobrar, encurvar, popularmente quebrar a dificuldade). No laconismo da estrofe, há uma alusão à arte poética do suicida: Iessiênin, nesse campo, era capaz de fazer o que para outros seria impossível. Ou seja, um aceno à capacidade factiva e ao talento artístico de Iessiênin, em contraste com o niilismo de seu gesto final. Creio que respeitei êsse nível semântico. 
 
4) Esta foi uma das estrofes mais difíceis de solucionar, na experiência da tradução do poema. A reduplicação interrogativa, exigida pelo original, e o desenvolvimento da idéia poderiam, na versão, abaixar a tensão do texto russo, que está colorido inclusive de uma ironia aguda. Optei, finalmente, por uma dicção "coloquial-irônica" à Laforgue-Corbière, que de resto me parece a mais apta a responder, ponto por ponto, ao diapasão de M. neste quarteto. Tese/corolário traduzem econômicamente o par: a glávnoie (principalmente, em primeiro lugar)/v riezultátie (donde resulta, como resultado). Refratário à sociedade: no original, pouco sociável ou pouco amigo de contactos (tchtô smítchki málo). Sátira à visão congelante e petrificada dos zoilos-burocratas frente ao suicídio de Iessiênin. Esquema de rimas finais em consonância (no original também: smiálo/málo; viná/viná); para mantê-lo traduzi bormótchut (murmuram, os comentários malevolentes da crítica) por esbraveja, conservando, porém, o espírito da estrofe. 
 
5) Prossegue a sátira e já se transforma em interpelação direta, contra o "farisaísmo" ou "pseudomoralismo" dos detratores de Iessiênin. Aqui mantive rimas terminais apenas na 3ª e 4ª linhas (norte/xarope, assonância). Para o final da 1ª, estabeleci uma rima interna consoante (trocasse/classe) e para a última, abstêmia, busquei um apoio também consoante, perfeitamente nítido pela fôrça da homologia a partir da tônica, embora no sentido vertical (boêmia, sendo shot da 1ª linha). No esquema trocasse/classe se engasta, por assimilação, acaso (2º shot, 3ª linha). E lhe daria um norte é a minha transposição, dentro do esquema sonoro, para a idéia original: i buílo b nie do drák ("e não haveria mais disposição para briga"). Kvás, que traduzi por xarope, é uma bebida fermentada, muito popular na Rússia (espécie de cidra). Literalmente: "Pois sim! E a classe mata a sêde com kvás? A classe não é tôla (durák): ela também bebe". 
 
6) Continua a interpelação. Introduzi esta estância e a anterior com a partícula afirmativa Sim por se tratar da resposta de M. a um interlocutor imaginário; no original, ambos os segmentos se abrem com a fórmula coloquial Diéskat (dizem, diz-se). "Pôsto": revista literária, órgão da "Associação Russa dos Escritores Proletários", com a qual M. e a revista "LEF" polemizavam. No original, napostóv, há uma criação vocabular de M.: "dos posteiros" (ou dos homens do "Pôsto"), com uma conotação de "vigias", pois na postú significa "de guarda", "de sentinela". Dorônin era um poeta do grupo "Jovem Guarda" da RAPP, autor do poema "O Tratorista". M. justifica a comparação empregada neste trecho (recurso imagético que reputa "primitivo") dizendo: "Por que como Dorônin, e não como a distância à lua, por exemplo? Primeiro, porque a comparação é colhida na vida literária, uma vez que o tem inteiro é literário; segundo, porque "O Tratorista" (creio que se chama assim) é mais longo do que o caminho à lua, que não parece real, enquanto o poema em questão, infelizmente, existe na realidade. E mais: o caminho à lua haveria de parecer mais curto por sua novidade, enquanto os 4.000 versos de Dorônin são estupidificantes pela monotonia da paisagem de palavras e rimas já vistas 16.000 vêzes". Comente-se que, nesta sua elucidação ("Como se fazem versos"), M. não tomou em conta a previsão dos êxitos astronáuticos da ciência soviética, que lhe dariam infinitamente razão, se comparados à mediocridade artística de certas "obras-primas" oficiais e, por exemplo, a certo "monumental" arquitetônico tipo "bôlo de noiva", que não se compadecem com o prospecto fascinante do mundo da técnica e ficam, diante dele, como um carro de bois perante uma cosmonave... De outro lado, o singelo depoimento jornalístico de um Gagárin, reportando sua experiência da viagem pioneira ao cosmos, é muito mais rico em informação do que os longos hinários dos Dorônin de sempre... ³
Rimo no Pôsto e como Dorônin, numa assonância imperfeita, facultada pela reiteração de oo, e me louvando ainda, para apoio do nin átono, na terminação de patrono e na partícula no, palavras que precedem "Pôsto": uma rima regressiva portanto, envolvendo fonemas de várias palavras. M. dá o exemplo, rimando napostóv com po stó ("em número de cem"). Rima ainda imperfeitamente, Dorônin/odariônniei (mais talentoso, mais dotado). Ganharia/um conteúdo/bem diverso é a minha fórmula para: "Tornar-se-ia muitíssimo mais dotado em conteúdo" ou "Ganharia muitíssimo mais em conteúdo" (stáli b/sodierjániem/ priemnógo odariônniei). Longos e lerdos reproduz, aliterativamente, o utomítielno i dlínno ("de maneira fatigante e longa") do original. 
 
7) Uma das estrofes mais admiráveis do poema, onde a ironia e mesmo o furor lúcido de M. contra os detratores de Iessiênin se apara em lâmina afiada. À miragem empedernida dos burocratas, que supunham resolver tudo na idéia mecânica de um engajamento à "literatura oficial", como se se tratasse da simples troca do conteúdo de dois vasos, a esse delírio ou despautério (a palavra briéd tem ambos os sentidos) daqueles que Sartre tacharia de "marxistas idealistas", M. opôe o gume cortante de seu escárnio, dimensionando através dêle não como justificativa, mas como ensaio de compreensão mais funda o gesto desesperado de Iessiênin. Rimo, em assonância, despautério/tédio e corda/vodca, harmonizando verticalmente remédio (palavra que introduzi) com as duas primeiras. No original, as primeiras linhas são assim: "Mas a meu ver/se sucedesse/um tal despautério, mais cedo ainda/você se teria suicidado". Nas duas outras, a tradução é literal. 
 
8) Aqui, depois do impacto máximo da emoção na estrofe anterior o sentimento do trágico despertado pelo ato de Iessiênin começa o trabalho dialético de neutralização dos efeitos negativos do suicídio do poeta. O ritual suicida, com sua aura romântica (algo démodée), é contrastado com a imagem trivial da "falta de tinta no hotel Inglaterra" e, assim, esvaziado de conseqüências patéticas. Rimas: impulso/pulsos; aberta/"Inglaterra"; êste último par, em assonância, responde ao russo potiéri (de potiéria = perda)/Anglietiérie. Procurei uma aliteração em nn (nem o nó/nem a navalha) para replicar ao zoneamento sonoro que M. obtém na estrofe: percebo nitidamente, p. ex., analogias fonéticas entre nójik (faquinha, canivete), mójet (talvez, pode ser), okajís ("se se encontrasse", imperativo em função condicional, forma reflexiva, do verbo okazát). 
 
 9) Ironização dos epígonos, dos imitadores, que repetem desarrazoadamente o exemplo do suicídio. O gesto, já vazio de significado, é equacionado, não sem uma ponta de "humor negro", com a lembrança factiva de uma tarefa útil: "aumentar a produção de tinta", para que não se tenha necessidade de escrever poemas com o sangue das próprias veias... Parece-me que, neste passo, Lila Guerrero não traduziu com exatidão: "Contra él/casi un pelotón entero/parecia haver realizado el atentado". Aqui não se trata dos desafetos, que gostariam de ver Iessiênin morrer muitas vêzes, mas, ao contrário, de "discípulos", de prosélitos sugestionados e prontos a se auto-executarem, arremedando o ato do ídolo. ("Cêrca de um pelotão se autojustiçou", seria a tradução literal). O tom de burla é propositado e põe a nu a falsidade dessa atitude de empréstimo. Rimo apenas as terminações das duas últimas linhas (em assonância): suicidas/tinta. Nas duas primeiras, valho-me de rimas internas, em eco: felizes/bis (reproduzindo o efeito do original, obrádovalis = alegraram-se/bis) e pelotão/execução. Harmonizo êste segundo par com produção, na vertical, última linha-membro, pois M. acrescenta ao primeiro par uma nova rima, samoubíistv (de samoubíistvo = suicídio). 
 
10) Rimas: cerrada/algazarra, enigmas/línguas, tôdas em assonância, com aproveitamento, ainda, de coincidências consonantais. O poeta se recusa às intermináveis especulações abstratas sôbre o suicídio, pois considera "difícil e inoportuno forjar mistérios" ("tiajeló i nieumiéstno razvodít mistiérii). Prefere falar na perda do povo, o inventa-línguas ("iazikotvórtza"), que ficou privado, para sempre, de seu companheiro canoro: o povo cria línguas, e o poeta "é a antena da raça" (Pound) ou aquêle que "dá um sentido mais puro às palavras da tribo" (Mallarmé). Só que, para M., o povo é o primeiro criador, o mestre; o poeta é o contra-mestre ou aprendiz ("podmastiérie"), excluída assim a nota "aristocrática" que há nas colocações tanto de Ezra Pound como de Mallarmé. 
 
11) Começa agora a descrição que tomará 5 estrofes dos "ritos" fúnebres em torno do poeta-suicida. Aqui intervém o sentimento de profanação, despido de sacralidade, mas ao nível mais densamente humano do respeito à obra e à dignidade de Iessiênin em particular e do poeta-criador em geral. "Devo conquistar o sentimento do auditório contra aquêles que profanaram a obra de Iessiênin, e ademais porque são os mesmos que profanam tôda obra, como os Kógan, os Sóbinov, etc." ("Como se fazem versos"). Rimas: velório/despojos, exéquias/poeta, tôdas em assonância. Harmonizo na vertical sucata/gastas e uso de processos aliterantes na iteração de vv (1ª linha-membro) e na repetição do ex ("extintas exéquias"). Isto visa a reproduzir a reiteração de fonemas como po e kho e a aliteração em rr que incidem nesta estância, no original. Todo êste esquema sonoro empresta ao texto uma andadura em ladainha, como que parodiando o ritual. Há aqui uma reminiscência burlesca das cerimônias mortuárias da Rússia tradicional, nas quais se faziam libações à alma do defunto e se entoavam versos elegíacos. Realmente, M. explica que recorre à metáfora nesta estrofe para transportar certas particularidades de coisas conhecidas à situação que procura configurar (chama de "imagens tendenciosas" às resultantes dêste procedimento, que aproveita as sugestões do ambiente e do cotidiano dentro do projeto do poema). Assim a "sucata", os "versos velhos" ("sucata de versos"/"stikhóv lom") seriam as dessoradas elegias, de tantos enterros anteriores, que os profanadores-carpideiras teriam trazido ao velório de Iessiênin, sem mesmo se dar ao trabalho de polir as rimas gastas. Dentro da linha contextual regida pela idéia de profanação, permiti-me um giro ainda mais dramático que o do original: onde se diz "v khólm/tupíie rífmi/zagoniát kolóm" ("no túmulo cravam rimas obtusas como estacas"), introduzi a imagem da empalação dos despojos inermes pelas rimas gastas, com tôda a conotação medieval de suplício. Lila Guerrero omite êste verso tão importante. 
 
12) Rimas: monumento/excremento (consonantes) e granito/jazigo (assonantes). O principal efeito técnico aqui é a aliteração, na 2ª linha-membro. M. tinha uma idéia muito precisa sôbre a "dosagem das aliterações" e seu uso cuidadoso, a fim de evitar a dulcificação, os exageros da noção simbolista de musicalidade. Nesta estrofe, o processo aliterativo apontado por M. como exemplo de sua concepção serve à enfatização da idéia, esculpindo sonoramente a estátua ausente de Iessiênin. Era primacial, portanto, conservar na tradução o paralelismo auditivo: 
"gdié on,  / brónzi zvón / íli graníta gran?
"onde /o som do bronze/ou o grave granito?
Vali-me do adjetivo "grave", fugindo ao sentido literal de gran (aresta, facêta), para manter-me dentro do esquema aliterante, mas não creio, com isto, ter infringido o tonus do original. No nível semântico, K. Dedecius aponta uma reminiscência do Revisor de Gógol (Ato I, cena 5), onde o Chefe de Polícia exclama: "Que cidade mais asquerosa esta! Não se pode erguer em parte alguma um monumento ou até uma cêrca, e já começam a amontoar no local tôda espécie de excremento, o diabo sabe de onde!". Antes mesmo de se fundir um monumento ao poeta, já se acumulavam nas "grades memoriais" ("k riechótkam pámiati") ou no jazigo, como traduzi tôda sorte de lembrancinhas e dedicatórias: - imundície ("drián"), incluindo as manifestações dos epígonos de um lado e dos zoilos de outro. Neste e no quarteto seguinte, pode-se observar que mudei voluntàriamente o tratamento de "você" (3ª pessoa), para a 2ª pessoa ("te", "teu"). Sigo neste passo a inclinação do nosso coloquial. O sentido conversacional da arte de M. ("a maioria de meus poemas estão construídos na base da entonação das conversações"), que exige, inclusive, uma marcação na base da entonação das conversações"), que exige, inclusive, uma marcação visual de leitura, autoriza meu procedimento. Em russo, embora não se trate de idêntico procedimento idiomático, noto, já na 1ª estrofe, a alternância entre "Vui" (2ª pess. plural, pronome de tratamento que se pode traduzir por "Você" ou "o Sr.") e "tibiê" (2ª pess. sing. dativo, forma equivalente a "a ti" ou "para ti"). 
 
13) Rimas: muco/soluço, babuja/murchas, em assonância. Além disto, harmonizo Sóbinov com voz e sob, e faço quérula responder, como rima interna toante, a bétulas. A escansão difícil "Sóbinov... sob bétulas", com o choque de bb, prepara o gaguejamento final: "nem so-ô-luço" (ni vzdó-o-o-kha), arremêdo do trêmulo de voz. Em russo, há sibilação (ss) e coliteração (vb): "Váche slóvo / sliuniávit Sóbinov, / i vivódit...". Como se vê, os procedimentos sonoros de M. sugeriram-me as soluções adotadas, pois aqui se trata de parodiar ao cantor de ópera Leonid V. Sóbinov, que cantou numa soirée dedicada à memória de Iessiênin a romança "Nem uma palavra, meu amigo", de Tchaikóvski. 
 
 14) Dentro da arquitetura do poema, intervém agora um sexteto, que faz desabar sôbre os "profanadores" a irreverência contundente de M. Nesta estrofe e na seguinte, com as quais se fecha o cerimonial fúnebre, a sátira atinge o seu acúmen, preparando o desfecho do projeto ou do "objetivo conceitual" da peça, que demandará mais quatro estâncias. 
No original, êste sexteto tem o seguinte esquema de rimas terminais: aabcbc, que foi por mim mantido: fim/Lohengrin; estridente/gente; voz/avós, tôdas rimas em consonância. A representação de Lohengrin era, segundo nota de K. Dedecius, um dos sucessos de Sóbinov, que M. chama de "filho de Lohengrin" ("Lohengrinóide", como traduz L. Guerrero). No original está: "Ah, que eu falaria de outra maneira com êsse Leonid filho de Lohengrin!". "Ao diabo, etc." visa a reproduzir o tom blasfemo-burlesco da explosão de M., que inclui referências a "avó", "deus", "alma" e "mãe". O assobio, no texto do poeta, é um dêsses assobios moleques, puxados a três dedos... 
 
15) Continua a punição dos "profanadores". Kógan que significativamente rima com pógan (imundície, porcaria), uma das primeiras associações sonoras que acudiram a M. na fase de estocagem de material para a composição do poema... é o nome do Presidente (até 1929) da Academia de Belas-Artes do Estado, com o qual M. esteve em constante polêmica. Dêle diz o poeta: "Kógan, sempre me pareceu, estudou o marxismo não em Marx, mas tentando deduzi-lo por sua própria conta desta máxima de Luká" (personagem da peça de Górki "No fundo", que L. Guerrero compara a "Perogrullo, ou seja, "figura imaginária a quem se atribuem verdades cediças": Tôdas as pulgas são más, pequeninas, negras e falsas, e considerando esta verdade como da mais alta objetividade científica... Kógan foi um dos mais encarniçados e obtusos adversários da crítica formalista russa, e se jactava mesmo de nunca ter tido "tempo para o estudo da forma literária"; preocupações com a técnica eram para êle "um fenômeno patológico, um sintoma de detestável gulodice estética" (cf. V. Erlich, obr. cit., págs. 78, 83). M. tinha mais de uma razão para colocá-lo no Inferno dêste poema... Traduzo por "corja" a idéia original que L. Guerrero verte por "mediocridade de porqueria", algo como "monturo de grandíssimos incapazes" ("biezdárnieichaia pógan"). A imagem das abas dos capotes infladas como velas negras foi transposta mediante o verbo inflar ligado a escuros redingotes. Escolhi a última palavra por seu rebuscamento bufo e pela rima toante com bigodes (L. Guerrero omite a passagem). Completo o esquema rímico com explodisse/fugisse em consonância, inserindo ainda na estrofe harmonizações em an (Kógan, inflando, espetando). Os bigodes de Kógan em fuga são hiperbòlicamente convertidos em pontas de lanças que espetam os transeuntes. L. Guerrero não me parece exata quando traduz "vstriétchiennikh/uviétcha/píkami ussóv" por "(Kógan), clavado, com lanzas más agudas que sus bigotes dobles". Confira-se o comentário de M. em "Como se fazem versos": "a seu (de Kógan) redor, caem os corpos lanceados por seus bigodes". 
 
16) Depois de ter contraditado os adversários esquemáticos e apanhado os "coveiros", as falsas carpideiras, na insinceridade burlesca de seus atos de "devoção", desmascarando-os na tentativa de se locupletarem com as pompas fúnebres do poeta morto, M. tendo conquistado o auditório por sua posição ética passa à parte programática do poema, refutando o testamento pessimista do suicida. Nesta estrofe que rimo emparelhadamente, em consonância principia a afirmação da missão factiva do poeta, numa quadra difícil, em que havia escória em abundância, e o tempo era pouco para o muito que havia por fazer. O "mãos à obra" na tradução, se não é literal (o poeta diz: "tarefas há muitas / falta tempo"), está dentro do espírito do original, de convite à ação. Pois a conquista de uma nova poesia proclama M. viria em seguida à transformação da vida e da sociedade. No rimário original desta estrofe são obtidas coincidências quase de homofonia ("poriediéla"/"pieriediélat"; "pospievát"/"vospievát"), o que contribui para fixar o nível semântico, funcionando à maneira de refrões ou "batidas" ("Faustschläge", "sôcos", na expressão de K. Dedecius) dentro da especial retórica maiakovskiana. Foi o que tentei reproduzir com a marcação rítmica aqui mais martelada. 
 
17) Rima: artista/batida (assonância); anões/ocasião (aproveitamento das similitudes fônicas de ditongos nasais). No original, M. usa de uma metonímia, ou seja: pieró (no genitivo - pierá - regido pela preposição dliá, "para"), "pena", em lugar de "artista da pena", ou "escritor", o que traduzi simplesmente por "artista", usando de uma construção bem coloquial com base na expressão "duros". Anêmicos e anões, harmonizando respectivamente com tempos e onde, é a minha fórmula para "kaliéki i kaliékchi" (literalmente: "aleijados e aleijadas"). Tratava-se de ficar dentro do esquema sonoro e, além disso, de obter em português uma aliteração mais enérgica: no plano semântico, há uma evidente alusão aos poetastros tímidos e convencionalizantes ("verkrüppelte Poeten", "poetas aleijados", como traduz K. Dedecius). Grande e onde, que se respondem sonoramente, replicam à aliteração (dd) e coliteração (kg) presentes em "gdiê" (onde), "kogdá" (quando) e "kakói" (qual). Escolheram/estrada carreiam nova aliteração, em contraparte a outra zona fônica do original: "vielíkii vibirál" = (qual) "dos grandes escolheu". M. enfatiza a originalidade e o poder criativo dos grandes, que sempre se recusaram a trilhar estradas batidas e fáceis. 
 
18) Êste é um dos mais belos quartetos do poema, em que o poeta afirma sua confiança no poder militante da palavra, na palavra útil, voltada para as tarefas do presente. A missão construtiva do poeta, na edificação de uma nova sociedade, é visualizada por M. através de uma imagem em flash back, ou, mais exatamente, uma imagem onde o tempo é visto como um filme que se projetasse em sentido contrário ao do seu desenrolamento normal: enquanto avança no presente e para o futuro o regimento dos versos, comandado pela palavra, o tempo fica para trás, cuspindo balas, e o vento, nessa marcha à ré do passado, só consegue agitar um maço de cabelos desfeitos. Ou serão os próprios cabelos de quem corre que o vento puxa para trás, como que numa última tentativa de retenção no passado. Rimas: verbo/cabelos (assonância); trás/desfaça, rima imperfeita, que se corrobora também nas palavras passado e mo. Harmonizo na vertical tempo/vento e colitero cuspa/balas (pb). Nas duas primeiras linhas há ainda uma repetição aliterante de rr. Tudo isto responde, sempre que possível, à riqueza da trama sonora da estância original, onde predominam as sibilações (ss) e as aliterações em v e r e repontam correspondências como "tchtób vriémia"/"tchtób viétrom" ("que o tempo"/"que pelo vento").  
 
19) É o lance final do poema e a última etapa da arquitetura projetada. Aqui M. responde à mensagem niilista e desesperada de Iessiênin, tomando-a em seus próprios têrmos e revertendo-lhe dialèticamente o sentido, através de uma perífrase. Trata-se de levantar, "ao invés da fácil beleza da morte, outra beleza" e, assim, de esvaziar de interesse o gesto suicida. É a beleza da construção, do fazer propositado e confiante, cuja visada é a edificação da nova sociedade, apesar de tôdas as dificuldades do momento: a beleza do ofício humano, solidário ao invés de solitário
Armei um esquema de rimas emparelhadas, duas em consonância perfeita ("imaturo"/"futuro") e duas imperfeitas ("difícil"/"ofício"). Creio que respeitei integralmente o aspecto semântico, a contramensagem em que se fulcra o "objetivo conceitual" dêste poema, traduzindo "sdiélat jízn (fazer vida, literalmente) por "a vida e seu ofício", onde a palavra ofício está valorizada a partir de sua raiz etimológica que envolve a idéia de fazer. Procurei retirar do texto traduzido qualquer caráter de frouxidão sentenciosa, aparando a eloqüência na medida exata do necessário para que o efeito conciso e condenso do original não se perdesse. M. é o primeiro a advertir: "Um dos momentos mais sérios do poema, principalmente quando se trata de versos tendenciosos, em sua declamação, é o final. Para o fim tem-se que deixar comumente as estrofes mais bem sucedidas. Por vêzes tem-se que modificar todo o poema para melhor justificar o final" (...) "Em todo o transcurso de meu trabalho, enquanto escrevia êste poema, tinha presente esta estrofe e, elaborando outras, volvia consciente ou inconscientemente para ela" ("Como se fazem versos"). A observação revela, inclusive, o trabalho do poeta num sentido de projeto, de conquista metódica vetoriada por um propósito, que não se confunde com o mero intuitivismo acrítico dos "seresteiros". Se recordarmos o que M. dizia a respeito do primeiro quarteto, que aquela estrofe "determinava o conteúdo posterior do poema" ou o seu "plano arquitetônico", veremos que se fecha assim, coerentemente, o circuito de sua teoria da composição, de cuja prática esta peça é um exemplo admirável. 
No plano existencial e biográfico, não se poderá deixar de equacionar o suicídio de Iessiênin com o do próprio M., que se verificou alguns anos depois (14 de abril de 1930). M. foi o primeiro a afastar as especulações sôbre seu ato, inscrevendo logo de início, no seu bilhete-poema de despedida ("Vciém"/"A todos"), o pedido: "Por favor, nada de mexericos. O morto tinha horror disso". Inevitável, porém, que se cogite do assunto, pois, como observa K. Dedecius: "A fórmula do suicídio, no caso de Iessiênin, era fácil de encontrar: indiferença, tédio, bebida. No caso de M., o otimista cidadão do futuro, não. A posteridade fica restrita às suas últimas palavras, talvez as mais discretas e lacônicas que jamais escreveu". L. Guerrero acena com um mal físico ³¹ e Elsa Triolet deixa entrever uma insatisfação amorosa  ³². Acima de tudo, porém, não se pode esquecer a luta de M. por sua idéia de uma arte ao mesmo tempo participante e formalmente revolucionária, que se ia cada vez mais chocando com a maré montante do stalinismo e seu corolário, o dogmatismo estético, que acabaria por congelar a arte soviética na carta estatutária de um dirigismo acadêmico e convencionalizante ³³; isto não obstante o fato de que o próprio Stalin se tivesse inclinado perante a grandeza do poeta e os burocratas da crítica, na era stalinista, se tivessem empenhado em aliciar a memória do poeta à sua causa, apresentando-o em "versão oficial", convenientemente expurgada de agressividades heterodoxas, como um modêlo daquele mesmo "realismo socialista" de tipo regressivo que o poeta até o fim combatera. Sem alongar estas considerações no que se respeita o desejo do poeta , a verdade é que o suicídio de M. ainda assim apresenta um sentido bem diverso do de Iessiênin, visto à luz do próprio bilhete-testamento do poeta. Não se trata aqui da repetição do mesmo gesto de desespêro e de niilismo que M. refutara no seu poema sôbre o amigo morto. O suicídio de M. é um suicídio lúcido, a frio, de quem se declara "quites com a vida", e se recusa mesmo a fazer um balanço de "males e mágoas" ("biéd i obíd"). De quem considera cumprida a sua missão, comentando apenas "o caso está encerrado, e, silenciando, passa a outro (ou outros) o seu bastão, a ser retomado, possivelmente, em outras circunstâncias históricas (as atuais, quem sabe, com seus saudáveis prenúncios de degelo artístico, serão talvez um clima propício para o repensamento da estética maiakovskiana). Um suicídio que poderia ser um gesto de cansaço ou um gesto de protesto, viris ambos, mas que não infirma por si só a vocação do poeta-construtor, em cuja vidência estava a imagem utópica? de uma "Comuna" ideal, livre da reuma burocrática: 
"Kommúna - 
                     éto miésto, 
                                        gdié istchiéznut tchinóvniki 
i gdié búdiet 
                     mnógo 
                                        stikhóv i piéssien" 
("Comuna - 
                     lugar 
                                        sem burocratas 
onde florescerão 
                     poemas 
                                        e canções") 
 
 (do "Bilhete ao Poeta Proletário, de 1926)
 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O CONSUMO DA POESIA 
 
Até aqui vim examinando as idéias de M. sôbre a poesia como forma de produção. Para que se complete o processo comunicação estética, é mister se considerem agora seus pontos de vista sôbre o consumo da poesia. 
Um poema como "A Sierguéi Iessiênin", com todo o seu trabalho técnico extremamente avançado, com tôda a sua vanguarda formal, seria consumido pela massa? Êste problema do consumidor, como não podia deixar de ser, foi dos que mais preocuparam o poeta, que o abordou em várias oportunidades, escrevendo mesmo, a respeito, um poema Mássam nieponiátno ("Incompreensível para as massas", 1927) e um trabalho teórico Os operários e os camponeses não vos compreendem (1928), onde refuta a pecha de inacessibilidade constantemente lançada contra sua poesia ³⁴
No artigo citado, M. se propõe a desmascarar "a demagogia e a especulação" que se fazia por conta da propalada "incompreensibilidade". Frisa de início: "Nunca vi ninguém se vangloriar desta maneira: "Como sou inteligente: não compreendo a aritmética, não compreendo o francês, não compreendo a gramática!" - Mas a exclamação alegre: "Não compreendo os futuristas" ressoou durante quinze anos, se extinguiu, para em seguida crescer novamente, mais excitada e mais jubilosa do que nunca. A partir desta exclamação, houve quem fizesse carreira, obtivesse fortuna, se tornasse líder de verdadeiras correntes literárias". Mostra M. que a "boa acolhida da massa" não se produz "por virtude de alguma camisa mágica na qual nascessem envoltos os livros felizes de certos gênios literários", mas é o resultado da luta do próprio poeta. Donde a necessidade de se "organizar a compreensão de um livro", pois "quanto melhor é um livro, mais êle ultrapassa os acontecimentos". Distingue as faixas de consumo, admitindo a possibilidade de uma poesia cujos consumidores seriam, em primeiro lugar, outros produtores (poetas), como a do revolucionário Khliébnikov ³⁵, mas que acabaria afinal por inseminar tôda a linguagem poética com seu acervo de criações e assim ganhar um consumo mais largo (e neste caso justifica até as tiragens limitadas, pois se trata, num primeiro momento do processo de consumo, de uma estação central a distribuir energia para as subestações, que por sua vez a transformam em eletricidade para as lâmpadas, o que não ocorreria nas pequenas edições meramente voluntárias ou de luxo de poetas acadêmicos, obras inúteis como informação, destinada a um público de ociosos). No poema a que me reporto, considera os críticos (ou pelo menos certa crítica majoritária) "intermediários de gôsto bastante intermédio", postados entre o "produtor" e o "consumidor" de poesia, acusando a seus censores de aconselharem aos poetas a prática de uma literatura de alienação, pseudoproletária, num espírito não muito diferente daquele com que as classes dominantes se reservavam os conhecimentos essenciais e incrementavam uma literatura popular de evasão, de romanças e serestas nostálgicas. Propõe a elevação da cultura das massas, e conclui: "O livro bom é necessário e será compreendido" ("Nujná / i poniátna / khorocháia kníga"). Dessa programada necessidade, não está excluída, como se viu, a forma revolucionária ou a dificuldade do livro. "O verso mais difícil, se é comentado com duas ou três frases de introdução (seu conteúdo; por que foi escrito?) torna-se interessante e compreensível". E cita a experiência de uma bibliotecária que, no seu entender, preenchia uma função de ativa pedagogia cultural, procurando guiar o gôsto dos leitores no sentido das obras novas: "A leitura de obras difíceis diz a bibliotecária não sòmente lhes proporcionou prazer mas ainda lhes elevou o nível cultural". É, de certa forma, e sob êste aspecto do consumo do produto artístico, a proposição que Worringer resumiria na seguinte equação: "Não a arte, mas sim a compreensão da arte há de ser socializada" ³
 
 
NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
¹  "Pound é antes de mais nada um poeta. Waley é antes de mais nada um sinólogo. Nos círculos sinológicos, sem dúvida, as incursões de Pound no chinês despertam apenas um esgar de desdém... Por outro lado, as pessoas sensíveis às belezas sutis do verso poundiano não podem tomar a sério a técnica poética de êrro-e-acêrto do Sr. Waley" (H. G. Porteus, Ezra Pound and His Chinese Character: A Radical Examination, na coletânea organizada por Peter Russel (Ezra Pound), Peter Nevill Ltd., Londres/Nova Iorque, 1950). 
 
²  Tôda uma barreira ideológica separava os futuristas russos (aliás, cubofuturistas) do futurismo italiano de Marinetti, que pendeu para a direita. "Quando Marinetti visitou a Rússia, viu-se combatido e renegado pelos futuristas russos, que considerava seus discípulos; isto se deu porque êstes se horrorizaram com suas idéias políticas" (C. M. Bowra, The Creative Experiment - The Futurism of Vladimir Mayakovsky, Macmillan & Co., Londres, 1949). 
 
³  Frase de uma carta de 1º.9.1922, recolhida em 1958, junto com outros inéditos no volume Nova Luz Sôbre Maiakóvski, editado em Moscou pela Academia Soviética de Ciências, cf. K. S. Karol, Scoppia la bomba Maiacovski - Anche la Letteratura ha il suo XX Congresso, in L'Europeo, 697, 22.2.1959. Do mesmo autor, traduzido do New Statesman, leia-se A Outra Face de Maiakovski, em "O Estado de São Paulo", 1º.3.1959. 
 
Essa implantação deu-se por volta de 1932, cf. Ettore lo Gatto, L'Estetica e la Poetica in Russia, G. C. Sansoni, Florença, 1947, pág. 47. 
 
Sartre, em Critique de la raison dialectique/Questions de méthode, Gallimard, 1960, pág. 42), refuta duramente algumas dessas esquematizações, negando, por exemplo, a caracterização de Joyce como um "fetichista da interioridade", para afirmar, ao contrário, que o escritor irlandês se propunha a "criar um espelho do mundo, contestar a linguagem comum e lançar os fundamentos de uma nova universalidade lingüística". À evolução do pensamento crítico de Lukacs, Adolfo Casals Monteiro dedicou parte substancial de seu importante relatório Crítica Sociológica, apresentado ao recente Congresso de Crítica e História Literária (IIº), realizado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (julho, 1961). 
 
Veja-se a maneira compreensiva como o crítico Zdzislaw Sierpinski, da revista oficial "Polônia" (edição em língua espanhola), considerou o problema da música concreta e eletrônica em seu comentário ao IIIº "Outono de Varsóvia": "Pode-se não estar de acôrdo com as desnaturalizações musicais dos representantes do modernismo extremado, mas parece que não se poderá expressar um juízo sôbre esta criação até que passem muitos anos, quando tenha saído de sua infância e possa apresentar uma teoria e uma prática sólidas. Ademais, cada vez que nasce uma oposição, ao ouvir esta música sempre volta a dúvida, se não será a música do porvir, trazida pela época das viagens interplanetárias, se não é a música dos novos tempos. Quem sabe...!". Sôbre a orientação vanguardista do festival polonês, ler o pronunciamento do musicólogo Eurico Nogueira França: Um Exemplo de Festival/O "Outono de Varsóvia" ("Correio da Manhã", Rio de Janeiro, 29.10.1960). 
 
"Não querem reproduzir o mundo que os circunda, sem todavia lhe impor seus próprios mundos, frágeis e abstratos. Dêle fazem parte; nele participam pela materialidade de seu sinal, pela evidência e franqueza do procedimento pictórico, pela prudente consciência da exigüidade e do fraccionamento do seu chamado artístico. Eis porque são definidos e concretos. Fogem à metáfora criadora de mitos. Não admitem nenhuma contextura emocional ou evocadora suplementar, fora daquela que conseguem libertar diretamente da matéria do quadro" (Do catálogo, ed. Museu de Arte Moderna, São Paulo). 
 
  Leiam-se os pronunciamentos do escritor Niekrássov e do arquiteto Vlássov transcritos por François Fejto no artigo Novo degêlo na literatura e nas artes soviéticas (tópico Revolução na Arquitetura), "O Estado de São Paulo", 5.2.1961. 
 
  Cf. "Arte moderna na União Soviética", capítulo 6 do livro II da obra autobiográfica de Ilyá Erenburg - Gente, Anos, a Vida -, publicado em janeiro de 1961 na revista Nóvi Mir, e traduzido para o português por Boris Schnaiderman ("O Estado de São Paulo", 3.9.1961). 
 
¹ Depoimento referido por K. S. Karol, A Outra Face de Maiakóvski (art. cit.). 
 
¹¹ Consulte-se Majakovskij e il Teatro Russo d'Avanguardia, Einaudi, 1959, de Angelo Maria Ripellino, professor de língua e literatura russa na Universidade de Roma. Trata-se de obra fundamental para a consideração não apenas do teatro, mas de tôda a arte russa de vanguarda, levada a cabo com base em pesquisas desenvolvidas em Moscou, especialmente na Biblioteca-Museu Maiakóvski e junto aos amigos e estudiosos do poeta. 
 
¹²  Basta ler as Idéias de Nikita Khruschóv sôbre o papel dos artistas e críticos (transcrição da revista "Kommunist", publicada em "O Estado de São Paulo" 11 + 18.6.1961), onde K. invoca o "direito do líder" para decidir questões artísticas. Estamos longe da humildade de Liênin, que, ao se pronunciar sôbre Maiakóvski, admitia: "Não sou admirador dêste poeta, embora reconheça que não tenho competência para julgá-lo nesta esfera" (De um texto revelado no já citado volume Nova Luz Sôbre Maiakovski, cf. K. S. Karol). 
 
¹³  Sabe-se que as autoridades culturais soviéticas não acederam à sugestão que lhes fêz o crítico Mário Pedrosa, Diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e organizador da 6ª Bienal, no sentido de ser enviada à grande mostra brasileira uma retrospectiva do construtivismo e do suprematismo russo das primeiras décadas dêste século, movimentos interditados oficialmente, mas cujas obras se encontram nos depósitos dos museus de Moscou e Leningrado. 
 
¹⁴ Maiakóvski reeditado na Rússia, Suplemento Literário de "O Estado de São Paulo", 8.4.1961. "Realmente, era preciso um ato de coragem para fazer uma edição tão acadêmica da obra do poeta antiacadêmico por excelência", adverte B. S. desde logo, embora reconhecendo a importância desta reedição. 
 
¹⁵ "Recordo-me que há vinte anos levantamos a questão de uma nova beleza. Dizíamos que a beleza marmórea dos museus, tôdas essas Vênus de Milo sem braço, tôda essa beleza clássica grega não podia satisfazer os milhares de pessoas que, em meio aos ruídos da cidade, ingressavam numa vida nova, engajando-se no futuro pelo caminho da revolução. Hoje, durante a conferência, a camarada Koltzóva, presidente da mesa, me ofereceu uma bala; no invólucro, a marca: "Armazém do Estado de Moscou" e, em cima, a mesma Vênus, como sempre! Assim, aquilo contra o que se luta e se lutou desde há 20 anos, entra hoje na vida. Esta mesma velha beleza dessorada se difunde entre nós pelas massas até mesmo na embalagem dos caramelos, de novo ela envenena nosso cérebro e nossa concepção de arte" (Maiakóvski, Meu trabalho, notas taquigráficas das palavras proferidas pelo poeta em 25.3.1930, por ocasião da exposição Vinte anos de atividade poética de Maiakóvski, Casa do Komsomól, Moscou, cf. "Recherches Soviétiques", 1957, nº 7, pág. 132). 
 
¹ Em Moscou há dois monumentos a Maiakóvski: um deles é uma estátua, que, com tôda a certeza, êle haveria julgado com severidade; o outro, uma estação do metropolitano, que recebeu seu nome, e que, indubitàvelmente, tê-lo-ia entusiasmado, a êle, enamorado do industrial. É uma estação belíssima, com as paredes de arcos de aço que recordam as máquinas. Algo muito industrial" (...) "A camisa acerada de Maiakovski, ditou-me a mente" (Literatura Soviética, periódico em língua espanhola, Moscou, 1961, nº 2, pág. 148) 
 
¹⁷ Introdução às Obras Escogidas de Maiakóvski, tradução em língua espanhola, 4 volumes, Editorial Platina, Buenos Aires, 1957/1959 (v. I, págs. 9/10). O pintor construtivista El Lissítski paginou uma coletânea de poemas de Maiakóvski (Dliá gólossa / Para ser lido ou Para voz), segundo informa A. M. Ripellino, obr. cit., pág. 125, nº 5. Trata-se de uma edição publicada em Berlim, em 1923, cuja importância é ressaltada pelo gráfico e pintor suíço Karl Gerstner (que a dá como editada em Moscou, pela Imprensa do Estado, na mesma data) em seu estudo Integrale Typographie, separata do nº 6/7, 1959, da revista internacional de artes gráficas "Typographische Monatsblätter". Segundo me referiu o poeta argentino Agustin Larrauri, autor da tradução espanhola do Un Coup de Dés (Un Golpe de Dados, Editorial Mediterránea, Córdoba, Argentina, 1943), hoje residindo em Paris, Lila Guerrero, na exposição iconográfica comemorativa do vigésimo aniversário da morte de Maiakóvski, por ela organizada no Instituto Argentina - U.R.S.S. de Buenos Aires, teria exposto, lado a lado, cartazes com poemas de Maiakóvski gràficamente especializados e amostras de Um Lance de Dados
 
¹⁸ Cf. Elsa Triolet, Maiakovski - Vers et Proses (obr. cit., págs. 11-111-114 e 185-188); A. M. Ripellino, obr. cit., págs. 99-102 e 192-193. Colaboraram com Maiakóvski pintores construtivistas como Rodtchénko. Não obstante a reação da crítica a uma atividade que considerava indigna de um poeta, Maiakóvski reputava seus slogans e motes de propaganda como "poesia da mais alta qualidade" e muito se valeu da experiência adquirida neste campo em seus poemas e peças de teatro. 
 
¹ "Ritmo: fôrça relacional" (Décio Pignatari, Nova poesia - concreta, em ad, revista de arquitetura e decoração, São Paulo, nov./dez. 56, nº 20). 
 
² Sierguéi Eisenstein, The Film Sense, Harcourt Brace & Co., Nova Iorque, 1947, págs. 62/64. Hugh Kenner, The Poetry of Ezra Pound, New Directions, Norfolk/Connecticut, s/ data, págs. 113/114, nota 1. 
 
²¹  Oswald de Andrade diria algo semelhante: "Eu nunca fui capaz de contar sílabas. A métrica era coisa a que minha inteligência não se adaptava, uma subordinação a que eu me recusava terminantemente" (Depoimento citado por Mário da Silva Brito na sua História do Modernismo Brasileiro, Editôra Saraiva, 1958, pág. 26). 
 
²² Victor Erlich, Russian Formalism (History-Doctrine), Mouton & Co., Leiden University, S-Gravenhage, 1955, pág. 196. 
 
²³ Idem, loc. cit. Ver também René Wellek + Austin Warren, Teoria Literaria (tradução espanhola), Editorial Gredos, Madri, 1959, pág. 283. 
 
²⁴ Victor Erlich, obr. cit., págs. 54/55, nota 26. 
 
²⁵ Na nova Estética de Max Bense, de base teórico-informativa e estatística, a inovação é a marca distintiva da informação estética, que justamente "transcende a semântica no que concerne à imprevisibilidade, à surprêsa, à improbabilidade da ordenação dos signos" (cf. M. Bense. Das Existenzproblem der Kunst, Augenblick, Verlag J. G. Bläschke, Darmstadt, 1/58, pág. 8). 
 
² Piergiovanni Piermoli, Appunti sull'imagismo in America ed in Russia (revista "Nuova Corrente", Genova, nº 5/6, 1956, pág. 162, - simpósio especial dedicado a Ezra Pound), salienta que, para Iessiênin, o imagismo, ao invés de um simples estágio preparatório, "foi o meio adequado, mais vizinho à sua sensibilidade, para retornar como um camponês à sua terra e cantar as noites estreladas, a lua alta no céu, a fantasmagoria dos ícones, o silêncio do campo, o calor das tabernas...". 
 
²⁷ Elsa Triolet e Aragon (Maïakovski) adaptam o verso citado, chegando a uma versão que me parece forçada: "comme un hérossignol esséninien", pois interpretam o original ("kak piéssienno-iessiénienii provítiaz") assim: "comme un chant esséniniaque prépaladin" donde a palavra-montagem "hérossignol" ("héros" + "rossignol"). A solução faz intervir uma nota de "heroísmo" que não se casa com o contexto pejorativo, onde é antes evidenciado, perante o leitor de um mundo futuro, o caráter arquienvelhecido da lírica iessieniana. A palavra "provítiaz", forjada por M. com o prefixo "pro" + "vítiaz" (antigo guerreiro das lendas russas), está investida de um claro propósito bufo. - A posição de Maiakóviski em relação a Iessiênin, em seus vários aspectos - ataques ferozes; tributo de dor e admiração por ocasião do suicídio; combate posterior à influência deletéria de Iessiênin sôbre a juventude - é focalizada por Boris Schnaiderman em seu artigo Um paradoxo de Maiakóvski, Suplemento Literário de "O Estado de São Paulo", 6.5.1961. 
 
²⁸ Assim concebia Maiakóvski o "construtivismo", conforme se lê numa sua correspondência de Paris (dezembro, 1922), a propósito da exposição de arte russa que se realizava em Berlim, apresentando obras e idéias do movimento. Apud A. M. Ripellino, obr. cit., pág. 126. 
 
² Já estava elaborada minha tradução (junho/1961) e pràticamente concluído êste estudo, quando tive a oportunidade de entrar em contacto com Boris Schnaiderman, a quem agradeço a atenção que teve para com êste trabalho-tentativa, acompanhando a leitura da tradução e das notas explicativas, fazendo-me várias sugestões de detalhe que aproveitei, e, sobretudo, dirimindo minhas dúvidas na versão dos quartetos 7º, 10º e 16º. Agradeço-lhe ainda a solicitude com que me permitiu gravar em fita sua leitura do texto russo, possibilitando-me assim um confronto final, mais rigoroso, entre a sonoridade e o ritmo do original e a respectiva transposição em português. Antevejo nisto os prolegômenos do que eu chamaria um laboratório de textos para a tradução de poesia, reunindo, em equipe, poetas e lingüistas. 
 
³  Se é verdade que, na passagem citada, M. não cogita da era das espaçonaves, convém lembrar que, na segunda versão de sua peça "Mistério Bufo" (1920/21), o poeta fizera expressamente um vaticínio nesse sentido, escrevendo no prefácio: "Hoje lança-se para a comuna a vontade de milhões; daqui a meio século, talvez, atirar-se-ão ao ataque dos planêtas distantes os encouraçados aéreos da comuna" (Ver Vladimir Majakovskij, Mistero Buffo, tradução de Giorgio Kraiskj, Edizioni del Secolo, Roma, s/data, pág. 3). - A revista "Literatura Soviética", Moscou, nº 2, 1961, pág. 144, dá notícia de uma querela recentemente aberta na U.R.S.S. entre físicos e líricos, provocada pelas declarações de um engenheiro, publicadas no Komsomólskaia právda, no sentido de que "a poesia marcha na retaguarda do progresso técnico e se faz desnecessária; o século XX é o século dos físicos e não dos líricos". Moisséi Márkov, físico da Academia de Ciências da U.R.S.S. no mesmo número da revista (págs. 142/145), dá um excelente depoimento sôbre as relações entre poesia e ciência, afirmando a necessidade de uma poesia criativa, e dizendo mesmo: "Num artigo científico, buscam-se os descobrimentos científicos, ainda que pequenos; na obra poética, buscam-se os descobrimentos poéticos... Se o lírico - "não matemático" - inveja a linguagem exata e singular da física, o físico admira as ricas possibilidades da linguagem poética, que, a seu modo, com grande exatitude e inusitada concisão, com maravilhosa fôrça plástica, formula situações de suma complexidade que o matemático, para descrever, carece de meios adequados." - Aqui, me permito uma opinião: se um Dorônin estava na retaguarda de seu tempo, com sua poesia formalmente reacionária (que eu chamarei de "formalista" no seu sentido pejorativo, pois se compraz num repertório de formas já dado de antemão), um Maiakovski, com as invenções de seu laboratório poético, representa, vìvidamente, o mundo das conquistas técnicas que culminaram nos vôos espaciais, e até, de certa maneira, antecipa-se a êle no plano artístico. 
 
³¹  Antologia de Maiacovski, cit., pág 173: "Hoje cheguei aqui inteiramente enfermo: há algo com minha garganta, não sei o que, mas talvez me impeça por muito tempo de ler meus versos". Dizia Maiakovski na noite de 25 de março de 1930, poucas semanas antes de sua morte." 
 
³²  Elsa Triolet rastreia o tema do suicídio e do desengano amoroso em poemas de M. anteriores ao dedicado a Iessiênin (Maiakovski, págs. 52/62). L. Guerrero aflora também a hipótese, em sua introdução às Obras Escogidas do poeta (Tomo I págs. 10/11): "Conhecendo sua biografia, e as alternativas dêsse sentimento cujos detalhes não entram neste breve prólogo, se compreendem muitas páginas dramáticas de sua obra. Especialmente os capítulos de delírio suicida de seu poema "O Homem". As alucinações, os ciúmes penosamente confessados, revelam algo que explica a bala de 14 de abril de 1930." 
 
³³  A. M. Ripellino, obr. cit., págs. 214/215, escreve: "Pelas tiradas audazes e pelos slogans polêmicos expostos no palco e na platéia, êste espetáculo ("Os Banhos") assumiu um caráter de desafio aos teatros conservadores e ao gôsto mesquinho dos dirigentes soviéticos. E de fato, os burocratas levantaram-se logo em defesa de suas poltronas maciças. Uma torrente de críticas insossas e injuriosas se precipitou sôbre o poeta. Ataques vulgaríssimos se sucederam sem trégua, alimentando o desconfôrto que pouco depois conduziria M. ao suicídio. Acusando, ainda uma vez, M. de obscuridade, os áridos censores não se davam conta de repetir as palavras de Pobiedonóssikov"(o burocrata todo-poderoso de "Os Banhos"): "Tudo isto não é para as massas, os operários e os camponeses não o compreenderão, e é bom que não o compreendam, nem há necessidade alguma que lhes seja explicado." Os últimos dias do poeta foram acompanhados pelo refrão martelante dessa increpação gasta, que aflorava maquinalmente de tôda parte." (...) "No dia 9 de abril, numa sessão do Instituto Nacional de Economia, Pliekhánov, atacado e escarnecido por estudantes retrógrados, êle disse com amargo sarcasmo: "Quando eu estiver morto, lereis os meus versos com lágrimas de emoção. E agora, em vida, sou injuriado e se lança tôda sorte de invencionices a meu respeito." 
 
³⁴ Trabalhos referidos no início dêste estudo, com as respectivas fontes. 
 
³⁵ M. se refere a Khliébnikov, pesquisador da palavra poética, como um dos mestres de sua geração. Ver Victor Vladimirovich Khlebnikov, necrológio datado de 1922, traduzido por L. Guerrero nas Obras Escogidas (Tomo IV, págs. 167/172). Sôbre o papel de K. na poesia russa por volta dos anos 20, consultar o artigo de B. Schnaiderman, Khliébnikov: um grande poeta (Supl. Lit. de "O Estado de São Paulo", 25.3.1961). Uma antologia do poeta, em tradução francesa de Benjamin Goriély, foi publicada em 1960 (Emmanuel Vitte, Éditeur, Lyon). 
 
³ W. Worringer, Problemática del arte contemporáneo, Nueva Visión, B. Aires, 1955, tradução do original alemão de 1948, pág. 27.
 
Fonte: Maiakóvski em português: Roteiro de uma Tradução - Separata da Revista do Livro nº 23-24, jul/dez 1961, Rio de Janeiro: INL/Revista do Livro, 50 págs. 
 
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TRADUÇÃO DO POEMA EM RUSSO PARA OUTRAS LÍNGUAS 
 
 
Link: https://ruverses.com/vladimir-mayakovsky/to-sergei-yesenin/7682/ (Poema em inglês e original russo) 
 
Link: https://revistacarmina.es/?p=28029 (Poema em espanhol)  
 
 






Obs.: A numeração das estrofes refere-se aos comentários e não consta do original.