domingo, 20 de março de 2011

Como redigir um prefácio


Por Francisco José dos Santos Braga


Artigo publicado no Informativo AVL nº 113, Ano X, abril/2013, da Academia Valenciana de Letras, de Valença-RJ.

 


Por definição, um prefácio é um texto mais ou menos curto colocado na introdução de uma obra, objetivando apresentá-la ao leitor. Tem portanto um objetivo claro: preparar o leitor à descoberta do livro, indicando-lhe os seus traços gerais (mas sem divulgar os detalhes ou as guinadas inesperadas da obra), e suscitar-lhe o desejo de ir em frente na leitura.

A boa técnica de prefaciar uma obra recomenda que o prefaciador informe o leitor sobre o livro (seu conteúdo, formato, temas centrais e elementos subjacentes), mostre conhecimento sobre o autor e junte outros dados que julgar importantes para sua efetiva compreensão. Portanto, deve ele ser capaz de, ao abordar relevantes aspectos do livro, contribuir, se possível, para contextualizá-lo. É óbvio que, ao fazê-lo, acaba por adicionar seu próprio viés e idiossincrasia.

A primeira pergunta que o autor (ou a editora) deve se colocar é se é ou não necessário que o livro tenha prefácio. Em caso afirmativo, há alguns pontos que não devem ser esquecidos pelo autor (ou pela editora).

Não há a estrita necessidade de que o prefácio seja propriamente um estudo sobre o livro, mas convém que seja a vitrina do livro. O leitor espera a palavra de incentivo do prefaciador, já que o beneplácito deste, — especialmente quando for um escritor de renome ou um amigo da área do autor, — vai induzir aquele até mesmo a verificar, através da leitura, se há coerência entre o que vai dito no prefácio e no livro propriamente dito.

Por outro lado, o prefaciador a ser escolhido deve ser alguém que terá prazer com a leitura da obra e com a sua missão de apreciar a obra. Ou seja, importa convidar para redigir o prefácio alguém que tenha essa missão na conta de um presente, tal a afinidade que encontra não só com o autor mas principalmente com o livro. Assim sendo, o autor pode estar certo de que o prefaciador selecionado criará expectativa sobre o que virá a seguir no livro propriamente dito, seduzindo o leitor à sua leitura.

Recomenda-se que o autor do prefácio, menos livre no sentido de se fazer notar, tenha um estilo elevado e essencialmente neutro.

Quanto à estrutura do prefácio, é conveniente que se observe a forma “introdução-desenvolvimento-conclusão”, podendo o prefaciador inspirar-se, para a seção do desenvolvimento, em diversos tipos de planos possíveis em dissertação:
-           o plano dialético (tese-antítese-síntese), que se propõe a persuadir;
-        o plano analítico (apresentação geral de um tema, causas, consequências, ou análise geral de forma gradual: época, autores, temas), essencialmente descritivo; e
-   o plano temático que, conforme seu nome indica, tem por objetivo estudar de modo preciso os elementos e temas que virão a seguir.

Devo confessar que sempre leio prefácios, os quais em geral aprecio, com exceção dos que são repassados de uma admiração sem reservas por parte do prefaciador ou dos que são prolixos demais, exibindo conhecimento pernóstico de toda a literatura referente ao assunto do livro.

Quanto a escrever prefácio, já o fiz uma vez a pedido de um ex-colega de trabalho com quem mantive um diálogo quase permanente durante a leitura do texto e redação do prefácio. Tratava-se então de prefaciar o livro “O Menino de Boa Viagem” do cearense Francisco Sampaio de Carvalho. Reproduzo abaixo o que escrevi a título de prefácio do seu livro:

PREFÁCIO ¹

"Brasília conta com mais um homem de letras, que estreia com excelente romance (precoce livro de memórias?) cobrindo cerca de cinquenta anos da existência do próprio autor (“Aroeira”).

Ainda não atinei com os motivos que levaram Francisco Sampaio de Carvalho — ou simplesmente Sampaio — a escolher-me para prefaciar seu livro. Admito a hipótese de que a deferência vise homenagear a mim, o colega de trabalho no Senado Federal que sempre se interessou pelos seus curiosos casos relacionados com sua terra natal — seu querido Ceará. Ou seria ainda pelo respeito demonstrado para com seus arroubos, pertinácia e feitos de homem determinado perante os maiores desafios? Ou, finalmente, a escolha de meu nome teria sido motivada pelas palavras de incentivo para levar a cabo a presente empreitada?

Nulla dies sine linea,² lembro-me de ter-lhe repetido durante a elaboração deste livro. Scripta manent...³

Misto de poeta e empreendedor, Sampaio consegue transmitir às páginas de seu livro o entusiasmo e o gênio que se fazem necessários em ambas as áreas em que atuou. Tal qual seu conterrâneo José de Alencar, descreve a região que o viu nascer com pinceladas de cores fortes e expressivas como um paisagista. A outra faceta de seu caráter — seu empreendedorismo — ocupa a maior parte do livro, dedicada a destacar a sua auto-determinação e busca de realização profissional em meio a aleivosias e complôs de todo tipo, levados a efeito por indivíduos invejosos e sem caráter, que ele, como um autêntico kardecista, interpreta como pessoas carentes de iluminação e necessitados de outras encarnações para alcançarem o direito de contemplar a Luz.

Habent sua fata libelliO leitor dotado de observação sutil não deixará de perceber sua capacidade magistral de retratista da paisagem humana e social. Como a maior parte do livro transcorre durante a ditadura militar por que passou o Brasil, inúmeros foram os artifícios e estratagemas empregados pelo protagonista para enganar seus inimigos que se refugiaram nas malhas do Regime para eliminá-lo.

O livro oferece ao leitor um relato das vicissitudes dessa viagem percorrida por Aroeira, sem laivos de auto-piedade e consciente de seu próprio valor. Retratando-lhe a alma, põe em devido relevo o ser cearense, não somente por ter nascido, morado ou vivido nesse rincão nordestino, mas principalmente por possuir as qualidades da inteligência arguta, hospitalidade franciscana e valentia obstinada. “Ceará pra valentão”, diria seu conterrâneo, o folclorista Leonardo Mota.

Por mim, recebi com alegria o honroso convite do inesquecível colega de trabalho e amigo leal para dar uma olhada aos originais. Assim pude, antes do público leitor, maravilhar-me com o que aqui vai escrito."

Francisco José dos Santos Braga *


NOTAS DO AUTOR


¹ CARVALHO, Francisco Sampaio de: O Menino de Boa Viagem, Brasília: LGE Editora Ltda., 2008, 390 p.

² Nenhum dia sem uma linha (ou traço). Obs.: Tal lema deve ser atribuído ao pintor grego Apelles, para Plínio, o Velho, segundo o qual aquele foi o maior pintor da Antiguidade. De acordo com o grande naturalista, Apelles não passava um dia sem exercitar-se na pintura. Muito do que dele sabemos chegou até nós através de Plínio in Naturalis Historia, XXXV-XXXVI. Apelles de Kos (belíssima ilha do sul da Grécia, próxima à Turquia) foi contemporâneo de Alexandre, o Grande.

Paulatinamente, o lema de Apelles passou a ser “motto” para escritores.

Muito conhecida é a variante humorística ou paródia que Oscar Wilde produziu sobre o referido lema de Apelles:I was working on the proof of one of my poems all the morning, and took out a comma. In the afternoon I put it back again.” (Toda a manhã estive trabalhando na prova de um dos meus poemas, e retirei uma vírgula. De tarde eu a repus.)

Também nós músicos reconhecemos a validade do dito de Apelles, especialmente quando se trata do treino persistente e dos exercícios técnicos diários, visando à perfeição técnica no instrumento. Arthur Rubinstein (Łódź, Polônia, em 1887-Genebra, Suíça, em1982) foi um dos maiores pianistas do século XX e influenciou milhares de outros musicistas. Em 1932, depois de turnês e recitais extensivos, ficou desgostoso consigo mesmo e retirou-se da atividade de concertista para se dedicar por vários meses ao treino e estudo intensivos, reconhecendo que negligenciara sua técnica nos seus verdes anos, confiando no seu talento natural. Frequentemente é citado como tendo dito a respeito do treino:If I neglect practicing one day I notice; two days, my friends notice; three days, and the public notices. It is the old principle ‘Practice makes perfect’.(Na Internet corre a seguinte tradução: Quando estou um dia sem estudar, dou logo por isso; dois dias sem trabalhar e os meus amigos apercebem-se do fato; três dias e é o público que nota. É o velho princípio "Fazer algo cada vez mais é o único caminho de aprender a fazê-lo bem".)

³ Os escritos ficam. Obs.: É a segunda parte do provérbio latino que diz:Verba volant, scripta manent, significando que as palavras voam, mas os escritos ficam.

Adotei esse "motto", quando da criação do Blog do Braga, inscrevendo-o na parte inferior da sua “home page”.

Livros têm seus próprios destinos. Obs.: Essa expressão latina, em geral citada apenas assim parcialmente, é parte do verso 1286 da obra intitulada “De litteris, de syllabis, de metris” por Terentianus Maurus, a saber: Pro captu lectoris habent sua fata libelli. Entenda-se que, de acordo com a capacidade do leitor, livros têm o seu destino ou, mais simplesmente, o destino dos livros depende da capacidade do leitor.

Por um lado, Robert Burton (1577-1640), em “A Anatomia da Melancolia”, reconhece validade à expressão latina, deplorando-a porém: Our writings are as so many dishes, our readers guests, our books like beauty, that which one admires another rejects; so are we approved as men’ s fancies are inclined. Pro captu lectoris habent sua fata libelli.” (Nossos escritos são como tantos pratos, nossos leitores como convidados, nossos livros como a beleza, que, enquanto um admira, outro rejeita; assim somos aprovados como as fantasias dos homens são servidas. Pro captu lectoris habent sua fata libelli.)

Por outro lado, Walter Benjamin, no seu ensaio de 1931 intitulado “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador”, recorrentemente citado ao se tratar de colecionadores e especialmente de bibliófilos, usa a expressão latina na sua forma curta como uma afirmação sobre os livros em geral; o colecionador de livros de Benjamin, para contestar, utiliza a expressão latina ao referir-se a si mesmo e às cópias específicas que ele coleciona. (Benjamin, Walter (1968). New York: Illuminations. Shocken Books, p. 61.) Na superfície, esse é um ensaio divertido sobre a auto-indulgência inocente de uma das mentes literárias líderes entre as duas Guerras. Mas o texto implícito é um estudo da natureza do colecionador e como sua compreensão da literatura e da cultura é formada através do próprio meio pelo qual ambas lhe são transmitidas. O estudo consiste em como o meio (o significante) afeta o significado.




* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...