sábado, 24 de agosto de 2019

CADA DIA DO MEU AMOR POR TI (TRADUZIDO DO HEBRAICO)


Por autor anônimo
Traduzido do hebraico por Francisco José dos Santos Braga

Este trabalho inédito de tradução do hebraico é dedicado à minha amada esposa Rute Pardini, minha companheira inseparável de todas as horas e permanente colaboradora de minhas realizações.


No domingo
Farei café p'ra ti
Com ele te darei
Também uma linda flor.

Na segunda-feira sairemos para o jardim.
P'ra ti colherei flores,
Uma de cada espécie.

Na terça-feira, — como é bom duas vezes —,
Te darei um abraço realmente como o de um urso,
Um beijo também darei, até dois,
Sempre te amarei até o céu.

Na quarta-feira exatamente com nascer do sol
Me levantarei e prepararei uma refeição de verdade,
Com suco e croissant e por cima dele também geleia,
Tudo p'ra ti, p'ra ti, amada.

Na quinta-feira sairemos então para um filme
E também para um jantar muito esplêndido,
Com vinho, velas e música agradável
Te amarei com toda a alma.

Na sexta-feira na hora do por do sol
Sentaremos na varanda, olharemos para o sol
Que colore na nossa frente todo o céu
Em gama de cores que são todas o amor.

E no sábado
Poderei finalmente descansar:
Deitarei para dormir e terei um sonho
Em que estou totalmente feliz; estou voando no vento
Porque tu estás a meu lado, enchendo meu coração de calor.

Todo dia é dia dos namorados.


POEMA ORIGINAL EM HEBRAICO:

ביום ראשון
אכין לך קפה
אתן לך עם זה
.גם פרח יפה

ביום שני נצא לגן
אקטוף לך פרחים
.אחד מכל זן

,ביום שלישי, פעמיים כי טוב
,אחבק אותך חיבוק ממש כמו של דב
,נשיקה גם אתן, אפילו שתיים
.תמיד אוהב אותך עד השמיים

ביום רביעי ממש עם זריחה
,אקום ואכין ממש ארוחה
,עם מיץ וקרואסון ועליו גם ריבה
.הכל בשבילך, בשבילך, אהובה

ביום חמישי נצא אז לסרט
,וגם לארוחת ערב מאוד מפוארת
,עם יין, נרות ומוזיקה נעימה
.אני אוהב אותך מכל הנשמה

ביום שישי בעת השקיעה
נשב במרפסת, נביט בחמה
שצובעת מולנו את כל הרקיע
.בשלל צבעים שכולם אהבה     

וביום השבת
אוכל סוף סוף לנוח
אשכב לי לישון ואחלום לי חלום
ובו כולי אושר; אני עף לי ברוח
.כי את לצידי, ממלאה לבי חם  

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

RESENHA CRÍTICA DO LIVRO X DA REPÚBLICA DE PLATÃO


Por Francisco José dos Santos Braga

Este artigo é dedicado ao filósofo José Cimino, meu professor na Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual presidente da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos e autor do livro "Infinito Instante".

PLATÃO: cópia romana da cabeça de uma estátua de bronze, de c. 370 a.C.


I. INTRODUÇÃO


A República ("POLITEIA" em grego) é o diálogo mais célebre e o mais influente da filosofia de Platão, que se serve de seu mestre Sócrates para expor as principais características do Estado ideal. Mas em si, esse modelo de regime político denominado República não existia, nem na teoria nem na prática na sua época. Com base no regime político vigente nas cidades-estados da Grécia antiga (Atenas e Esparta), o conceito de República foi criado, estruturado pelo filósofo-arquiteto Sócrates. Mas o principal tema desse diálogo é o da justiça ou a tentativa de responder à questão: como organizar a cidade?

O livro está organizado em 10 livros distintos, nos quais Platão apresenta os diferentes aspectos de sua Cidade Ideal, desde o papel dos filósofos na administração da cidade até a concepção da subjetividade passando pela educação das crianças.

A República é sem contestação o principal diálogo de Platão, na medida em que o alcance das teses expostas é prodigioso. A Cidade Ideal, fundada na justiça, inspirará toda a literatura ocidental sobre a filosofia política pós-Platão até os nossos dias.

O Livro X (X. 595a até 621b inclusive), o último livro da obra, é o em que se desenvolve primeiramente a justificativa para banir a poesia da Cidade Ideal ¹; em segundo lugar, se apresenta o tema da imortalidade da alma que Platão demonstra através da incorruptibilidade da substância espiritual  ² e, por fim, conclui-se o livro X com o relato mítico de Er, da Panfília, sobre o que acontece com a alma após a morte do indivíduo.

Sobre a data mais provável da composição de República, [BACCOU, Introdução da Rep. p. I-V] começa por admitir a dificuldade que o pesquisador enfrenta ao tentar traçar a cronologia das obras de Platão. Algum resultado positivo advém tanto do método comparativo (o estudo do estilo: palavras raras, neologismos, frequência do emprego de certas partículas, etc.), quanto do estudo do desenvolvimento das grandes teses platônicas. Desde 1839, K.-F. Hermann, sublinhando as notáveis diferenças que existem entre o livro I e os seguintes, concluía que aquele formava na origem um diálogo independente, o qual, segundo F. Dammler, devia intitular-se Trasímaco. Mais recentemente, Pohlenz e Post pretenderam que nossa República era apenas a segunda edição, revista e consideravelmente ampliada, duma obra que continha primitivamente, além de nosso livro I, o essencial dos livros II-V.
Em apoio a esta asserção são invocados:
1) O testemunho de Aulus Gellius, que, nas suas Noites Áticas, fala duma edição separada de cerca de dois livros da República (i.é, de uma terça parte da obra, segundo a divisão de Aristófanes de Bizâncio);
2) O início do Timeu (17c-19a), que resume a República, só menciona os assuntos tratados nos cinco primeiros livros da República;
3) O testemunho do Busiris de Isócrates, onde é tratada a constituição descrita nos 5 primeiros livros;
4) A Carta VII da coleção platônica, onde, na relação da primeira viagem que o filósofo fez à Sicília (provavelmente em 388 a.C.), se pode ler uma citação quase textual da República. Ora, como nossa República não poderia estar composta, em sua forma definitiva àquela época, a referida carta deve estar citando uma primeira edição da obra;
5) A Assembeia das Mulheres de Aristófanes (representada no Festival das Leneanas ou Leneias do ano de 392 a.C.) que parece uma charge da cidade comunista dos livros II-V.
Ademais, Baccou elenca 5 argumentos contra as 5 teses invocadas, lembrando ainda que os melhores críticos admitem a unidade do diálogo, composto com continuidade por Platão entre seus 40 e 50 anos de idade. No máximo diferem eles quanto aos limites precisos entre os quais deve ser circunscrito o período da composição. Zeller fixa a data 374-72 como termo final. Taylor propõe, muito menos provável, de 388-89. Segundo Shorey, a obra prima de Platão teria sido composta entre 380 e 370. Em, 1919, Wilamowitz se aliou à hipótese de Zeller. Diès se afasta desses dois um pouco, propondo a data 375 como terminus ante quem (a data antes da qual uma obra deve ter sido escrita). Ao autor da Introdução lhe parece que a conjetura melhor fundada é a de W. Lutoslawski, segundo quem a República deve ter sido escrita nos anos que seguiram à fundação da Academia, provavelmente entre 384 e 377. Finaliza seu comentário, dizendo: "O campo das hipóteses permanece então aberto, e se pode pensar que um estudo mais aprofundado do estilo dos diálogos permitirá um dia fixar sua cronologia, senão com mais precisão, pelo menos com mais certeza."


II. O LIVRO X DA REPÚBLICA 


Inicialmente, vejamos o que pensam os estudiosos a respeito do Livro X. Por exemplo, na Introdução e Notas para sua tradução de A República, [PEREIRA, XXXIV-XXXV] escreveu: 
"O Livro X tem aparecido à maioria dos comentadores como um suplemento ou um apêndice. A discussão tinha já terminado, com o contraste entre a vida do homem justo e a do injusto, e conclusão sobre a superioridade daquela — respondendo, portanto, à asserção de Trasímaco em I. 343a-344c, 347e, retomada em II. 360e-361d. Mas Sócrates reabre o diálogo, para precisar a importância das disposições sobre a poesia, que hão-de observar-se na cidade fundada (X. 595a).
Deste modo se retoma, agora em larga escala, o tema da condenação da poesia "que consiste na imitação", esboçado nos Livros II e III.
Podemos supor, como P. Shorey e F. M. Cornford , que Platão se viu na necessidade de se defender contra a celeuma levantada pelas afirmações sobre o tema, feitas naqueles mesmos livros. Mas a importância da poesia na vida grega justifica a expansão dada a este ataque. Embora desde os finais do séc. VI a.C. a escrita estivesse divulgada, e desde o séc. V houvesse um comércio de livros apreciável, a verdade é que era a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos, quer pelos actores dramáticos) o principal meio de educação e veículo de conhecimentos. Esta transmissão intersubjectiva do saber é um aspecto característico e fundamental da cultura grega, bem visível, aliás, nos próprios diálogos de Platão. E não esqueçamos que, mesmo para extensas narrativas em prosa, como eram as Histórias de Heródoto, não estava excluída a prática da recitação perante um grande auditório. (...)
Esta condenação da poesia já há muito que foi vista como tendo um sentido mais profundo que a simples exclusão do elemento lúdico da psicologia humana e a negação do valor paradigmático das figuras que retrata. Assim, J. Adam reconhece que a República é "em certo sentido um requerimento para que a Filosofia tome o lugar que a Poesia até aí tinha preenchido na teoria e na prática educativa.
Mais recentemente, é esta também a interpretação de E. A. Havelock, que considera mesmo que todo o diálogo é um ataque ao sistema educativo grego então em vigor, ataque esse que ao mesmo tempo constitui o melhor documento da crise da cultura grega "que viu a substituição de uma tradição oral decorada por um sistema de instrução e educação completamente diferente".
Tornaremos, mais adiante, à discussão desta teoria. Antes disso, porém, temos de voltar a nossa atenção para o outro tema maior deste grandioso finale: o mito de Er." 

III. O MITO DE ER, O PANFÍLIO 


Neste epítome que faremos do Livro X irá interessar-nos não o diálogo inteiro, por carência de espaço numa matéria de um blog, mas apenas a parte conhecida como o Mito de Er, o panfílio, que consiste no trecho compreendido entre 614b até o fim do livro (Rep. X, 614b-621b), ou seja, aquela parte que coloca a tese da imortalidade da alma e trata de seu destino após a morte.

Se bem que o homem justo possa beneficiar-se de seus atos na sua vida mortal, é no além que sua virtude é melhor reconhecida. A justiça e seu contrário somente recebem as sanções na vida futura. Os deuses recebem, em pé de igualdade, o homem justo, que procurou imitá-los por toda a sua vida. Aqui, para dar a seu pensamento o caráter de uma revelação divina, Sócrates recorreu ao mito de Er, da Panfília, cuja alma, conforme sua narrativa, retornou à terra depois de ter residido no mundo dos mortos. Tombado numa batalha, esse guerreiro foi abandonado entre os cadáveres. Doze dias mais tarde, como seu corpo estivesse estendido, perfeitamente são sobre a pira funerária, ele ressuscitou e contou o que havia visto. Eis, aproximadamente, o essencial de sua narrativa:

"Minha alma, — disse, — quando ela foi libertada dos liames do corpo, caminhou na direção de um lugar divino em que se viam duas aberturas na terra, e duas outras, em frente a estas, no céu. Entre essas aberturas estavam sentados juízes. As almas compareciam diante deles; depois, após a sentença pronunciada, as dos justos subiam pela abertura celeste da direita, enquanto que as dos malvados desciam pela abertura terrestre da esquerda. Quando compareci por minha vez, disseram-me para seguir com atenção o espetáculo que iria testemunhar, pois tinha sido designado para levar a notícia aos viventes. Vi então almas cobertas de poeira subir pela abertura da direita, e outras almas, puras e brancas, descerem pela da esquerda. Como fatigados por uma longa viagem, todas repousavam com as delícias no prado circundante. As que chegavam do céu falavam da felicidade sem mistura que ali tinham gozado, e as que abandonavam as moradas subterrâneas falavam dos cruéis padecimentos, dos quais elas acabavam de ser libertadas, e cuja lembrança lhes arrancavam ainda gemidos e lágrimas. Elas diziam que cada falta era punida dez vezes, e cada ato de virtude recompensado na mesma proporção, mas que para os ímpios e os parricidas havia punições bem mais terríveis. Ouvi uma alma questionar onde estava Ardieu, o Grande, que tinha sido tirano de uma cidade da Panfília mil anos antes. — Não está aqui, — responderam-lhe, — e nunca virá aqui. Ele se apresentou uma vez diante da abertura com outros tiranos e outros particulares que haviam cometido crimes graves, mas ela lhes recusou a ascensão, fazendo ouvir um mugido surdo. A este estrondo, homens selvagens, que pareciam de fogo, acorreram e os ataram pelos pés e punhos; depois de os terem arrastado sobre um leito de espinhos, esses justiceiros anunciaram que iam precipitá-los no Tártaro.

Tendo repousado seis dias no prado, prosseguiu o panfílio, no sétimo dia retomamos nossa viagem. Como marchávamos já há quatro dias, percebemos no horizonte uma coluna de luz semelhante ao arco-íris pela variedade de suas nuances. Quando lá chegamos, descobrimos que no meio daquela luz, onde se reuniam as cadeias do céu, pendia o fuso que descia até os joelhos da Necessidade. Esse fuso é o princípio das revoluções celestes. Seus oito contrapesos concêntricos, encaixados uns nos outros, correspondem respectivamente à esfera das estrelas fixas e aos sete planetas.

O fuso girava em movimento uniforme, levando consigo o contrapeso exterior, enquanto que os contrapesos interiores eram movidos em sentido inverso às velocidades desiguais. Cada contrapeso levava sobre seu bordo circular uma Sereia que emitia uma única nota. Juntas, essas oito notas formavam a divina harmonia das esferas. Colocadas simetricamente em torno do trono da Necessidade, suas filhas, as três Moiras, cantavam ao som da melodia das Sereias. Láquesis cantava o passado, Cloto, o presente e Átropos, o futuro.

À medida que iam chegando, as almas se colocavam diante de Láquesis. Um hierofante tomou então a palavra e lhes anunciou que uma nova carreira as esperava, e que elas iam entrar num corpo mortal. Eis as palavras do hierofante em nome da virgem Láquesis: "Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efêmeras, vai começar outro período portador da morte para a raça humana. Não é um daimon que vos escolherá, mas vós que escolhereis o daimon. O primeiro a quem a sorte couber seja o primeiro a escolher uma vida à qual ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe. Deus é isento de culpa."

Tendo dito, o hierofante determinou a ordem da escolha delas, e colocou em seguida diante delas modelos de vida em grande número e de toda espécie. Havia-os de todas as espécies: vidas de todos os animais, e bem assim de todos os seres humanos. Entre elas, havia de tiranos, de homens ilustres, de pessoas obscuras, e do mesmo modo sucedia com as mulheres. Mas não continham as disposições do caráter, por ser forçoso que esse mude, conforme a vida que escolhem. "

Neste ponto de sua narração, Sócrates faz uma interrupção para fazer notar quão importante é essa escolha, já que é dela que depende ou a felicidade ou a desgraça de toda uma vida, a esperança da salvação eterna. Para proceder prudentemente à escolha, é preciso se preparar para tal desde a existência atual, não somente pela prática das belas virtudes, mas ainda pelo estudo das ciências e da filosofia.

... E as almas, — acrescentou Er, — avançaram uma a uma, na ordem da sorte que lhes coubera, para fazer sua escolha, exceto Er, a quem isso não foi permitido. Espetáculo curioso e cheio de ensinamentos! Cegas pelo desejo, a maioria não via, desde o começo, os riscos da condição que elas adotavam; mas quando elas se tinham apercebido deles, soltavam lamentos amargos, e acusavam Deus de um infortúnio que não era devido senão à sua própria ausência de bom senso. Certas almas, mais avisadas, se deixavam guiar pela experiência duma vida anterior. A de Orfeu, por exemplo, por ódio das mulheres que causaram sua morte, quis entrar no corpo de um cisne, porque, devido a ter sofrido a morte nas mãos delas, não queria nascer de uma mulher. A de Ajax, que ainda era obsedado pela lembrança dum julgamento iníquo, preferiu o corpo dum leão; e a de Agamemnon, alimentada por seus padecimentos passados no desprezo pela raça humana, optou pelo corpo de uma águia. Quanto à do sutil Ulisses, convocada por último, demorou na procura até descobrir a obscura condição de um particular tranquilo, pela qual ela optou com alegria, dizendo que se lhe tivesse sido convocado por primeiro, não teria escolhido diferente.

Assim que todas as almas escolheram as suas vidas, receberam de Láquesis o daimon que as devia guardar durante sua vida mortal. Depois seu destino foi sucessivamente confirmado primeiro por Cloto, depois por Átropos.

Com elas, — disse Er, o panfílio, — eu passei sob o trono da Necessidade, e me encaminhei para a árida planície do Lete, aonde chegamos depois de uma caminhada estafante. No rio Ameles que a atravessa, todas as almas — salvo a minha — beberam segundo a sua sede, e pelo efeito dessa água maravilhosa perderam a memória de sua existência passada. Libertas desse fardo, como caísse a noite, elas adormeceram. Mas, por volta da meia noite, um trovão rasgou o ar, o sol tremeu, e as almas, tais como estrelas, foram lançadas no espaço em direção aos lugares onde iria se produzir o mistério de seu nascimento. Sem que eu possa dizer como isso se fez, minha alma veio retomar posse de meu corpo, e eu despertei de manhã cedo sobre aquela pira." (grifos nossos)
[Reconheço que meu epítome se apropriou, nesta minha tradução do francês, da contribuição da Introdução por Robert Baccou, por vezes conjugada com a Introdução de Maria Helena da Rocha Pereira, ambos os autores referidos na Bibliografia.]


[PEREIRA, XLII-XLV] pesquisou as fontes do mito de Er, tendo chegado à conclusão de que
"as de uma parte dele são identificáveis.
Poderemos ter algumas dúvidas quanto às que se têm encontrado para certos motivos, como os duplos chasmata que conduzem do céu à terra, a ida e vinda e saudações das almas, que figuram de modo semelhante em mitos iranianos do Avesta; e como as cores dos contrapesos do fuso, que correspondem aproximadamente aos símbolos dos planetas, do Sol e da Lua entre os sacerdotes caldaicos. Mas teremos de reconhecer, por outro lado, que há certa relação entre a experiência de Er e a revelação xamanística. O motivo repetido do trovão, os movimentos dos contrapesos e o canto harmônico das Sereias, a reincarnação e a noção da Necessidade (Ananke) são pitagóricas, e provavelmente também o beber das águas do rio do esquecimento.
Quanto à parte cosmológica do mito, supõe-se geralmente que descreve uma representação mecânica do céu. A coluna de luz é identificada, desde a Antiguidade, ora com a Via Láctea, ora com o eixo do mundo. Deve notar-se no entanto que, apesar da minúcia com que Platão imagina em pormenores a estrutura do universo (tamanhos relativos e cores dos contrapesos), não deverá insitir-se demasiado na correspondência de todos eles. A interpretação alegórica exaustiva é tarefa arriscada, que é preferível deixar à argúcia de cada um.
Um ponto deve ser salientado, como central em todo este mito: a escolha dos destinos, sobretudo porque aqui se concilia a responsabilidade com a predeterminação. O facto, notado já por R. L. Nettleship e outros, exprime-se na proclamação do hierofante, numa frase concisa e solene:
A responsabilidade é de quem escolhe. O deus não é culpado.
Mas, além disso, temos o simbolismo de Ananke e das Parcas ou Moirai, essas velhas entidades mitológicas que significavam a porção ou lote destinado a cada um na vida, o qual em Homero era inalterável, até para os deuses. A noção de irreversibilidade mantém-se, quando, após a escolha, a alma tem de passar por Láquesis, para que lhe conceda um daimon que a faça levar a cabo o empreendimento; por Cloto, para que lhe ratifique a decisão; e por Átropos, para que a torne irrevogável (funções estas que estavam já preludiadas na etimologia do nome de cada uma). O elemento novo é, portanto, a possibilidade de opção entre um elevado número de modelos. Nessa ocasião é 'o grande perigo para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo cuidado em que cada um de nós ponha de parte os outros estudos, para investigar e se aplicar a este'.
Assim, o problema da responsabilidade e predeterminação, que começara a esboçar-se vagamente em Homero, e fora tema central nas grandes tragédias áticas do séc. V a.C., fica equacionado no plano escatológico, em ligação com a teoria da metempsicose." 

IV. APÊNDICE: VIAGENS DE PLATÃO A SIRACUSA 


Diógenes Laertios, o principal doxógrafo e biógrafo da filosofia grega, na sua obra "Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres", dedicou o Livro III à vida e obra do filósofo Platão. Entre outras coisas, informou sobre a tentativa de Platão de levar à prática a sua filosofia ideal de República, não em Atenas, mas em Siracusa, na Magna Grécia, in [LAERTIOS, 18-21 e 23, p. 89-90]: 
"... (18) Platão viajou três vezes à Sicília, a primeira para ver a ilha e as crateras, na época do tirano Dionísios, filho de Hermocrates, que o forçou a relacionar-se com ele. Entretanto, quando Platão, conversando sobre a tirania, afirmou que seu direito de mais forte era válido somente se Dionísios sobressaísse também em excelência, o tirano sentiu-se ofendido e disse, dominado pela cólera: "Tuas palavras são as de um velho caduco!" Platão respondeu: "E as tuas são as de um tirano."
(19) Ouvindo essas palavras, o tirano enfureceu-se e de início teve vontade de eliminá-lo; em seguida intervieram Dionísios e Aristomenes e ele não realizou o seu intento, mas entregou o filósofo ao lacedemônio Pôlis recém-chegado numa embaixada, com ordens para vendê-lo como escravo. Pôlis levou-o para Áigina e lá o vendeu. Então Cármandros, filho de Carmandrides, condenou-o à morte de acordo com a lei vigente, na época, em Áigina, que impunha a pena capital sem processo a qualquer ateniense que pusesse os pés na ilha (o próprio Cármandros havia promulgado essa lei, como diz Favorinos em suas Histórias Variadas). Mas, quando alguém alegou, gracejando, que o recém-chegado à ilha era um filósofo, o tribunal o libertou. Outros autores dizem que Platão foi levado à Assembleia e mantido sob rigorosa vigilância, não tendo pronunciado uma palavra sequer, a ponto de aceitar o veredicto; a Assembleia não decretou a sua morte, mas decidiu vendê-lo como se se tratasse de um prisioneiro de guerra.
(20) Aníceris de Cirene estava por acaso presente e o resgatou por vinte minas — outros autores falam em trinta — e mandou-o para Atenas ao encontro de seus amigos, que imediatamente lhe remeteram o dinheiro. Entretanto, Aníceris recusou-o, dizendo que os atenienses não eram o único povo digno de cuidar de Platão. Outros autores afirmam que Díon enviou o dinheiro e que Aníceris não o aceitou, mas comprou para Platão o pequeno jardim existente na Academia. Conta-se que Polissemias foi derrotado por Cabrias e depois naufragou em Helice, porque seu comportamento em relação ao filósofo provocou a ira da divindade, como diz Favorinos no primeiro livro de suas Memórias.
(21) ... Na segunda viagem ele visitou Dionísios, o Jovem, pedindo-lhe terras e homens para viver de conformidade com a constituição de sua autoria. O tirano prometeu, mas não cumpriu a palavra. Alguns autores dizem que Platão se expôs ainda a um grande perigo, pois teria induzido Dionísios e Teodotas a libertar a ilha; nessa ocasião o pitagórico Arquitas escreveu uma carta a Dionísios, obteve seu perdão e mandou Platão de volta a Atenas. (...)
(23) Na terceira vez Platão veio para reconciliar Díon e Dionísios, mas fracassando nessa tentativa, regressou à sua cidade sem nada conseguir. Em Atenas ele não participou da vida política, embora seus escritos no-lo mostrem como estadista. A razão é que na época o povo já se tinha acostumado a instituições políticas diferentes. (...)"

Quando Platão aceitou o desafio de visitar Siracusa, a convite de seu discípulo Díon, sobrinho do tirano Dionísios, o velho, imaginou que seria capaz de promover a reeducação do tirano. Sabemos que, tanto na República (Rep. V, 473d) quanto na Carta VII (Platão, 1980, 326a), Platão levantou a possibilidade de uma cidade ser governada pelos filósofos, tendo chegado a afirmar que, enquanto os filósofos não se tornassem reis, ou os reis passassem a filosofar verdadeiramente, os males da cidade não cessariam. O filósofo ateniense teve a oportunidade de conviver com um tirano e de conhecer suas paixões, quando, por três vezes, procurou converter os Dionísios de Siracusa à filosofia. Podemos fornecer as seguintes datas mais prováveis das viagens de Platão, de acordo com [BARROS, 2006, 31-38]: a primeira viagem em 388/7 a.C., com 40 anos de idade e Siracusa era governada por Dionísios I, tambem conhecido por Dionísios, o velho (430-367 a.C.), que foi eleito aos 25 anos (406 a.C.) com plenos poderes de tirano por vários anos (405-367 a.C.). Na segunda viagem, Platão tem 60 anos (366 a.C.) e apresenta-se diante de um jovem tirano de 25 anos (Dionísios II ou Dionísios, o jovem). Na terceira viagem, a mais traumática para o filósofo ateniense (361 a.C.), Platão tem 68 anos. Em 360 a.C., para finalmente deixar Siracusa, Platão vai recorrer aos bons ofícios de seu amigo Arquitas, tirano de Tarento, que, diplomaticamente, obtém a sua libertação. Seu discípulo amigo e protetor, Díon, acusado de conspirar com os cartagineses, por obra e graça do tirano Dionísios II, sofreu sequestro de metade de seus bens e fugiu para a Grécia. O epílogo do projeto de Platão e Díon, para recuperação do regime, foi violento: ocupação de Siracusa por Díon, em golpe contra Dionísio II (357 a.C.), que fugiu; curto governo de Díon (4 anos), assassinado em 353 a.C., em cilada do ateniense Calipo, seu companheiro e aliado do golpe que destronara Dionísios II em Siracusa. A Carta VII representa um depoimento e uma justificativa de Platão acerca de suas experiências frustradas contra as forças da tirania em Siracusa. Por fim, é preciso ressaltar que elas se deram não apenas com o objetivo de converter a tirania numa constituição mais suave ou mais justa, mas também pela necessidade de unir o discurso à ação, pois Platão não quer ser acusado de ser homem de palavras, apenas (Carta VII, 328c).



V. NOTAS EXPLICATIVAS 



¹  Exceção feita aos hinos em honra aos deuses e os cantos em louvor dos grandes homens (607a) da autoria de Homero, que serão tolerados no Estado Ideal de Platão. Continua Platão: "e que ela (a arte poética) não nos acuse se, na antiga querela, que opõe a musa frívola à musa filosófica, nós tomamos claramente partido da segunda."

²  Tenha claro que as recompensas da virtude são de valor infinito. O sábio, com efeito, já a experimenta aqui, mas essa experiência só será completa na vida futura, porque o destino da alma não se detém no túmulo. Sócrates prova isso da seguinte maneira: Há para cada coisa um bem que a preserva e um mal que a corrompe, sendo um e outro próprios da coisa em si. Se, então, há uma coisa que não é destruída por seu próprio mal, ela não o será por um mal estranho; podemos dizer que é, por natureza, indestrutível. Mas não é esse o caso da alma? Seu próprio mal, a injustiça, perverte-a, mas não a mata. Teriam esse poder a moléstia e a morte do corpo? De modo algum, uma vez que são males estranhos à sua substância. A moléstia do corpo não torna a alma mais injusta; portanto, a morte do corpo não a destrói. Pode-se, é claro, opor a esse raciocínio uma objeção capciosa e fingir que a morte corporal dissolve a alma tornando-a mais injusta. Mas admitir tal influência do corpo sobre a alma também obriga a admitir também a influência inversa, quer dizer, admitir que a injustiça acelera a destruição do corpo e faz seu fim mais próximo. Ora, esta é uma opinião insustentável, porque vemos bem que a injustiça mantém pleno de vitalidade o homem no qual ela reside. Assim, então, a incorruptibilidade da substância espiritual implica sua imortalidade.
Disso decorrem duas consequências importantes: 1) O número das almas é constante: com efeito, não pode nem diminuir, visto que as almas não morrem, nem aumentar, já que seria preciso para isso que o perecível mudasse de natureza e se tornasse imperecível, e, neste caso, tudo seria finalmente imortal no mundo; 2) A alma é uma substância simples. Em geral tudo o que é formado de elementos diversos está sujeito à divisão e à dissolução, e é infinitamente pouco provável que exista um composto bastante perfeito para escapar a esta lei.
Para conhecer a verdadeira natureza da alma, deve-se considerá-la em si mesma, e não no seu estado de união ao corpo, onde ela é tal qual Glaucos, o deus marinho, que as ondas recobriram com uma carapaça de algas, de conchas e de pedras. Nós a (=a alma) temos estudado nesse estado: eis porque temos distinguido nela três partes de natureza diferente. Mas é preciso confessar que ela é, assim, quase irreconhecível. Observemo-la então no nobre esforço que a arrasta a essa ganga grosseira e a eleva, do fundo do mar das paixões onde ela imergiu, em direção ao divino, o imperecível e o eterno. Nós veremos então que um íntimo parentesco a une a esses princípios; portanto só ao fim da ascensão é que nos será dado contemplar sua essência pura.
No curso dessa conversação, a justiça, despida do acessório, nos apareceu como a maior bem da alma, que esta possuísse ou não o anel de Giges * e, além disso, o capacete de Plutão. Trata-se agora de nos fazer retornar ao que concordamos no começo para as necessidades da discussão: a saber, que o homem justo pode passar por mau, e o mau por justo, aos olhos dos homens e dos deuses. Desta forma, a justiça ganhará os prêmios da opinião depois dos da verdade. Quanto aos deuses, é certo que nenhuma ação, nenhuma intenção secreta, não lhes fica oculta: pois eles conhecem o justo, o amam e só lhe querem bem. Quanto aos homens, podem se enganar e se deixar levar pelas aparências da justiça: mas só é por um tempo. Pois o malavdo é semelhante ao mau corredor que, depois de um brilhante start, perde depressa o fôlego e chega ao final por último, esgotado e com a orelha baixa. Cedo ou tarde sua vergonha desatará a todos os olhos, e ele sofrerá essas duras punições, a respeito das quais nossos adversário diziam que estavam reservadas ao homem justo, o qual não sabe passar por tal (614a). [Texto traduzido por mim da obra em francês da Introdução por Robert Baccou.]

Giges foi rei da Lídia (c. 687-651 a.C.), depois de ter assassinado o monarca anterior, Candaules, e de ter desposado a viúva deste. As circunstâncias romanescas da história foram narradas por Heródoto (I. 8-12) e serviram também de tema a uma tragédia, de que se recuperou num papiro um fragmento de 16 versos, mas que se não sabe datar. A parte relativa ao "anel" é exclusiva de Platão. (nota de rodapé de Maria Helena da Rocha Pereira a Rep. II. 359c-360b)



VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 


BARROS, Gilda Naécia Maciel: Platão em Siracusa - a Conversão do Tirano, Univ. Autónoma de Barcelona, Revista Internacional d'Humanitats 10, 2006, p. 31-38.
Link: http://www.hottopos.com/rih10/gilda.pdf

MEDEIROS, Alexsandro M.: A Experiência de Platão em Siracusa, 2014, no site https://www.sabedoriapolitica.com.br.

PLATÃO: República. Introdução, tradução do grego e notas por Maria Helena da Rocha Pereira. 1ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1976, 501 p.

        — Cartas. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade do Pará, 1980. Vol V

PLATON: Oeuvres Complètes. La République. Introduction, traduction et notes par Robert BACCOU. Paris: Librairie Garnier Frères, 1950, p. I a LXXXV, especialmente o título VIII. - Poésie et philosophie. Les récompenses éternelles de la Justice (595a - 621b): III. Révélations sur la vie future. Mythe d'Er, le pamphylien 

domingo, 4 de agosto de 2019

FESTIVAL FERNAND JOUTEUX NA ESCOLA NACIONAL DE MÚSICA EM 22/12/1943



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)





O JORNAL, órgão dos "Diários Associados", anunciava, uma semana antes da sua execução, um Festival FERNAND JOUTEUX. Em que consistiu esse festival? É o que veremos neste post.

I

Atraiu-nos a vista a seguinte matéria, enquanto consultávamos a hemeroteca digital de O JORNAL, com o seguinte título: Canudos, tema de uma opera em que Antonio Conselheiro é a figura central, Ano XXV, edição nº 7.519 de 15/12/1943, p. 3.

CANUDOS, TEMA DE UMA ÓPERA EM QUE ANTÔNIO CONSELHEIRO É A FIGURA CENTRAL

Um professor francês, discípulo de Massenet, escreveu a peça, inspirado na obra de Euclides da Cunha — Quase meio século de Brasil — Estudos no ambiente sertanejo — Foch e uma pequena ilha do oceano Pacífico — Através de 15 Estados brasileiros

Penetrou o repórter pela infindável escada do velho casarão da rua do Russel, onde se alojara o mais querido discípulo de Massenet e um dos mais curiosos viajantes do interior brasileiro. O quadro é de uma simplicidade sugestiva. Aves, plantas, músicas. Rabiscos literários emprestam ao ambiente um tom agradável de naturalidade.
O professor Fernand Jouteux recebe o jornalista com a efusão sincera da alma francesa. Poderíamos, se tempo houvesse e não escasseasse o papel, deixar correr a pena, gravando aquele borbotão de assuntos que jorravam em força como se desejassem povoar páginas inteiras de um romance pitoresco.

VOCAÇÃO E DESTINO

A história desse ágil e sempre jovem mestre de oitenta anos começa no século passado. Criança, em carta aos pais a propósito de vocação e destino, Fernand Jouteux escreve apenas duas palavras: música e Brasil. No primeiro caminho vai ao conservatório, estuda, aproxima-se dos mestres e torna-se um deles. Ganha fama. Escreve óperas, dirige nos grandes teatros de Paris, ensina em numerosas cidades. O destino, ele o cumpre antes mesmo que o século vinte alvorecesse. Em 1894 dirige-se ao Brasil. Fôra a Amazônia, com a sua grandiosidade e os seus encantos, o que mais o seduzira. E o professor Jouteux fixa sob os céus tropicais do extremo norte seu primeiro contacto com o Novo Mundo.

NO NORDESTE BRASILEIRO

Mas é ele um irrequieto. Não se detém em Manaus. Aspirava conhecer o Brasil. Vive o ambiente dinâmico onde se escrevia a história. De um ligeiro passeio à Europa deixa-se fixar em Pernambuco. Compra uma fazenda em Garanhuns. Vive na intimidade dos sertanejos, põe um facão à cinta e enverga as roupas típicas do homem do campo. Nas horas de folga, o professor Fernand Jouteux estuda a crônica dos nossos acontecimentos. Desfilam diante de suas observações os principais fatos da história. Para um pouco em Canudos. Interna-se nas páginas fascinantes de Euclides da Cunha, conhece os detalhes da campanha e os ângulos mais salientes da figura de Antônio Conselheiro. Nesse instante, o artista concebe a ideia da obra. Levará para o palco tudo aquilo que Canudos encerra como epopeia, tragédia, heroismo. Inicia-se aí a história da ópera "Os Sertões" ¹.

CONSELHEIRO, HERÓI TEATRAL

— Percorri quinze Estados, durante muitos anos — declara ao repórter o professor Fernand Jouteux — para conhecer bem o ambiente do interior do Brasil. Acreditei que não era possível escrever sobre Canudos sem ter uma ideia exata das realidades dos nossos sertões, sua maneira de vida, correntes populares, todos os fatores que pudessem estar relacionados com aquele marcante acontecimento. Concluiu meu trabalho. A ópera está ponta, há vinte anos, aliás, e, desde este tempo, tenho procurado meios para realizar a sua montagem. No próximo dia 22 no concerto que darei no Municipal, incluirei vários trechos seus, numa demonstração às autoridades, aos artistas e aos críticos.
Acredito que a peça agradará. Pelo menos há muito movimento. Não darei tempo para ninguém dormir. Antônio Conselheiro é um excelente herói teatral. Na ópera ele aparecerá como um dramático, profeta e militar. Como está tudo organizado, permitem-se grandes feitos cênicos. Quero, assim, restabelecer as tradições do teatro antigo, onde a ação é predominante.
O professor Fernand Jouteux espera apresentar "Os Sertões" ao público brasileiro no próximo ano. Serão necessários três meses de ensaio e um detalhado serviço de organização. O libreto é de sua autoria e se inspira todo na obra euclidiana e no trabalho do marechal Dantas Barreto, com quem manteve relações no Recife.
Depois de uma animada palestra sobre a teatralização do episódio de Canudos, a palestra envereda para outros tópicos. Abrimos o livro de notas do professor Jouteux. Com a própria letra de Massenet está ali uma carta ao artista, em que o autor de "Manon" exprime a sua admiração pelo talento do antigo discípulo. Leiamos suas próprias palavras: "Meu bom amigo. É bem longe de Paris que tomo conhecimento do seu grande sucesso. Estou contente. Em meio de tantas felicitações que lhe foram endereçadas foi desvanecedor para mim ter você pensado no seu velho amigo e em "Safo". Aplaudi-lhe de todo o coração e lhe envio agora um abraço, dizendo, ainda: bravo. Massenet." No fim do papel está este post scriptum: "Você merecia este triunfo. Lembro-me dos seus trabalhos e tinha a certeza do que você era capaz de produzir."

SOBRINHA DE FOCH E UM REI NA FAMÍLIA

A palestra deslocava-se de temas e também os circunstantes de lugar. Íamos deixar a casa do professor Jouteux. Sobre o muro que dá para a baía desenrolam-se os últimos bosquejos da prosa. O velho mestre de música narra outros detalhes de sua vida pitoresca. Fala da guerra e de sua confiança inabalável na ressurreição da França. Lembra os momentos críticos da grande nação e destaca seus grandes generais. Foch entra em cena. Mas, o marechal vencedor de tantas batalhas não era, no Brasil, um estranho. A senhora do professor Fernand Jouteux é sobrinha do marechal e muito se orgulha dos seus feitos.
— Aliás, — diz o professor Jouteux, — temos um rei na família, que impera sobre uma pequenina ilha do Pacífico. Missionário no Oriente, meu parente, e Mons. Baudichon ² tornou-se, por aclamação do nativos, o rei da ilha de Tuamotu ³, possessão que trouxe para o império francês.
E, assim, estava concluída a entrevista com o mestre, a quem não passaram desapercebidos os lances dramáticos de Canudos, que ele evocará na movimentada ópera que escreveu.

Fonte: O JORNAL, Ano XXV, edição nº 7.519 de 15/12/1943, p. 3.

O JORNAL: edição de 15/12/1943. 



NOTAS EXPLICATIVAS


¹  Observa-se, por parte do compositor francês, uma indefinição quanto ao título da ópera que passa por diversos designações: inicialmente, Antônio Conselheiro, o filho do homem; depois, Canudos; aqui, Os Sertões; e, finalmente, parece ter-se fixado em O Sertão.

Original do libreto da ópera-Crédito: IHG/Tiradentes

Versão em português editada em 1955-Crédito: IHG/ Tiradentes




































²  Trata-se de Joseph Baudichon, com o nome clerical de François de Paul Baudichon, nascido em 12 de setembro de 1812 em Sainte-Maure de Touraine (Indre et Loire) e falecido em 11 de junho de 1882 em Tours.

³  Certamente uma das ilhas Marquesas na Polinésia Francesa. O mais correto seria tratar Tuamotu como arquipélago, porque se compõe de quase 80 ilhas e atóis.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Arquip%C3%A9lago_de_Tuamotu

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Nesses dias que antecediam a apresentação do Festival Fernand Jouteux, tivemos a sorte de depararmo-nos com um texto entusiástico em favor do compositor francês, da autoria de Georges Bernanos que encontramos em O JORNAL, edição nº 7524 de 21/12/1943, p. 4. Ei-lo:

II

FERNAND JOUTEUX
Por Georges Bernanos
(Copyright dos "Diários Associados")

Publicou O JORNAL, um destes dias, com o maestro Fernand Jouteux, uma entrevista cheia de inteligência, de simpatia e delicada e generosa compreensão, que muito honra ao jornalista que a escreveu. Por maior que seja, porém, a habilidade de um jornalista, não poderá ele transmitir em algumas linhas, aos seus leitores, a alta lição de uma vida inteira de homem e de artista. E como o assunto esteja longe de se ter esgotado, permito-me dizer, por meu turno, o que penso sobre esse músico admirável que o público vai ouvir amanhã, 22 do corrente, numa seleção de obras em que se destacam trechos de sua ópera "O Sertão", inspirada no livro de Euclides da Cunha.
Nestes três anos em que tenho tido a honra de colaborar nos "Diários Associados", venho falando aos meus leitores como a amigos. Nem sempre, é certo, estamos de acordo em todos os pontos, mas nos estimamos mutuamente e espero ter-lhes merecido a confiança. E se algum crédito possuo junto deles, convoco-os hoje para dizer a cada um: "Mesmo no caso em que não sejais amador apaixonado de recitais ou de concertos — dizia Berlioz que a grande música se compreende com o coração — não deixeis, não deixeis por coisa alguma, de comparecer ao encontro que meu país vos marcou para amanhã, à noite, no Salão Leopoldo Miguez, da Escola Nacional de Música. É meu país, com efeito, que vos convida, pois o homem idoso, de perto de oitenta anos, que vereis no palco, incomparável de energia e de fé, pertence a um tipo humano absolutamente caracterizado e tão especificamente francês quanto os grandes vinhos ilustres das nossas regiões champanhense, bordalesa ou borgonhense.
Não cometo a tolice de pensar sejamos os únicos capazes de fornecer ao mundo um tipo de superior humanidade. Longe disso. Digo simplesmente que o nosso, desaparecendo, falsearia, talvez irreparavelmente, o curso da história e o equilíbrio sempre instável entre as Raças e as Nações. À força brutal, elementar das Raças, à força do Dinheiro, não menos brutal e feroz que a outra, a humanidade civilizada opôs, ainda, seus tipos nacionais, formados através dos séculos, ao mesmo tempo possantes e delicados, que a Barbaria Moderna não pode senão esmagar, dada a impossibilidade de escravizá-los. Eles encarnam a ordem, a permanência, a segurança do mundo em face das forças cegas desencadeadas pela violência e pela corrupção, mas que nem a corrupção nem a violência poderiam encadear de novo.
Quando sairdes, meu caro leitor, da sala Leopoldo Miguez, na noite de amanhã, cheios ainda os ouvidos de uma esplêndida música, simultaneamente trágica e terna, sábia e simples, tão magnificamente equilibrada que parece feita sem esforço — mas em verdade ao preço de que profunda experiência dos recursos da arte! — de sublimidade jamais afetada, de alegria jamais forçada, de ironia jamais amarga, pensareis sem dúvida, uma vez mais, que a especulação universal, com toda a sua força, sua audácia, seu cinismo e sua publicidade colossal, não saberia — para retomar minha comparação — lograr fazer em alguns miseráveis anos aquilo que consumiu tantos séculos: um homem nobre, uma arte nobre, um nobre vinho.
Considero como um dia feliz aquele em que, pela primeira vez, de passagem por Barbacena, Fernand Jouteux tomou o caminho da Cruz das Almas ¹. Com uma curiosidade distraída, indiferente, eu via aproximar-se esse velho de passo apressado, descoberta a cabeça sob sol escaldante. Mas assim que o meu olhar cruzou o seu, a um tempo malicioso e ingênuo, reconheci o signo que não enganaria ninguém, o signo sagrado. Era um olhar puro, no sentido exato da palavra, pois não era com certeza nem ignorante, nem crédulo e permanecia puro graças à vontade inflexível de não pousar, no decurso da vida, a não ser no que fosse puro como ele. Oh! certo, uma vez ainda, há por toda a parte homens livres, graças a Deus. Não desses que se dizem livres porque a Democracia assim os classifica, mas que são realmente livres e o seriam não importa onde e como, na riqueza ou na miséria, na saúde ou na doença, que o seriam mesmo nas cadeias se pudessem viver sob um tirano. Esses homens, repito, encontram-se por toda a parte. Talvez, portanto, eles fossem, outrora, no meu país, mais simplesmente, mas naturalmente, mais ingenuamente livres que em outros lugares, sem nada de pretensioso, de afetado, de rebuscado, de atormentado; livres, quase contra a sua vontade, e sem o saber, porque sua liberdade tinha o seu princípio baseado numa espécie de liberdade interior, a qual eles não sentiam absolutamente necessidade de experimentar a todo momento, do mesmo modo que um verdadeiro cristão não põe à prova a sua fé a cada instante. Julgá-los-iam, de bom grado, conformistas, porque se esforçam para não atrair inutilmente a atenção de pessoa alguma. Dir-se-iam conformistas, e eles o eram, com efeito, nas circunstâncias fúteis e familiares da vida. Eram conformistas como eram pacifistas, isto é, eram-no "até certo ponto", e, ultrapassado esse ponto, nada os poderia fazer retroceder senão a certeza — ou a ilusão — de ter executado sua tarefa, de poder reingressar sem remorsos ao Conformismo ou à Paz.
Quando Fernand Jouteux partiu para o Brasil, eu tinha a idade de um menino e ele era homem feito, um jovem artista festejado por todos, tendo já alcançado grande sucesso com o seu célebre "Oratório de San Martin de Tours" ²  que entusiasmou o mestre Massenet, de quem ele era discípulo predileto.
Conheci, na minha mocidade, certo número de franceses semelhante a ele, seus contemporâneos ou seus precursores; imagino, assim, muito bem, esse musicista já ilustre, filho de altos funcionários e esposo de uma jovem descendente de uma família de militares e magistrados, realizando bruscamente, a milhares de quilômetros de sua cidade natal, um sonho de criança, sacrificando, de um só golpe, a esse sonho de criança, os proventos de sua carreira e conforto de sua idade madura, a segurança de sua velhice. Censura-se, com frequência, aos franceses sua ignorância da geografia. Eles a ignoram muitas vezes, é certo. Pelo menos conhecem-na pouco, mas sonham bastante com ela. Há para eles países definitivos, como há esse país ainda mais misterioso que se chama o Sobrenatural. Não falam a seu respeito e preferem nele pensar, solitários, em segredo. Por volta de 1890, como aliás hoje, não se viam nas igrejas, como na Espanha, maníacos batendo com a cabeça no chão, estendendo os braços, multiplicar, convulsos, os sinais da cruz, ou chupar os dedos dos pés das estátuas, como se fossem de açúcar-candy... Estes não eram menos o nosso povo, que dava mais missionários à igreja e mais ouro à Propagação da Fé. Milhares de jovens franceses, que em nada se distinguiam de seus camaradas, que participavam alegremente dos seus jogos, e se acreditaria apaixonados por todas as alegrias da vida, deixaram um dia, tranquilamente, suas famílias e seus amigos, para irem pregar o evangelho aos pagãos, morrer de febre ou na mão do carrasco. É claro que Fernand Jouteux pertence a essa espécie de homem. Estou certo de que ele partiu, há mais de quarenta anos, para as ásperas e então muitas vezes mortais regiões do Amazonas, tão simplesmente como teria tomado o ônibus do Montrouge, ou o "tramway" de Auteuil. E também simplesmente sua mulher o seguiu, segue-o sempre, partilhando dos seus trabalhos, seus sonhos, sua pobreza, seu gênio...
Amigos da França, olhai, quarta-feira, esse homem de pé diante do palco como um capitão de navio no seu posto de comando. E é um capitão do mar, com efeito, um velho navegante do oceano dos sonhos, do oceano sem limites. Quando ele erguer sua batuta, esquecereis sua idade, seus cabelos brancos e vereis que a vida não lhe pesou muito sobre os ombros, porque ele não permitiu que ela o dominasse, porque sempre a enfrentou, com os seus olhos claros. Sonho e Lucidez. Sonho e Vontade. Sonho e Razão, eis o signo de nosso povo, a sagração de sua grandeza. 

Fonte: O JORNAL, edição nº 7524 de 21/12/1943, p. 4.



NOTAS EXPLICATIVAS

¹  "(...) O compositor e maestro francês, Fernand Jouteux, autor da ópera “Os Sertões” passa várias vezes por Barbacena, antes de recolher-se em Tiradentes. Georges Bernanos escolhe morar em Barbacena pela sonoridade do nome da fazenda que Virgílio de Melo Franco lhe dá por empréstimo. É o “Caminho da Cruz das Almas”. Aqui, o fazendeiro Bernanos, católico e crítico feroz do nazismo, recebe em sua casinha bucólica, desde jovens escritores como Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino e outros, até o consagrado e exilado Stefan Zweig, que pouco depois se suicida em Petrópolis. Na trilha de Bernanos, vem o pintor Emeric Marcier. (...) A casa de Georges Bernanos, desde 1968 está mantida para registrar a passagem do escritor francês que viveu em Barbacena por cinco anos – de 1940 a 1945."
Fonte: Conheça um pouco da história nos 224 anos de Barbacena (1791-2015) 

²  Em 1897 Fernand Jouteux compôs seu maior sucesso na França: o oratório Bellator Domini (Guerreiro de Deus), para as festas do 15º centenário de morte de São Martinho de Tours, na Catedral de Tours. Para o jornal O Imparcial, do Rio de Janeiro, em 4 de agosto de 1920 Jouteux declarou: “O primeiro trabalho que fiz foi um oratório em duas partes, além de um prólogo e um epílogo, intitulado Bellator Domini, em 1897, executado em Tours por uma grande orquestra, sob minha regência. Foi essa minha estreia. (...)"

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III

Anúncio, em moldura preta, do Festival FERNAND JOUTEUX em O JORNAL

Fonte: O JORNAL, edição nº 7524 de 21/12/1943, p. 10.

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Vejamos agora a cobertura que o CORREIO DA MANHÃ fez do Festival Fernad Jouteux, na semana que anteceu a sua apresentação. Da mesma forma, servimo-nos da hemeroteca digital do referido jornal.

I

Na coluna Correio Musical, na edição 15070 de 17/12/1943, p. 11, aparece o seguinte texto infelizmente truncado:
"(...)
MAESTRO FERNAND JOUTEUX
— O nosso público já conhece e aprecia o maestro Fernand Jouteux. Mestre compositor francês, discípulo de Massenet, e hoje mais brasiliense que muitos dos nossos patrícios.
Os concertos do maestro Jouteux têm sido sempre recebidos com entusiasmo e verdadeiro interesse.
O grande escritor francês Bernanos, referindo-se ao velho mestre, escreve: (...)"

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, coluna Correio Musical, na edição 15070 de 17/12/1943, p. 11.

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II

Na coluna Correio Musical, na edição 15073 de 21/12/1943, lê-se à p. 5:

"O MAESTRO FERNAND JOUTEUX, O HOMEM E A OBRA

Não pode haver figura mais interessante do que a desse velho mestre francês, músico de talento e viajante inveterado, que escolheu nosso país para pouso derradeiro.
Fernand Jouteux já está no Brasil há meio século (menos um ano), tendo-o percorrido incessantemente em estudos de duplo caráter, para conhecer a música e o povo. E, sobretudo, para ter ideia do ambiente.
De tudo isso resultou que esse discípulo de Massenet, abandonando a delicadeza um pouco feminina da arte do autor da "Manon", nos desse uma obra dramática de grande envergadura intitulada "O Sertão", inspirada no livro magistral de Euclydes da Cunha.
Jouteux é hoje um pioneiro no campo da música brasiliense, como — por assim dizer — um novo bandeirante, neste século da aviação, para grande parte dos nossos Estados que ele visitou e conhece melhor que a maioria dos nossos patrícios.
Seu concerto que se vai realizar a 22 do corrente, à noite, no salão da Escola Nacional de Música, sob o patrocínio do prefeito Henrique Dodsworth e de altas personalidades da nossa sociedade, será um acontecimento.
Antônio Conselheiro, para Jouteux, é um herói, um profeta, uma espécie de caudilho manqué.
Transportando-o para a cena ele quis assim restabelecer as tradições do teatro antigo, onde a ação é predominante.
Há grande movimentação de massas na sua ópera. E se não fôsse a situação tão antagônica do enredo, diríamos que ele deveria ter aproveitado certos aspectos do misticismo caboclo e de similitudes ocasionais, para tratá-la à moda dos grandes mestres russos, com a interferência obrigatória dos coros, na ação, representando as multidões.
Ninguém compreendeu tão bem a alma dos nossos homens do sertão. O feitio e o caráter do matuto, do caipira, do caboclo, do próprio índio.
Resulta de tudo isso o perfeito absurdo de termos um homem culto, ultracivilizado, de espírito alerta e sutil, inverossimilmente identificado com essa gente primitiva e patriarcal...
Assim é Jouteux. E isso lhe faz grande honra.
Da sua obra escrita no Brasil destacam-se: "A Sinfonia Brasiliense", "Os Cantos Brasilienses", premiados pelo Salon des Musiciens Français; a cena dramática: "Le Retour du Marin", também premiada pela Société des Compositeurs de Paris; e, além de outras de menor importância, a ópera "O Sertão".
O programa que será executado amanhã às 9 horas da noite, no salão da Escola Nacional de Música, compreende as seguintes obras: "Árias Sudanesas"; "Volta à terra natal", para clarinete solo e orquestra; poema sinfônico "Impressões de meu jardim"; "Dança Chinesa", sob a escala chinesa, e por fim, alguns trechos da ópera em 4 atos "O Sertão": "Introdução e Ária das Palmeiras", soprano Heloysa de Albuquerque e orquestra; "Ária da Torrente" (ato II) Antônio Conselheiro — barítono Guilherme Damiano e orquestra; "Dueto do Calvário"; "Bailado" — "Valsa Nostálgica", "Sarabanda dos Punhais", "Baiano", orquestra.
O concerto terminará com a "Marcha Solene dos Aliados", em homenagem aos chefes das Nações Aliadas.
Temos, pois, a reunião da arte com o patriotismo, virtude nativa que Fernand Jouteux não poderia ter esquecido. - JIC"

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, coluna Correio Musical, edição 15073 de 21/12/1943, p. 5.

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III

Na coluna Correio Musical, na edição 15076 de 24/12/1943, lê-se à p. 6:

"FESTIVAL FERNAND JOUTEUX

Se não foi propriamente uma noite de glórias, foi de grande satisfação para o ilustre músico e compositor Fernand Jouteux, por ter sido tão apreciado por um público de escol, ante-ontem, no salão da Escola Nacional de Música.
O programa, composto com grande liberalidade, acusou desde logo os diferentes ambientes em que se inspirou o autor das peças apresentadas: "Árias Sudanesas", "Volta à terra natal" (Chinon, France), "Impressões de Meu Jardim" (em Garanhuns, Pernambuco), "Dança Chinesa", etc.
De tudo isso resulta a apresentação de quadros musicais coloridos e pitorescos e à prova segura de um métier que nunca o abandona, nem mesmo nas pequenas minúcias da arte.
O concerto teve como fecho patriótico, a "Marcha Solene dos Aliados", em homenagem aos grandes chefes das Nações Aliadas, etc. Mas estávamos quase propondo ao maestro Fernand Jouteux que a substituísse pela "Apoteose da Pá", de seu Jardim de Garanhuns, cuja allure vibrante e guerreira exprime com muito mais eloquência os sentimentos de um ardoroso patriota.
A parte mais importante do programa era constituída por alguns trechos da ópera "O Sertão", inspirado no episódio histórico de Canudos, e na qual Fernand Jouteux, dando expansão ao seu lirismo, faz obra verdadeiramente teatral.
A "Introdução" possui lindo caráter pastoral, com belo desenvolvimento do tema principal; é a "Ária das Palmeiras" — excelentemente interpretada pela exímia cantora patrícia Heloysa de Albuquerque — é sentimental e, às vezes, dramática. A voz possante e de magnífico timbre da artista lhe dá perfeito realce.
Na "Ária da Torrente", Guilherme Damiano (pela primeira vez metido na pele de Antônio Conselheiro) se esforça por não ser levado pela correnteza, vencendo afinal o turbilhão das águas...
O "Duo do Calvário" entre soprano e barítono, foi melhor, dando-nos amostra mais segura do valor do trabalho.
Il y a en tout cela un grand élan lyrique.
Os "Bailados", divididos num tríptico interessante, apresentam cada qual relação peculiar: o primeiro nostálgico, na forma de uma valsa; o segundo, delirante e trêfego, pois que o caracteriza a sarabanda dos punhais jagunços; o terceiro, humorístico e crismado bahiano, excede-se um pouco talvez na feição extremamente popularesca, o que não impediu de ser bisado...
Em extra foi executado um quinteto para cordas, intitulado "Melodia", do tenente Adelgício Corrêa de Almeida, obra bem trabalhada e que teve excelente interpretação.
O maestro Fernand Jouteux e os seus auxiliares foram muito justamente aplaudidos pelo auditório, composto dos mais finos elementos da nossa sociedade.
A presença do prefeito Henrique Dodsworth e do embaixador britânico Sir Noel Charles, tão amigo dos artistas, ainda mais realçou o festival.
Fernand Jouteux é um artista consciencioso, dotado de belo talento. Malgrado tenha passado muitos anos da sua vida em meios relativamente atrasados, o seu espírito alerta e cheio de mocidade não se deixou vencer pelo ambiente.
Só poderemos dar uma opinião mais completa sobre "O Sertão" depois de ouvirmos a execução integral da ópera.
Os trechos apresentados são deveras curiosos e bem arquitetados.
É uma obra que honra o seu autor. - JIC"

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, coluna Correio Musical, edição 15076 de 24/12/1943, p. 6.


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Além dos dois periódicos já mencionados — O Jornal e Correio da Manhã —, o jornal Diário da Noite juntou-se a seus parceiros cariocas para também prestar homenagem ao idoso compositor francês pelo seu afã de produzir sua obra com a utilização de motivos que relevam nossas grandezas tropicais. Assim, foi encarregado o escritor Austregésilo de Athayde de fazer-lhe justiça através de pequena peça laudatória, em moldura preta, inserida na p. 2 do jornal no dia do concerto (22/12/1942):

FERNAND JOUTEUX

Fernand Jouteux, discípulo amado de Massenet, grande expressão do gênio francês, vive há cerca de cinqüenta anos pelo interior do Brasil.
Sonhou com as grandezas tropicais. Sofreu a sedução das flores virgens, da existência livre no mundo perdido.
Quem sabe tudo lhe veio da leitura de "A Jangada" e Júlio Verne inspirou-lhe a filosofia do desprendimento das coisas supérfluas, em benefício de um contacto prolongado com a velha natureza da desordem amazônica. Na terra nova, formando-se como nos dias molhados do Gênesis.

* * *

Compenetrou-se do solo brasileiro e em tudo que compôs aqui há muito mais dos influxos telúricos do que da formação estética recebida na França. Mas não perdeu a personalidade, o ímpeto desinteressado do verdadeiro artista, o desprezo pelo material.
Fernand Jouteux, a quem Georges Bernanos chama "um velho navegante do oceano dos sonhos", aí está jovem aos oitenta anos, fiel aos antigos ideais da arte, independente de toda prisão, existindo não como um sobrevivente dos tempos, mas como um homem atual, moderno no sentido de sobrepor a tudo a condição da liberdade. Homem francês.

* * *

Ouviremos uma seleção das suas obras, entre as quais a partitura da ópera "Sertão", vinda da guerra de Canudos, das descrições euclidianas, nas quais perpassam os centauros sertanejos e a boiada estoura e o vulto silencioso do grande fanático projeta sua sombra mística.
Fernand Jouteux apreendeu todo o drama com a alma de um brasileiro, o que quer dizer que soube comunicar-lhe a intensidade real, sem perder a medida, o senso de beleza, a graça típica do espírito criador da França.
As duas pátrias uniram-se hipostaticamente no seu esforço heróico. Vendo-o alto, musculoso, sobre a floresta de instrumentos, a batuta arremessada, pensamos que o gênio dominou as débeis condições da natureza humana e que a arte lhe deu o que a sorte negou a Juan Ponce de León "par le diable tenté". Deu-lhe o domínio da perpétua juventude.

Austregésilo de ATHAYDE

Fonte: DIÁRIO DA NOITE, Ano XV, edição nº 3.961 de 22/12/1943, p. 2.
Linkhttp://memoria.bn.br/pdf/221961/per221961_1943_03961.pdf

DIÁRIO DA NOITE: edição de 22/12/1943.

III. AGRADECIMENTO 



À minha esposa Rute Pardini Braga pelas fotos que formatou e editou para os fins desta matéria.








quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O DRAMA DE "O SERTÃO"



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)





I.  INTRODUÇÃO



Revista ilustrada e literária, a Alterosa trazia notícias sobre acontecimentos diversos em todo o Estado de Minas Gerais; suas seções compunham-se de literatura — basicamente contos e assuntos como culinária, saúde, moda, beleza, rádio, cinema e novidades sobre Hollywood — e resultados de enquetes, pilhérias, aspectos da vida moderna, propagandas, entre outros temas. Tal conteúdo estava disposto numa variedade de seções que, apesar de não denotarem o foco do feminino na revista, traziam, de maneira implícita, o viés a este público. Era uma revista mensal editada pela Sociedade Editora Alterosa Ltda, em Minas Gerais, no período de 1939 a 1964. Alterosa foi fundada pelo jornalista Miranda e Castro e em 1962 foi comprada pelo então Governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto.
Nos 25 anos em que circulou, os discursos presentes na revista sofreram transformação, à medida que ocorreu uma mudança no cenário das famílias mineiras e é possível observar, na representação presente na revista e nos enquadramentos que se podem observar sobre esta família, principalmente pelos conteúdos e narrativas, a inserção de Alterosa em um contexto de transformação editorial em sintonia com um cenário de transformação mundial, que redimensiona o consumo e o entretenimento. Na Alterosa podem ser sentidos os ecos do american-way-of-life e sua apropriação à brasileira.



II.  O DRAMA DE "O SERTÃO", matéria de ALTEROSA (edição 203, Ano XVI, 1º de fevereiro de 1955)


Janet Leigh, da M.G.M., numa tricromia do gravador Waldemar Turner






























1ª página: índice de Alterosa























Com texto de Vinicius de Carvalho e fotos de José Nicolau assim começa a matéria cobrindo a  estreia da ópera "O SERTÃO" do compositor francês Fernand Jouteux:

"4 ATOS EM CENA E 40 ANOS NOS BASTIDORES
Um homem que fêz música na caatinga e passou fome em Belo Horizonte — Fernand Jouteux, gênio que veio da França para sofrer no Brasil — Estréia mundial de uma ópera a princípio rejeitada e depois consagrada.

BELO HORIZONTE teve, há pouco, a honra de ser palco da estreia mundial da ópera "O Sertão", considerada por muitos a mais "indígena" das obras musicais, não obstante composta por um alienígena — por um francês de nascimento, mas naturalizado brasileiro pelo coração e, sobretudo, pelo sofrimento. Essa honra, porém, só foi aceita — quase imposta mesmo por uma plêiade de admiradores de Fernand Jouteux — depois de várias metrópoles a terem rejeitado como perfeitamente supérflua, senão prejudicial. A própria Capital Mineira só se inteirou de sua sorte (é bem êste o têrmo), quando as palmas estrugiram na plateia do Teatro Francisco Nunes e a crítica se levantou, unânime, para consagrar, no Brasil, o mestre já mundialmente consagrado.


Imagens (da esq. p/ dir. e de cima p/ baixo):
1) Final de "Dança Sagrada dos Cairús" (III ato — "A Festa da Vitória")
Para visão de conjunto: 1ª e 2ª páginas com revista aberta


Para melhor visualização: 1ª página



































2) O maestro Hostílio Soares, o tenor Assis Pacheco, do Municipal do Rio, e Fernand Jouteux, que, aos 89 anos de idade, viu, finalmente, realizado o seu sonho.

Para melhor visualização: 2ª página

3) Lady Francisco, num dos números coreográficos dirigidos por Lucien Garret ("Dança Sagrada dos Cairús"), foi um dos pontos altos de "O Sertão". Ao fundo, um dos cenários de Ari Caetano. Apesar de todos os atropelos decorrentes de um ensaio apressado, os bailados agradaram.


Imagens (da esq. p/ dir. e de cima p/ baixo):
1) Frei João (Evandro Vidigal), numa cena do III ato, quando transmite a Antônio Conselheiro uma mensagem do Arcebispo.
* Edson Macedo (Antônio Conselheiro), o soprano Lia Salgado (Cília, esposa de Antônio), Valter Cardoso (maestro de côro), Assis Pacheco (Vila Nova) e o maestro Hostílio Soares.

Para visão de conjunto: 3ª e 4ª páginas com revista aberta















Para melhor visualização: 3ª página
























2) A procissão, cena do II ato, no Monte Santo, junto à montanha rochosa do mesmo nome, no sertão da Bahia.

Para melhor visualização: 4ª página

3) Antônio Conselheiro, o "Filho do Homem", abençoa sertanejos e jagunços. Esta é uma das bonitas cenas do III ato.
4) O contralto Jupira Raposo Neto (D. Chiquinha) e o barítono Edson Macedo (Antônio Conselheiro).

Conclusão
 Identificação no acervo na F-Cerem: JOU.04.003



Fernand Jouteux nasceu, há 89 anos, na cidade francesa de Chinon (Indre-et-Loire) e estudou no Conservatório de Paris, onde foi contemporâneo de várias celebridades e aluno predileto de Massenet, de quem, por diversas vêzes, mereceu palavras de incentivo e de admiração.
Há cerca de 50 anos, o compositor decidiu vir para o Brasil, trocando, assim, a glória de sua terra natal, onde já alcançara inúmeros triunfos, pelos percalços de um país inóspito para com a arte e que, em breve, o encheria de atribulações. Percorreu o Pará, o Amazonas, o agreste nordestino, buscando novas inspirações para os poemas sinfônicos que sonhava compor. Conviveu com pessoas que haviam conhecido, de perto, Antônio Conselheiro e, tornando-se íntimo das lendas e tradições que também inspiraram Euclides da Cunha, ei-lo embevecido com a epopéia de Canudos.
Em Pernambuco, escreveu a "Sinfonia Brasileira", os "Cantos Brasileiros" e, após, a grande ópera "O Sertão" — obra-prima de singular vigor e de pura brasilidade. Vários trechos dessas obras, bem como o seu Oratório de São Martinho (Bellator Domini) e a ópera "Klytis" fizeram com que tôda a França mais uma vez aclamasse o seu nome. Aliás, seus "Cantos Brasileiros" alcançaram lauréis do Salon des Musiciens  Français, e "Le Retour du Marin", da Société des Compositeurs, de Paris. É verdade que, também no Brasil, Jouteux foi aplaudido em concertos, mas, até há pouco, ou sejam, quarenta anos após a sua composição, ainda não havia logrado encenar a ópera "O Sertão".
Primeiramente, o maestro tentou o Rio, São Paulo e outras capitais. Foi, todavia, incompreendido, escarnecido e até espezinhado. São inúmeras as suas queixas, inclusive do compositor Villa-Lobos. Cercearam-lhe os movimentos, desprezaram os seus apelos e perseguiram-no incessantemente, procurando evitar que êle realizasse o seu sonho.
Algumas sociedades se organizaram para ajudá-lo, mas os fados sempre se mostraram contrários, fazendo com que, à última hora, surgisse sempre um empecilho intransponível.
Depois de uma autêntica via-crucis, o venerando ancião resolveu, finalmente, vir para Belo Horizonte, o que se deu há cinco anos, e aqui continuaram os seus sofrimentos. Por incrível que pareça, o gênio franco-brasileiro desmaiou algumas vêzes... de fome! Na verdade, ficou por largo tempo desamparado, senão inclusive, ao que se diz, atacado de escorbuto, dada a sua grande avitaminose. Pode parecer espantoso que, em pleno século XX, ainda exista uma doença como esta e que ela ataque precisamente uma pessoa da envergadura intelectual e artística do grande maestro! Mas o fato é que Fernand Jouteux ficou, entre Cila e Caribdes, ouvindo negativas, enfrentando desculpas esfarrapadas, sendo vítima de imposições, mas sempre perseverante na luta pelo seu ideal. Não foram poucos os que a êle se uniram para, logo em seguida, vendo que não levariam vantagens monetárias ou que não se salientariam como desejavam, o deixarem de lado, buscando tudo fazer para que êle nada conseguisse.
Finalmente, depois de 40 anos de ingentes esforços e de derrotas sem conta, o maestro Jouteux conseguiu selecionar um grupo de abnegados admiradores, a cuja testa se encontra o cel. Egídio Benício de Abreu, o qual pôs à sua disposição a Orquestra da Polícia Militar e contratou o maestro Hostílio Soares para a preparação dos coros e direção do referido conjunto. Foi ainda o mencionado coronel que se dirigiu ao governador Juscelino Kubitschek, conseguindo que o mesmo doasse cem mil cruzeiros para a montagem do hino a Canudos.
E, na noite de 29 de novembro, o pano do Francisco Nunes se levantou para a estréia mundial de "O Sertão", fazendo com que Fernand Jouteux vivesse o dia mais feliz de sua vida, conforme êle próprio declarou.
Dias antes, por ocasião de um dos ensaios, era tão intensa a sua alegria, que uma das pessoas presentes lhe disse: "Maestro, estamos com mêdo de que o senhor morra." Mas a resposta veio imediata: "Depois de 40 anos de sofrimentos, posso muito bem aguentar um dia de satisfação."

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"O Sertão", que foi cantado em português, teve o barítono Edson Macedo no papel de Antônio Conselheiro, a principal figura do drama; o soprano Lia Salgado fêz Cília, espôsa de Antônio; Assis Pacheco atuou no papel de Vila Nova, chefe dos jagunços; Patrício, irmão do Conselheiro, foi encarnado por Evandro Vidigal; e D. Chiquinha, mãe de Antônio, foi interpretada por D. Jupira Raposo Neto. Vários outros contribuíram grandemente para o grande sucesso de "O Sertão", cumprindo, no entanto, destacar a atuação do maestro Hostílio Soares, que foi auxiliado pelo professor Valter Cardoso, tendo êste último feito também as vêzes de "regisseur". A parte coreográfica teve como responsável Lucien Garret e seu corpo de baile.
Não somos críticos de arte, nem temos tal veleidade. Pelo indiscutível sucesso de "O Sertão", todavia, falou e continua falando a crítica autorizada de nossa imprensa, ressaltando, sobretudo, o "Côro dos Peregrinos", a "Sarabanda dos Punhais", a "Dança Sagrada dos Cairús", o "Cateretê" e o "Baiano" como páginas das mais belas que, até agora, se escreveram sôbre coisas do Brasil.
De fato, usando de frases de duas cartas de Jules Massenet a Fernand Jouteux, todos aquêles que conhecem a vida do notável autor podem dizer-lhe: "Você é verdadeiramente único e corajoso. Sua grande obra merecia êste acolhimento..."


Fonte: O DRAMA DE "O SERTÃO", publicado pela revista ALTEROSA, edição 203, Ano XVI, 1º de fevereiro de 1955, p. 42-45 e 95 (conclusão).



 
III. AGRADECIMENTO 



À minha esposa Rute Pardini Braga pelas fotos que formatou e editou para os fins desta matéria.
À F-CEREM, na pessoa de Márcio Saldanha, Secretário do Programa de Pós-Graduação em Música da UFSJ, pela boa acolhida para a realização desta pesquisa no acervo francês do compositor Fernand Jouteux.