quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

LUDWIG VAN BEETHOVEN EM HEILIGENSTADT


Post de El Sitio de Ludwig van Beethoven
Traduzido do espanhol por Francisco José dos Santos Braga


Em maio de 1802, e por recomendação do Dr. Johann Adam Schmidt, Beethoven mudou-se para Heiligenstadt para descansar na temporada de verão, como era sempre seu costume e como o foi por toda a sua vida.

O verão no campo era uma etapa anual que Beethoven necessitava de forma imprescindível. Desejava a natureza, a sensação de liberdade, as caminhadas por trilhas do bosque, etc. Era também muitas vezes o período do ano no qual apareciam suas ideias musicais. Anotava-as em seus inúmeros cadernos de apontamentos e usava o inverno em Viena para passar a limpo e terminar as obras que haviam surgido durante o verão.

Naquele ano em particular, Beethoven estava atormentado pelo aumento de sua surdez, tinha já a sensação de que era uma enfermidade que não ia abandoná-lo facilmente e sentia toda a sua vida ameaçada por ela. A indicação do Dr. Schmidt abria uma esperança de que com solidão e silêncio uma temporada no campo poderia descansar seu ouvido e recuperar sua saúde.

Heiligenstadt era naquele momento um pequeno povoado separado de Viena. Não somente um bairro, parte da mesma cidade, como atualmente. Levava algum tempo para chegar ali de carruagem.

Deprimido e já incapaz de esconder sua enfermidade crescente, em 6 de outubro de 1802, Beethoven escreveu um documento que guardou logo cuidadosamente e que foi chamado depois "O Testamento de Heiligenstadt". 

Lacre do documento
O começo do Testamento de Heiligenstadt: "para meus irmãos Carl e..."

Abre o testamento a cláusula que incumbe seus irmãos de cumprir as suas disposições de última vontade, isto é, para ser lido e executado depois de sua morte ("para meus irmãos Carl e...") Neste emocionante documento, Beethoven revela sua enfermidade e sua angústia frente a ela. O escrito tem uma qualidade emocional verdadeiramente impactante, quando o lemos hoje em dia. Uma segunda parte do testamento foi escrita uns poucos dias depois, mais exatamente em 10 de outubro de 1802, e tem o caráter de um epílogo do escrito anteriormente (separada por ♧      ♧       ♧ em "O Testamento de Heiligenstadt em poema"). 

A redação mesma do "Testamento" se acha cheia de erros de sintaxe e exibe uma pontuação absolutamente pessoal. As orações são extensas, às vezes de difícil compreensão. Evidentemente o documento foi escrito sob uma forte pressão emocional e tem uma qualidade muito forte de imediatez e impacto. A personalidade de Beethoven é claramente perceptível. Isso resta evidente também na leitura de suas inúmeras cartas. Em que pese o compositor dizer amiúde que não tinha nenhuma facilidade para escrevê-las, conseguia acertá-las perfeitamente para transmitir seus fortes pensamentos e emoções, claro que não com a mesma qualidade estética que na música, apesar de utilizar uma qualidade emocional muito parecida.

É importante recordar que esse testamento foi encontrado no mesmo esconderijo secreto de seu escritório, junto com a carta à Amada Imortal, escrita em 1812.

Finalmente, Beethoven escreveu depois ainda dois testamentos, em 1824 e poucos dias antes de morrer em 1827. Esses foram documentos principalmente formais, redigidos por um advogado e racionalmente destinados a legar seus poucos bens.

O TESTAMENTO DE HEILIGENSTADT EM POEMA


Por Judas Isgorogota



Ano de 1802. Beethoven, na fase mais penosa de sua vida, torturado por angustiante tragédia interior, executa a "Sonata ao Luar", enquanto pronuncia as célebres palavras que somente deveriam ser lidas depois de sua morte.




Ó vós, que me considerais um louco,
um irascível, talvez, um misantropo, enfim,
olhai meu coração traspassado de angústias!
Como vós sois injustos para mim!...
Oh! não sabeis a dor, nem a razão secreta
de aos vossos olhos parecer-me assim!...

Desde a infância, o mais doce sentimento
de bondade viveu dentro em meu coração
e sempre me senti disposto para a vida,
pronto a realizar sempre uma grande ação...
Porém, pensai somente em que têm sido
estes seis anos de desilusão...

Pensai em meu estado espantoso, agravado
por promessas falazes, enganado
nessa esperança de melhora vã...
constrangido a viver preso a um mal cuja cura
requer anos talvez e que sempre perdura
na ansiedade cruel de um eterno amanhã...

Nasci com um temperamento ardente e altivo,
acessível até às distrações sociais;
porém, cedo me vi forçado a separar-me
dos homens e a viver em solitária paz.
Muitas vezes tentei sobrepairar tais coisas,
mas a triste experiência abateu-me ainda mais...

Em minha desventura, eu jamais poderia
aos homens revelar a ausência de um sentido
que mais do que ninguém devera possuir,
sentido que eu tivera apurado e perfeito...
Vede a minha aflição: — fingir que vos escuto,
adorar a verdade e viver a iludir...

Se me vedes assim afastado de todos,
quando a todos eu quero, ó meus irmãos, perdoai!
Esta revelação jamais eu desejei fazer-vos:
"— Falai mais alto ainda... eu sou surdo... gritai!"

Duplamente infeliz, é-me interdito
achar repouso e desfrutar prazeres
entre vós e assim ser condenado, entre os seres,
a existência arrastar como um proscrito.

Já não posso afoitar-me ao mundo que eu queria...
Dizei-me, pois, se não vos causa dó
ver alguém a ansiar por vossa companhia
e entretanto viver inteiramente só!

Só... absolutamente só... Algumas vezes,
dominado por minha inclinação,
tentei ainda viver ao vosso lado,
porém, que humilhação!

Quando alguém junto de mim ouvia às vezes
sons de uma flauta ao longe ou a voz distante
de um pastor a cantar, e eu nada percebia,
estando junto a vós...
bem pouco me faltou para por termo à vida
o meu tremendo desespero, atroz!

Foi a Arte, ela só, que me reteve.
Impossível me parecia abandonar
o mundo, sem que ao mesmo houvesse dado
tudo o que me cabia realizar.

E assim eu prolongara a miserável vida
nesse estado de angustiosa irritação.
— Paciência! — ao coração eu repetia.
Paciência terei... Tenho-a no coração.

É a ela a quem devo agora escolher como guia,
neste anseio de resistir até o fim,
até que as Parcas inexoráveis venham
cortar-me o fio da existência, enfim.
Eu estou preparado... Talvez seja
bem melhor para mim...

Não é fácil a alguém, aos vinte e oito anos,
transformar-se em filósofo... porém,
mais difícil ainda é para o artista,
e mais cruel também...

Divindade, tu que penetras do alto a fundo
deste meu coração, que a dor contém,
bem sabes tu que há nele o amor humano
e este desejo de fazer o bem...

Homens! se um dia lerdes as palavras
que esta minha alma em lágrimas vos diz,
meditai na injustiça que fizestes
a mim e na aflição de um infeliz
que tudo fez para vos ter ao lado,
que sempre vos amou... sempre vos quis...

Ó meus irmãos! Depois de minha morte,
dizei a todos quanto padeci,
para que dentro do mais breve tempo
comigo o mundo se reconcilie.

Sede leais, compreensivos, justos,
e amai-vos tanto quanto vos amei.
O mal que me fizestes neste mundo
há muito tempo vô-lo perdoei...

Aconselhai virtude aos vossos filhos.
É ela, e não os bens materiais,
que pode dar felicidade ao mundo,
num só instante de harmonia e paz...

Tão somente virtude, pois foi ela
que na miséria me estendeu a mão.
É à virtude que devo, e à minha Arte,
jamais haver na morte procurado
alívio para tanta decepção...

Como serei feliz, se no meu túmulo,
puder ainda ser útil... Se assim for,
voarei com alegria para a morte
amando a própria dor!

Se ela vier antes que, enfim, consiga
meu supremo desejo conquistar,
de certo que, apesar-de meu destino,
virá cedo demais me procurar.
Eu só lhe pedirei que se retarde
um dia, ao menos, para me levar...

Mas, se vier, eu ficarei contente
e lhe abrirei os braços, mesmo assim,
pois me trará libertação, somente,
de um sofrimento que já não tem fim...
Ao teu encontro irei serenamente!
Morte, quando quiseres, vem a mim!

Ó meus irmãos! Não me olvideis inteiramente,
quando chegar o fim...
Eu mereço viver dentro em vossa lembrança...
Pensei em vós em toda a minha vida...
em minha morte, irmãos, pensai em mim!

Adeus... não me esqueçais... o meu destino
confio a vós... deixo-o nas vossas mãos!
Eu pensei sempre em vós... sede felizes...
Não me esqueçais... não me olvideis, irmãos!

          ♧        ♧         ♧

Enfim, bem tristemente me despeço.
Sinto que devo agora abandonar
essa doce esperança de melhora
que até aqui me veio acompanhar.

Como as folhas no outono se estiolam,
morreu essa esperança para mim,
e hoje retorno, como as folhas secas,
           mais ou menos assim...

Toda a coragem que antes me animava
           o triste coração,
desvaneceu-se... Para mim morreram
           os nossos belos dias de verão...

Ó Providência! Permiti, ao menos,
           que me ilumine o coração,
ao sol de um dia de prazeres puros,
o eco de uma feliz satisfação!
Ó quanto tempo faz que desconheço
a alegria interior dessa emoção!

Quando, enfim, poderei, ó Divindade,
gozar essa ventura novamente,
diante o templo imortal da Natureza
           e da imortal Humanidade?

"Jamais!" — direis, o coração me enchendo
           de amargura e de fel...

E muito embora este sofrer horrendo,
inda acredito em vós, ó Divindade!
Inda confio em vós, pois, em verdade,
este eterno silêncio, que maldigo
seria para mim como um castigo,
           imensamente cruel!


Fonte: ISGOROGOTA, Judas: Os que vêm de longe, São Paulo: Edição Saraiva, 2ª edição, 1954, p. 45-53.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

O NOSSO PÁTIO


Por Maria Iordanídou
Traduzido do grego por Francisco José dos Santos Braga


Vivemos na época do cimento e do prédio.

E eu agora moro num prédio. Tenho um apartamento interno de dois quartos no terceiro piso. Chamamos agora de internos os apartamentos que não dão para a rua, mas para o pátio. Mas também o pátio já não é assim chamado, mas de espaço sem cobertura.

Capa do livro "O nosso Pátio" de Maria Iordanídou, ed. Vivliopoleíon tis Estias, 1983.

Na maioria desses prédios que são construídos, um depois do outro, raramente verás uma janela. São sempre portas da varanda que dão para uma sacada que dá uma volta ao redor do prédio e lembra convés de navio. Então, porta de varanda e divisória, e cada divisória parece um corredor. Não precisas pensar em como está mobiliado, como esse espaço é habitado. O arquiteto previamente o decidiu. Colocou para ti a tomada para o televisor onde é preciso instalá-lo, colocou para ti os suportes para iluminação onde será instalada a sala de estar, isto é, o sofá, a mesinha e as duas imensas poltronas da moda.

Não há um ponto adequado para a patroa instalar seu recanto, onde possa se empoleirar para tomar seu cafezinho, para pegar a gata no seu colo e para escutar a folga da sua casa. Talvez por isso a mulher de hoje não ame sua casa. Coisa estranha. Tudo uniformizado, tudo premeditado. (O arquiteto premeditou) a distância para poderes estender a tua perna e a tua mão. (Premeditou) quanto precisas inclinar a tua cabeça quando te levantares dentro da banheira, de modo a não cabeceares o corpo do aquecedor que está preso na parede.

Mudam os tempos, mudam também as pessoas. Dentro dos prédios as pessoas tornam-se com maneiras inglesas. Olhas para alguém na escada ou no elevador e não te cumprimenta. Fica de pé à tua frente como uma coluna de gelo, e também receias cumprimentá-lo. Mal sabes se é um condômino ou um estranho. Perderam os Gregos o espírito grego.

Sei que não conheço a cara dos condôminos. Conheço, todavia, a voz deles, a tosse deles. Conheço o suspiro e o gemido da minha vizinha. Geme de noitinha quando cai na cama e de madrugada. Parece que possui cristais nas suas articulações e sente dores. Toda manhã, às seis horas, ouço o seu despertador. Tudo isso se faz ouvir porque a cama dela está próxima à minha e nos separa uma parede.

Pelo banheiro faço divisa com o apartamento cuja porta está em frente à do meu apartamento.

Ali, de novo, ouves berros dilacerantes de criança. Toda manhã, a mãe dela tenta vesti-la; ela, mal acordada, defende-se, e parece que leva uma surra.
— Minha senhora, grito-lhe da janela do banheiro, deixa que a criança se acalme. Está na idade que precisa aprender a vestir-se por si mesma.
— O que dizes, minha senhora? grita de dentro a mãe fora de si. Preciso estar no trabalho às oito. Também chegou a van da escola para pegá-la. A senhora não ouve na rua buzinando?

Realmente, da rua ouve-se o fon-fon da van. Calei-me. Soube da faxineira Panagióta que a mãe e o pai eram bancários.

Poucas horas de calmaria, e ao meio dia novamente berros da criança. A van da escola chegou, porém a mãe se atrasou, e o motorista não pode deixar a criança no passeio. Toma-a consigo e parte. A criança urra de dentro.

Por um mês tive sossego, quando o casal tirou suas férias de verão. Partiram os dois com o seu carro para o exterior e deixaram a menininha com a avó que morava em Khaidári. Um dia, pelos gritos da criança e da mãe, entendi que as férias findaram. Já tinham voltado. Uma noite ouço berros dilacerantes da criança, gritos de dor.
— Come! Come, já disse! Não vais comer?
Logo o berro dilacerante de novo.
— Abre a tua boca! Vou te estapear!
E novamente o berro.
Não aguentei. Lancei-me para fora, Nélli me agarra, me puxa.
— Aonde vais?
— Vou bater na porta deles com pontapés. Deixa-me.
— Enlouqueceste?
Sim, praticamente enlouqueci. Penso a quem me dirigir. À Polícia? A alguma Associação? Chamo Panagióta e pergunto-lhe o que se passa.
— A criança, desde que (os pais) voltaram, não come nada. Virou pele e osso. O pai acha que a avó a mimou.

Os Franceses dizem: Les enfants, quand ils sont petits, ils nous aiment. Quand ils grandissent, ils nous jugent, et parfois ils nous pardonnent. As crianças, quando pequenas, nos amam. Quando crescem, julgam-nos, e às vezes nos perdoam. 

Esta pequena, parece, amadureceu antes do tempo, julgou a sua mãe e não lhe perdoou nem pela surra nem pelo abandono. Vinga-se dela. Como de outra forma pode vingar-se dela? Também as crianças têm a sua dignidade.

A minha vida dentro desse prédio tornou-se insuportável. Felizmente, porém, a família comprou o seu próprio apartamento e mudou-se. O apartamento foi alugado de novo muito depressa. Alugou-o um solteiro e tivemos sossego. Agora pela janela do banheiro ouves apenas a descarga da privada nas tuas costas. Ouves também todos os ruídos que é possível alguém ouvir dentro de um banheiro, e, contudo, não conheces a cara da pessoa. Sabes apenas que é um homem, porque logo começa a barbear-se. Isso sabes por causa das fragrâncias do creme de barbear e pelo ruído do barbeador elétrico. Compreendes que é um homem jovem, porque muitas vezes cantarola baixinho e assovia.

Pela canção que canta, o colocas politicamente na centro-esquerda, talvez até mais à esquerda. Pena que não conheces a cara dele. A sra. Panagióta não pode me ajudar em nada neste caso, porque ele não possui faxineira.

Frequentemente vem sua namorada aqui e faz todo o serviço. Ela cozinha para ele ainda por cima, porque pelo banheiro me vem também o cheiro da sua cozinha quando a janela está aberta.

♧                ♧                ♧

Coisa curiosa: tanto Nélli quanto eu, desde que entramos no prédio, começamos a nos sentir estranhas com o nosso ambiente. O mesmo diz também meu filho Giánnis que também mora em prédio, com sua esposa e seus filhos, um pouco mais além de nós.

Deixa para lá! Por que vou ficar esquentando a minha cabeça? O que tinha que fazer na vida, fiz, cheguei aos 85 anos de idade. Já é tempo de descansar.

Estendi-me na poltrona, peguei também o combolói na mão, de vez em quando tiro uma soneca. Começa a doer todo o meu corpo. Sim, claro, envelheci.

Começo a preocupar-me. Mando recado para meus netos virem me fazer companhia. Onde vão arrumar tempo!? Mergulhados ambos nas lições. Bem, o que são essas muitas lições que os filhos têm agora!? No meu tempo não era assim. E a minha cunhada, mergulhada ela também nos afazeres. A minha cunhada não trabalha fora, fica em sua casa, porém a verdade é que não tem empregada. Nenhuma ajuda, faz tudo sozinha, mas com a eletricidade e com as tais facilidades, o que é hoje o trabalho doméstico? Brincadeirinha. Mas as ruelas a matam. A correria. Bem, que correria têm as pessoas hoje! Todos correm. “Tenho que ir à CESP, tenho que ir também à TELESP, e preciso passar pelo banco. Ah! Há ainda a Receita Federal. Mas, é claro, preciso passar pelo cartório para autenticar a assinatura da minha sogra...”. A correria não tem fim. (...)

Fonte: O NOSSO PÁTIO, Atenas: Vivliopoleíon tis Estías, p. 11-18

BIOBIBLIOGRAFIA DE MARIA IORDANÍDOU



Por Francisco José dos Santos Braga

Maria Iordanídou (1897-06/11/1989)


A escritora MARIA IORDANÍDOU publicou cinco romances em grego moderno, a saber:
"Loxandra" (1963), quando já contava 66 anos de idade, ou seja, na época em que outros escritores interromperam sua produção ou completaram a maior parte de seu trabalho;
"Férias no Cáucaso" (1965);
"Como os Pássaros Loucos" (1978);
"Nas Rotações do Círculo" (1979); e
"O nosso Pátio" (1981).

Maria Iordanídou nasceu em Constantinopla (atual Istambul, que ela trata por "Cidade") em 1897. Seu pai era Nikolákis Kriezís, natural da ilha de Hydra, que trabalhava como engenheiro da marinha comercial inglesa. Sua mãe se chamava Efrosíni Mágou e era uma constantinopolitana (que ela chama de "cidadã").

A vida da escritora revelou-se tempestuosa e foi influenciada por grandes eventos históricos da época, em cujo redemoinho a escritora frequentemente se encontrou.

Os primeiros 4 anos de sua infância, a autora os passou em Constantinopla (ou "Cidade"). Em seguida, viveu com seus pais em Piréus por 8 anos, de 1901 a 1909, quando tinha 4 até 12 anos de idade. Em 1909 seus pais se divorciaram e Maria e sua mãe voltaram para Constantinopla. Ela começou a estudar no American College, onde estabeleceu as bases da sua proficiência linguística.

Maria Iordanídou jovem

Suas memórias pessoais de vida até 1914 aparecem em vários textos, mas principalmente no primeiro romance, o famoso "Loxandra". É o seu texto maior e bem diferente dos outros. A protagonista aqui é Loxandra, sua avó, uma constantinopolitana rica e terna, com profundo amor pela vida e confiança cega nela e na bondade dos idosos. Cria enteados, filhos, sobrinhos e netos e ocupa, como deusa eféstia, o centro da vida da casa, rodeada por inúmeros parentes, amigos, vizinhos, negociantes e animais de estimação.

Juntamente com Loxandra, no entanto, igual protagonista do livro revela-se também a Constantinopla helênica: localidades, instituições, pessoas, especialmente de origem popular ou da classe média, vida cotidiana, comidas, festas, profissões, relações sociais, juízos. No verão de 1914, dois anos antes de se formar, ela foi convidada por seu tio, estabelecido em Batúmi, na Rússia (hoje pertencente à Geórgia), para ir para lá de férias. Infelizmente para Iordanídou, a intromissão da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Soviética acabou engaiolando-a, após incríveis aventuras, em Stavropol, no Cáucaso.

Iordanídou, para viver, passou a ministrar aulas de inglês, enquanto paralelamente estudava russo e cursava o ginásio em Sebastopol.

Maria Iordanídou ginasiana
As circunstâncias não permitiram que ela terminasse a escola, mas as habilidades linguísticas que adquirira nas difíceis condições de sua juventude (ela conhecia bem pelo menos três línguas) a ajudaram durante toda a sua vida.

Em 1919, após cinco anos de permanência forçada na Rússia, conseguiu retornar a Constantinopla com muitas adversidades. Já tinha 22 anos de idade e foi trabalhar numa empresa comercial americana.

Em 1920, mudou-se para Alexandria do Egito, onde entrou em contato com círculos intelectuais, tornando-se membro do partido comunista egípcio. Em 1923, casou-se com o professor Iordáni Iordanídis, professor do Victoria College. Depois do casamento, ela se estabeleceu com o marido e a mãe em Atenas, onde trabalhou na Embaixada da União Soviética. Em 1931, ela se separou de Iordanídis, com quem teve dois filhos nesse meio tempo. Em 1939, ela foi demitida da Embaixada e voltou a lidar com aulas de línguas estrangeiras. Durante a ocupação alemã, sua casa foi destruída e ela foi perseguida e trancada em vários campos. Colaborou com o periódico do Partido Comunista da Grécia como tradutora na seção de Educação.

Por causa das circunstâncias de sua vida, Iordanídou ganhou grande proficiência linguística e trabalhou como profissional liberal.




Loxandra, primeiro romance publicado em 1963 pela primeira vez, descreve com grande vivacidade e humor os costumes e a vida dos Gregos da "Cidade" (Constantinopla) e baseia-se nas memórias de Iordanídou antes da Primeira Guerra Mundial. Sua vida na Rússia é descrita em seu livro Férias no Cáucaso (1965), enquanto no livro Como os Pássaros Loucos (1978) ela fala sobre os anos em Alexandria e Atenas durante o período entre as Grandes Guerras. Seu último trabalho é O nosso Pátio (1981).

Maria Iordanídou rodeada por seus livros: da esq. p/ dir., Loxandra (1963), 
Como os Pássaros Loucos (1978), Férias no Cáucaso (1965) e Nas Rotações do Círculo (1979). Falta apenas O nosso Pátio (1981) para completar sua "pentalogia".

Por trás do título inocente e insuspeito de "O nosso Pátio", Maria Iordanídou, com seu olhar perspicaz e sua escrita densa, dá vida ao cotidiano nesta nossa época do prédio de cimento, da poluição ambiental, da autodestruição. Através do pequeno espaço de um “pátio”, ela consegue nos apresentar o homem moderno e os problemas da vida cotidiana, como ela própria — uma senhora idosa do século XIX — os vê e os conta com imagens nostálgicas do passado, com humor, simplicidade e estado de espírito leve.

A paisagem urbana e as relações que se desenvolvem entre os condôminos dos prédios são o tema do livro. A simplicidade da abordagem com narrativas simples e descrições precisas dá ao livro um caráter vivo, de tal forma que as “descobertas” da autora ainda continuam atuais. As dificuldades criadas pela área apertada dos apartamentos resultam em sobrarem as brigas no seio das famílias que constituem também a parte principal do romance e onde mal cabem alguns móveis; as repreensões de crianças; a diversão da juventude com a música da moda; o novo consumismo impulsionado pela publicidade; as rusgas e pequenas alegrias; as mudanças e remoções... Esses aspectos da vida constituem também matéria do livro.

Os moradores se conhecem, o "pátio" é mapeado e os hábitos de cada um são pouco ou muito conhecidos. Ao mesmo tempo, vigora a contradição de que vizinhos não se falam uns com os outros e os olhares não se cruzam. É a alienação da megalópole.

Além disso, as dificuldades criadas pelo espaço estreito dos “apertamentos” (sic), onde mal cabem alguns poucos móveis, têm o efeito de sobrecarregar as famílias, que também são a parte principal do romance.

Finalmente, em muitos pontos, a autora compara as condições de vida dos moradores dos blocos de apartamentos com os Gregos com que ela conviveu em Constantinopla (atual Istambul), no bairro histórico de Tatavla, parte da "Cidade" inteiramente grega. Essa oposição entre a Constantinopla de antigamente com a atual megalópole grega (Atenas), bem como a mutação dos costumes que Iordanídou observa na transformação da mentalidade da mulher que era dona de sua casa na “Cidade”, mantém o interesse do leitor pelo texto em bons níveis, quase 40 anos após o seu primeiro lançamento.

Suas obras tiveram um grande sucesso editorial e foram traduzidas para muitas línguas estrangeiras. Foi agraciada em 1978, pelo Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, com a Cruz de Ouro e a menção honrosa de Senhora do Trono Ecumênico.

Os seus romances cobrem um grande período da história grega contemporânea, particularmente aquele que foi amado pelos leitores — Loxandra, traduzido para várias línguas (inclusive a língua turca) e adaptado para a televisão — enquanto foram ignorados pela crítica.

Loxandra, em tradução turca
As principais características da obra de Maria Iordanídou é o elemento autobiográfico que domina cada vez mais fortemente durante a sua rota literária, a negligência dela quanto à distribuição sistemática do seu material narrativo e, finalmente, a imediatez, precisão e naturalidade do seu discurso.

Ela morreu em 6 de novembro de 1989 e foi enterrada no cemitério de Nova Esmirna ¹.


NOTA  EXPLICATIVA


¹  A região de Atenas que abrigava predominantemente os refugiados de Esmirna ficou conhecida como Nova Esmirna. A criação do assentamento remonta à década de 1920, após a chegada de refugiados de Esmirna e de outras áreas da Ásia Menor aos, então, arredores de Atenas. Para o leitor interessado em conhecer detalhes sobre esses refugiados, recomendo a leitura, na Wikipedia, do Grande Incêndio ou Catástrofe de Esmirna em setembro de 1922.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

MADAME CURIE

Por SELEÇÕES DO READER'S DIGEST



MADAME CURIE



(Seleção de Livros, Editora: Reader's Digest, 1951, p. 65-84)
"Teria sido um crime adicionar o mais leve ornato a essa história de minha mãe, tão semelhante a um mito" — escreve Eva Curie. "Não referi um só episódio de cuja autenticidade não tivesse a certeza; não inventei sequer a cor de um vestido. Os fatos deram-se tais como aqui narrados; as palavras são textualmente as pronunciadas na realidade.
A minha esperança é que o leitor possa sentir através deste livro o que, em Madame Curie, era ainda mais extraordinário que a sua obra ou a sua vida: a inflexível estrutura do seu caráter moral; a qualidade duma alma cuja excepcional pureza, nem a fama nem a adversidade podiam ter adulterado. Qualidade essa que levou Einstein a dizer dela: 'Maria Curie é, de todas as pessoas célebres, a única a quem a fama não corrompeu.'"


No outono de 1891, uma jovem emigrada polonesa, Maria Sklodovska, registrava-se, cheia de nervosismo, no curso de ciências da Sorbonne, em Paris. 

Os estudantes iriam daí em diante encontrar muitas vezes, nos corredores cheios de ecos de vozes e risos, essa moça tímida, de cara fechada e obstinada, que se vestia com a austeridade da pobreza, e perguntavam: "Quem é ela?" Mas a resposta era sempre vaga: "Uma estrangeira, com um desses nomes arrevesados. Senta-se sempre na primeira fila, nas aulas de Física." Os rapazes seguiam com os olhos sua graciosa silhueta pelos corredores afora e comentavam: "Bonito cabelo!" O cabelo dum louro cendrado e a cabecinha foram, por muito tempo, os únicos sinais que os estudantes da Sorbonne tiveram para identificar a sua tímida companheira de estudos. 

Mas os rapazes eram a coisa que menos interessava a essa moça concentrada, que os estudos científicos absorviam e fascinavam totalmente e que trabalhava com uma intensidade febril. Cada minuto que não dedicava ao estudo era, para ela, um minuto perdido. 

Demasiado tímida para cultivar relações com os franceses, Maria Sklodovska refugiava-se entre os seus compatriotas, cuja colônia formava uma espécie de ilhota da Polônia livre, no Quartier Latin de Paris. Aí sua vida era duma simplicidade monacal, só devotada ao estudo. Sua renda — fruto de suas próprias economias feitas na Polônia, onde trabalhara como governanta, e de pequenas somas que lhe podia mandar o pai, obscuro mas erudito professor de matemática — era cerca de 40 rublos por mês. Desse estipêndio — três francos por dia! — ela tinha de pagar o aluguel do seu modesto quarto, as refeições, o vestuário e os encargos universitários. 

Deliberadamente suprimiu do seu programa de vida as diversões, bem como as reuniões de amigos e criou-se uma existência espartana, estranha e quase desumana. Maria Sklodovska não admitia sequer a possibilidade de sentir fome ou frio. Para não comprar carvão, deixava muitas vezes de acender o fogãozinho de aquecimento e escrevia números e equações sem reparar que o frio lhe entorpecia os dedos e lhe punha um tremor nos frágeis ambros. Semanas seguidas, chegava a não se alimentar senão de pão com manteiga e chá. Quando queria banquetear-se, comprava dois ovos, ou uma barra de chocolate e uma fruta qualquer... 

Com semelhante regime, a robusta moça que partira de Varsóvia poucos meses atrás, foi-se rapidamente amenizando. Muitas vezes, ao se erguer da mesa de estudo, a cabeça lhe andava à roda. Mal tinha tempo de cair na cama, onde ficava sem sentidos. E quando voltava a si, ainda perguntava porque desmaiara. Julgava-se doente, mas desprezava a doença, como desprezava tudo que perturbasse seu trabalho. Nunca, nessas ocasiões, lhe passaria pela cabeça que a sua única doença era — a fome. 

Pierre Curie 

Maria tinha riscado as palavras amor e casamento do seu programa de vida espartana. Dominada pela paixão da ciência, aos 26 anos ainda estava orgulhosamente aferrada à sua independência. 

Surgiu então Pierre Curie. Francês e cientista de gênio, dedicara-se de alma e coração à pesquisa científica e aos 35 anos ainda estava solteiro. Era alto, possuía mãos longas e reveladoras de sensibilidade, uma barba áspera, e em todo ele uma expressão de rara inteligência e distinção. 

Encontraram-se pela primeira vez no laboratório, em 1894, e uma mútua simpatia logo os aproximou. Pierre Curie achou aquela taciturna Mlle. Maria Sklodovska uma pessoa verdadeiramente assombrosa. Que estranha coisa falar a uma mulher tão nova e encantadora, empregando somente termos técnicos, fórmulas complicadas... E como isso era, ao mesmo tempo, adorável!

Pierre olhava o cabelo louro cendrado de Maria, a sua alta fronte levemente convexa, as suas doces mãos de mulher já impregnadas dos ácidos de laboratório. A graça dela o desconcertava, com essa ausência de coquetismo que a tornava ainda mais atraente. 

Pierre Curie esforçou-se com gentil tenacidade por entrar em mais amistosas relações com a estudante. Perguntou se podia visitá-la. Cordial, mas com reserva, ela o recebeu no seu quartinho e Pierre, com o coração apertado por tanta pobreza que via, nem por isso deixou de apreciar o sutil acordo entre aquele caráter e o seu ambiente. Maria nunca lhe parecera mais bela do que naquele humilde ambiente, o pobre vestido gasto e as feições cheias de ardor e obstinação. O que o fascinou não foi só a total devoção dela ao trabalho, mas igualmente a sua coragem e nobreza de ânimo. Essa grácil jovem tinha o caráter e os dons de um grande espírito! 

Dentro de poucos meses Pierre Curie pedia Maria Sklodovska em casamento. Mas casar com um francês, deixar a família para sempre, abandonar a sua Polônia oprimida e bem-amada, parecia a Mlle. Sklodovska toda uma cadeia de pavorosas traições... Dez meses passariam, antes que a voluntariosa polonesa aceitasse a ideia do casamento. 

Pierre e Maria passaram os primeiros dias da sua vida em comum a percorrer a doce Île de France, pedalando em bicicletas compradas com o dinheiro que lhes tinha sido ofertado como presente de núpcias. Almoçavam pão com queijo e fruta, paravam ao acaso em estalagens desconhecidas e à custa de alguns milhares de pedaladas e de uns magros francos para alojamento, nas aldeias, compraram o raro luxo da solidão, durante longos dias e noites de encanto. 

O pequeno apartamento da rua Glacière, 24, onde o casal se alojou, brilhava singularmente pela falta de conforto. Mas recusaram, apesar disso, a mobília que o pai de Pierre teimava
em oferecer-lhes. Maria não tinha tempo para se ocupar de limpezas. As nuas paredes tinham por único enfeite os livros, duas cadeiras e uma mesa de pinho cru. Sobre a mesa viam-se tratados de Física, um candeeiro de querosene, um vaso com flores; isso era tudo. Na presença dessas duas cadeiras, nenhuma das quais lhe pertencia, o visitante mais intrépido só tinha uma coisa a fazer: era bater logo em retirada! 

Pouco a pouco Maria melhorou também em ciência doméstica. Inventou pratos que exigiam poucos preparos, ou se podiam deixar a cozer só por si. Antes de sair de casa, regulava a chama do gás com a precisão do físico; depois, relanceando um último olhar inquieto às caçarolas que ia assim deixar entregues ao cuidado do fogo, voava escada abaixo e ainda ia alcançar o marido no caminho. Daí a um quarto de hora, inclinada sobre outros recipientes, estaria regulando a chama dum bico de Bunsen, com o mesmo gesto cuidadoso. 

O segundo ano de matrimônio diferiu do primeiro só no estado de saúde de Mme. Curie, que a gravidez veio alterar. Maria desejara um filho, mas vexava-a sentir-se tão doente, que nem podia ficar de pé, junto do aparelho onde estudava então a magnetização do aço. 

Poderia supor-se que o estado de Maria servisse de aviso àqueles corações, aconselhando-os a passar um verão tranquilo. Nada disso. Com a inconsciência de dois loucos, foram de bicicleta para Brest, no oitavo mês da gravidez de Maria, cobrindo etapas tão longas quanto era seu costume. Mme. Curie declarava não sentir qualquer fadiga, e Pierre, por seu lado, já tinha o vago sentimento de que ela era um ser sobrenatural, refratário às leis naturais... 

Bem cedo, porém, a recém-casada se viu forçada, com grande humilhação, a interromper a viagem para regressar a Paris, onde deu à luz uma filha: Irene, um lindo bebê que mais tarde viria a receber o prêmio Nobel... 

A ideia de escolher entre os deveres de família e a carreira científica nem sequer passou pela cabeça de Maria: aceitou as duas responsabilidades. Dava banho à filhinha, punhas as panelas ao lume e continuava como dantes a trabalhar num laboratório onde tudo faltava — marchando tenazmente em direção ao mais importante descobrimento que se conhece na moderna ciência. 

A descoberta de rádio 

Pelos fins de 1897, o balancete da atividade de Maria mostrava dois diplomas universitários, uma bolsa de estudo e uma monografia sobre a magnetização do aço de têmpera. A etapa seguinte era o grau doutoral. Rebuscando materiais necessários ao seu plano de pesquisas para a tese de doutoramento, foi atraída por uma publicação recente do notável cientista francês Henri Becquerel. 

Becquerel tinha descoberto que os sais de urânio emitiam, espontaneamente, e sem serem expostos à luz, certas radiações de natureza desconhecida. Certo composto do urânio, colocado sobre uma chapa fotográfica envolta em papel preto, gravava uma impressão na chapa, através do papel. Era a primeira observação do fenômeno que Maria mais tarde batizou de radioatividade; mas a origem e a natureza da radiação permaneciam um enigma. 

A descoberta de Becquerel fascinou os esposos Curie. Perguntaram a si mesmos donde poderia vir a energia que os compostos de urânio constantemente liberavam, sob a forma de radiações. Aí estava um assunto de absorvente interesse para a investigação — um salto nos domínios do ignoto! 

Restava a questão de saber onde fazer as experiências e aí começavam os embaraços. Finalmente, graças ao diretor da Escola de Física, onde Pierre Curie lecionava, foi concedido a Maria o uso dum pequeno e úmido armazém do rés-do-chão, que escorria umidade, e onde se arrumavam as máquinas fora de uso. 

Num buraco desses a investigação científica não era fácil tarefa! E o clima do lugar, fatal para instrumentos de precisão tão sensíveis, não era muito melhor para a saúde de Maria. Mas isto pouco importava. Quando sentia frio, ela se vingava, registrando furiosamente as temperaturas no seu canhenho. 

Quanto mais Maria penetrava na intimidade dos raios de urânio, tanto mais eles lhe pareciam sem precedentes, essencialmente desconhecidos. Por fim, após laborioso exame de todos os corpos químicos então conhecidos, ela descobriu que os compostos de outro elemento, o tório, emitiam também radiações espontâneas, semelhantes às do urânio. Além disso, em cada caso a radioatividade se mostrava consideravelmente mais forte do que permitiam supor as quantidades de urânio, ou de tório, contidas nos corpos examinados. 

De onde viria essa radiação anormal? Só uma explicação parecia admissível: os minerais deviam conter, em pequena quantidade, uma substância muito mais poderosamente radioativa do que o urânio ou o tório. Mas que substância seria essa? No curso de suas experiências, Maria tinha examinado todos os elementos conhecidos da Química. E a cientista replicou a essa pergunta, com a audácia própria dos grandes espíritos: os minerais continham certamente uma substância radioativa que devia ser um elemento químico até então desconhecido. 

Um novo elemento! A hipótese era bem fascinante. Mas era preciso quebrar o incógnito da prodigiosa substância. A pesquisadora devia habilitar-se a dizer com toda a segurança: "Aqui está."

Pierre Curie, que seguia com apaixonado interesse o rápido progresso das experiências de sua mulher, abandonava agora as suas próprias pesquisas, para auxiliar nas dela. Dois cérebros e quatro mãos procuravam o elemento desconhecido, no úmido e lôbrego gabinete de trabalho e começava assim uma colaboração que iria durar oito anos, até que um acidente fatal lhe havia de por termo.

Pierre e Maria iniciaram pacientemente a sua prospecção, separando e medindo a radioatividade de todos os elementos na pechblenda, ou seja o minério de urânio. Mas, à medida que o campo da pesquisa se ia estreitando, as conclusões do casal Curie indicavam a existência de dois novos elementos, em vez de um só. Em julho de 1898 já lhes era possível anunciar a descoberta de uma dessas substâncias.

Maria chamou-lhe polônio, em homenagem à sua bem-amada Polônia.

Em dezembro de 1898 os Curie anunciavam a existência de um segundo elemento químico na pechblenda e davam-lhe o nome de rádio — cuja radioatividade acreditavam fosse de imensa utilidade.


O gênio - e um barracão


As propriedades especiais do rádio vinham transtornar as teorias fundamentais, em que os homens de ciência tinham acreditado durante séculos, e os físicos acolheram com reserva a descoberta. A atitude dos químicos foi ainda mais severa: por definição, um químico só acredita na existência duma nova substância quando a examina, quando a submete a reações com ácidos e determina seu peso atômico.

Ora ninguém vira nunca o radium. Ninguém conhecia seu peso atômico. Para provar a existência do polônio e do rádio, o casal Curie ia penar agora por mais quatro anos! Conheciam já o processo pelo qual esperavam isolar os dois novos metais, mas isso representava a laboração de grandes quantidades de material em bruto.

A pechblenda, em cujo seio o polônio e o rádio se ocultavam, era tratada nas minas de S. Joachimsthal, na Boêmia, para a extração dos sais de urânio empregados na fabricação de vidro. Era um minério dispendioso, mas, de acordo com os cálculos dos Curie, a extração do urânio deixaria intactos o polônio e o rádio. Nessas condições, por que não trabalhar com os resíduos industriais, que eram de tão pouco valor?

Conseguiram obter do governo austríaco uma tonelada desse refugo e começaram a trabalhar com ele num barracão abandonado, próximo do gabinete onde tinham feito as suas primeiras experiências. A Faculdade de Medicina noutro tempo fizera uso desse barracão como sala de dissecação, mas agora nem mesmo o considerava já bom para alojar cadáveres... Não tinha soalho e toda a sua mobília eram algumas mesas de cozinha, escalavradas, um quadro negro e uma velha fornalha de ferro fundido para cozinhar o refugo.

No estio, o barracão era quente e abafado como uma estufa; no inverno, a fornalha, mesmo quando aquecida ao rubro-branco, deixava zonas de frio pelos recantos... Contudo, uma vez que a instalação técnica não possuía chaminé para tiragem dos gases tóxicos, a maior parte do tratamento tinha de ser feita lá fora, no pátio.

"Assim mesmo (escrevia mais tarde Mme. Curie) foi nesse velho e arruinado barracão que passamos os melhores e mais felizes anos de nossa vida, inteiramente devotados ao trabalho. Eu levava muitas vezes o dia inteiro mexendo uma massa em ebulição, com uma barra de ferro quase do meu tamanho. Ao anoitecer, estava completamente arrasada de cansaço."

Em tais condições trabalhou o casal Curie desde 1898 até 1902. Nesse pátio, envergando uma bata branca toda empoeirada e manchada de ácidos, os cabelos desgrenhados pelo vento, envolta em fumos acres que lhe mordiam os olhos e a garganta, Maria era, só por si, uma verdadeira fábrica!

"Cheguei a tratar 20 quilos de refugo de cada vez (escreveu depois), o que tinha por efeito que o barracão se ia enchendo de grandes jarros de líquidos e precipitados. O esforço quase matava: carregar os receptores, transferir os líquidos e mexer, horas e horas de cada vez, a massa ebuliente numa bacia de fundição."

Os dias de trabalho fizeram-se meses e anos. Pierre e Maria não perdiam coragem. Às vezes, quando deixavam por momentos os seus aparelhos, para repousar, o que conversavam do seu rádio bem-amado já não era transcendente — era infantil.
— Que aspecto terá ele? — disse um dia Mme. Curie, com a febril curiosidade da criança a quem prometeram um brinquedo.
— Pierre, que forma achas tu que ele virá a tomar?...
— Não sei — respondeu docemente o sábio. — Mas gostaria que tivesse a de uma linda cor.

À medida que Maria, com uma paciência quase terrível, continuava a tratar quilo a quilo as toneladas de refugo da pechblenda recebida de S. Joachimsthal, nas velhas mesas do barracão iam-se acumulando produtos cada vez mais concentrados — mais e mais ricos de rádio. Ela estava já quase no fim; encontrava-se agora na fase de purificação de soluções fortemente radioativas. Mas a pobreza do seu equipamento de acaso, rudimentar, dificultava-lhe progressivamente o trabalho. Nesse barracão aberto a todos os ventos, a poeira de ferro e de carvão flutuava, misturando-se, para desespero de Maria, com os produtos purificados à custa de tantas penas. Seu coração se apertava, muitas vezes, em presença desses pequenos incidentes diários, que lhe roubavam tanto tempo e energia.

Pierre estava tão fatigado da interminável luta, que a teria abandonado, ao menos por algum tempo. Os obstáculos lhe pareciam insuperáveis. Não seria possível recomeçar mais tarde, em condições menos dificultosas?

Mas Pierre não contava com o caráter da esposa. Maria queria isolar o rádio e havia de isolá-lo mesmo. Dominou a fadiga e as dificuldades e até as lacunas do seu próprio saber, que lhe complicavam a tarefa. No fim de contas, ela era apenas uma cientista de poucos anos; e muitas vezes tropeçava com fenômenos ou métodos de cálculo, a respeito dos quais não sabia muito. Então, para compensar a sua ignorância, improvisava estudos às pressas.

Em 1902, quarenta e cinco meses após haverem os Curie anunciado a existência provável do rádio, Maria, por obra de uma obstinação sobre-humana, alcançou finalmente a vitória: conseguiu preparar um decigrama de rádio puro e determinar-lhe o peso atômico.

Os químicos não tiveram mais remédio senão inclinar-se ante os fatos: o rádio tinha, já, foros de existência oficial.

Vida bem dura

Desafortunadamente o casal Curie tinha outras lutas a travar, além das que travava com a Natureza no seu pobre laboratório. O salário de Pierre Curie na Escola de Física era de 500 francos por mês e, depois do nascimento da primeira filha, o ordenado duma nurse abriu grossas brechas no orçamento da família. Era urgente encontrar novas fontes de receita.

Em 1898 abria-se na Sorbonne uma vaga de Físico-química e Pierre decidiu candidatar-se a ela. Rendia 10.000 francos e representava menos horas de ensino. Mas a candidatura foi rejeitada. Pierre só viria a obter esse posto de professor em 1904, depois de vitoriado no mundo inteiro pelo seu mérito. Resignava-se por agora a aceitar um posto inferior na Sorbonne, cujas autoridades estavam mais que desejosas de lhe confiar cursos de importância secundária, para matar o tempo. Entretanto, Maria conseguiu um lugar de professora numa escola de meninas, perto de Versalhes.

O orçamento estava assim equilibrado, mas os Curie ficavam sobrecarregados com um tremendo excesso de trabalho, precisamente na altura em que as experiências com a radioatividade reclamavam todas as suas energias. Amigos de Pierre se esforçaram por colocar mais ao alcance dele aquela cátedra aparentemente inacessível. A entrada de Pierre para a Academia das Ciências reforçaria muito o seu prestígio e em 1902 insistiram com o sábio para que apresentasse a sua candidatura. Hesitou ele, primeiro, para mais tarde aceitar, mas sem entusiasmo. Parecia-lhe difícil andar de porta em porta, fazendo as visitas de praxe aos senhores acadêmicos. E dizer dos seus títulos, confessar a boa opinião que tinha de si mesmo, gabar o seu trabalho, eram coisas que pareciam exceder as suas forças. De maneira que fazia o elogio do seu concorrente, dizendo que M. Amagar era melhor qualificado do que ele mesmo, para dar entrada no Instituto e na Imortalidade... Os acadêmicos elegeram Amagar!

Pouco depois, Pierre recusava aceitar a Legião de Honra: parecia-lhe burlesco que um cientista, a quem se recusavam os meios de trabalhar, devesse receber, à guisa de encorajamento, uma cruzinha esmaltada e um fitilho de seda encarnada.

Os Curie continuaram a ensinar de boa vontade e sem despeito, dando ao trabalho o melhor dos seus esforços. Divididos entre o trabalho pessoal e o ganha-pão, esqueciam-se de dormir e de comer. Inconscientes da sua loucura, ambos abusavam de suas minguadas forças. Mais de uma vez Pierre foi forçado a recolher-se à cama, com ataques de insuportáveis dores nas pernas. Só a sua reserva de energias evitava que Maria caísse num estado de crise nervosa, mas a sua face pálida e emaciada causava apreensões aos amigos.

Desse modo cresceu e se desenvolveu a radioatividade, esgotando ao mesmo tempo, pouco a pouco, o casal de físicos que lhe tinha dado a vida.

Resolução de "pouca monta"

Rádio prodigioso! Purificado como um cloreto, revelou-se com aparência dum pó branco, bastante parecido com o sal de cozinha. Mas suas propriedades eram assombrosas. Sua radiação excedia todas as perspectivas, quanto à intensidade; provou ser dois milhões de vezes mais forte que a do urânio. Os raios atravessavam a matéria mais dura e opaca. Só uma grossa muralha de chumbo se mostrava capaz de deter o seu poder de penetração.

O derradeiro e mais emocionante milagre foi que o rádio podia tornar-se aliada da humanidade na luta contra o câncer. O rádio era útil — prodigiosamente útil — e a sua extração não tinha um interesse puramente experimental. A indústria do rádio estava a caminho da existência.

Desde que os efeitos terapêuticos do rádio se tinham divulgado, em vários países, sobretudo na Bélgica e nos Estados Unidos, vinham-se fazendo planos para exploração de minérios radioativos. Mas os engenheiros só poderiam produzir "o metal fabuloso", quando conhecessem o segredo das delicadas operações que isso implicava.

Todas estas coisas Pierre as explicava à mulher, certo domingo de manhã. Tinha acabado agora mesmo de ler uma carta de alguns técnicos norte-americanos, que pretendiam explorar o rádio na América, e lhe pediam informações.

— Temos dois caminhos à nossa escolha. — dizia Pierre Curie — Podemos descrever sem reserva os resultados da nossa investigação, incluindo os processos de purificação...

Aqui, Mme. Curie fez um gesto maquinal de aprovação e murmurou:
— Claro, claro.
— ... ou — prosseguiu Pierre Curie — podemos considerar-nos proprietários ou "inventores do rádio, requerer patente do nosso processo de tratamento da pechblenda e assegurar-nos uma percentagem sobre a fabricação do rádio em qualquer parte do mundo.

Maria refletiu durante alguns segundos. E depois disse:
— Não pode ser. Isso seria contrário ao espírito científico!

A fisionomia de Pierre Curie, sempre tão séria, iluminou-se. Para acalmar a própria consciência deteve-se no assunto, mencionando mesmo, com um breve riso, a única coisa a que lhe era cruel renunciar:
— Poderíamos talvez arranjar um belo laboratório...

O olhar de Maria Curie tornou-se fixo. Considerou intensamente essa ideia de lucro. E quase imediatamente a repeliu:
— Os físicos publicam sempre na íntegra os seus trabalhos de investigação. Se o nosso descobrimento tem um futuro comercial, é isso um puro acidente do qual não devemos tirar proveito. E o rádio vai ser de incalculável utilidade no tratamento de doenças!... É impossível (concluiu) procurar lucrar com isso.

Não precisava esforçar-se para convencer o marido. Bem sabia que ele falara em patentes só para tranquilizar os seus escrúpulos de consciência. As palavras que ela pronunciou, com tão firme segurança, exprimiam os sentimentos que lhes eram comuns, a sua infalível concepção do papel humanitário do cientista.

Pierre acrescentou, como que rematando um assunto de somenos importância:
— Vou então escrever a esses engenheiros americanos, dando-lhes a informação que pedem.

Um quarto de hora depois desta curta conversa matinal, os Curie pedalavam suas queridas bicicletas a caminho dos bosques. Tinham para sempre escolhido entre a fortuna e a pobreza. E regressaram à casa pelo anoitecer, exaustos e felizes, os braços carregados de folhas e flores silvestres...

O inimigo

Vinha agora o prelúdio da sinfonia, que em breve entraria no seu crescendo.

Em junho de 1903, a Royal Institution de Londres convidava oficialmente Pierre Curie para ali fazer conferências sobre o rádio. Um dilúvio de convites se seguiu, pois toda a Londres queria conhecer os progenitores do rádio.

Os Curie, embaraçados, aturaram aquilo alguns dias e depois regressaram ao seu barracão. Mas os anglo-saxões são fiéis às suas admirações. Em novembro de 1903 a Real Sociedade de Londres conferia a Pierre e Maria Curie uma de suas mais altas distinções: a medalha Davy.

Veio depois a homenagem da Suécia: a 10 de dezembro de 1903, a Academia das Ciências de Estocolmo anunciava que o prêmio Nobel de Física, para esse ano, seria concedido em partes iguais a Henri Becquerel e ao casal Curie, pelas suas descobertas no domínio da radioatividade.

Esse prêmio Nobel equivalia a 70.000 francos-ouro e aceitá-lo já não era "contrário ao espírito científico". Ocasião única para libertar Pierre das suas horas de ensino, para salvar-lhe a saúde! Quando o abençoado cheque lhes foi pago, foram presentes e empréstimos ao irmão de Pierre, às irmãs de Maria, contribuições para sociedades científicas e donativos a estudantes polacos, a um amigo de infância de Mme. Curie, etc...

Maria mandou também instalar um banheiro "moderno" no seu acanhado apartamento e por papel novo nas paredes dum quartinho inóspito. Mas pela cabeça nem lhe passou a ideia de comprar um chapéu novo, para comemorar o acontecimento! E continuou a dar lições, embora insistindo com Pierre para que deixasse a Escola de Física.

Quando a fama abriu sobre eles as suas asas, os telegramas se amontoaram na vasta mesa de trabalho, saíram nos jornais artigos aos milhares, os pedidos de autógrafos e fotografias foram às centenas, cartas de inventores e até poemas sobre o rádio... Um americano escreveu mesmo para saber se o autorizavam a dar a um cavalo de corrida o nome de "Marie".

Mas um permanente mal-entendido separava o casal Curie do público, que agora se voltava para eles em adoração. Tinham chegado ao momento que era talvez o mais patético de suas vidas: porque a missão dos Curie não se acabara e eles só pediam que os deixassem trabalhar.

Mas pouco se importava a fama com o futuro para o qual o casal Curie tendia com todas as suas forças. A fama se apodera dos grandes, pesa sobre eles, tenta deter-lhes o desenvolvimento.

A publicidade do prêmio Nobel levou milhões de pessoas a colocar a radioatividade, ainda então no estado embrionário, na categoria das vitórias definitivas, acabadas; e todos se esforçaram por se intrometer na intimidade do já lendário casal Curie. Esse frenesi de homenagens privou os Curie do único tesouro que eles desejavam preservar: silêncio e meditação.

Escrevia Mme. Curie na primavera de 1904: 
"(...) Sempre esta lufa-lufa. Todos nos impedem de trabalhar o mais que podem. Decidi agora fazer-me forte e não receber mais visitas — mas ainda assim me incomodam. A nossa existência ficou inteiramente desarranjada com as horas e a fama... A nossa vida de paz e trabalho está totalmente desorganizada." 
O que mais a fazia sofrer era o papel que o mundo queria que ela representasse; a sua natureza era tão exigente que, entre todas as atitudes exigidas pela fama, ela não podia escolher nenhuma: nem familiaridade, nem amizade maquinal, nem austeridade deliberada, nem modéstia espetaculosa... Não sabia como ser célebre. Uma irresistível timidez a congelava, assim que sentia os olhos da curiosidade assestarem-se nela.

Uma anedota, entre mil, caracteriza perfeita e admiravelmente a reação dos Curie às aclamações do público. O casal jantava uma noite no Eliseu com o presidente Loubet e sua esposa. No curso da soirée, a senhora do presidente perguntou a Mme. Curie:
— Gostaria que a a apresentasse ao rei da Grécia?
Inocente e delicadamente, Maria replicou, talvez com demasiada sinceridade:
— Não vejo que utilidade possa ter...
E logo, percebendo a estupefação de Mme. Loubet, ruborizou-se e disse com precipitação:
— Mas... decerto, decerto! Farei tudo que Madame entender! Exatamente como entender!

Como compensação para as devastações que a celebridade causara nas suas vidas, certas vantagens deveriam ter advindo aos Curie: uma cátedra na Sorbonne, o sonhado laboratório, os créditos e os colaboradores há tanto ambicionados. Mas todos esses prêmios legítimos do esforço, como sempre, haviam de chegar tarde.

Lado a lado

Ao atingir o termo da segunda gravidez, em 1904, Maria estava roçando pelo esgotamento. Foi preciso retirar-se da atividade. Interminável e penoso lhe foi esse feriado, Finalmente, a 6 de dezembro de 1904, nascia-lhe um bebê gorducho, com uma farta cabeleira preta, em caracóis. Outra filha: Eva.

Depressa Mme. Curie regressava à rotina da escola e do laboratório. Os Curie nunca eram vistos na sociedade. Mas nem sempre se podiam livrar dos banquetes de homenagem oficial a cientistas estrangeiros. Em tais ocasiões, Pierre envergava a sua casa luzidia e Maria punha o seu único vestido de soirée.

Esse vestido, que ela conservou muitos anos, para ser de tempos em tempos transformado pela modista, era de granadina preta. Qualquer mulher elegante o teria olhado com pena. Mas a discrição e a reserva, que eram a nota dominante do caráter de Mme. Curie, davam uma espécie de estilo a esse vestido. Quando ela enrolava o seu cabelo louro cendrado no alto da cabeça e timidamente suspendia um leve colar de filigrana de ouro em volta da garganta, era verdadeiramente requintada. Subitamente, o seu frágil corpo e sua face inspirada revelavam um penetrante encanto.
— É lástima! Um vestido de soirée fica-te à maravilha! — murmurou Pierre numa dessas ocasiões. — Mas aí está, não temos tempo para nada...

A 3 de julho de 1905, Pierre dava entrada na Academia, mas só por um fio não perdeu a eleição: vinte e dois membros votaram pelo seu opositor. Entretanto a Sorbonne havia criado para ele uma cadeira de Física - o lugar há tanto ambicionado. Mas ainda não havia laboratório em condições.

Mais oito anos de paciência iam ser precisos, antes que Marie pudesse instalar a radioatividade em quartéis dignos dela — instalações que Pierre, infelizmente, nunca chegaria a ver. A pungente ideia de que o companheiro tinha esperado em vão por esse belo laboratório — única ambição de sua vida inteira — nunca havia de abandoná-la, até ao fim da existência. 
"Madame Curie e eu estamos trabalhando (escrevia Pierre a 14 de abril de 1906) para dosear o rádio com precisão, pela quantidade de emanação que ele produz. Isso pode não parecer nada e, entretanto, aqui estamos nós a trabalhar há já alguns meses e só agora começamos a atingir resultados apreciáveis." 
Madame Curie e eu estamos trabalhando...

Essas palavras, escritas pelo físico ilustre, cinco dias antes de morrer, traduzem bem a essência e beleza duma união que nunca fraquejou. Cada passo à frente, no trabalho, cada vitória ou desapontamento pareciam ligar mais fortemente este marido e sua mulher. 

Entre esses dois iguais, que mutuamente se admiravam com paixão, sem nunca se invejarem, reinava uma camaradagem de trabalhadores, requintada e leve, que era talvez a mais delicada expressão de seu profundo amor. 

Na solidão 

Deviam ser umas duas e meia da tarde, na quinta-feira, 19 de abril de 1906 — dia chuvoso e abafado — quando, na Faculdade de Ciências, Pierre se despediu dos colegas com quem estivera almoçando e meteu à chuva que desabava sobre Paris. Ao tentar atravessar a rua Dauphine, distraidamente, o professor surgiu por trás duma carruagem, em frente dum pesado carro cujo cavalo ia a galope. Apanhado de surpresa, Pierre Curie quis ainda agarrar-se aos peitos do cavalo, que se empinou. Os calcanhares do físico escorregaram no pavimento úmido. O carroceiro ainda puxou as rédeas, mas em vão: o enorme carro, arrastado para diante pelo seu próprio peso de seis toneladas, rodou ainda alguns metros. A roda traseira da esquerda topou um débil obstáculo e esmagou-o ao passar... Os agentes ergueram da calçada um corpo quente mas inanimado: a vida de Pierre Curie apagara-se num abrir e fechar de olhos. 

Seis horas da tarde... Batem na porta da casa e Mme. Curie vai abrir, alegre e cheia de vida; mas logo, na atitude diferente e compungida dos visitantes, ela vê o sinal da condolência. O relato do trágico evento deixa-a paralisada, muda de espanto. Ao cabo dum silêncio pesado e longo, seus lábios descerram-se por fim, para dizer: 
— Pierre está morto? morto? irremediavelmente morto?... 

Desde o instante em que essas três palavras — Pierre está morto — lhe atingiram os centros de consciência, ela se tornou uma mulher digna de dó, incuravelmente solitária. 

Em poucas e lacônicas palavras rogou que o corpo de Pierre lhe fosse trazido para casa. Pediu a amigos que levassem Irene, a filha mais velha. Despachou um breve telegrama a seu pai, em Varsóvia. Depois, foi sentar-se lá fora, no jardinzinho solitário e molhado de chuva, com a fronte entre as mãos, o olhar fixo e vazio. Muda, inerte e surda, ali ficou esperando o companheiro de sua vida. 

Lenta, penosamente, a maca foi dando entrada pela estreita porta. O cadáver foi depositado num quarto do rés-do-chão e Maria Curie ficou a sós com o que fora seu marido. Beijou-lhe a face, prendeu-se àquele corpo flexível, ainda morno. Foi preciso levá-la à força para outra sala, para que ali não estivesse enquanto vestiam o morto. Obedeceu, meio inconsciente; mas, súbito, como tomada pela ideia de que se deixara roubar daqueles últimos momentos de companhia, voltou correndo e não mais largou o cadáver. 

Depois do funeral, o governo francês resolveu oficialmente conceder à viúva e órfãos do grande Pierre Curie uma pensão nacional. Mme. Curie recusou terminantemente: "Não quero uma pensão", disse ela, fazendo sentir o primeiro eco da sua habitual bravura de ânimo. "Sou nova o bastante para ganhar meu pão e o de minhas filhas." 

A 13 de maio de 1906, o conselho da Faculdade de Ciências decidiu por unanimidade confiar a cátedra de Pierre Curie, na Sorbonne, à sua viúva. Era a primeira vez que uma mulher recebia uma cátedra na esfera do ensino superior na França. 

Maria escutou distraidamente, quase com indiferença, os conselhos que o sogro lhe dava sobre a pesada missão, que ela se devia a si própria aceitar. Respondeu-lhe em poucas sílabas: "Vou tentar."

No dia da sua primeira conferência na Sorbonne, a multidão encheu as bancadas do pequeno anfiteatro, transbordando pelos corredores e na praça, lá fora. Toda a gente de pescoço estirado, para não perder vista da entrada de Mme. Curie. Quais seriam as suas primeiras palavras? Seriam de agradecimento ao ministro, à universidade? Falaria de Pierre Curie? Sim, não havia dúvida: o costume era começar pelo elogio do predecessor... 

Uma e meia... A porta do fundo abriu-se e Maria Curie marchou para a cátedra sob uma trovoada de aplausos. Inclinou a cabeça. Era em verdade um breve e seco gesto de saudação. De pé, esperou que a ovação cessasse. E ela cessou de repente. 

A viúva de Pierre Curie olhou bem direito em frente e começou: 
"Quando consideramos o progresso realizado na Física, nestes últimos dez anos, ficamos surpreendidos com o avanço que teve lugar em nossas ideias relativamente a eletricidade e a matéria..." 

Mme. Curie retomava o curso precisamente na mesma frase que o interrompera Pierre Curie, seu marido! As lágrimas borbulharam de muitos olhos e correram em muitas faces dos alunos presentes.

Tendo chegado, sem fraquejar, ao termo da sua árida exposição, Maria retirou-se pela pequena porta, tão depressa quanto tinha entrado. 

Triunfos e provações 

A fama pessoal de Mme. Curie começava agora a subir e a se espalhar como um foguetão de lágrimas. Os diplomas e títulos honoríficos das academias estrangeiras choviam-lhe às dúzias. E embora a Academia das Ciências recusasse honrá-la com uma cadeira — perdeu a eleição por um voto apenas! — a Suécia conferiu-lhe o prêmio Nobel da Química, para 1911. Nenhum homem ou mulher foi jamais considerado digno de receber duas vezes semelhante recompensa. 

A Sorbonne e o Instituto Pasteur juntaram esforços para fundar o Instituto do Rádio, constituído por duas seções: um laboratório de radioatividade, dirigido por Mme. Curie, e um laboratório de pesquisa biológica para o estudo do tratamento do câncer, confiado a um médico eminente. Contra o conselho da família, Maria fez ao laboratório o donativo de um grama de rádio, no valor de mais de 1 milhão de francos-ouro, que ela e Pierre tinham preparado por suas próprias mãos. Até ao fim da vida, esse laboratório se manteve como fulcro da sua existência. 

Declarada a guerra, em 1914, Mme. Curie pôs-se de alma e coração ao serviço da pátria adotiva. Descobrindo que os hospitais não dispunham de material de raios X adequado, por meio do qual se localizassem as balas e estilhaços de granada no corpo dos feridos, reconheceu imediatamente a sua missão: era preciso criar sem demora um grande número de estações radiológicas. Empreendeu uma peregrinação junto aos fabricantes e dos laboratórios universitários, para recolher todos os aparelhos de raios X que fosse possível utilizar e depois distribuiu-os pelos hospitais das imediações de Paris. Entre professores, engenheiros e homens de ciência, foram recrutados os operadores voluntários. 

Para serviço de ambulância junto ao front, Mme. Curie criou, com fundos ministrados pela União Feminina da França, o primeiro "carro radiológico": um automóvel em que instalou um aparelho Roentgen e um dínamo acionado pelo motor do próprio veículo. Esse posto móvel, completo, circulou de hospital em hospital, desde agosto de 1914 em diante. Foi o único de que se dispunha durante a memorável batalha do Marne. 

Mais tarde, um a um, outros carros deste tipo foram sendo aparelhados por Maria Curie. Deram-lhes por isso a alcunha de "pequenos Curie". Essa mulher de gênio e ação ralhava com os funcionários vagarosos, exigia passes e requisições, não tinha sossego enquanto não via os carros a serviço. Ela própria trabalhou muitas vezes com um deles, no front. Instalou, além disso, vinte gabinetes de radiologia. O número total dos feridos examinados por esses 220 postos, fixos e móveis, passou do milhão. 

Insensível ao desconforto, Mme. Curie nunca reclamou qualquer consideração especial no curso desse trabalho. Não se queixava de fadiga nem do cruel efeito dos raios X sobre a sua saúde, nem do risco de cair sob o fogo do inimigo. Não recebeu sequer uma citação pelos seus serviços excepcionais durante a guerra; mas tinha consciência de haver servido a França. 

A América 

Em 1920 as mulheres da América reuniram 100.000 dólares para a compra de 1 grama de rádio, que ia ser oferecido a Mme. Curie. Em troca, rogaram a esta que lhes fizesse uma visita.

Ela hesitou primeiro. Mas, tocada pela magnânima generosidade, dominou seus receios e, aos 54 anos, aceitou pela primeira vez as pesadas obrigações duma grande jornada oficial. 

Uma multidão monstro a esperou a pé firme, no cais de desembarque, durante cinco horas. Desde o momento da chegada tornou-se evidente quanto a tímida Mme. Curie significava para a América. Antes mesmo de conhecê-la, os americanos já a envolviam numa devoção quase religiosa; agora o seu preito seria ilimitado. 

Não pretendo definir aqui a alma dum povo; mas a onda de irreprimível entusiasmo com que os Estados Unidos saudaram a vinda de Mme. Curie não deixava de ter uma profunda significação. Os latinos concedem que os americanos têm gênio prático, mas por ato de singular vaidade se reservam o monopólio do idealismo. E, no entanto, foi uma onda de idealismo que veio rebentar aos pés de Mme. Curie. Uma sábia que fosse segura de si, altaneira, enriquecida pelas suas descobertas, teria talvez provocado curiosidade; mas não teria podido desencadear essa ternura coletiva... Para cima e para além da alarmada cientista, os americanos aclamavam uma atitude perante a vida, que profundamente os comovia: o desprezo do lucro, a paixão intelectual, o desejo de bem-servir. 

Todas as universidades da América do Norte tinham convidado a Sra. Curie a visitá-las. Esperavam-na medalhas, graus e títulos honoríficos às dúzias... Mas ela ficou aturdida com o ruído e as aclamações. O olhar fixo de milhares de pessoas a apavorava, assim como a veemência com que todos se queriam aproximar para vê-la de perto. Sentia-se vagamente assustada, à ideia de ficar esmagada numa dessas terríveis voragens... A certa altura sentiu-se demasiado fraca para continuar a viagem e, a conselho dos seus médicos assistentes, julgou oportuno regressar à França. 

Ao mesmo tempo que fatigada, sentia-se contente. A mais teimosa das modéstias não lhe podia ocultar o fato de que o seu êxito pessoal nos Estados Unidos tinha sido tremendo e que ela tinha conquistado o coração de milhões de norte-americanos. 

Creio que a viagem à América ensinou à minha mãe que o seu isolamento voluntário era paradoxal. Como investigadora, ela podia isolar-se do mundo e do século, para se consagrar por completo ao seu trabalho pessoal. Mas Mme. Curie, aos 55 anos, era alguma coisa mais do que uma simples investigadora de gênio: o prestígio do seu nome era tal que só pelo ato de presença ela podia assegurar o triunfo de qualquer projeto que lhe fosse caro ao coração. Desde esse momento ela iria, pois, reservar lugar para essas missões na sua existência. 

As viagens sucederam-se, todas parecidas. Congressos científicos, conferências, cerimônias universitárias e visitas a laboratórios, levaram Mme. Curie a grande número de capitais. Por toda a parte aclamada e festejada. Procurou tornar-se útil. Era forçada com frequência a lutar contra uma saúde vacilante. 

Varsóvia construíra por subscrição popular um instituto de rádio — o Instituto Maria Sklodovska Curie — e as mulheres da América mais uma vez fizeram o milagre de reunir fundos para a compra de um grama de rádio para esse Instituto — o segundo grama de rádio que a América do Norte oferecia a Mãe. Curie! Os acontecimentos de 1921 se repetiram: em outubro de 1929 Mme. Curie embarcava novamente para os Estados Unidos. Foi hóspede do presidente Hoover, que a reteve alguns dias na Casa Branca. 

Nada, porém, se tinha alterado nela: nem o medo físico às grandes multidões, nem a sua incurável inaptidão para a vaidade. A despeito dos esforços mais honestos, não conseguiu jamais acostumar-se à celebridade. Era sempre o laboratório — e seus jovens cientistas — que tinham o primeiro lugar no coração de Maria Curie. "Não sei se seria capaz de viver sem o meu laboratório", escreveu ela um dia. 

Para compreender essa confissão, seria preciso tê-la visto presa ao seu aparelho. Mas, para imprimir às suas feições uma sublime expressão de êxtase e absorção, não era precisa nenhuma experiência de excepcional valor: uma operação complicada de modelação em vidro (os trabalhadores de laboratório são geralmente forçados a soprar e modelar os seus próprios instrumentos de vidro), coisa em que ela era artista, ou uma medição rigorosamente feita, bastavam para enchê-la duma imensa alegria. Falhando uma experiência, parecia fulminada por um desastre. Sentada, com os braços cruzados, as costas abauladas, o olhar vazio, fazia pensar nalguma velha camponesa, emudecida e acabrunhada por um golpe do destino. 

O fim da missão 

Até ao fim da vida, Mme. Curie continuou trabalhando com intensidade singular e a singular imprudência que sempre a caracterizara. Recusara sempre tomar as precauções que tão severamente impunha a seus discípulos: manipular com pinças os tubos de substâncias radioativas, nunca tocar em tubos desprotegidos, empregar "escudetes" de chumbo como anteparo das perigosas radiações. Dificilmente se deixava submeter aos testes de sangue, que eram de regra no Instituto do Rádio. Seu conteúdo sanguíneo era anormal. E depois?...

Mme. Curie tinha manipulado e respirado as emanações do rádio durante 35 anos. Durante os quatro anos da guerra estivera exposta às radiações, ainda mais perigosas, do aparelho Roentgen. Uma ligeira deterioração do sangue, queimaduras dolorosas e incômodas nas mãos, não eram, afinal de contas, punição demasiado severa, dado o número de riscos que ela tinha corrido. 

Maria ligou pouca atenção à febrezinha que começava a importuná-la. Mas em maio de 1934 um ataque de gripe levou-a à cama, de onde não mais se levantaria. Quando, por fim, aquele robusto coração deixou de pulsar, a ciência pronunciou o veredito que a condenara. Os sintomas anormais, os estranhos testes de sangue, sem precedentes, tudo acusava o verdadeiro culpado: o rádio! 

No dia 4 de julho de 1934, uma sexta-feira, sem que estivesse presente um político ou um representante oficial, Mme. Curie foi tomar modestamente o seu lugar entre os mortos. Foi sepultada ao lado de Pierre Curie, no cemitério de Sceaux, na presença, tão só, de parentes, de amigos e dos seus cooperadores que tanto a amaram.


Fonte: READER'S DIGEST. Seleção de Livros, Editora: Reader's Digest, 1951, 207 p. 


AGRADECIMENTO

A Rute Pardini Braga pela foto que tirou e editou para os fins desta matéria.