sábado, 29 de janeiro de 2022

O CORVO (2012), THRILLER SOBRE OS DIAS FINAIS DE EDGAR ALLAN POE


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
Construção fictícia dos últimos 5 dias de vida de Edgar Allan Poe - Crédito pela imagem: Blog Irreparável

"Il y a, dans l' histoire littéraire, des destinées analogues de vraies damnations, des hommes qui portent le mot guignon écrit en caractères mystérieux dans les plis sinueux de leur front. L' Ange aveugle de l' expiation s' est emparé d' eux et les fouette à tour de bras pour l' édification des autres. [...] Lamentable tragédie que la vie d'Edgar Poe! Sa mort, dénouement horrible dont l'horreur est accrue par la trivialité! De tous les documents que j'ai lus est résultée pour moi la conviction que les États-Unis ne furent pour Poe qu'une vaste prison qu'il parcourait avec l'agitation fiévreuse d'un être pour respirer dans un monde plus aromal, qu'une grande barbarie éclairée au gaz, et que sa vie intérieure, spirituelle, de poëte ou même d'ivrogne, n'était qu'un effort perpétuel pour échapper à l'influence de cette atmosphère antipathique. Impitoyable dictature que cela de l'opinion dans les sociétés démocratiques; n'implorez d'elle ni charité, ni indulgence, ni élasticité quelconque dans l'application de ses lois aux cas multiples et complexes de la vie morale. [...]" In BAUDELAIRE: Edgar Allan Poe, sa vie et ses oeuvres, chap. 1, paru pour la première fois dans les fascicules de la Revue de Paris, mars/avril 1852, puis repris comme introduction aux Histoires Extraordinaires (1856).
Trad.: "Há, na história da literatura, destinos análogos de condenações reais homens que carregam a palavra azar escrita em caracteres misteriosos nas pregas sinuosas de sua testa. O Anjo cego da expiação exerce possessão sobre eles e os açoita com todas as suas forças para a edificação dos outros. [...] Que tragédia lamentável a vida de Edgar Poe! Sua morte teve um desfecho horrível cujo horror foi acrescido da trivialidade! De todos os documentos que li resultou a convicção de que os Estados Unidos foram para Poe apenas uma vasta prisão que ele percorria com a agitação febril de um ser criado para respirar num mundo mais puro do que uma grande barbárie acesa com gás e que sua vida interior, espiritual de poeta, ou até de boêmio, foi apenas um esforço perpétuo de escapar à influência desta antipática atmosfera. Não há uma ditadura mais impiedosa do que a da Opinião Pública nas sociedades democráticas; não lhe peçam caridade, nem indulgência, nem qualquer elasticidade na aplicação de suas leis aos casos múltiplos e complexos da vida moral. [...]" In BAUDELAIRE: Edgar Allan Poe, sua vida e suas obras, cap. 1, aparecido pela primeira vez nos fascículos da Revue de Paris, mar/abr 1852, depois retomado como introdução às Histórias Extraordinárias (1856).
 
 
I. INTRODUÇÃO 

 

Edgar Allan Poe (Boston, 19/01/1809 Baltimore, 07/10/1849) tem aparecido na cultura popular (definida sociologicamente como tudo aquilo que se refere a produtos tais como música, arte, literatura, moda, dança, filme, cibercultura, televisão e rádio que são consumidos pela maioria da população) como personagem de livros, quadrinhos, filmes e outras mídias. Além de suas obras, a lenda do próprio Poe fascina as pessoas há gerações. 
Frequentemente, o Edgar Allan Poe histórico aparece como um personagem fictício, muitas vezes representando o "gênio louco" ou "artista atormentado" e explorando suas lutas pessoais. 
 
Gênio louco ou artista atormentado? - Crédito pela imagem: Blog Irreparável

 
Muitas dessas representações também se misturam com personagens de seus contos, sugerindo que Poe e seus personagens compartilham identidades. Por essa razão, muitos críticos de Poe questionam até que ponto o autor influenciou seus personagens nos contos e vice-versa. Ainda ressoa em nossos ouvidos a frase lapidar sempre atual do seu discípulo Baudelaire, autor de Fleurs du Mal:
"Tous les contes d'Edgar Poe sont pour ainsi dire biographiques [...]."
Observa-se também que, em romances tais como The Poe Shadow, de Matthew Pearl, representações fictícias de Poe usam suas habilidades de resolução de mistérios em romances e que também foram exploradas no filme que estamos tratando aqui. 
 
O fantástico e o gótico na obra de Poe 
 
Embora seja tema de difícil exatidão na sua conceituação e abordagem, a narrativa fantástica possui alguns traços característicos de fácil discernimento encontrados nos contos de Poe, tais como: o narrador em primeira pessoa aspecto que causa pavor e estranhamento em grande parte dos leitores e a morte como principal embasamento das narrativas. Esses elementos trazem à luz outra ramificação da narrativa fantástica: o gótico. 
De fato, outro aspecto importante a ser destacado na literatura de Poe é que ela evolui de acordo com a concepção do autor daquilo que seria considerado como o "gótico" norte-americano. O Novo Mundo norte-americano não possuía os cenários medievais (castelos, catedrais em ruínas, cemitérios, florestas, ruínas), os personagens melodramáticos (donzelas, cavaleiros, vilões, aristocratas malvados e seus criados), os temas e símbolos recorrentes (segredos do passado, manuscritos escondidos, profecias, maldições), nem os códigos de cavalaria que dominavam as convenções góticas europeias elementos fantásticos e góticos já presentes no romance O Castelo de Otranto (1764) do inglês Horace Walpole, um erudito, diletante e amante da era medieval, introdutor do gênero em terras europeias. Dos acontecimentos de inspiração sobrenatural desta obra derivará a tradição gótica inglesa. Com os romances de Anne Ward Radcliffe (1764-1823) podemos considerar que foi atingido o zênite de uma produção gótica "canonizada" na literatura inglesa. 
A literatura gótica inglesa se apresenta na forma de romances e constitui uma manifestação literária ocorrida especificamente na Inglaterra e compreendida dentro de uma baliza temporal (1764-1820), ainda que alguns dos seus elementos reapareçam nos séculos posteriores. Conforme bem descreveu [BELLIN, 2011, 42]
"Ao mesmo tempo em que ajudou a lapidar uma tradição literária independente dos padrões ingleses, Poe mantinha-se preso a certos padrões literários europeus, em especial à vertente gótica do Romantismo inglês e à obra da escritora Ann Radcliffe."
É bem verdade que, no contexto norte-americano, os autores já tinham explorado uma geografia e história diferentes nos moldes de florestas não mapeadas localizadas na zona temperada do Norte e do passado puritano com seus preconceitos religiosos, conforme os vistos no julgamento das bruxas de Salem no século XVII, mas Poe concluiu que elas não tinham o significado nem os efeitos de terror capazes de impressionar o seu público leitor, por se mostrarem inapropriadas ao Novo Mundo. Os seus contos "Berenice" (1835) e "Ligeia" (1838) ainda foram estruturados nas convenções europeias da Literatura Gótica, mas logo percebeu que precisava aplicar na prosa os preceitos teóricos de sua poesia, inspirados no seu famoso ensaio A Filosofia da Composição (1846). 
Para isso, Poe reconheceu o impacto emocional do medo, como emoção fundamental do homem, cabendo-lhe buscar no sobrenatural seu material literário e, especialmente na mente humana, um local pouco visitado pelos escritores de histórias góticas. Com amparo na ciência gótica contemporânea, ele fez uso da criptografia, da frenologia, do mesmerismo, da telepatia, de processos mentais e estados alterados de consciência (termo só cunhado em 1966 por Arnold M. Ludwig) e de outras tentativas válidas de se entender o ser humano, a que damos o nome de subconsciente. Assim sendo, Poe acabou por desnudar uma região entre o sono e o despertar, entre a vida e a morte, onde entendia que os sentidos humanos estariam mais alertas e as emoções poderiam ser manifestadas sem inibições. 
 
 
II. O FILME "THE RAVEN" (O Corvo) 
 
Direção: James McTeigue
Produção: Marc D. Evans, Trevor Macy e Aaron Ryder
Roteiro: Ben Livingston e Hannah Shakespeare
Elenco principal
John Cusack (Edgar Allan Poe) 
Luke Evans (Detetive Emmett Fields) 
Alice Eve (Emily Hamilton, namorada de Poe) 
Brendan Gleeson (Capitão Charles Hamilton, pai de Emily) 
Kevin McNally (Henry Maddox ou Maddux, editor de Poe) 
Sam Hazeldine (Ivan Reynolds, tipógrafo do jornal, obcecado por Edgar Allan Poe e usou seus contos como inspiração para uma série de assassinatos a Baltimore) 
Sinopse: Em seus últimos dias de vida, o poeta Edgar Allan Poe persegue um serial killer que se inspira em suas obras para cometer assassinatos. O filme dramatiza os últimos dias de vida do escritor Edgar Allan Poe, que teria morrido de causas misteriosas em 1849. O título refere-se ao famoso poema de Poe (1845), mas não tem relação com produções cinematográficas anteriores com o mesmo nome, de 1935 e 1963 ¹.

Inicialmente, lembro que o poema "O Corvo" de Allan Poe apareceu no Evening Mirror na edição de 29/01/1845 e se tornou um enorme frisson no público. Isso fez de Poe um nome familiar quase instantaneamente, embora ele tenha recebido apenas US$ 9 por sua publicação. Foi publicado simultaneamente em The American Review: A Whig Journal sob o pseudônimo de "Quarles". 

À guisa de intróito, devo informar que, embora o filme tenha recebido por título "O Corvo", na realidade trata-se de uma ficção baseada principalmente em um dos mais célebres contos de Poe, "Os Assassinatos da Rua Morgue", e não propriamente no seu poema "O Corvo". 

Agora, vejamos alguns elementos acerca do filme. "O Corvo" é um filme hispano-magiar-norte-americano de 2012, dos gêneros terror e suspense, dirigido pelo australiano James McTeigue, com roteiro de Ben Livingston e Hannah Shakespeare. 

O filme recebeu apreciações mistas da crítica, com elogios para os efeitos visuais e a trilha sonora de Lucas Vidal, mas as performances e reviravoltas no enredo foram severamente criticadas.

Enredo 

Baltimore, Estado de Maryland, outubro de 1849. Edgar Allan Poe está passando por uma fase de bloqueio criativo que o impede de escrever novos contos e agradar aos leitores do jornal local. O filme começa com uma cena de bebedeira de Poe, em que fica evidente que vive entregue ao alcoolismo, escandalizando a sociedade local, após o que seguem vários crimes violentos. 
A polícia de Baltimore descobre, estendida no chão de seu apartamento trancado por dentro, uma mulher estrangulada. Enquanto procuram meios de fuga do assassino, eles descobrem um segundo cadáver na chaminé, mais tarde identificado como a filha de 12 anos da primeira vítima. 
O detetive Emmett Fields é chamado para auxiliar na investigação e descobre que o crime se assemelha a um assassinato fictício em um conto de Poe, "Os Assassinatos da Rua Morgue", que ele leu certa vez. Devido a isso e à sua atual vida entregue ao alcoolismo, Poe é levado a Fields para interrogatório, pois este se torna imediatamente suspeito do duplo homicídio. 
Enquanto Fields confronta Poe, outros crimes e assassinatos inspirados nas histórias do escritor continuam a acontecer, e a polícia percebe que enfrenta um sanguinário serial killer. O detetive Fields começa a perceber que o escritor lhe será útil para a elucidação dos crimes, depois de encontrar o corpo de Griswold, um rival de Poe, cortado ao meio por um pêndulo (como no conto "O poço e o pêndulo" de Poe), o que deu início a um trabalho conjunto da dupla recém-formada. 
A seguir, a amada de Edgar, Emily Hamilton, é sequestrada no baile de máscaras promovido por seu pai, como o descrito em "A Máscara da Morte Rubra" de Poe ². Estranhamente, o assassino provoca Poe em uma nota, exigindo que este escreva e publique um novo conto. Os alojamentos de Poe são incendiados por pessoas que acreditam que ele esteja explorando os assassinatos para seus próprios fins jornalísticos, e ele é forçado a morar com o detetive Fields. 
Uma pista do assassino, reportando-se ao conto "O Barril de Amontillado", leva Poe e Fields a vasculhar os túneis sob a cidade com vários policiais, descobrindo o cadáver emparedado de um homem vestido como Emily. Tal homem estava determinado a ser um marinheiro, e as pistas em seu corpo levam os perseguidores à Igreja de Santa Cruz, onde um túmulo vazio com o nome de Emily foi preparado. 
Enquanto a polícia tenta arrombar as portas da igreja, o assassino ataca e mata um dos policiais, depois atira e fere Fields. Poe o persegue a cavalo, mas o assassino escapa. 
Poe escreve uma última coluna de jornal, oferecendo sua vida pela de Emily, sugerindo que ele poderia tomar veneno. 
De manhã, a empregada entrega a Poe uma carta do assassino, aceitando seus termos, mas a nota foi entregue muito antes de o jornal ser distribuído. Percebendo que o assassino deve trabalhar no jornal, Poe corre para confrontar seu editor, Henry, mas este já está morto, com outra nota a seu lado. O verdadeiro assassino é o tipógrafo do jornal, Ivan Reynolds, que parabeniza Poe e lhe oferece uma bebida. Ivan tenta conversar com Poe, mas este exige a localização de Emily. Reynolds derrama no cálice um frasco de veneno, prometendo terminar a história como Poe a havia escrito. Poe concorda e bebe o líquido. Reynolds cita "The Tell-Tale Heart" ³, sugerindo ao autor que Emily está escondida sob o piso da tipografia. 
Quando o assassino sai, Poe usa suas últimas forças para rasgar uma parte falsa do chão e abrir um alçapão que leva à prisão de Emily. Poe resgata Emily, e eles compartilham um momento comovente antes de ser levada pela ambulância. 
 
Num banco do parque, Poe aguarda a morte. Em seu delírio, repete: "Diga a Fields que seu sobrenome é Reynolds".
 
Delirando com o veneno, Poe vai até um banco do parque para morrer. Um homem caminhando no parque o reconhece como o famoso escritor e pergunta se ele está bem. Poe só consegue reunir forças suficientes para dizer: "Diga a Fields que seu sobrenome é Reynolds". Mais tarde, quando Fields vem ver o cadáver de Poe no hospital, o médico assistente não consegue dizer a causa exata da morte, mas menciona que o escritor era incoerente, insistindo que "seu sobrenome é Reynolds". Fields pondera sobre o significado da frase, lentamente conectando os pontos. 
Os Hamiltons assistem ao enterro de Poe. 
Ivan Reynolds desembarca de um trem em Paris. Enquanto um carregador carrega sua bagagem, Reynolds sobe em uma carruagem e é confrontado por Fields. Ele ataca o detetive, e Fields atira nele à queima-roupa. 

 

III. NOTAS EXPLICATIVAS

 

¹  O filme de terror americano de 1935 com o mesmo título foi dirigido por Louis Friedlander e estrelado por Boris Karloff e Béla Lugosi. O filme de 1935 é estrelado Lugosi como um cirurgião louco obcecado por Poe com uma câmara de tortura em seu porão e Karloff como um assassino fugitivo da polícia.

O filme estadunidense de 1963 com o mesmo título pertence ao gênero comédia de terror, produzido e dirigido por Roger Corman. É parte da série de adaptações do diretor inspiradas na obra de Edgar Allan Poe para a American International Pictures. Esse filme teve roteiro de Richard Matheson com base no poema "The Raven".
Do elenco constam
Vincent Price (Dr. Erasmus Craven)
Hazel Court (Lenore Craven)
Olive Sturgess (Estelle Craven)
Peter Lorre (Dr. Adolphus Bedlo)
Boris Karloff (Dr. Scarabus)
Jack Nicholson (Rexford Bedlo)

Sinopse: O poderoso feiticeiro Dr. Erasmus Craven vive recluso em seu castelo, de luto pela morte de sua esposa Lenore há dois anos, para tristeza da filha dele, Estelle. Numa noite, entra pela janela um corvo que se revela como o feiticeiro Dr. Bedlo, transformado na ave após um duelo de magia com o maligno Dr. Scarabus. Craven o ajuda a voltar ao normal e Bedlo quer retornar ao castelo de Scarabus para a revanche. O doutor Craven o acompanha, pois Bedlo lhe contara que vira o fantasma de Lenore no local. Acompanham a dupla de feiticeiros Estelle e Rexford, filho de Bedlo. No castelo de Scarabus ocorre o novo duelo de magia entre o proprietário do castelo com Bedlo e depois, a luta final com Craven. 

²  Lá fora, a peste; aqui dentro, a loucura.  
Em certa medida, essa formulação resume A máscara da morte rubra, conto de Edgar Allan Poe publicado pela primeira vez em maio de 1842, cujo enredo aborda o desvario diante de uma epidemia. De acordo com biógrafos, Poe inspirou-se no relato de um conterrâneo, o também escritor Nathaniel Parker Willis, que teria participado de um “baile de cólera” em Paris. 
Com efeito, o contexto do conto é o surto de cólera que atacou a Europa — mais especificamente a França — na primeira metade do século 19. Na história de Poe, enquanto a chamada “morte rubra” devasta a região, o destemido príncipe Próspero decide reunir e trancar, em uma abadia fortificada, mil amigos escolhidos entre os cavaleiros e as damas de sua corte. Após alguns meses de confinamento, quando a pestilência atinge o ápice do lado de fora da abadia, o príncipe acha por bem oferecer um baile de máscaras “da magnificência mais extraordinária”. A história se detém nessa festa, que, em certo momento, receberá um assustador intruso. 
Cabe aqui verificar como o relato de Poe cristaliza um comportamento humano recorrente diante das catástrofes de enormes proporções: o desregramento e a loucura. Quem revela essa recorrência é o historiador francês Jean Delumeau (1923 - 2020), autor de História do medo no Ocidente, monumental ensaio publicado originalmente em 1978. O estudo de Delumeau abrange o período que vai dos séculos 14 ao 18, e investiga os pesadelos — tanto íntimos quanto coletivos — que assolaram a civilização ocidental ao longo desse tempo, muitos dos quais persistem até hoje. 
No capítulo dedicado às pestes, o historiador lembra que, frente ao avanço das epidemias que aniquilaram boa parte da população europeia, eram 
“frequentes [...] as bebedeiras e os desregramentos inspirados pelo desejo frenético de aproveitar os últimos momentos de vida. Era o carpe diem vivido com uma intensidade exacerbada pela iminência quase certa de um horrível trespasse”.
A propósito, a descrição de Delumeau sobre os efeitos das pestes nas cidades medievais assombra pela forma como reverbera em tempos de Covid-19
Evita-se abrir as janelas da casa e descer à rua. As pessoas esforçam-se em resistir, fechadas em casa, com reservas que se pôde acumular. Se assim mesmo é preciso sair para comprar o indispensável, impõem-se precauções. Fregueses e vendedores de artigos de primeira necessidade só se cumprimentam à distância e colocam entre si o espaço de um largo balcão
Cenografia do horror 
 
De certa forma, isso é o que fazem Próspero e seus mil amigos “sãos e despreocupados”: exilam-se do mundo, confinados na fortaleza do príncipe. Mas logo se mostram desvairados. Afinal, todas as providências foram tomadas para que eles se divirtam ao máximo possível. 
Dentro da abadia, há bufões, atores, dançarinos, músicos, vinho... Tudo isso, mais a segurança. Lá fora, a ‘Morte Rubra’”. 
A propósito, os espaços têm papel central na narrativa. Mais especificamente os sete salões onde ocorre o baile. Exímio cenógrafo do horror que era, Poe cuidou de todos os detalhes, da iluminação (em cada salão predomina uma cor) à tapeçaria e às cortinas, para acentuar o arrepio — depois transformado em horror e aversão — causado pela chegada de uma certa figura mascarada. 
A sonoridade também se destaca na composição do conto. Durante toda a narrativa, soa o gigantesco relógio de ébano localizado no último salão, em que predomina a cor negra e no qual poucos ousam entrar. Os badalos macabros ditam o ritmo da narrativa. Ribombando de hora em hora, o relógio cala, por alguns momentos, a música e o vozerio do baile, lembrando os convivas de que a morte anda à espreita; senão pela peste, por Cronos, que a tudo devora. (...) 
No caso de A máscara da morte rubra, a narrativa de Poe não apenas obedece à risca a regra da extensão exposta posteriormente em seu ensaio A Filosofia da Composição (1846), como propõe que o leitor realize a leitura no ritmo vertiginoso das badaladas do relógio, rumo ao terrível desfecho. Com efeito, Poe, no seu famoso ensaio declara: 
“Se qualquer obra literária for longa demais para ser lida em apenas uma sentada, deve-se aceitar que se dispersará o imensamente importante efeito derivado da unidade de impressão — porque, se forem exigidas duas sentadas, as coisas do mundo vão interferir, e a totalidade será imediatamente destruída.”
 
³ "The Tell-Tale Heart" ou "O Coração Revelador" é um conto de Edgar Allan Poe publicado pela primeira vez em 1843. Ele é contado por um narrador sem nome que se esforça para convencer o leitor de sua sanidade mental, ao descrever um assassinato que ele cometeu. (A vítima era um homem velho com um "olho abutre", como o narrador chama.) O assassinato é cuidadosamente calculado e o assassino esconde o corpo sob o assoalho. A culpa do narrador começa a se manifestar na forma do som possivelmente alucinatória de coração do velho ainda batendo sob o assoalho. 

  Embora o enredo do filme seja fictício, os escritores o basearam em alguns relatos de situações reais em torno da misteriosa morte de Edgar Allan Poe. Por exemplo, consta que Poe tenha mencionado repetidamente o nome "Reynolds" na noite anterior à sua morte, embora não esteja claro a quem ele estava se referindo.

IV. ALGUMAS  CRÍTICAS AO FILME (ESTRANGEIRAS E NACIONAL)

 

[CHESTER, Dylan, em 27/04/2012], em sua resenha, assim inicia sua crítica ao filme (em minha tradução): 

"Tendo por cenário as ruas enevoadas de Baltimore, o ícone do século 20 e bêbado Edgar Allan Poe (John Cusack) é um escritor decadente. Seu retorno a Baltimore é tranquilo e depressivo, sem que ninguém aprecie seu intelecto e seus escritos. O único personagem que aprecia seus talentos é o fanboy mais perigoso da memória recente: um serial killer. O assassino começa a tirar páginas de Poe, fazendo com que seus assassinatos reproduzam a violência dos escritos do autor. Isso não é algo em que Poe bêbado gostaria de se envolver, mas depois que sua noiva Emily Hamilton (Alice Eve) é sequestrada pelo louco, ele não tem escolha a não ser tentar detê-lo. (...) 
Este é o tipo de filme de época em que parece que todo mundo está se fantasiando. Cusack, que mesmo quando desligado é pelo menos confiável, foi infelizmente mal escalado para o papel errado. Nunca há uma voz singular e clara para Poe. McTeigue e Cusack querem que Poe seja um palhaço? Um artista torturado? Talvez ambos, mas nunca se faz a mistura de forma coesa. Cusack, uma marca moderna de ator, está fora de lugar aqui. (...)"
[LAURENCE, em 18/07/2012], divulgando o lançamento do blu-ray e DVD do filme "O Corvo", escreveu (em minha tradução): 
"John Cusack estrela como Edgar Allan Poe no filme de crime e suspense de 2012, O Corvo, que gira em torno da investigação do conturbado escritor sobre uma série de assassinatos macabros aparentemente inspirados em suas obras mais macabras. 
O filme se passa em Baltimore, 1849, onde o detetive da polícia Emmett Fields, ao investigar um terrível assassinato duplo, descobre que os métodos do assassino refletem os escritos distorcidos de Edgar Allan Poe. Suspeitando de Poe a princípio, Fields finalmente pede sua ajuda para impedir futuros ataques. As apostas aumentam à medida que os assassinatos horríveis continuam, a caçada se intensifica e o próprio amor de Poe, Emily Hamilton, se torna alvo para o assassino."
Vejamos agora o teor de uma crítica nacional ao filme em questão. 
[LEME, Marcelo, em 22/05/2012], in "Uma versão heróica e frágil de Edgar Allan Poe", desfere a seguinte crítica acerca do filme: 
"frágil suspense policial banhado pela literatura e história que vem angariar alguns fãs e recordar o Séc. XIX. (...) 
Allan Poe é celebrado de uma maneira minúscula diante de sua magnânima importância."
 Em seguida, o crítico coloca uma questão inicial seguida de uma constatação: 
"Afinal, quantos são os espectadores de O Corvo que conhecem a vida de Allan Poe? Alguns nem mesmo ouviram falar de qualquer uma de suas obras."
Como aconteceu com a mutação de Sherlock Holmes na telona perdendo características em favor da necessidade de atrair um outro público que não o leitor, ele acha que O Corvo é outra ficção fadada a não conseguir que o público que assistiu ao filme busque conhecer o escritor. 
"Essa ficção baseada em um dos seus mais célebres contos, Os Assassinatos da Rua Morgue, é dirigida por James McTeigue, do ótimo V de Vingança (V For Vendeta, 2005). Apostando numa atmosfera gótica pela necessidade de chamar a atenção para a estética quando a narrativa não tem grande vigor, McTeigue traça um rumo captando elementos de várias obras do protagonista (Allan Poe), como O Barril de Amontillado ou A Máscara da Morte Rubra, entre outros citados. Não há qualquer força ou finalidade justificável por ações, com personagens soltos cuja importância nula não corresponde nem para nossa gana em desvendar o mistério sugerido ou especular o assassino que vem causando terror em Baltimore. (...) 
Concebido por diálogos rebuscados, especialmente veiculados ao seu genial protagonista, O Corvo se torna um suspense de jornal com cenas ao estilo da série Jogos Mortais."
Finalmente, o crítico de cinema remete a Jigsaw (Jogos Mortais, 2004), um assassino que possui uma marca registrada: deixar em suas vítimas uma cicatriz em forma de quebra-cabeças. O detetive, designado para investigar os assassinatos, desenvolve uma obsessão de capturar Jigsaw, a partir do caminho evasivo seguido pelo assassino. Segundo Leme, o filme possui a característica de 
"um romance ficcional motivando a trama: a sequestrada (Emily Hamilton), que Edgar Allan Poe tem que encontrar, é justamente quem este ama, é aquela pela qual faria qualquer coisa. Vale como estudo de uma época, uma menção a respeito do despontamento de dois grandes nomes da literatura mundial, o próprio Poe e o francês Júlio Verne, este lembrado durante a narrativa. Moldado para ser um herói, o protagonista que ganha a face de John Cusack com cavanhaque (dispensando o bigode tradicional do original), Allan Poe é celebrado de uma maneira minúscula diante de sua magnânima importância."

V. ALGUMAS  CITAÇÕES INTERESSANTES NO FILME, GERALMENTE EXTRAÍDAS DA OBRA DE POE

 

1) John Cusack (Edgar Allan Poe) 
"Tell Fields his name is Reynolds." Trad.: "Diga a Fields (detetive) que seu nome é Reynolds."
De Poe para o detetive Fields sobre o serial killer:
Poe: You think this comes from a logical mind? Any man who can carve a human being in half doesn't come from a place of logic.
Fields: Then from where?
Poe: Mental disease. Obsession. Passion.
Trad. Poe: Tu achas que isso (assassinato) venha de uma mente lógica? Qualquer um que possa talhar outro ser humano pela metade não vem de um local da lógica.
Fields: De onde então?
Poe: Doença mental. Obsessão. Paixão.
2) Alice Eve (Emily Hamilton, namorada de Poe)
Emily declama trecho do inesquecível poema "Annabel Lee", o último poema completo composto por Allan Poe provavelmente em maio de 1849:
"And neither the angels in heaven above
Nor the demons down under the sea
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabelle Lee."
Trad.: "Nem os anjos no céu acima
Nem os demônios debaixo do mar
Podem jamais separar minh' alma da alma
Da belíssima Annabel Lee."
Obs. O poema completo intitulado "Annabel Lee" consiste de 6 estrofes: 3 com 6 linhas cada, uma com 7 linhas e duas com 8 linhas cada. Embora não seja tecnicamente uma balada, Poe referiu-se ao poema como uma balada. Como balada, o poema usa repetição de palavras e frases propositadamente para criar seu efeito lúgubre. Consta que Poe tomou medidas para assegurar que o poema pudesse ser lido impresso. Ele deu uma cópia para Rufus Wilmot Griswold, seu inventariante literário e rival pessoal, deu outra cópia para John Thompson para quitar um débito de $5, e vendeu uma cópia para Sartain's Union Magazine para publicação. Embora Sartain's fosse a primeira impressão autorizada em janeiro de 1850, Griswold foi o primeiro a publicar em 9 de outubro de 1849, dois dias após a morte de Poe, como parte de seu obituário de Poe no New York Daily Tribune. Thompson o publicou no Southern Literary Messenger em novembro de 1849.
3) Brendan Gleeson (Capitão Charles Hamilton, pai de Emily)
"If you know what's good for you, Poe, you stay away from my daughter."
"Se você sabe o que é bom para você, Poe, fique longe de minha filha.
4) Kevin McNally (Henry Maddox ou Maddux, editor de Poe)
Maddux sobre Poe: "I believe that God gave him a spark of genius and quenched it in misery. But as far as something like this... The only thing he's ever killed is a bottle of brandy."
"Acho que Deus lhe deu uma centelha de gênio e a apagou na adversidade. Mas quanto a algo assim (isto é, ser o serial killer)... A única coisa que ele matou foi uma garrafa de conhaque."
5) Sam Hazeldine (Ivan Reynolds, tipógrafo do jornal, obcecado por Edgar Allan Poe, que usou seus contos como inspiração para uma série de assassinatos em Baltimore)
Quando cita trecho do conto "O Coração Revelador": 
"Anything was better than this agony. Anything was more tolerable than this derision. I could bear those hypocritical smiles no longer."
Trad. "Qualquer coisa era melhor do que esta agonia. Qualquer coisa era mais tolerável do que esse escárnio. Eu não aguentava mais aqueles sorrisos hipócritas."
Na final confrontação, Reynolds (tipógrafo) fala com Poe: "I couldn't agree more. I am your crowning achievement, your masterpiece. In whose world do we each exist right now, Edgar? Mine or yours? I don't really know the answer. It's quite brilliant."
"Concordo plenamente. Eu sou tua realização suprema, tua obra-prima. Em que mundo cada um de nós vive agora, Edgar? No meu ou no teu? Eu realmente não sei a resposta. Ela é bastante brilhante."

 
 
VI. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


BAUDELAIRE, Charles: Edgar Allan Poe, sa vie et ses oeuvres, cap. 1, aparecido pela primeira vez nos fascículos da Revue de Paris, mar/abr 1852, depois retomado como introdução às Histórias Extraordinárias (1856)

BELLIN, Greicy Pinto: Edgar Allan Poe e o surgimento do conto enquanto gênero de ficção, Anuário de Literatura, Curitiba: Universidade Federal do Paraná, vol. 16, n. 2, p. 41-53, 2011

BLOG IRREPARÁVEL: O Corvo / Link: http://www.irreparavel.com/2012/10/o-corvo.html  👈

CHESTER, Dylan: [Review] The Raven / Link: https://thefilmstage.com/review-the-raven-2/  👈
 
DELUMEAU, Jean: HISTÓRIA DO MEDO NO OCIDENTE 1300/1800: Uma cidade sitiada, São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, 695 p.
 
FANTASTICURSOS: Edgar Allan Poe entre o Gótico e a Ficção Científica / Link: http://fantasticursos.com/edgar-allan-poe-gotico-e-ficcao-cientifica/  👈
 
LEME, Marcelo: Uma versão heróica e frágil de Edgar Allan Poe / Link: https://www.cineplayers.com/criticas/corvo-o  👈
 
NATTA, Marie-Christine:  «21. Le traducteur et le poète», Baudelaire. sous la direction de Natta Marie-Christine. Perrin, 2019, pp. 327-337. 

STEIN, Marta Isadora. Transposição do gótico e do fantástico em traduções brasileiras do conto “The Masque of the Red Death”, de Edgar Allan Poe, 2019, 55 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Licenciatura em Letras - Português/Inglês, Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Pato Branco.

WIKIPEDIA: Edgar Poe in Popular Culture / Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Edgar_Allan_Poe_in_popular_culture  👈

_____________Edgar Allan Poe and Music / Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Edgar_Allan_Poe_and_music  👈

_____________Edgar Allan Poe in television and film / Link: https://en.wikipedia.org/wiki/Edgar_Allan_Poe_in_television_and_film  👈

_______________The Raven (2012 film)  / Link: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Raven_(2012_film)  👈

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

OS ÚLTIMOS DIAS DE EDGAR ALLAN POE


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
Edgar Allan Poe (Boston, 19/01/1809 - Baltimore, 07/10/1849)   

 

Em homenagem a EDGAR ALLAN POE, que nesta data de 19/01/2022 estaria completando 213 anos.

 

I. INTRODUÇÃO 
 
Mesmo após 213 anos de seu nascimento, o autor Edgar Allan Poe tem conquistado cada vez mais a curiosidade e inspirado pessoas de qualquer idade, em qualquer época, desde então. 
[MARQUES, 2014 in Edgar Allan Poe é pop!], em comemoração ao 205º aniversário de nascimento de Poe, escreveu: 
"Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Edgar Allan Poe foi um dos primeiros escritores norte-americanos de contos, sendo considerado o inventor do gênero policial, também recebendo crédito por contribuição ao gênero de ficção científica. Apesar de tanta contribuição, Poe é lembrado apenas pelo rótulo de escritor de contos de terror, muitas vezes chamado de ícone do gênero. 
Mas a verdade é que Poe não é um mero autor de horror. Ele revolucionou o terror, e não “só” isso. Também escreveu muitos outros contos de diversas categorias: foi um dos pioneiros na literatura de suspense, com o detetive Dupin, personagem de A Carta Roubada, O Mistério de Marie Roget e Assassinatos na Rua Morgue, e que inspirou Conan Doyle a criar posteriormente o detetive mais famoso do mundo, Sherlock Holmes. 
Porém, sua popularidade não fica apenas na literatura. Muitos, que podem sequer ter lido uma de suas obras, acabam se interessando pela imagem sombria que Poe transmite. O escritor estampa camisetas, é inspiração de séries, filmes e todo produto pop que alguém possa imaginar. Você pode não conhecer os versos de O Corvo, mas já deve ter ouvido falar do seriado norte-americano The Following, ou quem sabe da série nacional produzida por Fernando Meirelles, Contos do Edgar.

Vou mostrar que Poe é mesmo pop. Abaixo serão listados vários produtos alguns incomuns que homenageiam esse grande autor. Confira: 

Série norte-americana: The Following (pelo canal por assinatura Warner)
Série nacional: Contos do Edgar (produzida por Fernando Meirelles que adaptou contos de Poe, transpondo para a cidade de São Paulo no ano de 2013. É uma série de TV em 5 episódios veiculada pela Fox Brasil)
Filme: O Corvo (2012) - filme hispano-magiar-norte-americano, dos gêneros terror e suspense, dirigido pelo australiano James McTeigue, com roteiro de Ben Livingston e Hannah Shakespeare. As filmagens começaram em 9 de novembro de 2010 em Belgrado na Sérvia e Budapeste.
 
Obs. a) Com o mesmo título (O Corvo), devem ser mencionados ainda dois filmes anteriores:
1)  filme de terror norte-americano de 1935 dirigido por Louis Friedlander e estrelado por Boris Karloff e Béla Lugosi
2) filme estadunidense de 1963 com o mesmo título pertencente ao gênero comédia de terror, produzido e dirigido por Roger Corman, com roteiro de Richard Matheson e estrelado por Vincent Price, Hazel Court, Olive Sturgess, Peter Lorre, Boris Karloff e Jack Nicholson.

Obs. b) Este é apenas um dos mais recentes filmes que citam Poe. Para citar apenas os mais importantes, outros filmes que se inspiram no escritor foram: Queda da Casa de Usher (1928), Os Assassinatos da Rua Morgue (1932), O Gato Preto (1934), O Solar Maldito (1960), A Mansão do Terror (1961), Muralhas do Pavor (1962), filme no qual Vincent Price protagoniza três contos de Poe: Morella, O Gato Preto e O Caso do Sr. Valdemar; A Dança Macabra (1964), Orgia da Morte (1964), Histórias Extraordinárias (1968), Vincent (1982). 

Blog nacional
O Poe's Club é um blog destinado a colher informações sobre o escritor Edgar Allan Poe, além de pesquisas e estudos elaborados pelo escritor Ademir Pascale sobre a sua vida e obra. 

Game: Midnight Mysteries
Neste game, o jogador deve encontrar pistas para salvar o fantasma de Poe. Vale lembrar que fatos misteriosos cercam a morte do célebre escritor. As teorias sobre as causas da morte do escritor incluem suicídio, assassinato, cólera, raiva, sífilis e ter sido capturado por cabos eleitorais que o teriam forçado a beber para fazê-lo votar e abandonaram-no já em estado de embriaguez. Porém, tudo é incerto.
 


 
Aplicativo: iPoe
Aplicativo para iPhone, no qual se podem ler algumas das histórias de Poe, belamente ilustradas, na tela do seu aparelho. As ilustrações são preciosas e no site podem-se baixar wallpapers e a trilha sonora do aplicativo, que já tem sua segunda versão: http://ipoecollection.com/ 
 
Isso é apenas o começo. Quadrinhos, ilustrações, animações (e o que mais for possível fabricar) já ganham inspiração em Poe. É a prova de que a literatura pode motivar a criatividade, entreter, informar e servir como base para as mais diversas mídias, não importa quanto tempo tenha passado.
 

II. OS ÚLTIMOS DIAS DE EDGAR ALLAN POE 

 
Reportando-me ao subitem acima chamado Game: Midnight Mysteries, pretendo neste item tratar mais amplamente do assunto que foi levemente delineado ali. Da Encyclopaedia Britannica in A misteriosa morte de Edgar Allan Poe, extraio o seguinte trecho em minha tradução: 
Entre suas muitas realizações literárias, Edgar Allan Poe é reconhecido como o criador do gênero de ficção policial com seu conto de 1841 intitulado Os assassinatos da Rua Morgue, abrindo caminho para detetives ficcionais de Sherlock Holmes a Nancy Drew. Então é conveniente que a morte do próprio autor em 1849 permaneça um dos grandes mistérios não resolvidos da literatura americana. 
Em junho de 1849, Poe embarcou em uma turnê de palestras para arrecadar fundos para uma revista literária que esperava publicar. Em 27 de setembro de 1849, Poe deveria embarcar em uma balsa de Richmond, Virgínia, para Baltimore, Maryland, e depois para Nova York. Na noite anterior à viagem de balsa, ele visitou um médico em Richmond por causa de uma febre. Sobre os próximos dias, muito pouco se sabe ao certo. Poe chegou a Baltimore em 28 de setembro, mas não foi para Nova York. Ele apareceu em uma taverna em Baltimore em 3 de outubro. Ele estava em má forma, quase sem reação diante do que os espectadores supunham ser um estupor alcoólico. Uma nota foi enviada a um médico local e Poe logo foi internado em um hospital. Um detalhe estranho é que as roupas que Poe usava não pareciam ser suas. Em vez de seu costumeiro terno preto de lã, ele estava vestindo um terno barato e mal ajustado e um chapéu de palha. 
No hospital, Poe continuou intercalando estados de consciência e de estupor, com alucinações e falando bobagens quando desperto. Em 7 de outubro de 1849 ele morreu. Um jornal de Baltimore noticiou enigmaticamente que a causa havia sido “congestão cerebral”. 
Surgiram várias teorias sobre a causa da morte de Poe. A mais conhecida é que ele morreu de complicações do alcoolismo. J.E. Snodgrass, o médico que viu Poe na taverna, acreditava que Poe esteve bebendo muito e que acabou sucumbindo aos tremores e ao delírio que podem acompanhar a abstinência do álcool. Vários relatos de segunda mão parecem apoiar Snodgrass, sustentando que Poe havia encontrado conhecidos em Baltimore e saído para beber. Isso não deixava de ser típico de Poe, já que ele tinha se envolvido em bebedeiras sérias ao longo de sua vida. 
Entretanto, deve-se assinalar que nos últimos tempos ele havia se tornado membro de uma sociedade de abstenção de consumo do álcool. Além disso, John Moran, o médico assistente do hospital, estava convencido de que Poe não estava bêbado e não havia bebido nos dias que antecederam sua morte. A duração de sua doença final e o fato de que ele parecia se recuperar ligeiramente no hospital antes de piorar e morrer também pareciam incompatíveis com a abstinência do álcool. 
Várias doenças foram propostas como possíveis causas da morte de Poe, incluindo diabetes, doenças cardíacas, epilepsia e tuberculose. Uma das possibilidades mais intrigantes, sugerida por um médico da Universidade de Maryland, é que Poe pode ter morrido de raiva. O delírio de Poe parecia estar melhorando e depois piorando novamente nos últimos dias de sua vida, um padrão observado em pacientes com raiva em estágio avançado. Além disso, os registros hospitalares de Poe indicavam que tinha dificuldade de beber água. Isso pode ter sido uma manifestação de um dos sintomas característicos da raiva: a hidrofobia. 
Outra teoria sustenta que Poe pode ter sido vítima de um crime violento. Como a taverna onde Poe foi encontrado estava sendo usada como local de votação (era prática comum no século XIX que a votação ocorresse em tavernas), foi proposto que ele pode ter sido flagrado em uma fraude da votação eleitoral conhecida como “cooping”. Em um esquema de cooping, gangues que trabalham para políticos corruptos agarram espectadores relutantes nas ruas e os forçam a votar repetidamente em um determinado candidato. As vítimas eram frequentemente espancadas ou forçadas a beber álcool para fazê-las obedecer. Eram usados disfarces para permitirem que as vítimas votassem várias vezes. Isso poderia explicar a roupa bizarra que Poe estava usando, quando encontrado. ¹
Com as evidências fragmentárias e às vezes contraditórias que existem sobre os últimos dias de Poe, é difícil imaginar que haverá uma resposta completamente satisfatória sobre o que o matou. Para os muitos detetives de poltrona que gostam de exercitar seus poderes de raciocínio na morte dele, isso pode ser uma notícia instigante.
Link: https://www.google.com/search?channel=trow5&client=firefox-b-d&q=The+Mysterious+Death+of+Edgar+Allan+Poe+%7C+Britannica  

 

III. NOTA EXPLICATIVA 

 

¹  "Cooping" era uma forma de fraude eleitoral nos Estados Unidos citada em relação à morte de Edgar Allan Poe em 7 de outubro de 1849, pela qual cidadãos eram sequestrados na rua e forçados a votar, frequentemente várias vezes, em determinado candidato. 
De acordo com vários biógrafos de Poe, as chamadas 'gangues de cooping' ou 'gangues eleitorais' que trabalhavam para um candidato político mantinham vítimas aleatórias em uma sala (o "coop") e as embriagavam com álcool para fazê-las ou obedecer ou enfrentar espancamentos. Muitas vezes, as roupas dessas vítimas eram trocadas para enganar os fiscais eleitorais e votavam várias vezes, ou recebiam disfarces como perucas, barbas falsas ou bigodes. 
Outros relatos do século XIX não se relacionam com fraude eleitoral, mas descrevem gangues de pressão que usavam o cooping para pressionar recrutas para o Exército da União durante a Guerra Civil Americana. O "impressment" era o alistamento de homens em uma força militar ou naval por compulsão, com ou sem convocação. As marinhas europeias de várias nações usaram o recrutamento forçado por vários meios. 
 
Recrutamento forçado

 
Uma alegação de aprisionamento de alistados foi feita em uma carta do brigadeiro-general Edward Winslow Hincks lida pelo secretário da Câmara dos Deputados em 1865. O general, que estava encarregado do alistamento em Nova York, culpou a má qualidade dos recrutados ao cooping, pelo qual os homens eram "engaiolados", empanturrados com uma bebida até o ponto de estupefação e enganados para se alistar. 
 
 
IV. AGRADECIMENTO
 
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo.
 
 
V. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


BRITANNICA, The Editors of Encyclopaedia. The Mysterious Death of Edgar Allan Poe. Acesso em 18/01/2022.
 
GUIA DA SEMANA: in MARQUES, Marina: Edgar Allan Poe é pop!, atualizado em 17/01/2014. Acesso em 18/01/2022.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

PARCERIA JORNALÍSTICA ENTRE FLÁVIO FARNESE E BERNARDO GUIMARÃES


Por Francisco José dos Santos Braga 
Bernardo Guimarães (1825-1884)

"O pesquisador, historiador e escritor Francisco Rodrigues de Oliveira (1932-2021), tendo iniciado sua pesquisa exploratória sobre Flávio Farnese da Paixão Júnior, enviou-me 7 parágrafos, que, após consulta, constatei tratar-se de material extraído de 4 fontes acadêmicas diferentes, bem referenciadas após o texto. Embora não tenha dito claramente, parece que me fazia chegar às mãos esse curto material com a tácita sugestão de que eu, se quisesse, poderia concluir esta pesquisa iniciada, considerando-me mais afeito a estudos históricos, mas não mencionava a razão por que interrompera o seu labor tão cedo. Estaria pouco inspirado para desenvolver o tema? Teria se desinteressado do assunto? Teria descoberto outro tema que atraíra mais a sua atenção? Ou ainda, teria sentido que plantava em terreno fértil, certo de que eu poderia desenvolver a referida pesquisa de maneira bem sucedida após seu pontapé inicial? Ou, finalmente, quem sabe teria concluído por seu lado sua inacabada pesquisa, e tivesse a merecida pretensão de ser organizador de algum livro sobre o tema, recolhendo contribuições de outros estudiosos? Não atinei com a razão, nem questionei-o a respeito. Apenas guardei o material enviado por e-mail que cabia numa folha de papel A-4, apesar de vir seguida por outra folha em branco algo incomum! , aparentemente denotando que ele próprio aguardava uma oportunidade futura de retomar a pesquisa iniciada, expandindo-a dentro de padrões mais bem estruturados. Bem vê o leitor que estamos no terreno movediço das conjecturas. Mas, independente disso, aqui está a prova de que meu saudoso amigo era, de fato, um "homem de boa vontade", com os braços abertos para distribuir seus dons e talentos sem nada pedir em troca. Portanto, por sugestão dele, estou a tratar aqui de outra bela parceria na área jornalística: desta feita, entre Flávio Farnese e Bernardo Guimarães."

 

I. DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DE FLÁVIO FARNESE 

 

Infelizmente, há muito breves notícias sobre Flávio Farnese na Internet. Nem a Wikipédia, nem a wordpress.com dedicam um espaço privilegiado a este ilustre serrano, redator e cofundador do mais importante periódico que defendia teses republicanas para o Brasil a partir da Côrte: A Actualidade, em meados do século XIX. Apesar da importância de ter sido um dos mais exaltados defensores do Partido Liberal no II Reinado e um intelectual que expunha suas ideias liberalizantes em periódicos de grande circulação, aqui e no estrangeiro, infelizmente está relegado ao esquecimento. Para minha tristeza, dele não consegui nenhuma imagem na Wikipédia, nem mesmo a sua estátua em qualquer parte do Brasil. Não satisfeito com os resultados iniciais, prometo continuar na minha busca. Peço desculpas ao leitor por não poder representar dignamente a parceria entre Bernardo Guimarães e Flávio Farnese através de imagens, na abertura do trabalho. Teria sua morte prematura, aos 35 anos de idade, algo a ver com o olvido de seus concidadãos? Pelo menos, Bernardo Guimarães o homenageou com um celebrado elogio fúnebre, que apresentaremos abaixo. Conforme [SENNA, 1905, 184-5],
"Dr. Flávio Farnese da Paixão Júnior nasceu no Serro em data que ignoramos, mas, provavelmente, entre os anos de 1835-37, e faleceu no Rio de Janeiro a 6 de setembro de 1871. Formado em direito pela Faculdade de São Paulo, em 1856, antigo deputado geral pelo 4º distrito de Minas, na legislatura de 1867-68, e redator do famoso órgão liberal A Actualidade (de 1858-61), na antiga Côrte, ao lado de correligionários seus, como os Drs. Lafayette Rodrigues Pereira, Bernardo Guimarães e Pedro Luiz. Mudando de ideias, Flávio Farnese abraçou o ideal democrático e foi um dos intemeratos fundadores do jornal A República (1871) ¹, no Rio, ao lado de Quintino Bocaiuva, Aristides Lobo e outros. De 1862 a 63, Flávio foi um dos redatores do periódico de propaganda Le Brésil ², em francês, destinado à circulação na Europa, como meio de tornar melhor conhecido o nosso país, no estrangeiro. Poeta modesto, polemista de valor e escritor correto, eis Flávio Farnese, que, dotado de poderosas qualidades intelectuais, era todavia um organismo fisicamente condenado à breve existência, tão franzino, pálido e débil era o seu corpo.
É assim que o Blog Banca da Dóris marca a presença de meninos jornaleiros ou "gazeteiros mirins" pela primeira vez nas ruas da Côrte, retratados mais tarde por Marc Ferrez em preciosas fotos antigas do Rio de Janeiro: 

"Meninos jornaleiros em 1875" por Marc Ferrez - Link: https://pt-br.facebook.com/photo/?fbid=395060180572288&set=meninos-jornaleiros-marc-ferrez  👈

“A Gazeta! O Paidze! O Djornáli do Golmércio! O Prazile! A Tchidade de Rio! A Notizia da Tarde! A Tualidade!” Era essa mistura bem dosada de português e italiano que os transeuntes escutavam nas vias da capital. O ano era 1875. O centro político era a cidade de mil encantos do Rio de Janeiro, o Brasil ainda era Império, e quem lançava aos gritos as manchetes do dia eram os italianos meninos. 
Pobres, recém chegados ao novo canto, longe de seu povo e com necessidade de auxiliar as despesas domésticas, os pequeninos perambulavam pelas calçadas com pilhas de jornais nos ombros. Era preciso ter mais que boa voz e goela, lábia. Ganhavam trocados para o sustento, previamente combinado com algum sujeito importante da redação do jornal. Ou melhor, dos jornais. Com cada um deles, havia um acordo, uma cota por exemplar vendido. 
Aliás, foi com o A Actualidade que essa moda da venda ambulante começou, 50 anos após a imprensa ter sido implantada por essas bandas. Um advogado, Flávio Farnese, um jornalista, Lafaiete Rodrigues Pereira, e por que não? um poeta, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, tiveram a lucrativa ideia: transformar o jornal “político, literário e noticioso”, num produto como qualquer outro a ser comercializado. Afinal, sua ideologia anti-monárquica deveria atingir o maior número possível de (e)leitores. 
Até o dia 29 de janeiro de 1859, quando o A Actualidade marca sua presença nas ruas, quem quisesse se informar sobre o que acontecia nas terras brasileiras e estrangeiras deveria tornar-se assinante ou estabelecer contato direto com as redações solicitando os papéis cinzentos noticiosos. Manter-se atualizado tinha alto preço que deveria ser pago adiantado. 

[GUIMARÃES, Armelim in Bernardo Guimarães, o romancista da Abolição], no capítulo No "Atualidades", do Rio, subtítulo "Marcou época", assim pontuou a presença do romancista Bernardo Guimarães, um entre outros bacharéis e mineiros célebres:

"O "Atualidade" marcou época no jornalismo brasileiro. 
Segundo Coelho Neto, é daí por diante que a "feição do jornal foi perdendo a austeridade ferrenha, modelando-se pelos principais órgãos franceses, já na parte de informações, já nas seções doutrinárias e de literatura". "Depois do 'Atualidade' , jornal político, do programa adiantadamente liberal, redigido por Lafayette Rodrigues Pereira, Flávio Farnese, Pedro Luís Pereira de Sousa e Bernardo Guimarães, a imprensa, impulsionada pelas idéias, começou a progredir, não só na capital do Império como nas Províncias". ("Compêndio de Literatura Brasileira", 1992, pág. 169). 
Informa José Luís de Almeida Nogueira nas suas clássicas "Tradições e Reminiscências Estudantes, Estudantões, Estudantadas", no 7º volume, págs. 221 e 222: "Essa folha política e literária, na qual também colaborava Bernardo Guimarães, gozou durante certo tempo das auras da popularidade e deveu essa vantagem aos princípios de adiantado liberalismo que doutrinava, ao estilo colorido e empolgante em que era escrita e ao prestígio resultante de pureza da vida pública dos seus jovens e talentosos redatores." 
Há equívoco em supor-se que ele (Bernardo) não passou, então, de simples redator-literário do 'Atualidade'. É certo que, com o seu nome, só apareceram ali produções suas em versos e, sem assinatura alguma, quatro longas críticas". (Basílio de Magalhães, "Bernardo Guimarães", pág. 38). Diz o mesmo autor, mais adiante, nas páginas 39 e 40: "Sei, entretanto, que muitos editoriais políticos do 'Atualidade', tidos como oriundos da pena de Flávio Farnese ou da de Lafayette Rodrigues Pereira, eram realmente da do autor dos "Cantos da Solidão" ³. 
O insigne jurista e conspícuo estadista (Lafayette), que depois presidiu ao Gabinete de 24 de maio de 1883, confessou a amigos, em palestra, depois da morte do escritor ouro-pretano, que não hesitaria em recorrer, muitas vezes, a este, para a elaboração de artigos de grande responsabilidade partidária e que foram estampados nas colunas daquele órgão liberal. E, não obstante a frieza com que (Lafayette) costumava julgar os homens, não vacilava em proclamar, com desusado calor de expressão: "Bernardo Guimarães foi um gênio! Se se entregasse ao estudo, ao trabalho e a uma vida regular, teria assinalado a época em que existiu, porque o seu prodigioso talento tudo supria!" 
Lafayette Rodrigues Pereira, mais conhecido como
Conselheiro Lafayette, ex-Primeiro Ministro do Brasil




O mais notável de Bernardo, nessa intensa fase jornalística, foi o desejo de "meter a lenha com vontade" a expressão é de Antônio de Alcântara Machado, em "O fabuloso Bernardo Guimarães". 
 

II. DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DE BERNARDO GUIMARÃES 

 

[ZICA, 2007, 1-2] nos apresenta um bom resumo de sua atuação nos meios acadêmico, jornalístico e editorial desde 1852 a 1883:
"Bernardo Joaquim da Silva Guimarães nasceu em 1825 em Ouro Preto e, também nesta cidade, morreu em 1884. Bacharelou-se em Direito em São Paulo em 1852 quando publicou seu primeiro livro de poesias. Foi professor de Filologia e Língua Nacional em Ouro Preto de 1854 a 1858, foi jornalista na Corte de 1859 a 1860 no jornal A Actualidade, onde atuou como redator e crítico literário, foi juiz em Goiás de 1861 a 1863, e, a partir daí, professor de Retórica e Poética em Ouro Preto, Congonhas do Campo e Queluz. Nesta fase ele publicaria seus romances e só pararia em 1883, um ano antes de sua morte. O recorte temporal desta pesquisa, portanto, está diretamente ligado às fontes principais nas quais se baseara: vai de 1852 (primeiro livro publicado) a 1883 (último ano de suas publicações). Quanto ao recorte espacial, ele aqui é definido pela trajetória de vida do autor: Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Goiás. 
Como já foi citado, além de juiz, professor e escritor, Bernardo Guimarães foi também jornalista no Rio de Janeiro de 1859 a 1860. Ele, Flávio Farnese e Lafayette Rodrigues, todos três mineiros, eram os redatores do jornal A Actualidade. Este impresso semanal se apresentava como de oposição, e discutia sobre política, decisões do Império, literatura e legislação. Além de veicular noticias da Corte, publicava também de outras províncias, e, na maioria das vezes, de Minas Gerais. Todos os seus números estão micro-filmados e disponíveis na Biblioteca Nacional, onde tive oportunidade de ler e transcrever vários artigos. 
Sua produção literária (e por mim utilizada):
Maurício ou Os Paulistas em São João D’El Rey. (Primeira ed. 1877); Histórias e Tradições da província de Minas Geraes. (Primeira ed. 1872); Índio Affonso. (Primeira ed. 1873); O Ermitão de Muquém. (Primeira ed. 1869); O Seminarista. (Primeira ed. 1872); O Garimpeiro. (Primeira ed. 1872); A escrava Isaura. (Primeira ed. 1875); Lendas e romances. (Primeira ed. 1871); A ilha maldita. (Primeira ed. 1879); Rosaura, a enjeitada. (Primeira ed. 1883); 
A Voz do Pagé. (peça teatral apresentada em 1860); 
Poesias Completas (1852-1883). Rio de Janeiro: INL, 1959 (Org. Alphonsus de Guimarães Filho); Poesia erótica e satírica (1852-1853). Rio de Janeiro: Imago, 1992 (Org. Duda Machado)."

 

Farnese morreu ainda moço, com 35 anos, no Rio, em 6 de setembro de 1871. Estava Bernardo Guimarães em Ouro Preto, recém-chegado de Congonhas, aonde semanalmente ia para dar aulas no Colégio, quando soube da morte do grande amigo, por quem tinha a maior admiração. Imediatamente sentou-se à escrivaninha e compôs um longo e sentido poema: A MORTE DE FLÁVIO FARNESE, que lhe dedicou como última homenagem, tendo-o recitado ao pé do túmulo, no dia do enterro do seu saudoso amigo, abaixo transcrito. 
 
A MORTE DE FLÁVIO FARNESE 
 
Musa infeliz, ah! que sinistro fado 
Te cinge a fronte de funérea rama, 
E entre sepulcros pranto amargurado 
Hoje a chorar te chama?... 
 
Já não te é dado mais vibrar na lira 
De flores enramada 
As meigas cordas, em que amor suspira, 
Nem por valente vôo arrebatada 
Tecer hinos de glória 
Aos filhos prediletos da vitória, 
Nem por tardes formosas 
À sombra descantar entre os vergéis 
Da natureza as cenas graciosas, 
Das solidões os mágicos painéis. 
Ah! não, que o gênio, que te inspira agora, 
Por sobre as campas entre sombras mora. 
 
Nem mirtos, nem rosais bordam-te as sendas; 
Hoje te obriga inexorável sorte 
A vaguear por entre as mudas tendas 
Dos arraiais da morte. 
A cada instante lúgubre ruído 
De lápida, que tomba, 
A teus ouvidos tétrico ribomba, 
Eterno, último adeus de um ser querido. 
A cada passo um túmulo abalroas 
Nessa, que trilhas, senda tortuosa. 
Não mais canções, só fúnebres coroas 
Cumpre-te hoje tecer com mão saudosa, 
E entre gemidos do sepulcro à borda 
Estalar do alaúde a extrema corda. 
 
Despe os louros, ó musa, e do alaúde 
Arranca a última flor, 
E vem comigo ao pé de um ataúde 
Gemer trenos de dor. 
 
                           *** 
 
Quem é, que nesse chão ali repousa 
À sombra de pacíficos troféus, 
Sob essa simples lousa, 
Sem pompa de soberbos mausoléus?... 
Que nome tão saudoso 
Este arvoredo fúnebre murmura? 
Que eco doloroso 
Do seio dessa fria sepultura 
Aos ouvidos me chega, e triste vibra 
Do coração na mais sentida fibra?... 
É este de Farnese 
O derradeiro, gélido aposento; 
E bem que sobre as cinzas não lhe pese 
Custoso bronze, ou mármore opulento, 
Só esse nome vale um monumento. 
 
Que grande coração, que alma tão nobre 
Perdeu-se ali tão cedo !... 
Quanta esperança morta ali se encobre 
Debaixo desse fúnebre lajedo? 
Quanto anelo viril, que peito forte 
Jaz esmagado pelos pés da morte!... 
Hoje a família, a pátria, a liberdade 
Do ilustre morto a ínclita memória 
Pranteia com saudade 
E aos confins da mais remota idade 
Seu nome recomenda envolto em glória. 
 
A larga testa de palor tingida 
Era bem como lâmpada velada, 
Em que a luz sagrada 
Da inteligência em torno difundida 
Sem ofuscar fulgia derramando 
De sãs idéias o reflexo brando. 
 
De nobre crença apóstolo extremado 
Para guiar o povo entre as tormentas 
O havia Deus fadado. 
Do porvir pelas sendas nevoentas 
O verbo do progresso ele entrevia 
Nesta palavra só Democracia. 
 
Ninguém com mais denodo desfraldara 
A flâmula brilhante 
Da bela causa, que lhe foi tão cara; 
Ninguém mais anelante 
Em liça entrou, e deu com próprio punho 
De sua fé mais amplo testemunho. 
 
Era um atleta; desd'a verde idade 
Lutando sem cessar em liça aberta 
Nos santos arraiais da liberdade 
O vimos sempre alerta. 
Era um atleta, um lidador valente 
Esse, que aí jaz dormindo eternamente.
 
Inda no primo albor da juventude 
O austero moço via com tristeza 
Naufragar da nação toda a virtude 
No charco da baixeza; 
E embaída por pérfidos afagos 
De um poder ominoso 
Da corrução sorver a longos tragos 
O ópio venenoso. 
 
E o leão popular curvado ao solo 
Em perro humilde e vil se convertendo, 
De quem o esmaga, e lhe comprime o colo 
Submisso os pés lambendo. 
 
E os pilotos do estado em fim de contas 
Do validismo à mesa embriagados 
A nau já podre irem jogando às tontas 
Por mares desastrados. 
 
Via a pátria em letargo vergonhoso 
Adormecida à beira de um abismo, 
E a conjurar lançou-se audacioso 
Tão feio cataclismo. 
 
Dos filhos do progresso ei-lo na frente 
Contra o oculto inimigo se revolta, 
E ao perigo, que antolha-se eminente, 
Do alarma o grito solta. 
 
Ei-lo, que se dedica generoso 
De nobre luta às escabrosas lidas; 
Brande da imprensa o facho luminoso 
Ante as turbas dormidas 
Da indiferença na letal modorra. 
Como réstia de luz, que o sol enfia 
Entre as grades de lúgubre masmorra, 
Da frase sua o ardor e a valentia 
Do povo ao coração levou a crença, 
E os gelos derreteu da indiferença. 
 
Audaz empunha o cálamo de ferro, 
E com pujante frase 
Afronta a corrução, fulmina o erro, 
E ataca pela base 
Da autocracia o velho baluarte, 
Que, em mal! inda vigora em tanta parte. 
 
Por seu talento másculo movida 
A pluma se converte em férrea clava, 
Que o servilismo e a corrução trucida, 
E a sepultura ao despotismo cava. 
 
Da inteligência na sublime arena 
Muito ele pelejou; 
E no torpe convício a nobre pena 
Jamais, jamais manchou. 
 
Curto na vida foi o estádio seu; 
O astro refulgente, 
Quando luz dardejava mais ardente, 
Ao tocar no zenith se esvaeceu. 
 
Foi curto o estádio, que correu na vida; 
Foi apenas esplêndida manhã, 
Em prol da pátria rápido volvida 
Em glorioso afã. 
 
Agora à sombra de incruentos louros 
Tranqüilo ele repousa; 
Seu nome inscrito nessa simples lousa 
O recomenda aos séculos vindouros, 
Enquanto nela a pátria e a liberdade 
Vertem gemendo o pranto da saudade. 
 
Descansa pois, amigo; assaz lidaste; 
A vida foi-te só luta e provança; 
Nem um só passo deste sem contraste; 
Amigo meu, descansa. 
 
Perdoa, se o teu sono sempiterno 
Eu vim turbar no fúnebre jazigo... 
Meu pranto aceita de pesar eterno, 
E adeus, querido amigo... 
 
Fonte: GUIMARÃES, B: A morte de Flávio Farnese. In: GUIMARÃES, B. Poesias Completas (1852-1883) (Org. Alphonsus de Guimarães Filho). Rio de Janeiro: INL, 1959, p. 295-298. (Primeira ed. 1876).  

 

III. NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹  Em 3 de dezembro de 1870, saiu o primeiro número do jornal "A República". Ocupando quase toda a primeira página, após uma breve apresentação de qual seria sua bandeira, o jornal, mostrando uma ousadia imensa, trazia, em destaque, um MANIFESTO dedicado AOS NOSSOS CONCIDADÃOS, numa tentativa de convencê-los da necessidade da implantação de um sistema republicano e democrático de governo. A redação do documento é atribuída a Quintino Bocaiúva e Salvador de Mendonça. O Manifesto trazia os nomes de 58 subscritores, entre os quais se destacavam os mineiros Cristiano Benedito Ottoni, Flávio Farnese da Paixão Júnior e Lafayette Rodrigues Pereira.

[MEDINA, 2018, 108-11], sobre o Manifesto de 1870 assim se expressou: 

"é, em geral, tomado como marco do movimento republicano, no Brasil. Antes que esse documento fosse divulgado, no entanto, os ideais que ele expressaria já tinham seus arautos em Minas Gerais. Em 1860, Joaquim Felício dos Santos fundou, em Diamantina, um jornal de tendência republicana. Nos centros mais importantes do Estado, como Juiz de Fora, já se defendia o regime, em contraposição à monarquia, como uma aspiração democrática. O manifesto resultou da articulação dos partidários do novo regime em uma associação, criada no Rio de Janeiro – o Clube Republicano. Sua publicação verificou-se no primeiro número do jornal A República, lançado a 3 de dezembro de 1870. 
A redação do documento é atribuída a Quintino Bocaiúva e Salvador de Mendonça. O manifesto trazia os nomes de 58 subscritores, entre os quais se destacavam os mineiros Cristiano Benedito Ottoni, Flávio Farnese Paixão Júnior e Lafayette Rodrigues Pereira. 
Cristiano Ottoni, irmão de Teófilo Ottoni, como este natural da antiga vila do Príncipe (hoje, cidade do Serro), era um intelectual de grande valor. Engenheiro, especializado em transportes ferroviários, foi o primeiro presidente da Estrada de Ferro Dom Pedro II, depois Estrada de Ferro Central do Brasil. Atuou na política, como deputado e senador e, apesar de suas ideias republicanas, gozava de especial apreço do imperador. Seu ilustre irmão, Teófilo Ottoni, falecera no ano anterior. Se vivo fosse, seria, certamente, um dos signatários do Manifesto. 
Flávio Farnese, também nascido no Serro, era advogado e jornalista, muito ligado a Cristiano Ottoni e a Lafayette. Com este e com o romancista Bernardo Guimarães, fundou, em 1858, no Rio de Janeiro, o jornal A Actualidade, que circulou até 1860. Era um jovem de grande talento, que faleceu cedo, razão por que a posteridade não lhe fixou o nome, diferentemente do que sucedeu com os demais mineiros, subscritores do manifesto, que iriam desempenhar papéis de destaque na vida pública. 
Lafayette era considerado por Rui Barbosa o maior jurisconsulto do seu tempo, já havendo publicado, à época, um dos livros que o consagrariam no meio jurídico, Direitos de Família (que é de 1869), a que se seguiria, em 1877, Direito das Coisas. Era natural da Vila Real de Queluz de Minas (hoje, Conselheiro Lafaiete), onde nascera, a 28 de março de 1834, na Fazenda dos Macacos. 
Questiona-se quanto a saber se Lafayette assinou, efetivamente, o manifesto. Isso porque o grande jurista mineiro, oito anos depois, assumia o cargo de ministro da Justiça, no gabinete Sinimbu e, mais tarde, em 1883, chefiaria o governo, a convite do imperador dom Pedro II, de quem foi sempre amigo, mantendo-se, aliás, fiel a Sua Majestade, mesmo após a queda do Império. Houve quem dissesse, por isso, que Lafayette era o único caso de republicano que se convertera à monarquia... É certo, porém, que o eminente mineiro jamais negou sua concordância com o manifesto, ainda que isso houvesse representado, tão só, uma forma de protesto, na época, contra a destituição, dois anos antes, do gabinete liberal, presidido por Zacarias de Góis e Vasconcelos, sem obediência às praxes do parlamentarismo. (...) 
Com relação ao Manifesto republicano, tudo indica que o próprio imperador não o levou muito a sério. Narra Joaquim Nabuco, na biografia de seu pai, o liberal José Thomaz Nabuco de Araújo, que o então Visconde de São Vicente o insigne jurista José Antônio Pimenta Bueno, futuro Marquês de São Vicente, sucessor de Itaboraí na presidência do Conselho de Ministros, quando da divulgação do manifesto, fez ver ao imperador que, havendo Sua Majestade jurado fidelidade à Constituição monárquica, não poderia prover nos cargos públicos quem tivesse ideias republicanas, sob pena de fortalecer os que se opunham à sua permanência na chefia do Estado, ao que dom Pedro II respondeu, rindo: “Ora, se os brasileiros não me quiserem para seu imperador, irei ser professor”. 
Isso nos induz a crer que, para alguns, a aprovação do manifesto não teve o sentido de uma adesão plena ou definitiva à república. Terá sido, ao menos, o caso de Lafayette Rodrigues Pereira. 
O certo, porém, é que Lafayette, juntamente com Farnese, foi um dos primeiros propagadores das ideias republicanas, por meio do jornal que ambos editavam no Rio de Janeiro, A Actualidade. Segundo Joaquim Nabuco, “A Actualidade fora talvez o primeiro jornal nosso de inspiração puramente republicana. A semente que germinou depois, em meu tempo, foi toda espalhada por ela”. E, à frente do referido periódico, estavam “Farnese, Lafayette e Pedro Luís (Pereira de Sousa), que eram, com Tavares Bastos, os diretores da mocidade liberal”. 
²   O historiador [FONSECA, 1941, 53] dá a notícia de dois jornais dessa época dos quais sabemos muito pouco. O primeiro, publicado entre 1862 e 1863, chama-se Le Brésil, seu editor era Flávio Farnèse, e consta, segundo o autor, um exemplar do mesmo mutilado na Biblioteca Nacional brasileira e ao qual não tivemos acesso em pesquisa presencial. 
 
³  "Cantos da solidão" é uma coletânea de poesias de Bernardo Guimarães, publicada em 1852.
 
ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007. In ZICA, Matheus da Cruz: A produção jornalística e literária de Bernardo Guimarães: Educação e Formação da Nação no século XIX, 2007, p. 1-2.
 
 
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
 
ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007. In ZICA, Matheus da Cruz: A produção jornalística e literária de Bernardo Guimarães: Educação e Formação da Nação no século XIX, 2007, 9 p.  
 
ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. In MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa:  A POLÍTICA EM MINAS, Belo Horizonte, 2018, 427 p. (Coleção Minas de História e Cultura) 
 
BLOG BANCA DA DÓRIS: Ser jornaleiro é coisa de criança?, post de 25/03/2011.
Link: https://bancadadoris.wordpress.com/   👈

FONSECA, Gondin: Biografia do jornalismo carioca (1808-1908). Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1941, 416 p.
 
SITE GEOCITIES. In GUIMARÃES, José Armelim Bernardo: Bernardo Guimarães, o romancista da Abolição, livro disponível na Internet. Consultado em 03/01/2022.
Link: http://www.geocities.ws/paulopes.geo/atual.htm  👈
Linkhttp://www.geocities.ws/paulopes.geo/farnese.htm  👈
 
RAPM-Revista do Arquivo Público Mineiro. In SENNA, Nelson Coelho de: Traços Biográficos de serranos ilustres, já falecidos, Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, Ano X, 1905, p. 167-210.  
 
ZICA, Matheus da Cruz: Pedagogos da Nação: reflexões sobre trajetórias e sociabilidades de bacharéis brasileiros a partir do periódico A Actualidade (1859-1861), Universidade Federal do Paraná: Educar em Revista, vol. 33, nº 65, p. 85-101, 2017.