domingo, 30 de setembro de 2018

RECITAL DE TROMPA E PIANO NO 1º CENTENÁRIO DA CONSTRUÇÃO DO TEATRO MUNICIPAL DE SÃO JOÃO DEL-REI


Por Francisco José dos Santos Braga




I.  INTRODUÇÃO


O presente post apresenta um concerto que demos o trompista Celso José Rodrigues Benedito e este pianista, no Teatro Municipal de São João del-Rei, no dia 10 de abril de 1993, às 17 horas. Além de ser uma homenagem pelo transcurso do 1º Centenário da construção do Teatro, o concerto visou prestar um tributo a quatro grandes mestres de música: D. Mariete Guedes, João de Souza Lima, Teófilo Inácio Rodrigues e Joaquim da Rocha. Todos os quatro já dormem na paz do Senhor, sendo pois mais uma razão para não nos entristecermos, antes termos a esperança de que um dia possamos revê-los na glória de Deus.

Teatro Municipal de São João del-Rei / Crédito pela foto: Ricardo Braga Campos


















II. UM POUCO DE HISTÓRIA DO CONCERTO




No início de 1993, o já famoso trompista Celso José Rodrigues Benedito me procurou com a sugestão de que, durante a Semana Santa, apresentássemos um concerto no Teatro Municipal de São João del-Rei, que estava completando 100 anos de profícua existência em prol da Música. Na ocasião, ele recebia orientações de trompa dos seguintes professores: no Brasil, Roberto Minczuk e, na Inglaterra, Daniel Havens. 

Pensei imediatamente em homenagear insignes mestres de música que tivemos na nossa caminhada e que participaram da nossa iniciação e desenvolvimento musical, conduzindo-nos com segurança na trilha dos grandes mestres. Propus homenagearmos dois mestres que me deram a chave da arte pianística: a minha primeira professora de piano, D. Mariete Guedes, moradora na rua Alfredo Luiz Ratton num bangalô (demolido mais tarde para a construção de um prédio de consultórios), a qual, no início da década de 60, ensinava piano a crianças interessadas na arte pianística, utilizando seu piano Werner no ensino e permitindo o treino técnico diário desses jovens pianistas; e João de Souza Lima (1898-1982), destacado pianista e compositor paulista, que se notabilizou como revisor de praticamente todo o repertório pianístico dos últimos 300 anos e formador de concertistas no Brasil e no exterior. Com Souza Lima, tive a oportunidade de burilar minha técnica pianística, no período de dois anos (1974-1976). Tivemos ainda a ideia de homenagearmos, além dos citados mestres do piano, dois outros professores consagrados da teoria musical. Nossa escolha recaiu sobre o regente da “Banda Teodoro de Faria” e meu professor, o Sr. Teófilo Inácio Rodrigues (1889-1973), carinhosamente conhecido por “sô Tiofo”, que ministrava lições gratuitas na sala de sua casa que funcionava também como local de ensaio da banda, na Rua Maestro Batista Lopes (carinhosamente chamada de “Rua das Flores”); Teófilo era pai de Rosa Flora, violista e cantora da Orquestra Lira Sanjoanense e mãe do solista Celso José. Sua instrução fundamentava-se na divisão musical, com base nos elementos fornecidos pela “Artinha” de Francisco Manuel da Silva e pelo “Método Completo para Divisão” de Paschoal Bona. Lembramo-nos também do nome do professor de Teoria e Harmonia Musical, Sr. Joaquim da Rocha (1908-1981), o “Rochinha”, emérito catedrático do Conservatório de Música Pe. José Maria Xavier, o qual tinha sido aluno de Frederico José do Nascimento na Universidade de Minas Gerais e adotava o conhecido “Método de Solfejo”, da autoria de seu professor e de José Raymundo da Silva. 

Confesso que devo à Profª Mariete Guedes, “Sô Tiófo” e Rochinha os conhecimentos musicais adquiridos ainda na flor da idade, com os quais compus minhas primeiras peças pianísticas (valsas, marchas, fantasias, etc.)



III. MINHA FALA ANTES DO CONCERTO

Minha fala antes do concerto

Tomei da palavra para falar a respeito do objetivo daquele Recital de Trompa e Piano:
“Nós temos o prazer de trazer à nossa terra natal uma apresentação de algumas peças, concerto que está se realizando em comemoração aos 100 anos da construção deste Teatro Municipal são-joanense, nesta tarde de Sábado de Aleluia de 1993. Os artistas desta tarde somos três: Celso José Rodrigues Benedito, trompista solo; eu, Francisco Braga, pianista acompanhador e solista; e Dimas Luiz do Carmo, cantor convidado para entoar o hino gregoriano “Creator Alme Siderum”, tema para o Dueto para Trompa e Piano de minha autoria. Curiosamente, todos os três nascemos na mesma rua, que por sinal leva o nome de um maestro (Maestro Batista Lopes). Essa rua tradicionalmente é palco de instrumentistas e praticamente em todas as casas há um ou mais instrumentistas. Então, praticamente durante todo o dia está se ouvindo alguma espécie de música.

Gostaria também de reconhecer aqui a colaboração de pessoas ilustres nas quais nós encontramos apoio. Um apoio cultural muito importante tivemos na pessoa do Dr. Agaciel da Silva Maia, Diretor Executivo do Centro Gráfico do Senado, que nos facilitou a impressão do programa-convite. Queremos agradecer também à administração deste Teatro, que não poupou esforços para ver este evento realizado, principalmente na pessoa do Sr. Geraldo José Ferreira, que administra esta casa de espetáculos, e Mário Luiz Silva, que até nos assuntos operacionais pôde ajudar.
Programa-convite do Recital de Trompa e Piano realizado no Teatro Municipal de São João del-Rei em 10/04/1993

2ª página do programa-convite













































Esta apresentação homenageia três grandes mestres de música são-joanenses. Queríamos destacar as saudosas figuras dos seguintes ilustres professores de música: D. Mariete Guedes, que foi uma grande professora de piano, incentivadora de muitos pianistas são-joanenses. Ela tudo fez para me ajudar no estudo pianístico e a ela eu devo muito do que sei. Na década de 60, ela morava num bangalô, na rua Alfredo Luiz Ratton, donde emanavam ondas sonoras do seu piano Werner o dia inteiro. 
3ª página do programa-convite























4ª página do programa-convite



O segundo homenageado é o Sr. Teófilo Inácio Rodrigues. Apresenta-se aqui nesta tarde um neto dele: Celso José Rodrigues Benedito, famoso trompista são-joanense. Sr. Teófilo era um professor severo e batia frequentemente nas mãos do aluno que por algum motivo se esquecesse de algum conceito musical. Apesar disso, nós, que fomos alunos dele, nos lembramos, com muita saudade e admiração, da figura do grande mestre “sô Tiófo”, que por sinal tocava todos os instrumentos da Banda Teodoro de Faria, da qual era regente. 

O último são-joanense homenageado é o professor Joaquim da Rocha, o “Rochinha”, que prodigalizou benemerências com a sua arte, transmitindo a todos nós todo o seu conhecimento sobre Teoria e Harmonia Musical no Conservatório de Música Pe. José Maria Xavier.

O nosso quarto mestre homenageado é o pianista João de Souza Lima, meu professor de piano de 1974 a 1976 e falecido há 11 anos atrás. Souza Lima foi um notável pianista e compositor paulistano, além de Maestro (regente da Orquestra Municipal de São Paulo, por 32 anos, fundador do Trio São Paulo, dele fazendo parte por 8 anos e fundador da Orquestra Sinfônica Estadual), tendo sido também fundador, com Villa-Lobos, da Academia Brasileira de Música. Souza Lima se notabilizou como revisor de praticamente todo o repertório pianístico dos últimos 300 anos e como formador de concertistas no Brasil e no exterior.

Então, este concerto desta tarde nada mais faz do que reconhecer que, nesta homenagem que prestamos a esses nossos grandes Mestres, que tudo que nos deram carregamos conosco. 

Informamos ainda que vamos ter que fazer uma pequena alteração na ordem sequencial de apresentação das peças do Programa, devido à dificuldade que representa para o solista de trompa ter que suportar duas grandes composições para trompa consecutivas (um concerto de Mozart seguido por uma sonata de Beethoven), na 1ª Parte do Programa; por isso, será deslocada a sonata de Beethoven, da 1ª para a 2ª Parte, sendo substituída por 2 outras peças que constavam da 2ª Parte (Moto Pérpetuo de Paganini e Rêveries de Glazunov).

Damos as boas vindas a todos aqueles que vieram à nossa terra para as festividades da Semana Santa e aos que aqui comparecem vindos de diversas localidades do País, bem como aos que atendem nosso convite e nos prestigiam com sua ilustre presença. 

Finalmente, desejamos a todos uma boa audição. Nosso muito obrigado ao distinto público!”

Flashes do concerto de 10/04/1993 (Crédito pelas fotos e captura de imagens de vídeo: Rute Pardini Braga)





quinta-feira, 20 de setembro de 2018

PALESTRA SOBRE CARA-DE-BRONZE DE GUIMARÃES ROSA NA UNIVERSIDADE DE ITAÚNA EM 12/09/2018


Por Francisco José dos Santos Braga


Ilmo. Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro, DD. Presidente da Academia Itaunense de Letras-AILE, 
Ilmo. Sr. Paulo José de Oliveira, DD. Diretor Financeiro, de Comunicação e Eventos da Academia Formiguense de Letras-AFL,
Ilmo. Sr. Ronan Nonato Ferreira de Lima, DD. Venerável da Loja Maçônica Itaúna Livre, que está completando 70 anos de profícua existência em permanente sintonia com o progresso de Itaúna,
Ilmo. Sr. Ricardo Eustáquio Guimarães Rosa, sobrinho do meu homenageado, o escritor João Guimarães Rosa, e em nome de quem saúdo os outros ocupantes desta Mesa Diretora,
DD. Dr. Roque Camêllo (in memoriam), que me permito saudar, eis que sempre prestigiava com sua ilustre presença minhas palestras: presidiu a Academia Marianense de Letras; foi prefeito de Mariana; Diretor-Executivo da Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana (FUNDARQ); idealizador do "dia de Minas", celebrado todo 16 de julho em Mariana por se tratar da data de fundação, em 1696, da primeira vila (Ribeirão do Carmo), primeira capital, primeira cidade e primeira diocese de Minas Gerais; intelectual respeitado, defensor da Cultura mineira e autor de "Mariana: Assim nasceram Minas Gerais: uma visão panorâmica da História",
Prezados professores e alunos da Universidade de Itaúna,
Senhores e Senhoras,

Cabe-me inicialmente expressar minha gratidão ao digníssimo presidente da egrégia Academia Itaunense de Letras, Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro, eis que o convite para minha participação neste evento comemorativo é fruto da sua insistência solidária e magnânima. Sinto-me honrado de sua escolha ter recaído em meu nome para proferir esta terceira palestra, o que me enseja prestar, aqui e agora, um tributo ao grande escritor mineiro João Guimarães Rosa. Seja por todos enaltecida a promoção desta “Semana Guimarães Rosa”, em comemoração aos 110 anos do nascimento do meu homenageado, na qual podemos dignamente fazer uma circunspecta reflexão sobre a vida e obra do escritor mineiro. Coincidente com essa semana comemorativa, celebramos o triênio da fundação dessa Academia de Itaúna e o septuagésimo aniversário da Loja Maçônica Itaúna Livre, e posso afirmar quão gratificante para mim é a oportunidade de participar da comemoração dessas duas entidades itaunenses, que, apesar de sua pouca idade, com suas promoções, realizações, iniciativas e projetos, já despertam ciúme em muitas da mesma espécie já maduras ou avançadas em idade. Quero, portanto, deixar registrada, o mais solenemente possível, a minha homenagem e gratidão ao presidente Dr. Arnaldo.

A trajetória de vida de Guimarães Rosa não difere muito de outros brasileiros que escolheram a carreira literária ou diplomática, salvo o fato de Rosa ser extremamente simples, destituído de vaidades, embora muito autodeterminado diante de todas as surpresas que a vida lhe ofereceu. Devo inicialmente registrar que ele era mineiro, portanto bebeu da mesma fonte que a maioria de nós, teve experiências parecidas às vivenciadas por outros aqui presentes, abordagem que procurarei fazer da forma mais objetiva possível, nesta minha palestra intitulada Vida e morte na obra de Guimarães Rosa. Aqui serão lembrados apenas alguns fatos de sua vida que nos dizem respeito mais de perto. Em 27 de junho de 1908, portanto há 110 anos atrás, nasceu o meu homenageado em Cordisburgo, entre Curvelo e Sete Lagoas, nas imediações da gruta do Maquiné. Foi o primeiro dos sete filhos de Florduardo Pinto Rosa (seu Fulô) e Francisca Guimarães Rosa ("Chiquitita"). Era carinhosamente tratado por “Joãozito”. Em 1918, saiu da cidade natal para matricular-se como interno no curso ginasial no Ginásio Santo Antônio de São João del-Rei, dirigido por frades holandeses, onde “não se acostumou com a comida e com uns colegas que lhe faziam medo” (bullying?), razão por que pediu transferência para o ginásio do colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, de padres alemães, onde também estudaram Carlos Drummond de Andrade e Gustavo Capanema. Entusiasmado com os livros, passou a frequentar a biblioteca da capital mineira. Dos 10 aos 16 anos, o jovem Joãozito continuou se aperfeiçoando e aprendendo novas línguas, dedicando-se à leitura dos clássicos, sempre que possível no original: “Da mesada de dois mil-réis, comprava aos domingos empadinhas e garrafas de soda limonada e se refugiava na Biblioteca Pública, para devorar livros.” História natural era uma matéria de sua preferência. Durante sua infância colecionara insetos e borboletas. Gostava dos animais e aprendeu a conhecê-los individualmente. Nas férias, em visita a Cordisburgo, explorava os campos em busca de cobras. Também estudou música, depois que ganhou do pai um violino, que mais tarde acabou vendendo só “para visitar uma namorada que se mudara para outra cidade.”

Em 1925, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (1925-30) e durante o curso conheceu, no hospital da Santa Casa de Misericórdia, o Dr. Juscelino Kubitschek de Oliveira, de quem se tornou amigo. No dia 27 de junho de 1930, data do seu aniversário, casou-se com Lygia Cabral Penna, jovem de 18 anos, natural de Sete Lagoas. Rosa formou-se em medicina em 21 de dezembro do mesmo ano. Em 1931, iniciou sua carreira de médico em Itaguara, pequeno povoado rural, sem luz e com estradas de terra (município de Itaúna), onde passou a residir. Em 5 de julho, nasceu sua primeira filha Vilma. Em abril de 1933, através de concurso, ingressou na Força Pública de Minas como oficial-médico do 9º Batalhão de Infantaria, sediado em Barbacena, para onde se mudou com a família. Praticava francês com parceiros de xadrez no Clube Comercial; treinava alemão, estudava russo e japonês com imigrantes provenientes de tais países. No dia 17 de janeiro de 1934, nasceu sua segunda filha, Agnes. Ainda em Barbacena, começou a preparar-se para o concurso do Itamaraty e conheceu Geraldo França de Lima, futuro escritor e membro da ABL, que o incentivou a entrar para o Itamaraty e que, conhecendo a aversão de Rosa à medicina, lhe enviou o programa do concurso, quando foi estudar direito no Rio. Ali, em julho, prestou concurso para o Itamaraty, sendo aprovado em 2º lugar. No dia 11 de julho foi nomeado oficial de terceira classe, ingressando na carreira diplomática. Pediu demissão do cargo de capitão-médico, e logo depois se mudou com a família para o Rio, onde iria residir por quase quatro anos, trabalhando na Secretaria do Ministério das Relações Exteriores, Palácio do Itamaraty (14/07/1934 a 13/04/1938).

Sobre outros fatos da vida de Rosa, a Wikipédia e os mais diversos autores podem fornecer inúmeras notícias relevantes, a meu ver dispensáveis de serem comentadas aqui. Há, no entanto, um fato curioso sobre a sua posse na ABL-Academia Brasileira de Letras que gostaria de rememorar, tendo em vista a conexão que tem com a temática eleita para esse discurso. Em 1957, Rosa candidatou-se pela primeira vez a imortal da ABL e obteve apenas 10 votos. Observe-se que já era autor consagrado, tendo até então produzido uma coletânea de poesias “Magma” (1936), obra inédita durante 60 anos, inscrita em Concurso Literário da ABL, com o qual conquistou o primeiro prêmio, além de ter publicado “Sagarana” (1946), um livro de contos, e duas obras monumentais em 1956: o livro de novelas “Corpo de Baile” e o romance “Grande Sertão: Veredas”. Em decorrência desse último, recebeu nesse mesmo ano os seguintes prêmios: "Machado de Assis", "Carmem Dolores Barbosa" e "Paula Brito". Em 1961, Rosa recebeu da ABL, pelo conjunto da obra, o prêmio "Machado de Assis". Em 1962, lançou “Primeiras Histórias” e, em maio de 1963, candidatou-se pela segunda vez a membro da ABL, na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição deu-se a 8 de agosto e desta vez Rosa foi eleito por unanimidade. Temendo ser tomado por forte emoção, protelou o quanto pôde a cerimônia de posse por quatro anos. Costumava dizer que, empossado, morreria em seguida.

Quando finalmente decidiu tomar posse na Academia Brasileira de Letras, ocorrida na noite de 16 de novembro de 1967, foi recepcionado por Afonso Arinos de Melo Franco. Em seu discurso, Rosa começou descrevendo sua terra natal: 
pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas”. 
Em seguida, no elogio que fez a seu antecessor na Cadeira nº 2, João Neves da Fontoura, a quem chamava de ministro pelo cargo que ocupara à frente das Relações Exteriores em 1946, afirmou, como se prenunciasse a própria morte: 
"(…) A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: JOÃO NEVES DA FONTOURA. Alegremo-nos, suspensas, ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ – desfere então o salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas. (…)”. 
Quando se ouve a gravação do discurso, nota-se, claramente, ao seu final, sua voz embargada pela emoção: é como se chorasse por dentro. É possível que o novo Acadêmico tivesse plena consciência de que chegara sua hora e sua vez. Com efeito, três dias após a posse, em 19 de novembro, ele morria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa naquele domingo), mal tendo tempo de chamar por socorro. Assim desapareceu Rosa prematuramente aos 59 anos de idade, vítima de enfarte fulminante, no ápice de sua carreira literária. No ocaso daquele 19 de novembro, ficou para sempre encantado, tornou-se um mito, talvez o mais duradouro da literatura brasileira, e já era um clássico universal.

Os contos, novelas e romances rosianos estão situados espacialmente no que se poderia chamar, em sentido amplo, de sertão. Suas narrativas transcorrem nos campos gerais, ou mais simplesmente, nos gerais (cujo espaço geográfico Rosa situava no Oeste e Noroeste de Minas Gerais, estendendo-se pelo Oeste da Bahia, e Goiás, até ao Piauí e ao Maranhão), caracterizados pelas chapadas e pelos chapadões, bem como pela vegetação do cerrado. Essas informações sobre o interior do Brasil, onde se passa a ação em “Corpo de Baile”, Rosa transmite em carta a seu tradutor para o italiano, Edoardo Bizzarri.

A sua obra se distingue pelas inovações de linguagem, profundamente identificada com os falares populares e regionais, que, plasmados pela erudição do autor, lhe permitiam criar inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos, bem como neologismos e onomatopeias a partir do realismo mágico, regionalismo e invenções e intervenções semânticas e sintáticas, que empregava com maestria.

Há uma crônica muito curiosa de Rubem Alves, intitulada “Sobre o morrer”, publicada na Folha de S. Paulo em 18 de outubro de 2011, que diz, entre outras coisas, que, apesar de a morte ser o destino de todos nós, a ideia de morte repentina não o atraía, porque ele precisava de tempo para escrever o seu último haikai, capaz de sintetizar “o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai”. Nessa célebre crônica comentou que, diante da proximidade da Morte, iria repensar seus valores e listou alguns discípulos da mesma mestra (a Morte), cuja convivência não dispensaria: primeiro, “Mallarmé que tinha o sonho de escrever um livro com uma palavra só”; depois, os poetas em geral e, por fim, apenas três prosadores, intelectuais de nomeada: um alemão, um francês e um brasileiro, como aprendizes da mesma mestra, a Morte. Atentemos para as próprias palavras do cronista, se estivesse para morrer: “(...) Creio que não mais leria prosa. Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. E certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a Morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim ... (...)”

Por que Rubem Alves, entre tantos representantes da boa técnica literária brasileira, escolheu apenas Rosa entre os prosadores? Na impossibilidade de sabermos dele próprio o motivo dessa eleição, aventuro-me a responder que o que era ponderável para Rubem Alves é que a universalidade da obra de Rosa se deva a uma série de fatores, que vão desde o plano de expressão, nas mãos de Rosa, impregnando seu texto de conotações, de realismo fantástico e de uma multiplicidade de dimensões, até a metalinguagem, o que torna a narrativa plena de significados e passível de diversas interpretações. As técnicas empregadas são multidimensionais, deixando transparecer várias camadas sobrepostas. Tudo isso está muito próximo à proposta poética. Resta ainda acrescentar que a ação poética da obra de Rosa baseia-se na oralidade. Rosa faz seu relato vincular-se à preservação intencional do verbo ancestral. Sua prosa poética funda suas raízes na música intuída e praticada pelos poetas-cantadores do sertão.

Para analisar Vida e Morte na obra de Rosa, minha escolha recaiu sobre o livro “Corpo de Baile”. Como se sabe, o livro é constituído de 7 novelas que não apresentam unidade de ação; logo, qualquer uma delas pode ser lida individualmente sem recorrer às outras. É que há certa autonomia das estórias individuais. Quanto à denominação de “novelas” para os 7 contos de Corpo de Baile, observe que na correspondência com o tradutor italiano, Rosa se refere às sete obras como “novelas” (BIZARRI, 1981, 79) – termo que também adotamos neste trabalho. Também, há a tendência por parte das editoras de publicar as 7 novelas em dois volumes (no caso da 1ª  edição), juntá-las num único volume (2ª edição) ou publicá-las em três volumes (a partir da 3ª edição), intitulados: Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; e Noites do Sertão. Com a tripartição, a ideia de totalidade que articulava o conjunto (unidade de conjunto) tendeu a ser ofuscada, de alguma forma, pela da diversidade das partes. [BIZZARRI, 1981, 79] esclarece que foi o próprio Rosa quem determinou a tripartição por considerar o gigantismo "físico do livro", segundo consta em correspondência do autor a Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano: 
A 1ª edição, em dois volumes, unidos, pesava, já. Arranjamos então a 2ª num volume só, mas que teve de ser de tipo minúsculo demais, composição cerrada. E a preço caro, além de não ficar o livro convidativo. Agora, pois, ele se tri-faz.
Uma constatação inicial é que a maioria dos críticos que se dedicou a estudar Corpo de Baile se ateve à investigação de estórias individualmente; é o que também farei nesta palestra, quando escolhi a novela intitulada “Cara-de-Bronze”, a segunda de três contidas no 2º volume “No Urubuquaquá, no Pinhém”, sendo as duas outras: O recado do morro e A Estória de Lélio e Lina. Procuremos inicialmente entender o extravagante título No Urubuquaquá, no Pinhém”. Trata-se de dois topônimos: para nos situarmos, saibamos que no Urubuquaquá temos a fazenda do personagem-título Cara-de-Bronze. No Pinhém, noutra fazenda, transcorre a intriga da belíssima Estória de Lélio e Lina. Nesta palestra vou usar a 5ª edição do Corpo de Baile em 3 volumes, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora S/A, de 1976 (1976b, p. 71-127).


Preliminarmente, faço a seguinte observação: faz 62 anos desde que o sertão mineiro ganhou o mundo pela literatura do Rosa, quando vieram a lume um livro de contos, Corpo de Baile, e um romance Grande Sertão: Veredas. Ambos apareceram em 1956 com uma diferença de poucos meses entre as duas publicações. Mas, na verdade, ambos nasceram quatro anos antes, mais precisamente em maio de 1952, quando o escritor mineiro organizou uma boiada para entender melhor a cultura sertaneja. Nessa aventura, Guimarães Rosa registrou lugares, palavras, expressões e personagens. Entre tantos vaqueiros que se juntaram à empreitada, um pode ter sido definitivo para as obras rosianas: Manoel Nardi Filho (o chefe da expedição e que inspirou o autor a criar o célebre personagem Manuelzão), que é o protagonista do primeiro volume de Corpo de Baile (Manuelzão e Miguilim).


A cruzada teve origem na Fazenda Sirga, a 60 quilômetros de Andrequicé, distrito de Três Marias (MG), onde Manuelzão viveu seus últimos 20 anos. Dez dias depois, o ponto de chegada foi uma fazenda em Araçaí (MG), município vizinho a Cordisburgo (MG), cidade natal de Guimarães Rosa. Dessa viagem, em maio de 1952, ficaram algumas lembranças na memória dos oito vaqueiros que acompanharam o escritor por mais de 40 léguas sertão a dentro. Por exemplo, vejamos o depoimento de João Henrique Ribeiro (o seu Zito, guia e cozinheiro da tropa, com a idade de 74 anos), obtido pela Revista Cult na cidade de Três Marias: “O Rosa chegou na fazenda Sirga do Chico Moreira (primo dele) no dia 16. Festa antes da saída da boiada. Foi no dia 19/05/1952 que nós saímos pra viagem. Fomos para a fazenda Tolda, depois tinha uma vereda indo para Andrequicé, depois Catatau, depois Riacho das Vacas, depois Meleiro, depois Barreiro do Mato, depois fazenda Ventania do Juvenal, depois fazenda Riacho da Areia de um paulista, depois fazenda do dr. José Saturnino (primo dele), já chegando em Cordisburgo, depois Cordisburgo, depois uma fazenda não nomeada, depois um lugar chamado Toca do Urubu (onde se encontrou com o pessoal de O Cruzeiro, isto é, repórter Álvares Dias e fotógrafo Eugênio Silva, os quais registraram apenas parte da viagem do Rosa pelo sertão) e, por fim, entregamos a boiada numa fazenda perto da cidade de Araçaí.”

Zito foi a grande fonte do escritor, sendo citado em suas anotações como o mais esperto dos vaqueiros que conheceu durante a viagem. Guia e cozinheiro da tropa, Zito ia à frente e era quem conversava com o escritor durante quase todo o tempo, dedicando boa parte de suas horas às indagações e dúvidas de Rosa.

Guimarães Rosa, no Sertão de Minas Gerais, 1952

Todas as noites, encerrado o trabalho dos vaqueiros, Zito sentava-se à beira da fogueira e escrevia versos que narravam o que havia acontecido durante o decorrer do dia. Esses versos foram registrados nas cadernetas de viagem de Guimarães Rosa. Tais anotações se encontram arquivadas atualmente no Instituto de Estudos Brasileiros-IEB da USP, em São Paulo.

O seu Zito relembra os nomes dos que tomaram parte nesta expedição. Foram eles: o Tião Leite, o Santana, o Sebastião de Jesus, o Gregório, o Manuelzão, o Bindóia, eu (Zito) e o Rosa. Tem o Aquiles também, um bom violeiro. Ah, e um rapazinho que não é falado. Ele não saiu na reportagem, era menino, mas acompanhou todos os dias, devia ter saído. Tinha uns doze anos. Falado (sic) são sempre os oito, nove com o Rosa. Nós levamos trezentos e sessenta bois. Só boi grande. Eu batia o berrante e eles seguiam. Conversei durante o tempo todo com o Rosa. Falava tudo quanto era bobagem. Inventava as coisas muito bem pra conversar com ele. Às vezes não tinha mais assunto. Falava de mulher, de moça bonita. Falei muita bobagem pro Rosa e ele escrevia tudo. Eu lia muito livro, sabia tudo de cor, mas não sei mais nada. Sabia tudo quanto é bestagem. Tudo, ele escreveu tudo. Cult: E os versos que o senhor fez? Eram feitos quando? Zito: Era feito durante a viagem, de noite. O que passava no dia, eu escrevia de noite. Cult: Que tipo de história o Rosa gostava mais? Zito: Verso, ele gostava muito de verso. Mas não aprendia nada… (risos). Eu sabia tudo de cor. Ele anotava tudo. Depois que eu adoeci, a memória ficou fraca e esqueci tudo. Cult: Rosa comentou sobre o que faria com o material da viagem? Zito: É assim que o Rosa fez. O que Rosa escreveu foi dito por nós. Ele não sabia daquilo. O Rosa saiu de Cordisburgo rapaz novo, foi fazer medicina, participou daquela revolução de 32 e abandonou a medicina pra ir pro exterior. Aí quando ele morreu, vieram outras pessoas pra confirmar onde o Rosa passou. Mas ele inventou o resto.

Também a revista Cruzeiro, dos Diários Associados, fez o relato da expedição numa grande reportagem Rosa e seus vaqueiros, em 21 de junho de 1952. Nas fotos, Manuelzão está entre o grupo. Em sua homenagem, Rosa escreveu a novela Uma Estória de Amor, do livro Corpo de Baile.

Entusiasmado com esta viagem, em junho, nas festas de São João, faz uma nova incursão rumo ao mundo dos vaqueiros, participando de uma grande vaquejada em Caldas do Cipó, no sertão da Bahia, em companhia de Assis Chateaubriand e do presidente Getúlio Vargas. Em 15/7, em correspondência a seu pai, Rosa comenta o “espetáculo inédito” que presenciou: a reunião de cerca de 600 vaqueiros “autênticos”, provenientes de vários estados do Nordeste (Pernambuco, Paraíba e Piauí e de quase todos os municípios baianos onde há criação de gado): 
(...) Fui com Assis Chateaubriand, que é o rei dos entusiastas, e tive de vestir também o uniforme de couro e montar a cavalo (num esplêndido cavalo paraibano), formando na “guarda vaqueira” que foi ao campo de aviação receber o presidente Getúlio Vargas. A mim coube “comandar” os vaqueiros de Soure e de Cipó (!). Depois, o desfile, brilhante.” [apud COSTA, 30] 
Logo no início, antes do índice, o livro “No Urubuquaquá, no Pinhém” traz duas epígrafes que devem nortear todo o seu conteúdo e são como o tema proposto para as suas três novelas. Importa lembrar que ambas as epígrafes são como degraus de acesso a essas surpreendentes narrações. São elas dois pequenos trechos de dois autores universais: o filósofo Plotino (204-270 D.C.), portanto nascido na Antiguidade Tardia, natural de Licópolis, Egito, na ocasião ocupado pelo Império Romano, que representa o Platonismo, ou seja, toda a antiguidade, e o místico medieval flamengo, Ruysbroeck o Admirável (1293-1381). Então, Rosa escolheu de Plotino a seguinte citação: “O melhor, sem dúvida, é escutar Platão: é preciso – diz ele – que haja no universo um sólido que seja resistente; é por isso que a terra está situada no centro, como uma ponte sobre o abismo; ela oferece um solo firme a quem sobre ela caminha, e os animais que estão em sua superfície dela tiram necessariamente uma solidez semelhante à sua.” (retirado do Timeu) Em breves palavras, Plotino foi um dos principais filósofos de língua grega do mundo antigo. Seguidor da filosofia platônica, desconfiava da materialidade, convencido de que os fenômenos são uma imagem ou imitação (mimese) de algo maior e inteligível, que seria a parte mais verdadeira e genuína do Ser (alegoria bem descrita por Platão em seu “mito da caverna”). Esta desconfiança era válida também para o corpo e o seu próprio corpo. Plotino dividia o universo em quatro hipótases: o Uno, o Intelecto (nous), a Alma (manas, elo entre o espírito e a matéria) e a Matéria. Para ele, o Uno, ser supremo, totalmente transcendente, Deus, não pode ser visto como qualquer coisa existente, mas é antes de tudo existente. O Uno, identificado com o conceito de Bom e o princípio da Beleza, não é apenas um conceito intelectual, mas algo que pode ser experimentado, uma experiência em que o Uno vai para além de toda multiplicidade. Na obra rosiana, a experiência contemplativa aparece dentro de um clima fortemente platônico, como um processo de libertação por meio do qual o homem consegue encontrar-se a si mesmo. Quanto à outra epígrafe usada por Rosa, a citação é do místico Ruysbroeck o Admirável : “A pedra preciosa de que falo é inteiramente redonda e igualmente plana em todas as suas partes”. Se me fosse dado escolher, outra teria sido a segunda epígrafe para o livro de Rosa, do mesmo Ruysbroeck: a que foi utilizada por Rosa antes da novela “Miguelzão e Miguilim”, ou seja, a meu ver, a que melhor nos inicia no clima que envolve boa parte da obra narrativa rosiana: “Vede, eis a pedra brilhante dada ao contemplativo; ela traz um nome novo, que ninguém conhece, a não ser aquele que a recebe.” (referência à luz) Rosa vê a experiência do viver com as tonalidades místicas de uma experiência espiritual de caráter contemplativo. Ou seja, a “mística” rosiana possui elementos de uma mística pré-cristã que galga os primeiros degraus ao reino sobrenatural, que, a seguir, é alargada por uma mística cristã que o alumia plenamente. Constata-se aí um salto qualitativo. 

Na discussão que fez sobre a obra Corpo de Baile, [Heloísa Vilhena de Araújo (1992) apud MARQUES, 2009] destacou a relação entre a obra rosiana e as suas epígrafes, para a consequente análise de “Campo Geral”, uma das 7 novelas do livro. A autora partiu das epígrafes de Plotino que acompanham a primeira edição de Corpo de Baile, em dois volumes. Em seguida, estudando o Timeu, a autora chegou à ideia dos planetas viajantes e a uma relação entre “planetas” e novelas de Corpo de Baile, hipótese confirmada pela secretária de Guimarães Rosa, Maria Augusta de Camargos Rocha, chegando à seguinte correspondência entre deuses/planetas (os visíveis na Antiguidade)/dias da semana e respectivas novelas: Campo Geral, Sol/domingo; Buriti, Lua/2ª feira; A Estória de Lélio e Lina, Marte/3ª feira; O Recado do Morro, Mercúrio/4ª feira; Uma Estória de Amor, Júpiter/5ª feira; Dão-Lalalão, Vênus/6ª feira; Cara-de-Bronze, Saturno/sábado. Convém reter que nas novelas de Corpo de Baile se viaja o tempo todo, o que significa travessia, peregrinatio, movimento dos planetas e (por que não?) movimento dos bailarinos; as experiências da viagem constituem aquisição de conhecimento e oportunidade de construção de si mesmo.

Fixando-nos em Cara-de-Bronze, objeto dessa palestra, em Saturno terminam os planetas que são visíveis a olho nu, portanto os conhecidos na antiguidade. Na astrologia, Saturno representa a velhice, por isso simboliza personagens como o velho sábio, o eremita, os nossos antepassados, aqueles que acumulam experiência de vida. Tem sido chamado o planeta do destino, o Senhor do Karma ou O Grande Maléfico. É o planeta que na vida terrena significa restrições e obstáculos que devemos enfrentar, caso nossos objetivos pessoais estiverem incorretos. Mesmo sendo visto como uma força negativa, pode igualmente ser uma força que proporciona oportunidades de crescimento, retidão e submissão a regras necessárias. No seu melhor, ajuda a consolidar esforços, e, no seu pior, restringe os mesmos esforços. O astro fala basicamente de limites, fronteiras, escolhas criteriosas e bem fundamentadas, da estrutura e distinção entre as coisas. De qualquer forma, pode-se dizer que nossas maiores conquistas podem ter Saturno envolvido, exatamente porque elas podem ser fruto da capacidade de entendermos a importância das dificuldades, da carreira e da responsabilidade, garantindo assim uma noção mais real de quão positivo é agirmos com resiliência onde mais precisamos.

É fato sobejamente conhecido que Rosa transitou com muita propriedade entre dois universos linguísticos que em geral estão muito separados: o da cultura erudita e da mais elevada literatura, tipificado aqui pelas epígrafes de Plotino e de Ruysbroeck o Admirável e por suas frequentes citações de Platão, Goethe, Dante, Upanishad e outros luminares do cânone literário universal, e o da cultura popular. Ambos os universos estão presentes em “Cara-de-Bronze”. Rosa, como vimos, veio desse meio: Cordisburgo era uma cidade por onde passava o gado e o pai dele era dono de uma venda em frente à estação ferroviária. Ele nasceu na região dos gerais, cresceu nesse ambiente ouvindo estórias, narradas por seu pai que era tido como grande contador de estórias, tinha grande interesse pelo universo sertanejo e registrou o que viu e ouviu em cadernetas de viagem, utilizadas como matéria prima que Rosa trabalhou esteticamente para compor seus livros. [SANTIAGO, Silviano, 1982] assinalou essas inconsistências em O Guarani e nos textos de viajantes do período colonial. [SCHWARZ, Roberto, 1997, 19, 31] chamou de “viés enviesado” o que resultou deste processo de transplante da cultura europeia para cá. Importa fixarmos que, em Rosa, a cultura sertaneja e a tradição erudita europeia reúnem-se numa fusão perfeita. Nele não se verificam inconsistências, típicas de nossa história e de nossa literatura, em que se buscou o estabelecimento de correspondências entre elementos locais e os dos centros culturais.

Outro ponto também relevante é que a obra rosiana se caracteriza pela composição em camadas: no primeiro nível se encontra o interior geográfico e histórico social do Brasil (consta que Rosa constrói seu universo ficcional baseando-se em estudos de Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, autores que precisava conhecer em sua missão diplomática); ligada a esta primeira camada, há outra, mais profunda, que o próprio autor, influenciado por Platão e Plotino, chamou "metafísico-religiosa". Em carta a Bizzarri (1980, 58), Rosa atribui uma pontuação aos elementos que entrariam na composição de sua obra: um ponto a "cenário e realidade sertaneja"; dois pontos a "enredo"; três pontos a "poesia"; e quatro pontos a "valor metafísico-religioso".

Como já vimos, outro aspecto inerente a “Corpo de Baile” é a recorrência da viagem nas novelas. É que o livro está vinculado a uma concepção do destino itinerante, que se constrói ou com lances aleatórios de jogo ou com os circunlóquios de uma fortuna andeja. 

O narrador (Rosa, 1976b, 74), já na segunda página de Cara-de-Bronze”, dá notícia de um cantador que "da varanda tocava alta viola. E cantava uma copla, quando, quando. Experimentava:
Buriti – minha palmeira?
Já chegou um viajor...
Não encontra o céu sereno...
Já chegou o viajor...
E achava o fácil:
Buriti, minha palmeira,
é de todo viajor...
Dono dela é o céu sereno,
dono de mim é o meu amor..."
As trovas, em notáveis variantes, continuam em compasso com o caminhar da novela, até o seu final. Por exemplo, essas duas primeiras trovas anunciam e antecipam o tema da viagem nesta novela, sempre variando conforme evolui o diálogo entre os vaqueiros ou conforme o progresso da narrativa.  Quando indagado sobre o cantador e sua procedência, o vaqueiro Cicica responde: "Esse um? É cantador, somentes. Violeiro, que se chama João Fulano, conominado "Quantidades"... Veio daí de riba, por contrato." (Rosa, 1976b, 77)

O narrador é onisciente e dá as seguintes informações a seu leitor: Quanto à fazenda e sua localização: “No Urubùquaquá, fazenda-de-gado: a maior – no meio – um estado de terra. A que fora lugar, lugares, de mato-grosso (...) Este os Gerais, os Gerais do ô e do ão (...) Os Gerais do trovão, os Gerais do vento.” (Rosa, 1976b, 73)

Quanto à narrativa: “Eu sei que esta narração é muito, muito ruim para se contar e se ouvir, dificultosa; difícil: como burro no arenoso. (...) Estória custosa, que não tem nome; dessarte, destarte. Será que nem o bicho larvim, que já está comendo da fruta, e perfura a fruta indo para o seu centro. Mas como na adivinha – só se pode entrar no mato é até o meio dele. Assim, esta estória. Aquele era o dia de uma vida inteira.” (Rosa, 1976b, 96-97)

Sobre o personagem-título da novela, Cara-de-Bronze, temos que é um homem muito esquisito, já velho e monocrático "lá de seu quarto de achacado, e que ninguém quase não vê, dá ordens" (Rosa, 1976b, 76). Essas ordens chegam através de determinados vaqueiros que têm e só eles têm a autorização expressa de entrar em seu quarto. Podemos dizer que, por baixo da estória explícita, há outra implícita. 

[AUGUSTO, s/d] esclarece o porquê da estória implícita: 
Em momento algum do conto temos acesso à voz direta desse personagem: lemos vários relatos de vaqueiros, diferentes modalidades de discurso (narração em terceira pessoa, peça de teatro, roteiro cinematográfico, ladainha, canção e nota de rodapé), múltiplos pontos de vista e narradores, em suma, diversos tipos de mediação na tentativa de ver o fazendeiro, sem que este assuma sua própria voz em momento algum. 
E quanto à estória explícita? 
A trama da estória explícita se passa em apenas um dia numa fazenda no Urubuquaquá e tem como herói o Grivo: é o dia do retorno de sua viagem até o norte, munido das "belezas e poesias" que trouxe como singular bagagem para seu patrão. É uma estória aparentemente simples, mas que ganha complexidade pelo seu diálogo com a implícita.
A vida do Velho é o enigma a ser elucidado pelo leitor. E que vida era esta a do Cara-de-Bronze, o protagonista da novela? Vale a pena lembrar o sumário que o próprio Rosa fez ao seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri: 
O 'Cara-de-Bronze' era do Maranhão (os campos gerais, paisagem e formação geográfica típica, vão de Minas Gerais até lá, ininterruptamente). Mocinho, fugira de lá, pensando que tivesse matado o pai. Veio, fixou-se, concentrou-se na ambição e no trabalho, ficou fazendeiro, poderoso e rico. Triste, fechado, exilado, imobilizado pela paralisia (que é a exteriorização de uma como que 'paralisia da alma'), parece misterioso, e é; porém, seu coração, na última velhice, estalava. (...) (BIZZARRI, 2003, 93-94) 
Vou tomar a liberdade de acrescentar algo a esse sumário do Rosa: certo fazendeiro apelidado Cara-de-Bronze ou Velho, cujo nome era Segisberto Saturnino Jeia Velho, Filho, que morava no Norte (o conto não especifica que ele viera do Maranhão), tivera uma noiva, e possivelmente iria viver feliz com ela por lá, não fosse ter brigado com seu pai violentamente. O pai atirou no filho que revidou e em seguida fugiu, “picou o burro”, certo de que seu tiro acertara o alvo. Foi para Urubuquaquá, onde trabalhou duro e acumulou riquezas, deixando seu passado encoberto. Agora, já velho, acometido por uma doença estranha, sozinho no mundo, embora tivesse a seu serviço 40 vaqueiros, escolhe um deles (o Grivo) para buscar o quem das coisas, ou seja, para dar-lhe as palavras de seu tempo perdido, como se fosse um remédio em forma de palavra. Só com a volta do Grivo, e por seus bons serviços, é que ficou sabendo, 40 anos depois, que seu pai caiu porque estava bêbado e não porque fora atingido, e que sua noiva tinha se casado com outro e tido filhos.


Roteiro para um filme
 
[SILVA, 2006, 30-32] trata dessa experimentação do cinema na prosa de ficção rosiana. 
Lendo-se ‘o conto’, que experimenta os códigos da encenação teatral, das citações em rodapé, da moda de viola, da narrativa medieval e mítica, não se tem dúvidas de que o cinema foi aproveitado de maneira deliberada e de um modo artisticamente motivado.
O argumento da narrativa (que comporta vários níveis de significação) pode resumir-se à fórmula da busca: um cavaleiro (o vaqueiro Grivo), a mando de seu senhor (o Velho ou Segisberto Saturnino Jéia Velho, Filho) sai em busca de algo ou de alguém (o absoluto, a palavra, a mulher (também a totalidade que une o bem, a verdade e a beleza), ou a revelação de um suposto crime. O vaqueiro retorna com o objeto de sua busca, revelando-o, em quarto fechado, ao seu senhor. Enquanto ele faz a revelação, os vaqueiros, na coberta dos carros, procuram saber a natureza da tarefa do Grivo e o resultado delas. Assim como nós, os leitores, acabam eles por ficar nas incertezas.
Um pouco antes da metade material da narrativa, quando o narrador a suspende para uma digressão reflexiva que é também metalinguagem, o cinema comparece sob a forma de um roteiro técnico, com as duas colunas conhecidas: do lado esquerdo das páginas os indicadores dos elementos visuais (planos, enquadramentos, angulações, movimentos de personagens e de câmera), e do lado direito, os elementos estético-sonoros (som da viola e da moda, falas das personagens, música-de-fundo). (...) 
Depois desse roteiro técnico, o narrador faz a referida pausa (como se interrompesse a projeção de um filme já devidamente montado de acordo com o roteiro que acabara de tornar explícito), para explicar que o conto contém uma “estória custosa (de se ler ou de se entender?), que não tem nome; dessarte, destarte. Será que nem o bicho larvim, que já está comendo da fruta, e perfura a fruta indo para seu centro. Mas, como na adivinha – só se pode entrar no mato é até ao meio dele. (Rosa, 1976b, 96-97) 
Nossa primeira impressão, quando nos deparamos com este roteiro incrustado um pouco antes do meio do conto, acaba sendo a de estarmos diante de mais um virtuosismo. Além de haver usado, até este momento, dos registros normais da narrativa, o autor implícito havia passado pela moda de viola, pelas rubricas da encenação teatral, pela nota de rodapé indiciada por asterisco, pela entoação litânica. 
Tantas formas de expressão, incluindo a mais moderna, a do cinema, casam-se com a busca empreendida por Grivo e outros vaqueiros, antes da definição de quem será o escolhido por Cara-de-Bronze a fim de realizar a outra busca, a busca maior. Grivo é quem passa por todas as provas da melhor palavra, a palavra essencial, a intuição, num ambiente meio pré-socrático, da unidade no meio da diversidade. Enfim, Grivo foi escolhido porque foi melhor poeta, ou seja, foi o mais filósofo, pois, segundo o vaqueiro Tadeu, “Cara-de-Bronze” queria “era que se achasse para ele o quem das coisas!” Ora, esta busca, que constitui o empenho central da Metafísica, exige – segundo nos sugere o autor – o exercício de várias linguagens, da mais tecnológica (o cinema), científica e filosófica (as notas de rodapé contém denominações da Botânica e da Zoologia, além de citações de poetas como Dante e Goethe, de filósofos como Platão, de estudos de folclore e de livros religiosos), até a mais rudimentar, que é a fala dos vaqueiros, fala que domina soberana.” 

1ª cena: G.P.G. (Grande Plano Geral ou “geralzão”) de interior, na coberta: com um ângulo visual bem aberto, a câmera revela o cenário à sua frente; a figura humana ocupa espaço muito reduzido na tela; muito utilizado para interiores de grandes proporções
2ª cena: a) P.A. (Plano Americano) de interior, na coberta: plano dramático que enquadra a figura humana “cortado” pela coxa
b) movimento lento da câmera em caráter narrativo-descritivo na passagem: “Em P.E.M. da câmera, em lento avanço, enquadram-se: os currais, o terreiro, a Casa, a escada, a varanda.”
3ª cena: Grande Plano Geral de interior, na coberta: Moimeichego restitui ao vaqueiro Zazo seu chapéu-de-couro, que, de cócoras, continua a untar por fora com sebo de boi, para o impermeabilizar contra a chuva; Moimeichego se levanta
4ª cena: Grande Plano Geral na varanda. O cantador, empunhando a viola, levanta-se de sua rede em embira; caminha para o parapeito, espia, escuta; o cantador, de pé, tempera a viola e canta.
Chega o cozinheiro-de-boiada Massacongo: “P’r’ almoçar, gente. Começou-se!”
Noutra coberta, na linha do oitão direito da Casa: os caldeirões com a couve e torresmos, a carne-seca, o angu que fumega e o feijão que borbulha.
Grande Plano: Todos riem. Todos comem.
Fusão lenta: fusão de duas imagens, a primeira sobrepondo-se, a primeira sobrepondo-se à segunda. Serve para mudar de cena ou enfatizar a relação entre elas.

Dessa forma, ao escolher os planos de filmagem, seus ângulos, seus enquadramentos, seus planos, os movimentos de câmera, Guimarães Rosa assume o papel de diretor em seu conto. Se fosse filmado conforme o roteiro proposto por Guimarães Rosa, a adaptação de "Cara-de-Bronze" seria um vídeo composto com poucos diálogos, mais descritivo que narrativo através dos sons – representados pelas cantigas de João Fulano – e das imagens – sugeridas pelo autor através do plano geral.

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Depois do roteiro, deixará para trás a ladainha, e continuará com as outras modalidades de registro, mediante a introdução de um narrador interno cuja voz é cortada pelas das outras personagens. Estruturalmente, Guimarães Rosa insere, em Cara-de-Bronze, um narrador que, às vezes, poderia se confundir com a figura do coral, como no trecho, presente entre diálogos, e que aparece, no livro, em negrito: "É preciso lidar com diligência, mesmo durante o toró da chuva: outra boiada está para vir entrar. No Urubuquaquá, nestes dias, não se pagodeia – o Cara-de-Bronze, lá de seu quarto de achacado, e que ninguém quase não vê, dá ordens." (Rosa, 1976b, 76)

Vale a pena transcrever fragmentos do que supunham os vaqueiros acerca do obscuro personagem – o árido e inabordável Cara-de-Bronze. Comentam sobre o que imaginam ser o motivo que o leva a enviar o jovem vaqueiro Grivo em viagem sem destino compreensível. “Os vaqueiros ignoram” o que o Grivo foi buscar para satisfazer Segisberto Jéia. “Ignora-o mesmo o Cantador, o violeiro João Fulano, com cara de larápio, com sua viola de tabebúia, sentado em sua rede, no varandão...”. “A estória não é do Grivo, da viagem do Grivo, tremendamente longe, viagem tão tardada. Nem do que o Grivo viu, lá por lá. Mas – é a estória da moça que o Grivo foi buscar, a mando do Velho. Sim a que se casou com o Grivo, mas que é também a outra, a Muito Branca-de-todas-as-Cores, sua voz poucos puderam ouvir, a moça de olhos verdes com um verde de folha folhagem, da pindaíba nova, da que é lustrada.” (Rosa, 1976b, p. 98).

Qual foi a estratégia utilizada por Cara-de-Bronze para escolher finalmente o Grivo? 
"Cara-de-Bronze começou, mas vagaroso, feito cobra pega seu ser do sol. Assim foi-se notando. Como que, vez em quando, ele chamava os vaqueiros, um a um, jogava o sujeito em assunto, tirava palavra. De princípio, não se entendeu. Doidara? Eh, ele sempre tinha sido homem-senhor, indagador, que geria suas posses. Por perguntar noticiazinhas, perguntava, caprichava nisso. Só que, agora, estava mudado. Não requeria relatos da campeação, do revirado na lida: as querências das vacas parideiras, o crescer das roças, as profecias do tempo, as caças e a vinda das onças, e todos os semoventes, os gados e pastos. Nem não eram outras coisas proveitosas, como saber de estórias de dinheiro enterrado em alguma parte, ou conhecer a virtude medicinal de alguma erva, ou do lugar de vereda que dá o buriti mais vinhoso. Mudara. Agora ele indagava engraçadas bobéias, como estivesse caducável." (Rosa, 1976b, p. 99-100)
"Por exemplos: – A rosação das roseiras. O ensol do sol nas pedras e folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras do vermelho no branqueado do azul. A baba de boi da aranha. O que a gente havia de ver, se fosse galopando em garupa de ema. Luaral. As estrelas. Urubus e as nuvens em alto vento: quando eles remam em voo. O virar, vazio por si, dos lugares. A brotação das coisas. A narração de festa de rico e de horas pobrezinhas alegres em casa de gente pobre...”
“Ele queria uma ideia como o vento…” “que relembra os formatos do orvalho… E bonitas desordens, que dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade.”
“Não-entender, não-entender, até se virar menino.”
“Jogar nos ares um montão de palavras, moedal…”
“Era só uma claridade diversa diferente…”
“Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!". (Rosa, 1976b, p. 100-101) 
De seus quarenta vaqueiros, o Cara-de-Bronze valeu-se de um torneio verbal, selecionando inicialmente, para a disputa, sete: “Sestronho, sem pressa, o Cara-de-Bronze, se quis, fez. De mão, separou primeiro os primeiros, os quais foram: Mainarte, Noró, José Uéua, o Grivo, Abel, Fidélis e Sãos.” (Rosa, 1976b, p. 104).
A decisão do Velho orientou-se pelas respostas dos convocados às questões postas. Quanto mais racionais ou comuns, menos valiam. Em seguida, dos sete escolheu três: “Três, que eram. Mainarte, José Uéua e o Grivo. E o Cara-de-Bronze ouvia, pensava e olhava – com um olhar de olhos. Ele queria era um só. (...) O Velho mandava todos os três juntos, nos mesmos lugares. No voltar, cada um tinha de dar relato a ele, separado.” Era preciso “tirar a cabeça, nem que seja por uns momentos: tirar a cabeça, para fora do doido rojão das coisas proveitosas.” (Rosa, 1976b, p. 105).
O que o Velho esperava deles é que "tudo tinham de transformar, ter em outras retentivas." (Rosa, 1976b, p. 106) Ou seja, Cara-de-Bronze não queria a descrição das coisas, queria a coisa em si, a poesia delas. Finalmente, a escolha definitiva recai sobre o Grivo — poeta-cantador, dotado das virtudes de humildade, simplicidade e pureza de espírito, — que iria procurar, numa longa viagem, a essência da vida, “o quem das coisas”. "Mas o Grivo dava sota e ás. O Velho escolheu o Grivo" (Rosa, idem, p. ibidem), por ter certeza de que ele cumpriria rigorosamente a lei: "De ver, ouvir e sentir. E escolher. Seus olhos não se cansavam." (Rosa, 1976b, p. 113)

As opiniões dos vaqueiros variam: para o primeiro, o Velho gostou do Grivo, por causa duma conversa que mantiveram: “A gente pode gostar de repente?”, pergunta Cara-de-Bronze. “Pode”, foi a resposta do Grivo. “Como-é-que? Como que pode?” “É no segundo dum minuto que a paineira-branca se enfolha...”. Um segundo aventa outra razão: Grivo é “humildezinho de caminho, caxexo... Feio feito peruzinho saído do ovo...”. Um terceiro supôs ser outra a razão: “de boa inclinação, sem raposia nenhuma; nunca foi embusteiro”. Um quarto atinou com o verdadeiro motivo que levou o Velho a escolher o Grivo: “foi no ele dizer: – Sou triste, por ofício; alegre por meu prazer. De bem a melhor! DE-BEM-A-MELHOR!...” (Rosa, 1976b, p. 103). Ou seja, o Velho queria aquele que tem as virtudes da criança e que está incumbido de trazer a aurora à noite de seu senhor, mediante apenas o relato do que viu e ouviu na sua longa jornada.

[GRÁCIA-RODRIGUES, 2006, 104-105] conclui que
para realizar a grande travessia em busca do “quem das coisas” (Rosa, 1976b, 101), Grivo sabia “jogar nos ares um montão de palavras, moedal” (Rosa, idem, ibidem), via “no mundo (...) essas coisas de que ninguém não faz conta...”(Rosa, idem, 105), era dotado de “outras retentivas” (Rosa, idem, 106), que o faziam codificar “o-tudo-e-o-miúdo” (Rosa, idem, 101), e recebera uma ordem, que estava determinado a cumprir nem que para isso tivesse de “chorar noites e beber auroras” (Rosa, idem, 110).
Ao retornar, Grivo traz o que lhe fora encomendado. Construído como um jogo lúdico, é a partir do diálogo travado entre Grivo, José Proeza e Adino que se revela o segredo do objeto buscado. Grivo relata aos companheiros como foi a conversa com o Cara-de-Bronze sobre as coisas que viu, ouviu e sentiu. (Rosa, idem, 113) Nesse momento, surge a indagação assertiva de José Proeza: “Ara, então! Buscar palavras-cantigas?” (Rosa, idem, 126)
A expressão “palavras-cantigas” parece um modo diferente de referir-se à poesia transformada em discurso. Em seguida, interpola-se no diálogo o comentário entusiasmado de Adino, o anagrama “Aí, Zé, opa!” (Rosa, idem, 126), que fulgura epifanicamente o anagrama “a poesia”. A resposta às duas falas vem enfatizada na confirmação de Grivo: “Eu fui...” (Rosa, idem, 126). Grivo conseguiu captar o “quem das coisas”, trazer a noiva toda branca, ou seja, a poesia – que figurativiza, no caso, as coisas em sua essencialidade.
O crítico literário paraense Benedito Nunes (1969a, p. 179) afirma que
para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, de outro, o homem que o atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem – objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz. Ele atravessa a realidade conhecendo-a, e conhece-a mediante a ação da poiesis originária, dessa atividade criadora, que nunca é tão profunda e soberana como no ato de nomeação das coisas, a partir do qual se opera a fundação do ser pela palavra, de que fala Heidegger.
Mas somente em ‘Cara-de-Bronze’ que Rosa pôs a nu o motivo da travessia, focalizando-a direta e expressamente como tema. A viagem passa a constituir, nesse conto, a demanda da Palavra e da Criação Poética. Eis o sentido da estória deste Ariel do sertão, o Grivo, que sai mundo afora, a procurar, para o seu patrão Cara-de-Bronze, “o quem das coisas”, e que lhe traz, na volta, como único bem, “a viagem da viagem”: o relato poético do que viu, ouviu e imaginou.

Daí, a apologia da poesia faz Rosa antepor, como paratexto, o seguinte terceiro poema à abertura da novela “Cara-de-Bronze”, extraído das Cantigas de Serão, de João Barandão, pleno de conceitos contrastantes:

Eu sou a noite p’ra a aurora,/ pedra-de-ouro no caminho:/ sei a beleza do sapo,/ a regra do passarinho;/ acho a sisudez da rosa,/ o brinquedo dos espinhos.” (Rosa, 1976b, p. 71)

Valendo-se de secreto poder, o menestrel, um descompromissado com as coisas que atam o homem ao interesse, adivinha-lhes a beleza. É tudo o que Cara-de-Bronze desejava ouvir. Rosa desloca assim a narrativa do Cara-de-Bronze para uma dimensão mitopoética.

Seguindo as informações do próprio Rosa em carta de 25/02/1963 a Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano, os estudos sobre esse conto convergem para o entendimento de que o objeto da demanda final do Cara-de-Bronze é a poesia. Escreve Rosa:
“ (...) Então, sem se explicar, examinou seus vaqueiros – para ver qual teria mais viva e ‘apreensora’ sensibilidade para captar a poesia das paisagens e lugares. E mandou-o à sua terra, para, depois, poder ouvir, dele, trazidas por ele, por esse especialíssimo intermediário, todas as belezas e poesias de lá. O Cara-de-Bronze pois mandou o Grivo... buscar a poesia. Que tal?(BIZZARRI, 2003, 93-94)
É pela palavra pura, isenta dos significados, pela qual Cara-de-Bronze anseia, para chegar ao “quem das coisas”. O que o Grivo foi fazer? O que foi buscar? Que missão lhe foi confiada? Talvez trazer notícias da vida que Cara-de-Bronze perdera no processo de se fazer latifundiário, "ajuntando suas duras riquezas": ele fez o Urubuquaquá, amontoou riquezas. (...) Enricou. Que é que adiantava? De agora, ele estava ali, olhando no espelho da velhice - membeca ou querembáua, dava na mesma coisa. Não tinha elixir. No morro dum calundú, espetavam sua cabeça com uma agulha comprida, roíam-no monstros ratos. (...) Oé, o Cara-de-Bronze tinha uma gota-d'água dentro de seu coração. Achou o que tinha. (...) (Rosa, 1976b, p. 98-99)

Reproduzo por fim a conversa do Grivo com o Velho nas últimas quatro páginas da novela que traz a solução para o quem das coisas, "a poezia" através do anagrama "Aí, Zé, opa!":
“(...) Falei sozinho com o Velho, com Segisberto. Palavras de voz. Palavras muito trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo estava em ordem...
” (...)  
Eu disse ao Velho: ... A noiva tem olhos gázeos... Ele queria ouvir essas palavras. (...)”
E Grivo continua “(de repente começando a falar depressa, comovido): Ele, o Velho, me perguntou:
Você viu e aprendeu como é tudo, por lá?” – perguntou, com muita cordura. Eu disse: - “Nhor vi.” Aí, ele quis: Como é a rede de moça – que moça noiva recebe, quando se casa?” E eu disse: É uma rede grande, branca, com varandas de labirinto...” (Pausa.)”
José Proeza: Ara, então! Buscar palavras-cantigas?

Adino: Aí, Zé, opa! 

E para matar a curiosidade dos vaqueiros curiosos, Grivo arremata: “ (...) Ele, o Velho, disse, acendido: Eu queria alguém que me abençoasse...” – ele disse. Aí, meu coração tomou tamanho.”
Tadeu: “Então, que foi que ele fez, então?
Grivo: “Chorou pranto.”
(Rosa, 1976b, p. 124-127)

No campo de uma interpretação mais livre, fora dos padrões literários convencionais, permito-me elucubrar e oferecer uma interpretação plausível para os dois protagonistas da novela consoante com a Mitologia: o velho Cara-de-Bronze, que sente a proximidade da morte, e o poeta-cantador Grivo, seu guia para sua passagem ao Além. Reza a mitologia grega que havia um deus velho mas imortal, Caronte (Grivo), encarregado de transportar em uma barca estreita, para além dos rios infernais do Hades, — Estige e Aqueronte, — as sombras ou almas dos mortos (Cara-de-Bronze), cujos corpos tivessem recebido sepultura, mediante o pagamento de um óbolo. Em vida ninguém penetrava na barca de Caronte, a não ser que tivesse, como Eneias, por salvo-conduto um ramo de ouro, — mimo da Sibila de Cumes quando ele quis descer aos Infernos, — colhido na árvore sagrada de Core ou Perséfone. Teria Guimarães Rosa pensado em Caronte quando moldou o seu personagem Grivo na sua novela “Cara-de-Bronze” ou teria ele acessado no arquivo do inconsciente coletivo o arquétipo compartilhado por toda a humanidade, como queria Carl Gustav Jung?

Muito obrigado!




BIBLIOGRAFIA



AGÊNCIA BRASIL: Guimarães Rosa e Manuelzão: a amizade de oito dias que gerou uma obra de 60 anos, por Léo Rodrigues, enviado especial a Andrequicé-MG
http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2016-07/guimaraes-rosa-e-manuelzao-amizade-de-oito-dias-que-gerou-uma-obra-de-60

ARAÚJO,  Heloísa Vilhena de: A Raiz da Alma (Corpo de Baile), São Paulo: EDUSP, 1992, 178 p.


AUGUSTO, Daniel: O silêncio de Guimarães Rosa, dossiê CULTURA BRASILEIRA p. 1 e 2

BIAGGI, Enio Luiz de Carvalho: Cinema e vídeo na obra de Guimarães Rosa, 2009, https://www.webartigos.com/artigos/cinema-e-video-na-obra-de-guimaraes-rosa/19659

BIZZARRI, Edoardo. João Guimarães Rosa: Correspondência com seu tradutor italiano, 2ª ed., São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1981. 

COSTA, Ana Luíza Martins: Memória Seletiva: Veredas de Viator, publicada in Instituto Moreira Salles: Edição especial, comemorativa dos 10 anos de “Cadernos de Literatura Brasileira”: João Guimarães Rosa, nºs 20 e 21, dezembro de 2006, p. 10-58

GRÁCIA-RODRIGUES, Kelcilene: De corixos e de veredas (a alegada similitude entre as poéticas de Manoel de Barros e de Guimarães Rosa), tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP para obtenção do título de Doutor, Araraquara, 2006, 318 p.

MARQUES, Davina: Literatura como máquina de guerra, Santa Maria: revista Letras, vol. 19, nº 1, p. 23-32, jan/jul 2009

NUNES, Benedito: A viagem. In____. O dorso do tigre. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1969, 1ª edição, p. 173-179.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1252107-leia-a-viagem-de-benedito-nunes.shtml

Revista CULT: Guia de Guimarães Rosa, vaqueiro narra viagem que inspirou Grande Sertão Veredas, por João Correia Filho, 17 de novembro de 2017
ROSA, João Guimarães: “No Urubuquaquá, no Pinhém”, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora S/A, tomo II, 1976, 5ª edição, 246 p.
___________. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, 208 p.

ROSA, Vilma Guimarães: Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, 2ª edição revista e ampliada, 513 p.

SILVA, Antonio Manoel dos Santos: Os bárbaros submetidos (interferências midiáticas na prosa de ficção brasileira), São Paulo: Editora Arte & Ciência associada à Editora UNIMAR, 2006, 170 p. https://books.google.com.br/books/about/Os_b%C3%A1rbaros_submetidos.html?id=IJwrRo7WzXYC&redir_esc=y