terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

OS INCOMPREENDIDOS

Introdução, tradução do francês e comentários por Francisco José dos Santos Braga 
 
Antoine Doinel, protagonista de Os Incompreendidos
 
I. INTRODUÇÃO

1959, ano de lançamento de Os Incompreendidos (com o título original francês Les Quatre Cents Coups ¹) de François (Roland) Truffaut (1932-1984). Foi o filme de estreia com o personagem Antoine Doinel. Com o mesmo personagem dirigirá ainda 4 outros filmes, razão por que se pode considerar que Doinel é um alter ego para Truffaut, mas nenhum dos filmes subsequentes conta com o frescor, o lirismo e a verossimilhança interna do roteiro do seu filme de estreia. 
 
François Truffaut (1932-1984)

 
O filme narra a história de Antoine Doinel, um jovem parisiense de 14 anos, que se rebela contra o autoritarismo da escola e o desprezo de sua mãe e do padrasto. Rejeitado, Antoine passa a faltar às aulas para frequentar cinemas ou brincar com os amigos, principalmente René. Com o passar do tempo, o rapaz vivenciará algumas descobertas e cometerá "pequenos" delitos (entre os quais o furto de uma máquina de escrever e acúmulo de uma dívida de 24.605 francos para sustentar "suas atividades ruinosas no Círculo Cinêmano no Cluny-Palace"), em busca de atenção, até ser aprisionado em um reformatório, levado pelos próprios pais. ²
 
Antoine Doinel trancafiado

 
Por ocasião da comemoração do cinquentenário do filme (1959-2009), críticas interessantes foram publicadas na França. Dada a importância do cineasta para a França e a história do cinema (considerado um dos fundadores da Nouvelle Vague ou Cinema Novo no Brasil) e do seu filme de estreia,  justifica-se que o Blog do Braga faça referência a alguns desses textos através da tradução, introdução e comentários de seu gerente. 
 
ELENCO DE OS INCOMPREENDIDOS
 
Jean-Pierre Léaud (Antoine Doinel) 
Claire Maurier (Gilberte Doinel, mãe de Antoine) 
Albert Rémy (Julien Doinel, padrasto de Antoine) 
Patrick Auffay (René) 
Guy Decomble (Petite Feuille, professor de francês) 
Direção: François Truffaut 
Produção: François Truffaut 
Roteiro: François Truffaut e Marcel Moussy 
Gênero: Drama 
Música: Jean Constantin 
Cinematografia: Henri Decaë 
 
PRÊMIOS INDICADOS E GANHOS POR OS INCOMPREENDIDOS
 
OSCAR (1960) 
Indicação 
Melhor Roteiro Original 
 
BAFTA (1961) 
Indicações 
Melhor Filme 
Melhor Revelação - Jean-Pierre Léaud 
 
FESTIVAL DE CANNES (1959) 
Ganhou Melhor Diretor - François Truffaut 
Prêmio OCIC
 
Elementos biográficos 
 
François Truffaut indicou ter-se baseado em suas memórias de infância , em particular sua fuga, sua detenção na casa de correção de menores de Villejuif, bem como o perfil de seu então amigo, Robert Lachenay , para escrever o roteiro de seu filme. 
No entanto, sua família fica magoada e exige uma explicação, começando por seu pai adotivo, Roland Truffaut e sua mãe, Janine de Monferrand. Em 3 de junho de 1959, François Truffaut parece voltar atrás em um artigo publicado na Arts, no qual nega ter feito uma obra autobiográfica. No entanto, ele posteriormente manteve suas acusações sobre o horror de sua existência na rua de Navarin entre 1943 e 1948 e admitiu que sabia muito bem que isso os magoaria. 
 
 
Notas Explicativas
 
¹  O título do filme foi extraído de um adágio francês do início do século XVII, quando Luís XIII lutava contra o protestantismo e ordenou o ataque à cidade de Montauban em 1621 por 400 tiros de canhão, supostamente disparados para vencer a população majoritariamente protestante, embora não tenha conseguido a sua rendição. A partir daí, a expressão "faire les 400 coups" é usada para significar que alguém leva uma vida desordenada, sem respeito dos usos e costumes, e muito menos da moral e das conveniências.
 
²   François Truffaut aprende na prática a lei "paternocrática" do Código Civil francês, cujos artigos 375 e 377 estipulam: "O pai que tiver motivos muito graves de queixa quanto à conduta de um filho disporá do seguinte meio de correção: (...) Da idade de 16 anos começados até a maioridade ou a emancipação, o pai poderá requerer a detenção de seu filho durante seis meses no máximo".
 
 
 
II. CRÍTICAS AO FILME NA FRANÇA 
 
 
2.1 Uma família por trás de Os Incompreendidos
Por Jean-Luc Douin (Le Monde, 02/06/2009) 
 
A exibição de Os Incompreendidos no Festival de Cinema de Cannes em 4 de maio de 1959 foi um verdadeiro triunfo. Na saída do Palácio, o jovem ator Jean-Pierre Léaud é levado com grande esforço num tumulto para ser apresentado aos fotógrafos. Paris Match fala de um "festival de crianças-prodígios", Elle, de "o renascimento do cinema francês". A "Nouvelle Vague", expressão utilizada pela primeira vez por Françoise Giroud em L'Express desde 1957, conhece a sua consagração oficial. Os organizadores do Festival não têm motivos para se arrependerem de ter escolhido dois encrenqueiros, François Truffaut e Alain Resnais (Hiroshima, Meu Amor), para representar a França, em vez de valores seguros como Claude Autant-Lara, Marcel Carné ou René Clair. 
 
Em 3 de junho, quando o filme coroado com o Prêmio de Direção foi lançado nos cinemas, François Truffaut publicou um artigo surpreendente na Arts, no qual negava ter feito uma obra autobiográfica: "Não escrevi minha biografia em Os Incompreendidos". Por que essa retratação, quando ele não escondeu ter baseado seu filme em suas memórias de infância, sua fuga, sua detenção na casa de correção de menores de Villejuif, bem como no perfil de seu então amigo, Robert Lachenay? Porque o jovem cineasta é assediado pela família, retratada no filme de uma forma bastante sombria, que fica espantada por se ver maltratada pela imprensa, que fala de uma criança "mal-amada", "abandonada a si mesma", apresenta o pai como "um idiota bastante covarde", e a mãe como "inconstante", "putinha bastante malandra". 
 
O pai em questão, Roland Truffaut, não é o genitor de François. Ele reconheceu esse menino antes de se casar com Janine de Monferrand, a mãe de François. Encontramos vestígios das duras palavras trocadas entre François Truffaut e seus pais na biografia que Antoine de Baecque e Serge Toubiana ³ dedicaram ao cineasta. Monique, uma das tias do cineasta, escreveu à irmã Janine: "Você tem que dizer a si mesma que, apesar de tudo, a sujeira não compensa, e eu ficarei muito surpresa se isso lhe trouxer sorte". Mobilizado na Argélia, seu tio fulmina: “Mentalmente, esse François bobinho não saiu da idade ingrata (...). Se ele pensa que pode mudar de meio social cuspindo no prato que comeu, está redondamente enganado”. 
 
Talvez o mais ferido seja Roland, seu pai "legal". Ele escreve a François Truffaut para pedir-lhe uma reunião e... explicações. "Você vai rever, sem dúvida, com emoção esta miserável morada em que foi tão 'abusado' por pais tão ignorantes que assim permitiram que você se tornasse, mais tarde, uma gloriosa e desinteressada criança-mártir." Ele anexa uma foto de seu filho tirada durante as filmagens do filme e legendada por ele: "Retrato de um autêntico bastardo". 
 
Truffaut não vai à reunião, mas responde, lamentando os abusos de uma publicidade, de um jornalismo que "simplificou, aumentou, distorceu" tudo, e promete desmentir publicamente certas afirmações falsas. E acrescenta: "Apesar do aborrecimento de ver uma série de bobagens publicadas nos jornais, não me arrependo de ter feito este filme. Eu sabia muito bem que iria machucar vocês, mas não me importo, porque desde a morte de Bazin (André Bazin, seu mentor, animador de cineclubes e crítico), não tenho mais pais."
 
"Eu teria feito o filme mais terrível do mundo, se tivesse retratado como foi minha vida na rue de Navarin entre 1943 e 1948, minhas relações com mamãe e você." Lembra seu ressentimento por ter sido privado do chocolate ("Uma criança que se acha a única na escola sem "lanche", isso a deixa sonhadora"), os pontapés que a mãe lhe deu, sua vergonha quando, no exame médico escolar, tinha que revelar o estado de suas meias, o desprezo que seus pais tinham por seus estudos e a responsabilidade deles pelo que ele havia se tornado, "efeminado e sorrateiro". 
 
"Entendo a sua amargura", declarou François Truffaut finalmente ao homem que o reconheceu (seu pai "legal"), confiante de que esta revelação de ter nascido de um pai desconhecido (ao vasculhar um armário e descobrir um livro de registro familiar) foi um choque para ele. "O clima familiar era tal que eu tinha quase certeza da existência de um segredo sobre meu nascimento; mamãe me detestava tanto que acreditei, durante um ano, que ela não era minha verdadeira mãe." Não, ele continua, "Eu não fui uma criança abusada, mas simplesmente não fui tratado absolutamente, não amado e me sentindo completamente indesejável desde que vocês me levaram em sua companhia até minha emancipação. Estou ciente de todos os dados do problema: eu havia me tornado uma criança mentirosa, ladra, sorrateira, dissimulada e difícil, mas garanto a vocês que minha filha (Laura, nascida em 22 de janeiro de 1959) não será uma criança difícil”. 
 
Conflito permanente de Antoine Doinel com seus pais

 
Os dois homens não vão se reconciliar. "Você é irônico em sua carta sobre meu retorno de Cannes, finalmente livre de muitos complexos. Você não sabe o quão certo você está. Há dois meses tenho a sensação de ter dissipado um velho pesadelo, de ter-me tornado um homem capaz de criar um filho." Eles vão se encontrar novamente em uma lanchonete. Desse encontro, Roland vai voltar triste por ter um filho que "nos despreza e nos odeia". Até o divórcio de seus pais em 1962, Truffaut, então, vai admitir amá-los "antes separados do que juntos". A lembrança do contexto em que fora impelido para a glória o deixou triste e ferido por muito tempo. 
 
 
Nota Explicativa
 
³   Philippe François escreveu uma recensão crítica intitulada "François Truffaut" sobre a referida biografia do diretor de Os Incompreendidos
"Esta biografia do crítico e cineasta François Truffaut (1932-1984) é um marco na pesquisa cinematográfica. Antes de se tornar um cineasta de sucesso (O Último Metrô), François Truffaut era um crítico temido, atacando agressivamente o cinema proveniente da França de Vichy, iniciando a "política dos autores", para passar em 1959 à realização com um filme autobiográfico, Os Incompreendidos, um sucesso excepcional na origem de um movimento cinematográfico que por sua vez ia provocar inúmeros comentários e comunicados da imprensa: La Nouvelle Vague. A hagiografia é uma tentação à qual não renunciaram Antoine de Baecque e Serge Toubiana (ambos dos Cahiers du Cinéma), que pintam um retrato cheio de nuances do cineasta, nada nos poupando das falhas que marcaram a sua vida e a sua carreira, desde uma infância difícil à condição de cineasta de renome mundial, através de fracassos e acertos, polêmicas, algumas das quais acaloradas (ataque a cineastas como Jean Delannoy, defesa em 1968 de Henri Langlois, diretor da cinemateca, contra André Malraux, ministro), outras dolorosas (Jean-Luc Godard). Ou o retrato de um jovem revoltado, de um adversário que quase a contragosto acabou por encarnar sozinho e de forma consensual todo o cinema francês: um sucesso retumbante ou uma ruína total: isso depende".
François Truffaut: uma biografia (1998), por Baecque & Toubiana

 
 
 
2.2 CRÍTICA DE "OS INCOMPREENDIDOS: um filme de François Truffaut"
Por Xavier Jamet (em 02/03/2009)
 
A história 
 
Um menino parisiense de 12 anos que está entrando na síndrome da adolescência, Antoine Doinel falta à escola e tenta escapar de uma vida familiar monótona e de pais ausentes. Com o amigo René, matará aula, vivendo por conta própria e dividindo seus dias entre andanças pela Paris dos anos 1950, furtos, leituras de Balzac à luz de velas e sessões de cinema. Antoine e René, dois garotos soltos em Paris, descobrem a vida cometendo delitos. 
 
Professor de francês repreende Antoine Doinel

 
 
Antoine Doinel lê Balzac à luz de velas

 
 
 
 
 
 
Análise e crítica 
 
Filme carro-chefe da história do cinema, Os Incompreendidos teve má recepção tanto quando foi lançado quanto quando foi apresentado no Festival de Cinema de Cannes de 1959 (onde ganhou o Grande Prêmio de melhor diretor). A revelação do cineasta François Truffaut é de fato fulminante e o filme marca os ânimos pela liberdade de tom e pela qualidade de sua encenação, então elogiada pelos diversos adeptos da Nouvelle Vague, da qual Truffaut foi um dos fundadores quando ainda era apenas jornalista de Arts e Les Cahiers du Cinéma. O filme é aliás dedicado a André Bazin, figura mítica de Les Cahiers que morreu no primeiro dia de filmagem. 
 
O filme vem certamente depois de Nas Garras do Vício (Le Beau Serge, 1958) de Claude Chabrol ou de Hiroshima, Meu Amor (Hiroshima mon amor, 1959) de Alain Resnais, mas hoje não é tanto pelo seu aspecto de "Cinema Novo " (Nouvelle Vague ou New Wave) que o filme ainda nos toca, mas pela sua beleza intrínseca. Certamente, encontramos ali todos os ingredientes que faziam a Nouvelle Vague na época: cenários naturais, tomadas reais , situações e personagens retirados do cotidiano, linguagem cotidiana, encenações desinibidas e ousadas... Mas se contentar com esses simples detalhes seria obscurecer a beleza da fotografia de Henri Decaë, que nos oferece uma Paris ampliada. Seria descurar a majestade do seu enquadramento num esplêndido 2.35, a audácia da montagem... Seria esquecer por fim a partitura de Jean Constantin, que atinge o auge da emoção em particular nos últimos planos do filme partitura cuja utilização Truffaut aliás parece ter se arrependido de ter feito mais tarde, mas que hoje contribui para a beleza do filme. O fato é que, se o filme ainda hoje nos perturba, quando as inovações da época se tornaram lugar-comum, é que já está em germe nesta primeira obra o que fará o cinema de Truffaut ao longo de sua carreira: infância, lirismo, emoção, liberdade... Sobre um cenário simples e linear como nos dois Doinels seguintes Truffaut liberta-se dos grilhões da época, leva para a rua a câmera na mão e acompanha as aventuras do pequeno Doinel com uma frescura e uma franqueza efetivamente inovadoras, mas especialmente realmente perturbadoras. A sua visão da infância está imbuída de uma humanidade e de uma ternura que encontraremos mais adiante em L'Enfant Sauvage ou com o título brasileiro O Garoto Selvagem (1969) ou L'Argent de Poche ou com o título brasileiro Na Idade da Inocência (1976), por exemplo. Todos em um estilo já muito pessoal. É preciso ver sua câmera se aventurar ao ar livre, tomar as travessas do cinema francês e se sentir tão livre que acaba girando, girando, girando sobre si mesma em uma cena de carrossel de beleza e frescor francamente maravilhosos. 
 
Notas explicativas
 
  O grupo de autores responsável pelos filmes reconhecidos da época trouxe um novo olhar do fazer cinema não só na França, mas também no mundo. Um dos grandes movimentos que se reconhece como influenciado pela Nouvelle Vague é o Cinema Novo, que aconteceu no Brasil. Com a ideia de Glauber Rocha, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o movimento buscava realizar suas produções mesmo com baixo orçamento e histórias reais. Os princípios da Nouvelle Vague são discutidos até hoje, e o movimento é tratado como um dos mais importantes para a história do cinema. 
 
  No lugar de cenários, as ruas. Ao invés das chanchadas, que imitavam o cinema internacional, câmera em movimento e o documentário invadindo a ficção. O resultado na tela foi uma verdadeira revolução cultural: a realidade nua e crua, mas também de extrema beleza e potência. 
 
 
 
III. BIBLIOGRAFIA

 
 
BAECQUE, Antoine & TOUBIANA, Serge: François Truffaut, Paris: Gallimard, 1996, 659 p.
 
__________________________________: FRANÇOIS TRUFFAUT: uma biografia, Editora Record, 1998,  588 p.
 
__________________________________: Truffaut zero de conduta, Folha de S. Paulo, edição de 29/03/1998, coluna +mais!, p. 4-5 (no acervo digital da Folha)

DOUIN, Jean-Luc: Une famille aux quatre cents coups. Paris: Le Monde.fr, edição de 02/06/2009, coluna: Cinéma

Link: https://web.archive.org/web/20090606093220/http://www.lemonde.fr/cinema/article/2009/06/02/une-famille-aux-quatre-cents-coups_1201161_3476.html

Link: https://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Quatre_Cents_Coups#cite_note-:0-1

JAMET, Xavier: Les quatre cents coups: un film de François Truffaut, DVDClassik, edição de 02/03/2009.

Link: https://www.dvdclassik.com/critique/les-quatre-cents-coups-truffaut

PHILIPPE, François: Antoine de Baecque, Serge Toubiana, François Truffaut. Paris, Gallimard, 1996, (Biographies NRF). In: Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 79e année n°4, Octobre-décembre 1999. p. 547.

Link: https://www.persee.fr/doc/rhpr_0035-2403_1999_num_79_4_5584_t1_0547_0000_2

WIKIPEDIA: Les Quatre Cents Coups

Link: https://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Quatre_Cents_Coups
 

sábado, 18 de fevereiro de 2023

A BÊNÇÃO AO VIVO DE JERUSALÉM

 Por Francisco José dos Santos Braga 
 
Dedico este texto ao amigo poeta e Acadêmico JOÃO CARLOS RAMOS por sempre me querer bem.
THE KING'S HARPISTS: 144 harpistas ao vivo de Jerusalém
  
 
I. INTRODUÇÃO

 
Em 3 de outubro de 2022, 144 harpistas de 35 nações diferentes, incluindo Israel, reuniram-se com adoradores de 140 nações em Jerusalém para consagrar seu ministério ao Rei dos Reis nos degraus ao sul do Monte do Templo. O grupo é conhecido por The King's Harpists.

Esse grandioso evento foi filmado, e seu vídeo está sendo compartilhado aqui numa peça musical apresentada pelos solistas JOSHUA AARON e SHELI MYERS, com sua participação na gravação da peça musical intitulada A Bênção (Ha Brachá em hebraico), da autoria de Kari Jobe, Cody Carnes, Steven Furtick e Chris Brown. Essa canção vai fazer parte do segundo álbum do The King's Harpists (2ª faixa), com o título já programado: The King is Coming
 
Joshua Aaron é um cantor e compositor independente americano-israelense, premiado recentemente, listado como um dos 100 influenciadores do Jewish Global. Ele reside perto do Mar da Galileia com sua esposa Jeannie e seus 5 filhos, dos quais o mais velho serve agora nas IDF (Forças de Defesa de Israel). 
 
Joshua é o fundador da "Gather the Nations", uma organização internacional sem fins lucrativos que realiza uma conferência anual, divulgação musical e programa de orientação musical. Desde 2009, ele organiza uma turnê anual de Adoração em Israel, trazendo grupos de crentes em uma viagem inesquecível à Terra Santa, de Jerusalém ao seu quintal, a Galileia. 
 
Sua música, cantada em inglês e hebraico, combina uma ampla variedade de sons, incluindo gêneros judaicos tradicionais, atingindo milhões de ouvintes de todas as nações e idiomas.
 
Os organizadores do projeto se dizem muito honrados por terem a oportunidade de ensinar, incentivar e construir comunidades para envolver o Rei dos Reis com música de harpa em Israel e em todas as nações! E também se dizem encorajados a criar a comunidade global da harpa.Com a palavra, os harpistas brasileiros.
 
Alguém disse: Adorar a Deus em todas as línguas é magnífico, mas em hebraico se torna mais maravilhoso ainda!

Considera-se que A Bênção pertence ao gênero musical de "canções messiânicas de louvor e de adoração".
 
 
II. A BÊNÇÃO PELO GRUPO THE KING'S HARPISTS
 
LETRA DA CANÇÃO EM HEBRAICO 
 
הברכה
יְבָרֶכְךָ יהוה, וְיִשְׁמְרֶךָ
יָאֵר יהוה פָּנָיו אֵלֶיךָ, וִיחֻנֶּךָּ
יִשָּׂא יהוה פָּנָיו אֵלֶיךָ, וְיָשֵׂם לְךָ
שָׁלוֹם
 
יהי חסדו עליך לאלפי דורות
משפחתך וילדיך
דורותיך אחריך
רוחו תלך לפניך
לצידך, אחריך
מסביבך, בליבך
הוא איתך
בבוקר ובערב
בצאתך ובואך
בסבלותיך ואושרך
הוא איתך
הוא איתנו עם כולנו
הוא איתך
שָׁלוֹם
 
TRANSLITERAÇÃO DO HEBRAICO PARA O PORTUGUÊS  
 
Yevarechechá Adonai, VeYishmerechá
Ya'er Adonai Panav Eleycha ViChuneka
Yisá Adonai Panav Eleycha, VeYasem Lechá
Shalom (bis)
Ámen!

Yehí chasdó aleicha le’alfei dorot
Mishpachtecha viladecha
Dorotecha achareicha
Ruchó telech lefaneicha
Letsidecha achareicha
Misvivecha belibecha
Hu itchá
Hu itchá
Babôker uvaérev
Betzetecha uvoecha
B’sivlotecha beoshrecha
Hu itchá
Hu itchá 
(Hu itánu im kulánu
Hu itchá
Hu itchá)
Ámen!

MINHA TRADUÇÃO DO HEBRAICO PARA O PORTUGUÊS
 
A  BÊNÇÃO
 
Que Adonai te abençoe e te guarde
Que Adonai faça resplandecer o Seu rosto sobre ti e
 
[seja amável contigo
Que Adonai volte para ti o Seu rosto e te dê 
Paz
Amém!
O SENHOR te abençoe e te guarde
Que Adonai faça resplandecer o Seu rosto sobre ti e 
[seja amável contigo
O SENHOR volte para ti o Seu rosto e te dê 
Paz
Amém!

Que Sua graça esteja sobre ti por mil gerações
Tua família e teus filhos
Tuas gerações depois de ti
Que Sua presença vá adiante de ti
A teu lado e por detrás de ti
Em teu redor e no teu coração
Ele está contigo
Ele está contigo
Amém!

De manhã e à noite
Na tua saída e tua chegada
Na tristeza e na alegria
Ele está a teu favor
Ele está a teu favor
(Ele é por nós com todos nós
Ele é por ti
Ele é por ti)
Paz
Amém!

VERSÃO EM INGLÊS

THE BLESSING
 
The LORD bless you and keep you
Make His face shine upon you and be gracious to you
The LORD turn His face toward you and give you
Peace
Amen!
 
May His favor be upon you and a thousand generations
And your family and your children
And your children and their children
May His presence go before you
And behind you and beside you
All around you and within you
He is with you
He is with you
In the morning in the evening
In your coming and your going
In your weeping and rejoicing
He is for you
He is for you,
Amen!

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

UM AMIGO DE KAFKA

Por ISAAC BASHEVIS SINGER *

Introdução, tradução do inglês e comentários por Francisco José dos Santos Braga 

Isaac Bashevis Singer, 1978. (Crédito: Louis Monier/Gamma-Rapho via Getty Images)
  
 
I. INTRODUÇÃO

 
Logo abaixo se lerá minha tradução do conto-título de abertura do livro A Friend of Kafka and Other Stories (1970) de Isaac Bashevis SINGER (Leoncin, Polônia, 1902 - Surfside, Flórida, 1991). Foi feita a partir de sua versão em inglês, idioma para o qual o próprio Singer traduzia muitos de seus contos, após escrevê-los em sua língua original: o iídiche ou yiddish. 
O leitor observará no contista polonês americano um narrador impecável, detalhista, que dota seus textos de uma verossimilhança ao alcance de poucos autores congêneres; no seu texto, o leitor se surpreenderá com o pitoresco de seus personagens, a frescura de seus temas, a sexualidade de suas passagens mais memoráveis; sua narrativa combina de forma magistral "o fino senso de humor, a ironia cortante, aquele olhar de esguelha para o mundo sério e tolo em que vivemos", drama, filosofia, amor, tragédia e emoção, tudo para diversão do leitor e, por último, mas não menos importante: o leitor constatará que Singer se fez merecedor de ser ganhador do Nobel de Literatura (1978) por tornar seus romances e contos escritos em iídiche bastante acessíveis ao grande público. Resta ainda mencionar uma curiosidade a respeito de Singer: ele é o autor de Yentl, personagem de um de seus contos, um sucesso na Broadway (com a peça de 1975 apresentando as aventuras de uma mulher judia que se traveste de homem para ingressar num colégio de rapazes e participar de sua formação religiosa através de ensinamentos do Talmud, um privilégio masculino) e depois no filme dirigido, roteirizado e dirigido por Barbra Streisand (1983). 
 
O conto relata as reminiscências de Jacques Kohn , um ex-ator do Teatro Iídiche de Varsóvia que se encontra desempregado como escritor, doente e derrotado , confiadas ao narrador que tem muito interesse de conhecer a relação entre Kafka e o ex-ator. Para o narrador, Kohn é um importante elo à arte e literatura europeias. Para o Sr. Kohn, o narrador é não apenas uma fonte de dinheiro, mas também audiência para suas aventuras da juventude. Kohn problematiza as passagens corriqueiras de sua atual vida como uma partida de xadrez em que o adversário é um "anjo duro", que joga disputando a vida do rival. Kohn admira o estilo do adversário, mas sabe que seu adversário vencerá finalmente, apesar de insistir em prolongar o jogo. O Destino ou Fado, como Kohn em certa altura chama seu adversário, também gosta de jogar: ele não quer matar Kohn rápido demais. O objetivo dele é "quebrar o barril, mas não deixar o vinho se esgotar". 
A certa altura já se encaminhando para o final do conto, Kohn se refere a um livro de certo Dr. Mitzkin, intitulado A Entropia da Razão. Para este, o caos, e não a ordem, é a lei da natureza. De fato, o termo entropia é tomado da termodinâmica, para a qual ela (a entropia) tende a aumentar à medida que a matéria e a energia no universo se degrada até um derradeiro estado de uniformidade inerte. 
A vida do Sr. Kohn é apenas uma ilustração da "entropia" que rege o mundo, entendendo aqui uma referência à ideia de que tudo no universo eventualmente se move da ordem para a desordem, e a entropia é a medição dessa transformação. O Destino tortura Kohn com impotência, pobreza, doença, desespero e frio, como também submeteu Jó a tais agruras. Apesar disso, o Sr. Kohn é um modelo de resistência contra os truques do Destino, seu adversário no jogo de xadrez da vida. Lutar contra o "anjo duro": esta é a força que impulsiona o Sr. Kohn a continuar vivendo. Por isso mesmo, o Sr. Kohn é o herói do conto, como afinal sugere o seu título "O Amigo de Kafka". 
Por outro lado, Singer teve o cuidado de ilustrar também o oposto do Sr. Kohn: Bamberg, "um cadáver que se recusa a descer à cova". Em determinado momento, o Sr. Kohn esclarece que esse Dr. Mitzkin previu que "o homem vai acabar sendo uma máquina de palavras: vai comer palavras, beber palavras, casar-se com palavras, envenenar-se com palavras." 
Afinal, independente de tudo o que o homem possa perder, irá reter sua palavra, a palavra que pode transformar "um monte de barro num ser vivo, o golem," e que pode "criar um mundo". 
No conto, Kafka morreu, mas sua obra permanece e até transmite importância a certa Madame Tschissik, o grande amor e objeto dos sonhos de Kafka, apagada ex-atriz de Praga. Conforme Singer, "todos os que, por uma razão ou outra, tiveram intimidade com um grande homem entram com ele no reino da imortalidade e, às vezes, calçados com as botas mais grosseiras".
 
 
II. TRADUÇÃO DO CONTO "UM AMIGO DE KAFKA"
 
 
Eu tinha ouvido falar de Franz Kafka por seu amigo Jacques Kohn, ex-ator no teatro iídiche, anos antes de ler qualquer de suas obras. E eu disse "ex", porque, quando o conheci, ele já não estava mais em cena há anos. Era o início dos anos 30, e o Teatro Iídiche de Varsóvia havia perdido grande parte de sua audiência. O próprio Jacques Kohn era um homem doente e derrotado. Em que pese ainda se vestir como um dândi, suas roupas já apresentavam a aparência de muito surradas. Ele usava um monóculo sobre o olho esquerdo, uma gola alta antiquada (do tipo chamado, na época, de "father-murderer" ¹), sapatos de couro envernizado e um chapéu-coco. Tinha sido apelidado de "o lorde" pelos cínicos do Clube de Escritores de Iídiche de Varsóvia, que tanto ele quanto eu frequentávamos. Apesar de suas costas se curvarem cada vez mais, ele teimosamente se esforçava para andar com os ombros jogados para trás. O que restara de seu outrora cabelo louro ele penteava para formar uma ponte sobre sua cabeça careca. Seguindo a tradição teatral do passado, ele ocasionalmente tinha uma recaída de falar iídiche germânico, particularmente quando falava de sua relação com Kafka. Ultimamente, Jacques Kohn havia começado a escrever artigos para jornais, mas os editores eram unânimes em rejeitar seus manuscritos. Ele morava em um sótão na rua Leszno e estava sempre adoentado. Os sócios do clube aplicaram-lhe a seguinte frase mordaz: "Passa o dia numa tenda de oxigênio, de onde sai ao anoitecer como um Don Juan." 
 
Sempre nos encontrávamos no clube, no fim da tarde. A porta se abriu lentamente para admitir Jacques Kohn. Entrou com ares de grande celebridade europeia, digna de visitar o gueto. Ele ia olhar em volta, ia fazer uma careta de desgosto, indicando que os cheiros de alho, arenque e tabaco barato não eram do seu gosto. Com desdém ia lancar um olhar sobre as mesas cobertas de jornais rasgados, peças de xadrez quebradas e cinzeiros transbordando de bitucas de cigarro; em torno desses, os sócios do clube discutiam incessantemente literatura com suas vozes estridentes. Jacques Kohn ia balançar a cabeça, como se dissesse: "O que se pode esperar de tais idiotas?" Assim que eu o via entrar, ia colocar a mão no bolso e preparar entre os dedos o zloty que ele costumava me pedir emprestado. 
Naquele fim de tarde, Jacques parecia com um humor melhor do que de costume. Ele sorriu, mostrando seus dentes de porcelana, que não se ajustavam e se mexiam quando ele falava, e se aproximou lentamente de mim, como se estivesse no palco. Ele me ofereceu sua mão ossuda com dedos longos e disse: 
— Como vai o nascer da estrela hoje à noite? 
— Já em ação? 
— Estou falando sério. Sério. Percebo talento quando o vejo, mesmo que me falte. Em 1911, quando apresentávamos uma peça em Praga, ninguém tinha ouvido falar de Kafka. Bem, Kafka veio aos bastidores, e no momento em que o vi, entendi que estava na presença de um gênio. Eu podia cheirá-lo, como um gato cheira um rato. Foi assim que começou nossa grande amizade. 
 
Eu tinha ouvido essa história muitas vezes e com tantas variantes, mas sabia que teria que ouvi-la novamente. Ele se sentou à minha mesa, e Manya, a garçonete, nos serviu dois copos de chá com biscoitos. Jacques Kohn ergueu as sobrancelhas acima de seus olhos amarelados, cujos brancos eram tecidos por pequenas veias sangrentas. Sua expressão parecia dizer: "Isto é o que os bárbaros chamam de chá?" Pôs cinco torrões de açúcar no seu copo e mexeu, girando a colher de lata, de dentro para fora. Com o polegar e o indicador, cuja unha era extraordinariamente longa, ele partiu um pedacinho de biscoito e levou-o à boca, e disse "Nu, ja", que significava: "O passado não serve para encher barriga de ninguém". 

Era tudo encenação. O próprio Jacques Kohn veio de uma família hassídica, em uma das cidadezinhas da Polônia. Seu nome não era Jacques, mas Jankel ². No entanto, ele tinha vivido por muitos anos em Praga, Viena, Berlim, Paris. Nem sempre tinha sido ator no teatro iídiche, mas também tinha se apresentado tanto na França quanto na Alemanha. Tinha sido amigo de muitas celebridades. Tinha ajudado Chagall a encontrar um estúdio em Belleville. Tinha sido assíduo convidado na residência de Israel Zangwill. Tinha atuado numa produção de Reinhardt e tinha comido frios com Piscator. Tinha me mostrado cartas recebidas não apenas de Kafka, mas também de Jakob Wassermann, Stefan Zweig, Romain Rolland, Ilya Ehrenburg e Martin Buber. Todos o tratavam por seu primeiro nome. À medida que nossa amizade se estreitava, Jacques Kohn tinha me permitido ver fotos e cartas de atrizes famosas, com as quais ele teve casos. 

Para mim, "emprestar" um zloty a Jacques Kohn significava entrar em contato com a Europa Ocidental. Até a maneira como ele empunhava sua bengala com cabo de prata me parecia exótica. Ele até fumava cigarros de forma diferente de como fazíamos em Varsóvia. Suas maneiras eram extremamente refinadas. Nas raras ocasiões em que me repreendeu por alguma coisa, conseguia evitar me magoar acrescentando um elogio elegante. O que mais admirava em Jacques Kohn era sua maneira de tratar as mulheres. Eu era muito tímido com as moças, — ficava corado, embaraçado na sua presença — mas Jacques Kohn tinha a segurança de um conde. Ele sempre tinha algo bom para dizer à mulher menos atraente. A todas lisonjeava, embora sempre com um toque de ironia bem-humorada, afetando a atitude indiferente do hedonista que já tem provado de tudo. 

A mim falou com toda a franqueza: 
— Meu jovem amigo, a verdade é que estou quase impotente. A impotência sempre começa com o aparecimento de um gosto excessivamente refinado — quando se está faminto, não precisa de marzipã e caviar. E já cheguei a um ponto em que não há mulher que eu considere realmente atraente. Qualquer deficiência não me passa despercebida. Isso é impotência. Vestidos e espartilhos são transparentes para mim. Não posso mais ser ludibriado por maquiagem e perfume. Tenho perdido meus próprios dentes, mas, quando uma mulher abre a boca, vejo suas obturações. Por falar nisso, esse era o problema de Kafka como escritor: via todas as falhas — as próprias e as dos outros. A maior parte da literatura é obra de plebeus e idiotas como Zola e D'Annunzio. No teatro, vi os mesmos defeitos que Kafka via na literatura, e isso nos uniu muito. Mas, bem estranhamente, quando lhe coube julgar o teatro, Kafka foi completamente cego. Ele elogiou nossas medíocres ​​peças em iídiche. Ele se apaixonou perdidamente por uma atriz figurante, Madame Tschissik. Quando penso que Kafka amou aquela criatura e fez dela o objeto de seus sonhos, sinto pena do ser humano e de suas ilusões. Bem, a imortalidade não é seletiva. Todos os que, por uma razão ou outra, tiveram intimidade com um grande homem entram com ele no reino da imortalidade e, às vezes, calçados com as botas mais grosseiras. A propósito, você não me perguntou, meu caro amigo, qual é a força que me impulsiona a continuar lutando? O que me dá a força para suportar a pobreza, doença e, pior de tudo, a desesperança? Boa pergunta, meu jovem amigo! É a mesma que formulei quando li o Livro de Jó pela primeira vez. Por que Job continuou a viver e sofrer? Para ter no fim mais filhas, mais asnos e mais camelos? Não. A verdade é que Jó continuou pelo próprio jogo. Todos nós jogamos xadrez com o Destino como adversário. Ele move uma peça; nós movemos outra. O destino tenta nos dar xeque-mate em três lances; nós tentamos impedi-lo. Sabemos que não podemos vencer, mas somos impelidos a dar-lhe um bom combate. Meu adversário neste jogo de xadrez é um anjo duro. Ele ataca Jacques Kohn com todos os truques em sua mala. Agora é inverno; faz frio mesmo com o fogão ligado, mas meu fogão está quebrado há meses e o senhorio se recusa a consertá-lo. Além disso, eu não tenho dinheiro para comprar carvão. É tão frio dentro do meu quarto quanto fora. Se você não tiver vivido em um sótão, você não sabe a força do vento. Minhas vidraças chacoalham mesmo no verão. Às vezes, um gato de rua sobe no telhado perto da minha janela e geme como uma mulher em trabalho de parto a noite toda. Fico debaixo das cobertas, tremendo de frio, enquanto o gato uiva, chamando por uma gata, embora ele possa simplesmente estar com fome. Poderia dar a ele um bocado de comida para acalmá-lo, ou afugentá-lo, mas, a fim de não me congelar, me embrulho com todos os trapos que possuo, mesmo com jornais velhos — o mais leve movimento e todo o trabalho se desfaz. Em todo caso, meu caro amigo, no caso de jogar xadrez, é melhor fazê-lo com um adversário digno do que com um trapalhão. Admiro meu adversário. Às vezes, estou encantado com sua ingenuidade. Ele está sentado lá, em um escritório do terceiro ou sétimo céu, naquele departamento da Providência que governa nosso planetazinho, e ele só tem uma missão: encurralar Jacques Kohn. Suas ordens são: 'Quebre o barril, mas não deixe o vinho se esgotar.' Ele tem feito exatamente isso. É um milagre como ele consegue me manter vivo. Eu tenho vergonha de lhe dizer quantos remédios eu tomo, quantos comprimidos eu engulo. Tenho um amigo farmacêutico, do contrário jamais teria condições de comprá-los. Antes de ir para a cama, engulo esses comprimidos, um de cada vez — a seco. Sim, porque, se eu tomar água, vou ter que urinar. Tenho um problema de próstata e, mesmo sem tomar água, tenho que me levantar várias vezes à noite. No escuro, as categorias de Kant deixam de se aplicar. O tempo deixa de ser tempo e o espaço deixa de ser espaço. Você segura algo na mão e, de repente, ele não está mais ali. Acender meu lampião a gás não é uma bobagem. Meus fósforos estão sempre sumindo. Meu sótão está cheio de demônios. De vez em quando, me dirijo a um deles: 'Ei, você, Vinagre, filho do Vinho, que tal parar com seus truques chatos?' Algum tempo atrás, no meio da noite, ouvi uma pancada na porta do meu sótão e o som da voz de mulher. Eu não saberia dizer se a mulher estava rindo ou chorando. Falei com meus botões: 'Quem será? Lilith? Namah? Ou Machlath, a filha de Ketev M'riri?' Em voz alta, gritei: 'Senhora, você está enganada.' Mas a mulher continuava a espancar. Então ouvi um gemido e alguém caindo. Não ousei abrir a porta. Comecei a procurar os fósforos, para descobrir finalmente que eu próprio os segurava. Por fim, pulei da cama, acendi o lampião a gás e vesti meu roupão e chinelos. Vislumbrei meu corpo refletido no espelho, e a visão me assustou. Meu rosto estava verde e com a barba por fazer. Finalmente, abri a porta e vi uma jovem, descalça, usando um casaco de pele de zibelina sobre sua camisola. Ela estava pálida e seus longos cabelos loiros estavam desgrenhados. Eu disse: 'Senhora, qual é o problema?' E ela respondeu: 'Alguém acaba de tentar matar-me. Peço-lhe que me deixe entrar; sairei assim que amanhecer.' Eu teria perguntado a ela quem havia tentado matá-la, mas não o fiz porque vi que ela estava meio congelada. O mais provável é que também tinha estado bêbada. Deixei-a entrar, notando que ela estava usando uma pulseira com enormes diamantes. Fui logo avisando: 'Minha casa não tem calefação...'. E ela respondeu: 'Isso é melhor do que morrer na rua.' Era como estávamos ambos ali. Porém, o que eu ia fazer com aquela mulher? Eu só tenho uma cama. Não bebo, porque o médico proibiu, mas um amigo me deu uma garrafa de conhaque e ainda me restavam alguns biscoitos já endurecidos. Ofereci a ela um trago e um biscoito. O álcool pareceu reanimá-la um pouco. Eu lhe perguntei: 'Senhora, você mora neste edifício?' Disse: 'Não, moro no bulevar Ujazdowskie.' Eu imediatamente entendi que ela era uma aristocrata. Uma palavra depois de outra e descobri que se tratava de uma condessa viúva; seu amante morava no mesmo edifício que eu, um homem selvagem cujo bicho de estimação era um filhote de leão. Ele também era um membro da nobreza, embora devido à sua vida ruim tenha sido excluído dos círculos nobres. Ele cumpriu um ano de prisão na fortaleza por tentativa de homicídio. Este homem não podia visitar sua amante porque ela morava com a sogra e, consequentemente, era ela que o visitava. Naquela noite, num ataque de ciúmes, aquele homem a havia espancado e encostado a boca da pistola em sua têmpora. Para resumir, direi que a mulher conseguiu pegar o casaco e sair correndo da casa do amante. Ela bateu na porta de vários vizinhos, mas ninguém a deixou entrar, e assim ela chegou ao sótão. Eu disse a ela: 'Senhora, seu amante com certeza ainda está procurando por você... e se ele encontrar você? Deixei de ser o que chamam de cavaleiro andante, sabe?' Ela respondeu: 'Ele não ousará fazer escândalo, porque está em liberdade condicional. Terminei com ele para sempre. Por favor, não me deixe no meio da noite...' Eu perguntei a ela: 'E como você vai conseguir voltar para casa amanhã?' Ela respondeu: 'Não sei. Estou farta de viver, sim, mas não quero morrer nas mãos deste homem.' Disse a ela: 'Bem, eu não vou conseguir dormir de qualquer maneira, então, por favor, aceite minha cama e eu vou descansar em uma cadeira.' Ela recusou: 'Não, não posso aceitar, você não é mais jovem e não aparenta estar bem, vá para a cama e eu vou sentar na cadeira.' Discutimos longamente o assunto e finalmente decidimos ir para a cama juntos. Eu a tranquilizei: 'Não tenha medo, estou velho e não posso mais satisfazer uma mulher.' Ela estava convencida da veracidade de minhas palavras... Bem... aonde é que eu estava indo? Ah sim! Bem, o fato é que me encontrei na cama, na companhia de uma condessa cujo amante poderia arrombar a porta a qualquer momento. Nós nos cobrimos com meus dois únicos cobertores, e não me preocupei em formar o casulo usual em que durmo. Eu me sentia tão nervoso e inquieto que até me esqueci do frio. Além disso, eu estava constantemente ciente de que a mulher estava ali, ao meu lado. De seu corpo emanava um calor estranho diferente do que eu havia conhecido até então, ou talvez fosse tudo porque eu já havia perdido a memória daquelas coisas. Acaso meu adversário no constante jogo de xadrez estava armando uma nova armadilha para mim? Nos últimos anos, meu adversário jogou sem muito rancor. Sim, porque, como você bem sabe, meu caro amigo, também existe o que poderíamos chamar de xadrez humorístico. Disseram-me que Nimzowitsch às vezes pregava peças em seus adversários. E nos velhos tempos, Morphy tinha uma reputação de humorista de xadrez. Em mente, eu disse ao meu adversário: 'Boa jogada, jogada de mestre...'. E então percebi que sabia quem era o amante da condessa. Eu tinha passado por ele na escada mais de uma vez. Ele era um gigante com cara de assassino. Que final divertido... Jacques Kohn, depenado por um Otelo polonês! Eu me pus a rir e a condessa também. Eu a abracei e a abracei junto de mim. Ela não resistiu. De repente, aconteceu um milagre. Eu tinha vigor viril novamente! Certa ocasião, ao por-do-sol de uma quinta-feira, eu estava em frente ao matadouro de uma pequena cidade, e vi como um touro cobria uma vaca, antes que um e outra fossem sacrificados para a celebração da festa do Sábado. Nunca saberei a razão por que a condessa consentiu. Talvez ela o tenha feito para se vingar de seu amante. A condessa me beijou e sussurrou frases doces em meu ouvido. Então ouvimos passos lentos. Alguém bateu na porta do sótão. A mulher rolou da cama e caiu no chão. Eu queria recitar a oração pelos moribundos, mas tive vergonha de comparecer diante de Deus nessas circunstâncias. Bem, mais do que vergonha de comparecer diante de Deus, tive vergonha de comparecer diante do meu adversário zombeteiro no jogo de xadrez. Como eu iria dar a ele tanto prazer? Mesmo o melodrama tem seus limites. O animal do outro lado da porta continuou a bater, e fiquei maravilhado com o fato de a porta ainda não ter cedido às suas pancadas. Agora ele a estava chutando. A porta gemeu, mas continuou a resistir. Então o barulho parou. Otelo se foi. Na manhã seguinte, levei o bracelete da condessa a uma casa de penhores. Com o dinheiro obtido, comprei para minha heroína um vestido, lingerie e sapatos. O vestido não lhe servia e os sapatos também não lhe serviam, mas, afinal, tudo o que ela tinha a fazer era atravessar a calçada e pegar um táxi, a menos que seu amante a estivesse perseguindo na escada. Mas, curiosamente, o indivíduo desapareceu naquela noite e nunca mais foi visto. Antes de partir, a condessa me beijou de novo e insistiu para que eu a visitasse, mas, apesar de tudo, não sou tão tolo assim. O Talmud diz: "Milagres não acontecem todos os dias." Pois bem, e o curioso é que Kafka, apesar da juventude, viveu atormentado por essas mesmas inibições que são a tortura da minha velhice. Kafka ficou paralisado por essas inibições, tanto em assuntos literários quanto carnais. Ele ansiava por amar, mas fugia do amor. Escrevia uma frase e imediatamente a riscava. Otto Weininger também era assim, louco e brilhante. Eu o conheci em Viena. Ele não cessou de prodigalizar aforismos e paradoxos. Ele disse uma frase que nunca esquecerei: "Deus não criou percevejos". É preciso ter vivido em Viena para entender essas palavras. Quem criou os percevejos? 
 
Olha, aí vem Bamberg! Veja como ele anda, vacilante, com aquelas perninhas tão curtas, como um cadáver que se recusa a descer à cova... Por que aquele homem estaria perambulando a noite toda? Por que insiste em ir a cabarés quando eles não podem mais diverti-lo? Os médicos desistiram dele anos atrás, quando ainda estávamos em Berlim. Mas isso não o impediu de ficar sentado no Romanisches Café até as quatro da manhã, conversando com as prostitutas. Certa vez, Granat, o ator, anunciou que ia dar uma festa — uma verdadeira orgia ³— em sua casa e, entre outros convidados, convidou Bamberg. Granat confiou a todos os homens que viessem com uma senhora, seja a própria, seja uma amiga. Mas Bamberg não tinha esposa nem amante, então contratou uma prostituta para acompanhá-lo. Ele também teve que comprar um vestido de festa para ela. Os convidados eram exclusivamente escritores, professores, filósofos e os clássicos que sempre perseguem os intelectuais. Todos tiveram a mesma ideia de Bamberg e vieram com prostitutas. Eu também fui. Fui na companhia de uma atriz de Praga, velha amiga minha. Você conhece Granat, meu querido e jovem amigo? Não? Bem, ele é um selvagem. Ele bebe conhaque como se fosse água e é capaz de simplesmente comer uma omelete de dez ovos. Assim que os convidados chegaram, Granat se despiu e começou a dançar como um louco com as prostitutas, só para impressionar os convidados intelectuais. A princípio, eles estavam sentados, assistindo ao espetáculo. Depois de um tempo, eles começaram a falar sobre sexualidade. Nietzsche disse isso ou disse aquilo... Quem não presenciou, dificilmente imaginará quão ridículos podem ser esses gênios. E de repente Bamberg sentiu-se mal. Ele ficou verde como grama e começou a suar. Ele me disse: "Jacques, acabou para mim... um bom lugar para morrer!" Ele teve um ataque renal ou hepático. Eu o tirei de lá e o levei para um hospital. 
— A propósito, meu querido e jovem amigo, posso pegar um zloty? 
— Não um, mas dois. 
— Quê!? Será que você roubou o Polski Bank? 
— Eu vendi um conto literário. 
— Parabéns! Jantemos juntos. Eu convido você. 
 
 2 
 
Enquanto jantávamos, Bamberg veio até nossa mesa. Ele era um homem baixo, com a palidez de um tísico, curvado e de pernas arqueadas. Usava sapatos de couro envernizado, e polainas. Em seu crânio pontiagudo ainda havia alguns cabelos grisalhos. Um olho era maior que o outro, e o olho maior era vermelho, arregalado e como se estivesse apavorado com a visão de si mesmo. Ele apoiou as mãozinhas ossudas sobre a mesa e, inclinando-se para a frente, disse com a voz estridente: 
— Jacques, ontem li aquele livro que você me emprestou, O Castelo de Kafka. Interessante, muito interessante, mas aonde ele quer chegar? É muito prolixo por se tratar de um sonho. As alegorias devem ser curtas. 
Jacques Kohn engoliu rapidamente a comida que mastigava e disse: 
— Sente-se. Um mestre não tem que seguir as regras. 
— Existem algumas regras que mesmo um mestre deve seguir. Nenhum romance deveria ser mais longo do que Guerra e Paz. Mesmo Guerra e Paz é muito longo. Se a Bíblia tivesse dezoito volumes, já teria caído no esquecimento há muito tempo. 
— O Talmud tem trinta e seis volumes e os judeus não o esqueceram. 
—Os judeus recordam demais. Esta é nossa desgraça. Há dois mil anos fomos expulsos da Terra Santa e agora estamos tentando voltar a ocupá-la. Loucura, não? Se nossa literatura refletisse essa insanidade, seria bom. Mas nossa literatura é incrivelmente sensata. Bem, chega disso. 
 
Bamberg se endireitou e franziu o cenho com o esforço. Com seus passos pequenos, arrastando os pés, ele se afastou de nossa mesa. Ele foi até o gramofone e colocou um disco de dança. Era sabido no clube dos escritores que Bamberg não escrevia uma palavra há muitos anos. Na velhice, aprendia a dançar, influenciado pela filosofia de seu amigo Dr. Mitzkin, autor de A Entropia da Razão. Nessa obra, o Dr. Mitzkin tentou mostrar que a inteligência humana está falida e que a verdadeira sabedoria só pode ser alcançada através da paixão. 
 
Jacques Kohn balançou a cabeça tristemente: 
— Um Hamlet insignificante. Kafka temia se tornar um Bamberg, e essa foi a razão que o levou a autodestruir-se. 
Perguntei-lhe: 
— A condessa ligou alguma vez para você? 
Jacques Kohn tirou o monóculo do bolso, colocou-o no olho e disse: 
— E daí, se ela tivesse ligado? Na minha vida, tudo se transforma em palavras. Tudo palavras, palavras... Na verdade, esta é a filosofia do Dr. Mitzkin: o homem vai acabar sendo uma máquina de palavras. Ele vai comer palavras, beber palavras, casar-se com palavras, envenenar-se com palavras. Pensando bem, o Dr. Mitzkin também assistiu à orgia de Granat. Ele não só chegou a praticar o que pregava, mas também foi capaz de escrever A Entropia da Paixão. Bem, sim, a condessa me liga de vez em quando. Ela também é uma intelectual, embora sem intelecto. Na verdade, embora as mulheres façam o possível para realçar os encantos de seus corpos, elas sabem tão pouco sobre o significado da sexualidade quanto sobre o intelecto. "Por exemplo, vejamos a Sra. Tschissik. O que aquela mulher tinha, exceto seu corpo? Agora, experimente perguntar a ela o que é realmente um corpo. Atualmente, ela é feia. Ela ainda tinha algo quando foi atriz, nos tempos de Praga. Eu era o ator principal. Ela era uma atriz com apenas um pingo de talento. Fomos a Praga com a ideia de ganhar algum dinheiro, e lá encontramos um gênio, um homo sapiens no mais elevado grau de autotortura. Kafka queria ser judeu, mas não sabia como. Ele queria viver, mas também não sabia como." 
 
Uma vez eu disse a Kafka: "Franz, você é jovem. Faça o que todos nós fazemos." Havia um bordel em Praga que eu conhecia bem, e o convenci a ir comigo até aquele lugar. Kafka ainda era virgem. Prefiro não falar da moça de quem ele estava noivo. Ele afundou até o pescoço na lama burguesa. Os judeus de seu círculo tinham um ideal — tornarem-se gentios, e não gentios tchecos, mas gentios alemães. Em suma, convenci-o a experimentar essa aventura. Levei-o para um beco escuro, no antigo gueto, onde ficava o bordel. Subimos os degraus íngremes. Abri a porta. Parecia um cenário: as prostitutas, os cafetões, os fregueses e a cafetina. Eu nunca vou me esquecer daquele momento. Kafka começou a tremer e puxou minha manga. Depois ele fez meia volta e desceu as escadas tão rápido que tive medo de que quebrasse uma perna. Ao chegar à rua, parou e vomitou como um colegial. Na volta, passamos por uma velha sinagoga e Kafka começou a falar sobre o golem. Kafka acreditava no golem e até estava convencido de que era provável que o futuro nos reservasse outro golem. Tinha que haver palavras mágicas capazes de transformar um monte de barro em um ser vivo. Deus, de acordo com a Cabala, não criou o mundo pronunciando palavras sagradas? No princípio era o Logos. Sim, tudo é um grande jogo de xadrez. Em toda a minha vida tenho temido a morte, mas agora que estou com um pé na cova, parei de temê-la. Não há dúvida de que meu adversário quer fazer um jogo lento. Ele vai continuar a pegar todas as minhas peças, uma a uma. Primeiro, ele me tirou o encanto como ator, depois me transformou em um suposto escritor. Assim que ele fez este último, ele me deu essa cãibra de escritor. Sua próxima jogada foi privar-me da minha potência. Mas sei que o xeque-mate ainda está longe, e isso me dá força. Se está frio no meu quarto, pois bem, que faça frio. Se hoje não tenho nem para jantar — não vou morrer por falta dele. Ele me sabota e eu o saboto. Há algum tempo, estava voltando tarde da noite para casa. Estava terrivelmente frio e, de repente, me dei conta de que havia perdido minha chave. Acordei o porteiro, mas ele não tinha nenhuma chave sobressalente. O porteiro fedia a vodca e o cachorro dele mordeu meu pé. Em outros tempos eu teria me desesperado, mas desta vez disse ao meu adversário: 'Se você quer que eu pegue pneumonia, para mim está tudo bem.' Saí de casa e decidi ir para a estação de Viena. O vento quase me levou. Fui a pé porque, àquela hora da noite, teria de esperar três quartos de hora para pegar o bonde naquela hora da noite. Ao passar pela associação de atores, vi luz em uma janela. Decidi entrar. Talvez eu pudesse passar a noite ali. Enquanto eu subia os degraus, meu sapato tropeçou em algo que produziu um som metálico. Inclinei-me e apanhei uma chave. Era a minha chave! A chance de encontrar uma chave na escadaria escura era de uma em um bilhão, mas parece que meu adversário temia que eu entregasse minha alma antes que ele estivesse pronto. Fatalismo? Chame-o de fatalismo, se quiser." 
 
Jacques Kohn levantou-se, desculpando-se, para fazer um telefonema. Fiquei sentado, observando Bamberg que, com as pernas bambas, dançava com uma senhora do mundo literário. Os olhos de Bamberg estavam fechados e sua cabeça repousava no peito da senhora, como se fosse um travesseiro. Dava a impressão de dançar e dormir ao mesmo tempo. Jacques Kohn demorou muito para voltar, muito mais do que para fazer uma ligação. Quando ele voltou, seu monóculo estava brilhando. 
Eu disse: 
— Você não advinha quem está na outra sala... Madame Tschissik! O grande amor de Kafka! 
— É verdade? 
— Verdade. Acho que já lhe falei dela... Vamos lá, quero que você a conheça. 
— Não! 
— Por que? Uma mulher amada por Kafka merece ser conhecida! 
— Não me interessa. 
— Você é um homem tímido, esta é a razão da sua atitude. Também Kafka era tímido, tímido como um aprendiz de yeshivá. Por outro lado, nunca fui tímido, e talvez seja a razão por que nunca consegui nada. 
— Meu querido e jovem amigo, preciso de mais vinte Groschen, dez para o porteiro deste prédio e dez para o porteiro do meu. Sem dinheiro não posso voltar para casa. 
Tirei algumas moedas do bolso e dei-as a ele. 
— Isso importa para mim? Certamente parece que eu roubei um banco hoje. Quarenta e seis Groschen! Assim, como de costume! Enfim, se existe Deus, não tenho dúvidas de que Ele o recompensará. E se Deus não existe, quem é esse que está jogando todas essas partidas de xadrez com Jacques Kohn? 
 
* Traduzido do iídiche para o inglês pelo autor e Elizabeth Shub


III. NOTAS EXPLICATIVAS


¹  Também conhecido como "father-killer". Diz-se que esta gola alta e dura eventualmente matava quem a usava. Observe que as escolhas do vestuário do Sr. Kohn também revela bastante sobre o seu caráter.

²   Yankel (ou Yankele) é uma forma familiar iídiche do nome Yakov (Jacob), no grau diminutivo. Jacques é a forma francesa de Jacob.
 
³  Por coincidência ou não, o autor Robert GRANAT retrata uma suruba entre uma cadela no cio e um grupo de cães pretendentes a fazer sexo grupal. In GRANAT, Robert: The Gift of Lack: Short Stories and Other Writings, Lincoln (NE): iUniverse, 2000, 220 p. (conto chamado "Dog", p. 106-125)
Obs.:  Recomenda-se buscar "Granat's orgy" no Safari.


IV. BIBLIOGRAFIA
 
eNotes Editorial for a Friend of Kafka: Summary
 
_______________________________: Themes and Meanings
 
_______________________________: Analysis: Style and Technique
 
SINGER, Isaac Bashevis: A Friend of Kafka and Other Stories, New York: Farrar, Straus & Giroux, 1970, 311 pp. 
 
TRIBUNA DO NORTE: A escrita inusitada de um judeu errante, edição de 24/02/2010.