segunda-feira, 25 de abril de 2022

TUDO POR UMA VIDA DEDICADA AO BEL CANTO: NIZA DE CASTRO TANK


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Niza de Castro Tank (✰Limeira, 10/03/1931 ✞ Campinas, 24/04/2022)


Fiquei consternado com a triste notícia de que uma das maiores cantoras líricas brasileiras, a soprano coloratura Niza de Castro Tank, faleceu no domingo, 24 de abril de 2022, aos 91 anos de idade, de causas naturais em sua residência em Campinas. Sem a menor dúvida, a ilustre homenageada se consagrou como intérprete da obra do compositor e maestro campineiro, Antônio Carlos Gomes (1836-1896), notadamente no papel de Ceci, personagem da ópera “Il Guarany”. 

Nascida em Limeira em 1931, Niza recebeu incentivo para a música em casa e na escola. Com a mudança para Campinas, em 1945, passou a ter aulas de canto. O aprimoramento a encorajou a tentar um contrato como cantora na PRA-6 Rádio Gazeta, na capital paulista. 

Sobre Niza Tank, assim se expressa sua biógrafa Sara Lopes, no livro "Niza de Castro Tank, Apesar das Outras" (2004), lançada na Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: 

"Acompanhei várias temporadas líricas no Municipal de São Paulo, de uma posição privilegiada, assistindo Lakmé, Cosi Fan Tutti, Lucia di Lammermmoor, Bohéme, Il Guarany, Carmina Burana e, em Campinas, Colombo e A Noite do Castelo, esta de dentro da cena, cantando no coro. Em cena nunca pude decidir se ela era melhor atriz ou cantora. 
No palco, ela sempre soube fazer parecer que tentava o impossível e, quando conseguia, levava a plateia ao delírio. Mais de uma vez vi o público totalmente fora do controle, ao final de uma ária, chorando, aos gritos, atirando para o ar os programas, os casacos... 
O fato é que Niza fez parte da melhor linhagem das divas, numa época em que o mundo tinha tempo e espaço para as divas. 'Primadonna assoluta' da cena lírica do Brasil, dona de uma voz de timbre privilegiado, comovente mesmo, viveu plenamente sua glória, sem se deixar afetar por ela. (...)" (p. 12)

Diplomada em Canto pelo Conservatório Campinas e admitida no curso de Canto Orfeônico, oferecido pela Faculdade de Filosofia de Campinas. O curso era noturno. Simultaneamente com o curso de Canto Orfeônico (das 19 às 23 horas), Tank também fazia o Curso Normal (de 12 às 17 horas) para ser professora primária. Concluiu ambos os cursos simultaneamente em dezembro de 1949, em datas distintas. 

Niza de Castro Tank começou sua carreira profissional em fins de 1954, quando, em São Paulo, foi à sede da Rádio Gazeta para ser ouvida pelo maestro Armando Belardi. Havia sido desaconselhada pelo professor Sylvio Bueno Teixeira em Campinas, mas fez a viagem assim mesmo, contrariando suas instruções. 

Sara Lopes narra como foi o primeiro contato com o regente Armando Belardi da Rádio Gazeta, nas palavras da biografada Niza Tank: 

"Esta querida amiga, Leonor Susigan, que Deus levou muito cedo, era uma jovem destemida e atirada, que trabalhava como secretária de um partido político em Campinas. Ia constantemente a São Paulo e prontificou-se a ir comigo e deixar-me na Rádio Gazeta, que ficava na Rua Casper Líbero. Só mamãe sabia dessa aventura. 
Vinte e três anos, 51 kg, 1,70 m, cabeleira loira, vestidinho amarelo novo, sapato branco salto 5, uma partitura nas mãos, cheguei ao saguão do Edifício Casper Líbero da Rádio Gazeta. Pensava que minha presença, modéstia à parte, e minha voz, iam me dar um pouco de sorte, naquele dia. Minha amiga deixou-me para voltar em duas horas e retornarmos para Campinas. 
Eu conhecia o maestro Belardi de nome e fama. Fama de excessivamente enérgico, chegando a ser rude; nome de bom maestro lírico, que conduzia solistas, coro e orquestra na rádio." (p. 69) 

Mais adiante na entrevista, Niza Tank identifica quais foram os grandes pilares em sua carreira artística: 

"E tudo o que realizei, daí para a frente, começou com dois pares de mãos enérgicas me conduzindo pelos caminhos da arte: professor Sylvio Bueno Teixeira e maestro Armando Belardi. A eles, devo todo o meu reconhecimento, minha gratidão e muita, muita, saudade." (p. 86)

A essa altura, a fama conquistada pelas ondas do rádio já a levava a palcos como dos Theatros Municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde faria diversos papéis marcantes em sua carreira, como Gilda, no Rigoletto, de Verdi; Lucia, na ópera Lucia de Lammermoor, de Donizetti; Lakmé, na ópera de Delibes de mesmo título; na ópera Galo de Ouro de Rimsky-Korsakov; a Rainha da Noite, na Flauta mágica de Mozart; Rosina, em O Barbeiro de Sevilha, de Rossini; Mimi, em La Bohème, de Puccini e Amina em La Sonnambula, de Bellini. 

Entre todas essas grandes interpretações destacava-se, no entanto, a dedicação à obra de Antonio Carlos Gomes. Como Ceci, em Il Guarany, fez história. Niza de Castro Tank gravou Il Guarany em 1958/9 com o maestro Armando Belardi e, nos anos 1980, registrou a obra em Campinas, com Benito Juarez. Há ainda o registro de um concerto ao vivo em Campos do Jordão, ao lado do tenor Benito Maresca, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e o maestro Eleazar de Carvalho.

Permito-me mostrar aqui o cast envolvido em uma das apresentações mais importantes de Il Guarany: a de 1958 que merece ser lembrada aqui. 

Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo 
Regente: Armando Belardi 
Coro lírico do Teatro Municipal de São Paulo
Maestro de Coro: Oreste Sinatra
Ano 1959, primeira gravação mundial 
Pery: Manrico Patassini, tenor 
Ceci: Niza de Castro Tank, soprano 
Gonzales: Paulo Fortes, barítono 
Don António de Mariz: José Perrota, baixo 
Cacique aimoré: Juan Carlos Ortiz, baixo 
Don Álvaro: Paschoal Raymundo, tenor 
Rui Bento: Roque Lotti, tenor 
Alonso: Waldomiro Furlan, baixo 
Comentário: A soprano Niza de Castro Tank rouba a cena, pois a partitura pede uma soprano lírico-coloratura como ela. Sua voz é leve, seus agudos são naturais e fáceis, sem esforço. Inesquecível
a) o "recitativo" de Il Guarany: Ato II "Oh! Come e bello il ciel!" na voz de Niza Tank (1959).  
seguido da ária propriamente dita: "C'era una volta un principe

Ensaio da ópera Il Guarany - Fonte: Revista Long Playing (nº 19, p.7, 1959: "Os técnicos aprestam-se para iniciar a mais arrojada obra da fonografia brasileira e da América Latina – O Guarani. Os músicos e o coral sob a batuta soberba do maestro Armando Belardi. A Chantecler marcou um tento admirável, ante o brilhantismo da ideia e execução.)"

Frontispício do álbum O Guarani, composto pelo busto de Carlos Gomes, obra do escultor Domingos Nucci, fotografada por Oswaldo Micheloni. Capa do LP da Chantecler Discos, gravado em 1959. Primeira gravação mundial completa da ópera O Guarani com a participação de Niza Tank. Crédito: https://thiagosouzarosa.wordpress.com/2009/03/page/3/
 
 

Atuando como Ceci, que ela tanto cantou nos palcos brasileiros, fez-se ouvir ainda na Itália, no Teatro di San Carlo, de Nápoles, em 1971, nas comemorações do centenário da ópera.

O Prof. Dr. Antonio Alexandre Bispo (2016) ressaltou a importância do intercâmbio cultural Itália-Brasil em 1969 que motivou empresário e artistas brasileiros a procurarem retribuir o mesmo gesto de carinho em 1971, apresentando Il Guarany no Teatro San Carlo de Nápoles, com o seguinte comentário: 

"A visita do elenco do Teatro San Carlo de Nápoles ao Brasil em 1969 despertou nos círculos líricos de São Paulo o intento de retribuição e de apresentação, na Itália, de cantores e músicos brasileiros ou ítalo-brasileiros. 
O principal motor da iniciativa foi mais uma vez o empresário Alfredo Gagliotti, que alcançou apoios de instâncias brasileiras e italianas e o interesse de artistas brasileiros. Entre êles, participaram do empreendimento Niza de Castro Tank, Assis Pacheco, Costanzo Mascitti, Wilson Carrara, Paulo Adonis Gonzáles, Assadur Kiultzian, Andréa Ramus, Benedito Silva e Carlos Ebide. A regência esteve a cargo de Armando Belardi e Henrique Morelenbaum. O corpo de baile foi formado com bailarinos de São Paulo e do Rio de Janeiro, com coreografia de Johnny Franklin. 
Foi a primeira vez que um grupo considerável de cantores, músicos, técnicos e bailarinos do Brasil dirigiu-se à Itália para apresentar-se num dos principais teatros da terra por excelência da arte lírica. 
Foi, assim, um marco na história do intercâmbio Itália-Brasil na sua devida reciprocidade. Além do mais, o significado do empreendimento salientou-se pelo fato de ser a obra escolhida aquela de um compositor brasileiro que com ela alcançou o seu maior sucesso na Itália. 
O grupo foi recebido, em abril de 1971, com grande cordialidade em Nápoles pelas autoridades e representantes do tradicional Teatro, onde realizou quatro apresentações, com sucesso de público. Sendo filho de italianos, Armando Belardi foi recebido com simpatia pelos membros da orquestra e do coro de Nápoles, que por fim colocaram um seu retrato na sala da orquestra."

Niza Tank também interpretou no palco outras óperas de Carlos Gomes, tais como no papel da Condessa, em Lo Schiavo (1974); Fosca;  no papel de Genariello, em Salvador Rosa; no papel de Addin,  em Condor/Odaléa; Joanna de Flandres, além de ter gravado seu repertório sacro. 

Teve ilustres parceiros de palco: Benito Maresca, Paulo Fortes, Manrico Patassini, Alfredo Colosimo, Maria Henriques, Gloria Queiroz, etc. Como se vê, a lista é imensa. 

A artista foi premiada cinco vezes seguidas com o Troféu Roquete Pinto (de 1956 a 1960), além de receber distinções como o Troféu Carlos Gomes, a Medalha da Associação Paulista de Críticos Teatrais e a Medalha Samuel Lisman. 

Continua a biógrafa Sara Lopes: 

"Quando aceitou trabalhar na Unicamp, no Departamento de Música, foi cheia de planos e entusiasmo. Era o começo da universidade, era o começo do Instituto de Artes e ela imprimiu sua marca inconfundível às classes de canto, pondo em prática sua máxima: O cantor é uma individualidade que deve ser trabalhada por inteiro. (p. 13) 

Em entrevista à RTV Unicamp, a soprano recorda que, por ainda não haver instalações adequadas, escolheu dar aula sob uma árvore, local cativo de uma cadela chamada “Bolinha”, que acabou servindo como uma improvável ferramenta pedagógica. “A Bolinha foi o meu primeiro exemplo (aos alunos) de respiração diafragmática. Eu dizia: ‘Deita, Bolinha, que eu preciso explicar para eles como é que se respira’”.

No início dos anos 2000, ela lançou o livro Minhas Pobres Canções. Antonio Carlos Gomes (Editora Algol), fruto de anos de pesquisa realizada na Unicamp, onde foi professora. O volume traz as partituras de quarenta canções, além de dois CDs em que cantores, muitos deles seus alunos, interpretam as peças. 
 
Minhas Pobres Canções. Antonio Carlos Gomes, por Niza de Castro Tank
 
Doutora em artes pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) com tese sobre Carlos Gomes, a cantora também teve intensa atuação acadêmica e foi a primeira titular da cadeira de Canto do curso de música da universidade. 

Antes de dar como encerrada sua trajetória como intérprete de Carlos Gomes em 1987, após cerca de 50 apresentações de “Il Guarany”, Nize gravou, em 1986, dois álbuns com canções do maestro campineiro. Com a Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas (OSMC), gravou em 2004 o disco “Campinas de Todos os Sons”, e, em 2005, “A Missa de São Sebastião”. Em 2013, aos 83 anos, Niza participou da tradicional Procissão do Senhor Morto, realizada na Sexta-Feira Santa, interpretando o “Canto da Verônica” (do compositor Antonio Carlos Gomes), e ainda demonstrava formidável domínio de sua voz. 

De uns anos para cá, porém, sua saúde se debilitou e ela se retirou de cena, após cerca de seis décadas de contribuição artística.


"O cantor é uma individualidade que deve ser trabalhada por inteiro." (Niza de Castro Tank)
 
 
 
II. AGRADECIMENTO
 
Agradeço à minha amada Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo produzido por mim.

 
III. REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


BISPO, Antonio Alexandre (Ed.).“Antonio Carlos Gomes (1836-1896) no Scambio culturale Italia-Brasile e os estudos de processos culturais - lembrando Armando Belardi (1900-1989)“. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 161/02(2016:03).

Link: http://revista.brasil-europa.eu/161/Scambio_culturale_Italia_Brasile.html  👈

BRAGA, Francisco José dos Santos Braga: Intercâmbio Cultural Itália-Brasil e Brasil-Itália, in Blog do Braga, postado em 22/09/2021.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2021/09/intercambio-cultural-italia-brasil-e.html   👈

LOPES, Sara: NIZA DE CASTRO TANK, APESAR DAS OUTRAS, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004,  264 p.
 
Documentário da TV Unicamp dirigido por Ariane Porto e Tereza Aguiar, produzido em 2012, chamado As Jóias da Princesa: Niza de Castro Tank
Link: https://www.youtube.com/watch?v=HX3RUUEGZfQ
 
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"Niza Tank: memória científica", produção da RTV Unicamp. Entrevista com Profª Niza de Castro Tank do Departamento de Música da Unicamp, 2016.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=9TyrwxSTAyM
 
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quinta-feira, 21 de abril de 2022

PERSONALIDADE: LIMA BARRETO


Por Francisco José dos Santos Braga

Afonso Henriques de Lima Barreto - escritor




A crítica de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, da autoria de M. de Oliveira Lima, foi publicada, pela primeira vez, no O Estado de São Paulo, de 13 de novembro de 1916, por ocasião do aparecimento da 1ª edição em livro. Essa crítica constituiu prefácio da edição das Obras Completas, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1956. A partir dessa antológica edição, as que se seguiram utilizaram essa bela página de M. de Oliveira Lima como prefácio.

Oliveira Lima, intelectual de grande prestígio, escreveu, como se verá abaixo, um artigo muito elogioso à obra de Lima Barreto. Este, em carta de agradecimento ao intelectual pernambucano, disse que a crítica o "animara". Não é difícil entender a escolha desse termo, considerando o estado de espírito do escritor carioca no período.

A crítica de M. de Oliveira Lima se inicia com uma frase dura dirigida aos jornalistas, acusando a imprensa do País de ser "quem menos lê". Dirige em seguida sua verbena à crítica literária quando teve alguns de seus representantes saudando a aparição de Canaã como revolução genial. Não entende o porquê de tanto silêncio em relação a O Triste Fim de Policarpo Quaresma quando o tinha em conta de cem vezes superior a Canaã, em todo sentido. Ou seja, ao defender Lima Barreto não poupou nem mesmo Graça Aranha, o aclamado por nossos críticos literários. 

Em outro trabalho meu ¹, tratei da dificuldade de Lima Barreto em ajuntar o dinheiro para realizar o seu sonho de ver o livro publicado. O próprio autor, em março de 1916, mas sem data precisa, escreve em seu diário, conforme [MENDONÇA (org.), 126-7]:
"Policarpo Quaresma foi escrito em dois meses e pouco, depois publicado em folhetins no Jornal do Comércio da tarde, em 1911. Quem o publicou foi o José Félix Pacheco. Emendei-o como pude e nunca encontrei quem o quisesse editar em livro. Em fins de 1915, devido a circunstâncias e motivos obscuros, cismei em publicá-lo. Tomei dinheiro daqui e dali, inclusive do Santos, que me emprestou trezentos mil-réis, e o Benedito imprimiu-o. ²  Os críticos generosos só se lembravam diante dele do Dom Quixote. V. Oliveira Lima e Afonso Celso. Audaces fortuna juvat. (...)" (Trad. A sorte protege os audaciosos. Ou a sorte favorece os audaciosos. Ou a sorte sorri para os que ousam. Virg. Eneida, X, 284)
No mesmo trabalho esclareci ainda que Policarpo veio a público em 52 folhetins do Jornal do Comércio, no vespertino, de 11 de agosto a 19 de outubro de 1911. A sua primeira edição em livro foi publicada em 1916, no Rio de Janeiro, pela Tipografia Revista dos Tribunais, única em vida do autor. 
 
Coleção Brasiliana Itaú / Reprodução Fotográfica Horst Merkel / Crédito: Enciclopédia Itaú Cultural

 
 
Veja a anotação de Lima Barreto no seu diário em março de 1916, sem data precisa, segundo [MENDONÇA (org.), 126]
"Meu livro, o Policarpo, saiu há quase um mês. Só um jornal falou sobre ele três vezes (de sobra). Em uma delas, Fábio Luz assinou um artigo bem agradável. Ele saiu nas vésperas do carnaval. Ninguém pensava em outra coisa. Passou-se o carnaval e Portugal teve a cisma de provocar guerra com a Alemanha. As folhas não se importavam com outra coisa senão com o gesto comicamente davidinesco de Portugal. Enchiam colunas com notícias como esta: 'A esquadra portuguesa foi mobilizada. Acham-se em pé de combate o couraçado Vasco da Gama, o cruzador Adamastor, a corveta Dona Maria da Glória, a nau Catarineta, a caravela Nossa Senhora das Dores, o brigue Voador e o bergantim Relâmpago'. E não têm tempo de falar no meu livro, os jornais, estes jornais do Rio de Janeiro."




1)  POLYCARPO QUARESMA, por Manuel de Oliveira Lima ³



O "triste" fim do major Quaresma, coroando uma triste vida, constitue o entrecho de uma novella à qual a imprensa do paiz não fez ainda a devida justiça, porventura pela simples razão de ser a imprensa quem menos lê. Já lhe basta, dirá ella, ter que fornecer o que ler. Entretanto nessa imprensa houve, ha quinze annos passados, mais de um critico que saudasse como uma revelação genial a apparição de "Channaan". O que dizer então do romance do sr. Lima Barreto, que lhe é em todo sentido cem vezes superior? Querem a prova? Qual dos typos desenhados pelo sr. Graça Aranha perdurará na memoria mesmo dos intellectuaes, como acontece com o conselheiro Acacio, o João da Ega, o Damaso, o poeta Alencar? Em Milkau e em Lentz pretendeu o autor do "Chanaan" symbolisar as tendencias oppostas da alma alleman, o idealismo e a força, mas representará isso um pensamento original, ou será antes o chavão batido por todo aspirante a observador das psychologias estranhas? O que faz a superioridade olympica de Goethe, senão a combinação perfeita daquelles dois elementos?

Entretanto o major Quaresma viverá na tradição, como um Dom Quixote nacional. Ambos são typos de optimistas incuraveis, porque acreditam que os males sociaes e soffrimentos humanos podem ser curados pela mais simples e ao mesmo tempo mais difficil das therapeuticas, que é a applicação da justiça da qual um e outro se arvoraram paladinos. Um levou sovas por querer proteger os fracos; o outro foi fuzilado por querer na sua bondade salvar innocentes. Visionarios ambos: assim tratou o marechal de ferro o seu amigo Quaresma e trataria Dom Quixote, se houvesse lido Cervantes.

O romance do sr. Lima Barreto, se não alvorotou a imprensa, impressionou fortemente quantos o leram. Não tenho ouvido a tal respeito uma opinião discrepante. É um grande livro, por consenso commum. A unica pecha de que o tenho ouvido culpar, não me parece absolutamente justa. Refere-se à linguagem, ou melhor ao estylo, julgado menos cuidado e por vezes incorrecto, por ser a linguagem simples e propositalmente desataviada. Por identico motivo era Eça de Queiroz no começo taxado (sic) de escrever mal. O sr. Lima Barreto procura felizmente não escrever bonito: antes, mil vezes antes, singelo, familiar mesmo, do que pernostico.

O facto porém é que o autor conta até felizes achados de expressão traduzindo felicissimos conceitos, como por exemplo, a oradora da delegação patriotica a Floriano: de busto curto, agitando o leque, "sem se poder dizer bem qual sua côr ou sua raça, tantas nella andavam que uma escondia a outra" , desafiando a classificação; ou o almirante Caldas, que achava difficil manobrar com um navio mas facil commandar uma esquadra, porque para isto bastava bravura; ou ainda o tenente Fontes que, quando o major Quaresma queria regular os tiros scientificamente, pela distancia, pela alça, pelo angulo, exclamava que o seu superior pensava estar num polygono, quando a questão era de "fogo para diante".

O sr. Lima Barreto não se dá ao luxo, por vezes espaventoso, de rebuscadas psychologias. Ao leitor deixa elle o reconstituir o caracter dos seus personagens: o leitor porém o póde fazer sem fadiga, naturalmente, quasi instinctivamente, com os elementos postos à sua disposição observações passageiras, fragmentos de dialogos, notações rapidas de sentimentos. De tudo isso se deriva uma psychologia completa, que melhor se grava no nosso espirito do que se fosse feita por meio de subtil e detalhada analyse. Alguem comparou um dia um romance de Bourget com um retrato de Velasquez (sic), psychologos ambos de rara penetração, mas eu sempre prefiro o retrato de Velasquez.

No romance do sr. Lima Barreto ha figuras inolvidaveis, a do protagonista por exemplo, ou a do trovador Ricardo Coração dos Outros, um visionario tambem, poeta do violão. Com nenhum gasta o autor muitas pinceladas: a pintura resalta (sic) da propria acção. Elle reserva o mais das suas tintas para o perfil que se tem querido fazer enigmatico de Floriano (enigmatico para os que não querem traçal-o à luz da verdade) e de que elle conseguiu um desenho impressivo. Physicamente, a figura do ditador "era vulgar e desoladora. O bigode cahido, o labio inferior pendente e molle a que se agarrava uma grande "mosca"; os traços flacidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse proprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo elle era gelatinoso parecia não ter nervos."

No moral, os traços predominantes eram a probidade pessoal, que no Imperio era ou tinha de ser um predicado geral; o amor da familia, mais forte nas civilisações patriarchaes, como era a da sua formação moral; uma indolencia organica, "preguiça de pensar e de agir, da qual vinha o seu mutismo; os seus mysteriosos monosyllabos, elevados à altura de ditos sibyllinos, as famosas 'encruzilhadas dos talvezes', que tanto reagiram sobre a intelligencia e imaginação nacionaes, mendigas de heroes e grandes homens"; a calma de chinelos e palito na bocca que alli se originava e que era antes "tibieza de animo" responsavel pelas condescendencias e intimidades que autorisava e que tornaram esse governo um governo de prepotencias commettidas pelos irresponsaveis.

Em que se firmava tal governo, se lhe faltava o elemento essencial da fortaleza do "homem", homem-Cesar? De um concurso de circumstancias geradoras de um "enthusiasmo contagioso" por uma figura "placida e triste", incapaz de realisar qualquer grande reforma e apenas capaz de exercer uma tyrannia domestica. Polycarpo Quaresma imaginára nelle um Henrique IV desdobrando-se num Sully. A atmosphera exaltada, nativista da época, dera-lhe uns reflexos tragicos de Richelieu embebido na idéa da unidade da França e da supremacia dos interesses do Estado. O "homem" valia menos. Os que tinham vindo a elle, faziam-no "ou com pueris pensamentos politicos ou por interesse: nada de superior os animava. Mesmo entre os moços, que eram muitos, se não havia baixo interesse, existia uma adoração fetichica pela forma republicana, um exaggero das virtudes della, um pendor para o despotismo, que os seus estudos e meditação não podiam achar justo."

A mocidade de hoje pensa diversamente com relação a processos de governo. Ha mais scepticismo e tambem mais tolerancia. Eu não penso, felizmente para o Brasil, que fosse "hoje" possivel renovar aquelle periodo do Boqueirão e do famoso kilometro. É verdade que temos perto de nós a ilha das Cobras, o "Satellite" e o Contestado... Mas eu "quero" crer que assim será, que a bondade famosa da alma brasileira se tornará uma realidade, e para isto me fio no que sentem e como sentem os escriptores que vão surgindo, a exemplo do sr. Lima Barreto.

Veja-se como elle descreve o pessoal onde se iam recrutar os fuzilados do Boqueirão: "Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as côres e de todos os sentimentos, gente que se tinha mettido em tal aventura pelo habito de obedecer, gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à força aos lares ou à calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado por miseria; gente ignara, simples, às vezes cruel e perversa como crianças inconscientes, às vezes boa e docil como um cordeiro, mas emfim gente sem responsabilidade, sem anceio politico, sem vontade propria, simples automatos nas mãos dos chefes e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor."

Este... "O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sêde de matar, para affirmar mais a victoria e sentil-a bem na consciencia coisa sua, propria e altamente honrosa." Pobre Polycarpo Quaresma, preso por haver protestado, no uso de um direito constitucional, contra os horrores da matança a sangue frio, e levado para a mesma masmorra onde tinham penado, no tempo colonial, alguns formosos espiritos ávidos de independencia... "Aquelles homens, accusados de crime tão nefando em face da legislação da época, tinham levado dois annos a ser julgados; e elle, que não tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado: seria simplesmente executado!"

Não é um dos menores meritos deste romance o poder ser posto em todas as mãos sem constituir uma offensa à moral. Nos contos mesmo que lhe servem de appendice, ha reserva, e grande, todas as vezes que se toca a nota sensual ou brejeira. Nos typos femininos, Ismenia e Olga sobretudo, a delicadeza do desenho é notavel, lembrando algumas das criações de Machado de Assis. Nada de certas scenas do "Chanaan", dignas de um gabinete de parteira. Em "Polycarpo Quaresma" predomina o sentimento: banha o livro um sopro de compaixão, uma vibração mysteriosa de piedade que resgata qualquer defeito de composição, que ainda possa apresentar essa segunda tentativa, no genero romance, da mais promettedora vocação da geração nova, espirito no qual se allia ao senso do pittoresco o senso social.

É preciso remontar até "O Mulato" para se lhe encontrar termo de comparação, talvez mesmo mais longe, às "Memorias de um sargento de milicias", porque em Aluizio Azevedo era forte a preoccupação da escola naturalista e sensivel a influencia de Zola e de Eça de Queiroz, ao passo que o sr. Lima Barreto, como Manuel de Almeida, se contenta, sem esforços de originalidade, em ser elle proprio.

Rio, Novembro de 1916. 

Oliveira Lima

Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, edição nº 13.838 de 13/11/1916, p. 4.
 
 

NOTAS EXPLICATIVAS




¹   Blog do Braga: "Lima Barreto ou a Sinceridade", publicado em 31/8/2016. Linkhttp://bragamusician.blogspot.com.br/2016/08/
lima-barreto-ou-sinceridade.html

²   Aqui Lima Barreto faz referência a Antônio Noronha Santos e Benedito de Sousa.

³   A crítica de Oliveira Lima integra as edições de O Triste Fim de Policarpo Quaresma como prefácio, depois daquela célebre das Obras Completas, em 1956. Essa famosa crítica, citada até mesmo por Lima Barreto, será reproduzida aqui da forma como saiu na edição nº 13.838 de 13/11/1916, p. 4, com a sua grafia de época. Para fins de comparação com a atual grafia, sugiro uma das que se encontram na Internet (por exemplo, https://www.academia.org.br/academicos/oliveira-lima/textos-escolhidos) ou disponível em praticamente todas as edições de Triste fim de Policarpo Quaresma.

  A citação foi extraída do primeiro capítulo "Patriotas" da terceira parte do livro, onde Lima Barreto expõe o ridículo de uma audiência com o ditador marechal Floriano Peixoto. O major Quaresma fora a palácio para entregar um memorial a Floriano, em que "se expunham as medidas necessárias para o levantamento da agricultura e se mostravam todos os entraves, oriundos da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de fretes, da estreiteza dos mercados e das violências políticas."
Algo estava para acontecer com esse seu gesto tresloucado. Havia como que um presságio ("foreshadowing", termo usado por autores ingleses) pairando no ar: sua irmã Adelaide e o preto velho Anastácio farejaram desgraça na sua iniciativa. Enquanto major Quaresma aguardava pacientemente a um canto da sala, à espera de um aceno do presidente para se aproximasse, presenciou a seguinte cena, descrita da seguinte forma por Lima Barreto:  
"(...) Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro, à espera que o presidente o chamasse. Era cedo, pouco devia faltar para o meio-dia, e Floriano tinha ainda, como sinal do almoço, o palito na boca. 
Falou em primeiro lugar a uma comissão de senhoras que vinham oferecer o seu braço e o seu sangue em defesa das instituições e da pátria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto, gorda, com grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão direita. 
Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam tantas nela que uma escondia a outra, furtando toda ela a uma classificação honesta. 
Enquanto falava, a mulherzinha deitava sobre o marechal os grandes olhos que despediam chispas. Floriano parecia incomodado com aquele chamejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquele olhar que queimava mais sedução que patriotismo. Fugia encará-la, abaixava o rosto como um adolescente, batia com os dedos na mesa... 
Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem encarar a mulher, e, com um grosso e difícil sorriso de roceiro, declinou da oferta, visto a república ainda dispor de bastante força para vencer. (...)" 

  No mesmo capítulo, intitulado "Patriotas", Lima Barreto descreve a fisionomia de Floriano, aquele que ia acumular "em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e vontades, nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana," não sem antes criticar abertamente a "entourage" de Floriano, "os cadetes da Escola Militar que formavam a falange sagrada e que tinham todos os privilégios e todos os direitos". Aproveitou a oportunidade para apontar "uns trapos de positivismo colado naquelas inteligências", levando os cadetes a idolatrar "especialmente Floriano e vagamente a República".

Ainda do capítulo "Patriotas", extraio um trecho dedicado à descrição do caráter e do temperamento de Floriano:
"com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça."


REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


BRAGA, Francisco José dos Santos Braga: Lima Barreto ou a Sinceridade, publicada em 31/08/2016 no Blog do Braga. 
 
MENDONÇA, Bernardo (org.): LIMA BARRETO, UM LONGO SONHO DO FUTURO: Diários, cartas, entrevistas e confissões dispersas, Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2ª edição, 406 p., 1998.
 
OLIVEIRA LIMA, Manuel de. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. Publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paulo, edição nº 13.838 de 13/11/1916, p. 4