sexta-feira, 16 de outubro de 2015

TITTA RUFFO NO CONCERTO INAUGURAL DO TEATRO MUNICIPAL PAULISTANO


Por Francisco José dos Santos Braga





I.  PROLEGÔMENOS


1911 é um marco na história da Música na Pauliceia. 12 de setembro daquele ano marcante foi a data da inauguração do Teatro Municipal, que trouxe novo esplendor e abriu novos horizontes às atividades operísticas de São Paulo. Essa comemoração ocorreu cerca de um mês após a temporada lírica oficial de 1911 que abrangeu o período de 31 de julho a 7 de agosto. ¹

[CERQUERA, 1954, 73] apontou muito bem as características da época que viu surgir esse patrimônio da cultura paulistana: 
"Sem embargo das restrições econômicas da época, Ramos de Azevedo dotou a nossa capital de um teatro infinitamente superior às antigas casas de espetáculos da Pauliceia. (...) No recinto dourado do Municipal a magnificência do auditório correspondia às realizações cênicas de um repertório eclético e de novas perspectivas artísticas. 
Jamais devem ser relegados ao olvido os primeiros fastos gloriosos da ópera em São Paulo: a vinda de célebres cantores aos antigos São José e Santana e ao Politeama, as 'premières' que colocaram a nossa capital à frente de grandes teatros do mundo. Contudo, foi no Teatro Municipal que a arte lírica proporcionou aos paulistanos um panorama mais amplo, mediante as representações wagnerianas e a presença de elencos especiais para a audição das óperas francesas, alemãs e russas no texto original. É possível que o Tempo se encarregasse de atualizar e desenvolver o repertório mesmo nos velhos palcos, mas a história da ópera em São Paulo encontrou o seu fastígio no teatro de Ramos de Azevedo."  
A primeira missão dos dirigentes do novo teatro, antes mesmo de sua inauguração, deve ter sido inserir o Teatro Municipal no circuito internacional de óperas.

A respeito dos preparativos para dar ao novo teatro uma inauguração condigna com o prédio de luxo que levou oito anos para ser concluído, escreve [CASOY, 2006]: 
"(...) A construção do Theatro Municipal de São Paulo representou um marco importante tanto na história cultural da cidade quanto em seu processo de transformação em metrópole. Em 1902, o governo do Estado cedeu à municipalidade um terreno onde antes havia funcionado uma serraria de propriedade de um alemão, que se destinava, conforme comunicado do prefeito Antonio Prado à Câmara Municipal, 'à construção de um teatro nesta Capital entre as Ruas Barão de Itapetininga, Formosa, Conselheiro Crispiniano e o futuro prolongamento da Rua 24 de Maio.' Após o lançamento da pedra fundamental, ocorrido com grande cerimônia em 1903, a obra se arrastou por oito longos anos. Infelizmente, os políticos responsáveis se preocuparam muito mais com a criação de um monumento do que com a instituição de um organismo vivo e atuante. Para eles, o conceito de teatro consistia em ter-se um prédio de luxo. Foi construído com materiais de primeiríssima qualidade, importados da Europa, que podem ser apreciados até hoje. Ninguém se preocupou, entretanto, no período da obra, em formar os corpos estáveis, tão necessários para a qualidade dos espetáculos de ópera. O prédio ficou pronto, mas não tínhamos nem orquestra, nem coro, nem corpo de baile. Viriam muitos anos depois. Com o término da construção em agosto de 1911, a primeira providência da Câmara, dentro da nossa melhor tradição, foi a de nomear uma comissão de inauguração, constituída pelo então prefeito Barão Raimundo Duprat e por Pedro Villaboim, Alfredo Pujol, Numa de Oliveira e Francisco de Paula Ramos de Azevedo. Após exaustivos debates, concluiu a comissão que o Theatro Municipal deveria ser inaugurado com pompa e estilo, apresentando um grande nome internacional à altura do evento. Da parte prática dessa realização foi incumbido o empresário teatral Celestino da Silva, instruído a resolver tudo com a máxima rapidez. Assim, o Theatro Municipal nascia sob o signo da improvisação. Congestionando as linhas telegráficas, Celestino pôs-se a trabalhar e teve a sorte de descobrir que um dos maiores artistas líricos do mundo, o barítono Titta Ruffo, cuja importância só era igualada na época à de Enrico Caruso, se encontrava à frente de uma companhia de óperas, fazendo um giro pelo Uruguai e Argentina. Ruffo foi localizado na cidade argentina de Rosário e concordou em vir a São Paulo, sugerindo para a estréia seu papel favorito, o protagonista de Amleto, a versão italiana da ópera Hamlet, do compositor francês Ambroise Thomas. Houve veementes protestos na Câmara, liderados pelo vereador Alcântara Machado. O novo teatro de São Paulo deveria ser inaugurado com uma ópera de Carlos Gomes! O diligente Celestino telegrafou consultando Titta Ruffo a respeito. O barítono respondeu polidamente, informando não dispor de nenhuma ópera do compositor campineiro preparada, mas poderia fazê-lo dentro de dois anos. Como se pretendia inaugurar o Municipal ainda em setembro, a idéia foi abandonada, mas não antes de a matéria ser inflamadamente debatida na Câmara, até chegar-se a uma solução negociada, aceita pelo grupo nacionalista: antes da ópera de Thomas, a orquestra executaria a protofonia de Il Guarany, fazendo assim com que Carlos Gomes fosse o primeiro autor a ser ouvido no novo teatro. A récita inicial tinha sido marcada para o dia 11, mas como os cenários chegaram atrasados da Argentina, o Theatro só foi inaugurado em 12 de setembro de 1911. Concorridíssima pela alta sociedade paulistana, a abertura do Municipal causou o primeiro grande engarrafamento de trânsito da cidade de São Paulo. A quantidade inumerável de discursos que abriram a solenidade fez com que o espetáculo tivesse início às dez da noite. Hamlet é uma ópera longa, de cinco atos. À uma hora da madrugada, pouco antes de iniciar-se o último ato, resolveram as autoridades encerrar a noitada lírica sem terminar a ópera. Afinal, ceias comemorativas, onde seriam proferidos mais discursos emocionados, haviam sido preparadas em várias mansões da cidade e aguardavam as famílias paulistanas nessa noite de festa. Assim, os cantores foram dormir mais cedo do que esperavam. (...)"  


II.  TITTA RUFFO INAUGUROU O TEATRO MUNICIPAL



Conforme  já visto, a inauguração do Teatro Municipal deu-se a 12 de setembro de 1911.

Como espetáculo inaugural, "apesar de forte opinião contrária", segundo [CERQUERA, 1954, 74], estreou o célebre barítono TITTA RUFFO, com a ópera de Ambroise Thomas, "Hamlet". 
"A companhia lírica incumbida da primeira temporada do Municipal constituía-se de ótimos elementos que haviam atuado pouco antes no Colón de Buenos Aires. No elenco encabeçado por Titta Ruffo, também se destacaram as sopranos Agostinelli, Pasini-Vitale e Pareto, os tenores Bonci ² e Ferrari-Fontana, as meio-sopranos Perini e Garavaglia e os baixos Ludikar e Bettoni, mas o elenco era encabeçado pelo nome de Titta Ruffo. O grande êxito do notável cantor italiano, então no apogeu dos 34 anos, justificou a exumação do 'Hamlet', cuja 'première' paulistana ocorrera no velho São José em 1886". 
[CERQUERA, idem, idem] nomeou o seguinte elenco de "Hamlet": Titta Ruffo no papel-título, soprano Pareto (Ofelia), meio-soprano Perini (Rainha), baixo Ludikar (Claudio), tenor Bonfanti (Laerzio) e baixo Bettoni (O Espectro), sob a regência do consagrado maestro Eduardo Vitale. A presença desse regente, de sua esposa Lina Pasini-Vitale e do tenor Ferrari-Fontana foi decisiva para a primeira oportunidade de o público paulistano entrar em contato com "Tristão e Isolda", de Richard Wagner.

No dia 12 de setembro de 1911, o Estado de S. Paulo publicou, sob o título A Inauguração, Anno XXXVII, edição nº 11.959, p. 6: 
"Realisa-se hoje no Theatro Municipal, a estréa da companhia italiana Titta Ruffo, com a opera em 4 actos, de A. Thomas, "Hamlet". 
Antes da representação da opera, será executada a grande orchestra, sob a regencia do maestro commendador E. Vitale, a protophonia da opera o "Guarany", de Carlos Gomes. 
Em outro lugar, damos os retratos dos principaes interpretes de "Hamlet"."  (grifo nosso)
No mesmo dia, o Estado de S. Paulo publicou artigo intitulado Theatro Municipal na coluna Noticias Diversas, p. 8: 
"O publico decerto desejará saber a causa da sensação agradavel que o surprehenderá hoje, ao entrar no theatro, não é verdade? Foi uma lembrança gentil da casa Gustavo Lohse, de Berlim (fornecedor do imperador e imperatriz da Allemanha), que ao ter conhecimento, pela Casa Lebre ³, de que assistiriam a este espectaculo as mais distinctas senhoras e senhoritas de S. Paulo, mandou perfumar o ambiente do theatro com as mais finas essencias da sua importante e acreditada fabrica de perfumarias, correspondendo assim à preferencia que a sociedade elegante do Brasil sempre tem dado aos seus inegualaveis produtos que a Casa Lebre vende nesta cidade.
O Estado de S. Paulo publicou na coluna Palcos e Circos, sob o título Municipal, Anno XXXVII, edição nº 11.960 de 13 de setembro de 1911, p. 2: 
"Realizou-se hontem a primeira representação da serie inaugural do Theatro Municipal.
A opera escolhida foi o 'Hamlet', de A. Thomas, e sentimos, devéras, que assim fosse, porque como obra de arte é, para os nossos tempos, bem difficil de acceitar-se.
Félix Clément, no seu diccionario de operas , escripto em collaboração com P. Larousse, escreve: "M. Ambroise Thomas, en traitant le sujet redoutable de Hamlet, avait des raisons légitimes de s' éloigner des traditions autant que les règles du goût le lui permettaient. Il a battu ses adversaires sur leur propre terrain, et jamais les Tannhauser, les Lohengrin et les Rienzi, dont les poëmes ont été écrits pour les partitions, n' auront le nombre de représentations d' Hamlet, dont la partition a été écrite pour le poëme (sic)."
Quem poderá ler esse disparate sem sorrir de compaixão pelo propheta "manqué" ? 
Mas houve um Hans von Bülow que nos deu um retrato bem fiel do compositor Thomas e o collocou lá no seu lugar. Escreve Bülow após uma audição do "Hamlet":
"A nullidade ôca, sem qualquer caracteristico da musica de A. Thomas, a sua pretensiosa arrogancia tornou-se-me só agora bem clara, e adquiri a mais absoluta convicção da corrupção deste usurpador da herança dos Meyerbeer e Halévy.
O sr. A. Thomas, se quizerem, escreverá correcto, até acadêmico, mas a sua falta de talento só conseguiu produzir fumaça azul!...
A sua musica é tão impotente que, como falta de caracter e de estylo, elle nem sequer conseguiu evitar o recife da sensaboria, o que em geral é bem evitado pelos músicos franceses illustrados."
Ouvimos pela primeira vez a opera de Thomas da qual só conheciamos trechos destacados.
Como taes o Brindisi de Hamlet, a aria de Ophelia e um ou outro trecho são toleráveis e passam, mas a opera em conjunto é o que se pode imaginar de anêmico, superficial e sensaborão. Os momentos mais dramaticos da acção não são de forma alguma secundados pela musica que se estende em passagens nullas, verdadeiros enchimentos, sem caracter algum, sem nenhuma expressão realmente intensa e forte.
Ha algumas melodias que agradam, admittamos,  mas isso não basta para dar vitalidade a uma obra que não tem o essencial  — a alma.
Não ignoramos que a commissão organisadora da inauguração do teatro pretendia estreal-o com uma obra importante, de folego, e que, apezar de sua boa vontade, circumstancias especiaes a forçaram a acceitar a estafante obra de A. Thomas; por isso, longe de nós a intenção de culpal-a pela escolha, sòmente é nosso dever expandir-nos com sinceridade.
E tanto a razão se acha comnosco que, apesar de estar o papel do protagonista confiado a um artista da estatura de Titta Ruffo, que procurou dar vida a essa musica com toda a potência da sua grande arte, o publico manteve-se frio do principio a fim, limitando-se a applaudir justamente os momentos em que o sr. Titta Ruffo empolgou o auditorio. E com isso temos externado a primeira impressão que nos deixou o afamado artista. Esperamos outras operas em que possamos entregar-nos com todo o nosso enthusiasmo à admiração pelo seu notavel talento.
Em lugar da sra. Gonzaga que devia cantar a parte de Ophelia ouvimos a sra. Pareto que foi especialmente contratada pela empresa para cantar os papeis de Ophelia, Gilda e Rosina. A sra. Pareto, ao que nos dizem, goza de optima reputação nos centros em que se tem feito apreciar e por nossa parte, achamos bem confirmada essa opinião, pois a sympathica artista, que hoje mesmo chegára de viagem, satisfez-nos, e, ao que parece, a todo o auditório, pois após a scena da loucura bem interpretada pela sra. Pareto o publico applaudiu-a com calor.
O papel de Ophelia teve na sra. Pareto excelente interprete.
Os demais artistas, entre os quais sobressairam: a sra. Perini (rainha) e os srs. Ludikar (Claudio), Bonfanti (Laercio), Bettoni (sombra do rei), Spadoni (Marcello) e Lunardi (Polonio) contribuiram para o bom conjunto.
Os córos andaram bem ensaiados e firmes, os scenarios bellissimos, mise-en-scène magnifica, e a orchestra, sob a regencia do sr. maestro Vitale, saiu-se bem da sua ingrata tarefa, embora nos parecesse, que para operas desse genero, isto é, para operas em que a orchestra tem um papel limitado a acompanhamento, devia se ter a orchestra elevada e não occulta.
De accordo com a praxe estabelecida na maior parte dos lugares onde ainda ha gente que se delicie com o "Hamlet" de A. Thomas, o ultimo acto foi supprimido.
F."
Consta que a provinciana cidade de São Paulo, então com 400.000 habitantes, na noite da inauguração do Teatro Municipal ficou literalmente com o trânsito congestionado. Os carros que vinham pelo viaduto do Chá se encontraram com o tráfego de automóveis que vinha do lado oposto, pela Barão de Itapetininga e o resultado foi que os carros que trafegavam pela atual Xavier de Toledo e pela Conselheiro Crispiniano ficaram completamente bloqueados. São Paulo tinha somente 300 automóveis registrados na prefeitura, dos quais 135 teriam se envolvido naquele que foi o primeiro engarrafamento paulistano de trânsito.

É curioso revisitar O Estado de S. Paulo de 05 de outubro de 1915, passados então quatro anos dos fatos narrados acima. Na coluna intitulada Palcos e Circos, lê-se na matéria chamada Theatro Municipal, o seguinte:  
"A companhia lyrica terminou hontem a sua temporada nesta capital com a opera 'Hamlet', de A. Thomas. Já há quatro anos, quando o distincto artista sr. Titta Ruffo, inaugurou o Municipal com essa opera, na qual tem parte tão importante, fizemos comentarios sobre o valor da obra de Thomas, dispensando-nos, pois, de repisar agora o assumpto. O que, porém, podemos e devemos constatar ainda uma vez é que o celebre artista tem no papel de Hamlet uma das suas mais interessantes e perfeitas criações. Titta Ruffo ahi não é só cantor emerito, mas igualmente actor consciencioso que se occupa com acurada observação da psychologia dessa figura shakespeareana, que tanta margem tem offerecido  às mais variadas interpretações. Além do mais, Titta Ruffo achava-se em excellente disposição de voz, o que lhe permittiu deixar-nos as mais gratas recordações. 
Applausos enthusiasticos testemunharam ao grande artista o muito apreço em que elle é tido entre nós. À sra. Galli Curci foi confiada a parte de Ofélia e como sempre fez jús às mais encomiasticas referencias. Especialmente no quarto acto a excelente artista ostentou brilhantemente os seus preciosos recursos de voz e de escola. Entre os demais artistas, sobressahiram a sra. Frascani (rainha), e sr. Berardi (rei), Dentale (espectro), que contribuiram para o bello conjunto. Córos, bailado, scenarios, 'mis-en-scène, tudo de primeira ordem. A orchestra, sob a regência do maestro Marinuzzi, andou muito bem e mereceu os applausos que lhe foram dispensados. Os principaes artistas foram varias vezes chamados à scena e receberam enthusiasticas manifestações de agrado. 
F."
[CERQUERA, 1954, 75] informa ainda que, relativamente à inauguração do Teatro Municipal, "encerrou-se a temporada a 1 de outubro, tendo sido realizadas 10 récitas de assinatura, 1 extraordinária, 2 populares e 1 'matinée'. La Bohème e Il Barbiere di Siviglia tiveram 3 representações; Hamlet e Tristano e Isotta, 2; as outras óperas não foram repetidas." 

O Estado de S. Paulo publicou na coluna Palcos e Circos, sob o título Theatro Municipal, Anno XXXVII, nº 11.978, edição de 01 de outubro de 1911, p. 5:
"Findou-se hontem a temporada lyrica deste anno no Theatro Municipal, salvo deliberação diversa da Prefeitura.
A estação lyrica foi iniciada com uma opera de assumpto tragico, o “Hamlet”, de A. Thomas, que não conseguiu as boas graças do publico e terminou alegremente com uma opera buffa “Don Pasquale”, de Donizetti.
Sem ter o valor intrinseco do “Barbeiro de Sevilha”, de Rossini, nem mesmo dispertar tanto interesse como esta, ouve-se, todavia, a obra de Donizetti com agrado e sente-se-lhe a veia comica bem caracterizada. Além disso notam-se diversas melodias acariciantes, que, quando cantadas por artistas de primeira plana, como os que hontem se ouviram, e só assim, satisfazem.
O desempenho foi muito bom.
O sr. Paterna interpretou excellentemente o papel do protagonista.
Foi verdadeiramente buffo, sem ser ridiculo e em certas scenas,  como entre Pasquale e Norina, no segundo acto e entre Pasquale e Malatesta, no terceiro, deu provas de um cantor educado em optima escola.
O Sr. Titta Ruffo foi o artista que todos admiramos, interpretando bem o seu papel e cantando a contento de toda a gente que sabe ouvir.
O sr. Bonci teve, no papel de Ernesto, ainda uma vez, ensejo de ostentar os seus recursos de fina arte; foi enthusiasticamente applaudido, sobretudo, após a serenata, no terceiro acto.
A sra. Agostinelli desempenhou o papel nada fácil de Norina. Representou e cantou bem, embora, para nosso sentimento, o timbre de sua voz se não case com o genero da parte de soprano ligeiro.
O corpo coral esteve extremamente bem ensaiado, merecendo fortes applausos após o difficil coro do terceiro acto.
A orchestra, sob a fina direcção do maestro Vitale, executou com bastante delicadeza e colorido a partitura, disfarçando quanto possivel a pobresa da instrumentação.
Os scenarios de bellissimo effeito, especialmente os da scena do jardim. Enthusiasticos e vibrantes applausos coroaram o espectaculo de hontem.
F.”
Os distinctos artistas Titta Ruffo, Bonci e Agostinelli encontraram hontem os seus camarins no theatro, bellamente adornados de flôres. Essa gentileza da commissão directora do theatro commoveu muitissimo a todos.
O publico, por sua vez, deu-lhes hontem inequivocas provas de apreço e admiração. Chamou-os varias vezes à scena e no final de alguns actos cobriu o palco de flôres. De vários camarotes, entre os quaes os da Camara Municipal e do Automovel Club, foram atirados ao palco ricos bouquets.
Hoje, em “matinée”, ultima recita da Companhia, com o “Barbeiro de Sevilha”."



 III.  NOTAS  EXPLICATIVAS



¹   Abrindo a temporada lírica de 1911 se destacou a presença da companhia lírica de PIETRO MASCAGNI apresentando sua ópera "Iris", que foi à cena em 31 de julho, no modesto embora prestigioso recinto do Politeama. O Teatro Colombo viu o preparo da difícil encenação da ópera "Isabeau" e a 3 de agosto, realizou-se ali também a "première" de "Amica", óperas do mesmo Mascagni, de curta carreira. Igualmente, "Cavalleria Rusticana", de Mascagni, sob a sua batuta, ofereceu novo fascínio ao público paulistano. Outras óperas de outros compositores, apresentadas pela mesma companhia, nessa temporada de 1911, foram: Aída, de Verdi;  La Bohème, de Puccini; La Gioconda, de Amilcare Ponchielli; e I Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo. A 7 de agosto a companhia despediu-se dos paulistanos. Apesar das qualidades artísticas dos cantores, o herói do espetáculo foi naturalmente Mascagni, a quem o nosso público fez grandiosa manifestação de apreço.
  
²  [CERQUERA, 1954, 75] informa que
"Bonci foi considerado o melhor tenor lírico do seu tempo. Cantou em numerosos teatros importantes um repertório variadíssimo, especializou-se nos papeis de caráter lírico-ligeiro e sempre manteve a linha clássica do 'bel-canto'. Aos 41 anos ainda se achava no apogeu artístico. A jovem soprano espanhola Graciela Pareto granjeou grande sucesso em papeis de coloratura e o seu estilo de canto assemelhava-se ao de Bonci." 
 ³  O edifício da Casa Lebre (fundada em 1858) ficava localizado nas esquinas das ruas Direita e da Imperatriz (atual 15 de Novembro). A Casa Lebre ostentou grande sucesso por mais de 60 anos comercializando produtos importados, tais como perfumarias finas, brinquedos, artigos domésticos, porcelanas e "crystaes", baterias para cozinha de "nickel" puro, "aluminium" e ferro esmaltado, entre outros. 

  CLÉMENT, Félix  & LAROUSSE, Pierre: DICTIONNAIRE  DES OPÉRAS (Dictionnaire Lyrique), 1879, p. 734. (Cf. in https://books.google.com/books?id=KxcYVDWOERcC) 

  Cf. a conceituação exata dessa expressão in Le Prophète manqué, par Albert Guignard, Les Cahiers du Moulin,  2011, 9e. année, numéro 18, page 6.  Acesso em 15/10/2015 ao link: https://maquisculturel.files.wordpress.com/2011/10/prophc3a8te-manquc3a9-coupc3a9.pdf. 

  The Eclectic Magazine of Foreign Literature, Science, and Art, edição de 1882, p. 285, traz  a seguinte anedota traduzida por mim, intitulada "Um Sobrinho de Meyerbeer", na seção Miscelânea:
"Um dos nossos contemporâneos conta uma curiosa anedota com respeito a M. Ambroise Thomas. O ilustre maestro tem a sorte de ser o ocupante sem ônus de uma fina villa em Argenteuil. É lá, no meio da sua biblioteca e suas obras de arte, que o compositor de 'Hamlet' e 'Françoise de Rimini' gosta de recolher-se das fadigas da composição. No mês de setembro de 1870, quando da proximidade das tropas prussianas, ele não teve tempo de remover seus tesouros a um local onde estariam seguros de pilhagem. Paris foi invadida, e a villa caiu em poder do inimigo. Alguns dias depois da invasão, um jovem oficial do comando prussiano apresentou-se à casa de Ambroise Thomas, onde, falando com a pessoa responsável pela casa, disse:
 A quem pertence esta casa?
— A M. Ambroise Thomas.
— Ambroise Thomas, o compositor?
— Sim.
O oficial ficou pensativo por um momento.
O funcionário tremia, se não pela sua própria segurança, pelo menos pelas coleções que lhe estavam confiadas. Mas logo o jovem oficial tomou um cartão de um elegante porta-cartões e escreveu algumas palavras sobre ele a lápis, então deslisou-o sob a porta que tinha sido fechada pelo próprio compositor (o homem responsável ocupando um aposento independente da villa), após o que, sem dizer outra palavra, escreveu a lápis algumas palavras em alemão sobre a porta principal. Então uma coisa estranha!  todas as outras casas da villa foram ocupadas, porém a de Ambroise ficou solitária. Duas semanas se passaram; a guarnição foi trocada. Foi substituída por outra; mas os oficiais que vinham à villa iam embora depois de lerem sobre a porta a inscrição a lápis. Para grande assombro do funcionário, a mesma coisa teve lugar em umas vinte ocasiões.Vinte vezes a guarnição foi trocada,  vinte vezes os oficiais se apresentaram, e vinte vezes eles se retiraram assim como tinham vindo após lerem a famosa inscrição. O armistício foi assinado. M. Ambroise Thomas deixou Paris, apressou-se a ir a Argenteuil, pensando encontrar sua casa em ruínas. Qual foi sua surpresa vê-la intacta! Entrou, e sobre o limiar da porta encontrou o cartão de um oficial alemão que trazia essas palavras, a lápis: 'Um Sobrinho de Meyerbeer.' "
Acesso em 15/10/2015 ao link: https://books.google.com/books?id=4so2AQAAMAAJ
   [CASOY, 2006, 25] comenta em seu livro:
"Como o primeiro personagem a cantar em Hamlet, logo depois do coro inicial, é o Rei Cláudio, sabemos que o primeiro cantor solista a ser ouvido no Municipal foi o intérprete daquele papel, o baixo russo Pavel Ludikar, que se apresentava com seu prenome italianizado, Paolo. Mas observações como essa escaparam aos jornalistas da ocasião, que se preocuparam muito mais com o aspecto de crônica social da noite. Vale a pena reproduzir um trecho da reportagem do Correio Paulistano do dia seguinte, descrevendo as toaletes das damas presentes (...)."



 IV.   PÉROLAS  MUSICAIS  DE  TITTA  RUFFO




Tenho o prazer de agraciar o leitor do Blog do Braga, com a ária "Oh! monstruosa colpa... Sì, pel ciel marmoreo giuro" do Ato II de "Otello", de Verdi. Consta que esta é a única gravação preservada com Caruso e Ruffo em dueto (datada de 08/01/1914).

Titta Ruffo, em gravação de 1908, canta "Brindisi" ("O vin, discaccia la tristezza") da ópera Hamlet, de Ambroise Thomas.

Nesta seguinte gravação de "Brindisi", fica mais patente sua enorme capacidade de mudar a cor quando se encaminha para a segunda seção e a surpreendente cadência (repetição da primeira parte com variação).

O CEDOM-Centro de Documentação da Rádio Bandeirantes conserva uma relíquia de Titta Ruffo (☆Pisa, 09/06/1877  ✞ Florença, 05/07/1953), ou seja, uma entrevista gravada numa fita pelo repórter José Carlos de Moraes, o "Tico-Tico", enviado especial daquela emissora a Florença, onde o cantor residia em 1952. Naquela época, Titta Ruffo já não cantava mais, mas recitou um poema, fazendo referência a suas visitas ao Brasil. Enviou uma mensagem aos italianos de São Paulo e confessou que aquela era a primeira entrevista que concedia a uma emissora de rádio. Primeira e, possivelmente, a única, já que faleceu no ano seguinte.

No Blog "Memória com Milton Parron" é possível ouvir o conteúdo dessa fita, recuperada em agosto de 2013 para seus leitores.

Apud Wikipedia, sobre a voz de Titta Ruffo, o crítico britânico geralmente acerbo, e futuro produtor de discos, Walter Legge, escrevendo na revista Gramophone em 1928, elogiou o canto de Ruffo, lembrando um recital em que ele tinha ouvido o barítono seis anos antes em Londres. Legge disse que: "Da sua primeira frase, a audiência era tomada pela beleza irresistível de sua voz — viril, ampla, simpática, de inexcedível riqueza. Tanta facilidade de produção, tanta abundância de sonoridade ao atingir o sol agudo! Mas mais: a sutileza infinita, a variedade do timbre, a visão e a sinceridade interpretativas de Ruffo, seu controle magnífico, estupendos poderes de respiração e fraseado impecável carimbaram-no como gênio."

Falando de Lawrence Tibett em 15 de maio de 1937, [LEGGE, 1998, 51] comparou a voz desse barítono americano famoso em filmes e gravações, à de Ruffo, como também seu hábito de cantar até o sol b com voz de peito. Considerava este último o mais impressionante barítono italiano que tinha ouvido em Covent Garden nos últimos 15 anos.



V.  BIBLIOGRAFIA  CONSULTADA



BIDWELL, W.H.:  The Eclectic Magazine of Foreign Literature, Science, and Art, edição de 1882, volume 36, 864 p. 


                                                      — São Paulo e a Ópera: Uma Antiga História de Amor em 1952-2005, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, 608 p. 

CERQUERA, P.O.C. : Um Século de Ópera em São PauloSão Paulo: Emprêsa Gráfica Editôra Guia Fiscal, Rua da Glória nº 653, 1954, 328 p. e mais 98 p. s/n, com fotografias, totalizando 180 ilustrações. 

CLÉMENT, Félix & LAROUSSE, Pierre: DICTIONNAIRE  DES OPÉRAS (Dictionnaire Lyrique), 1879, 955 p. 


O ESTADO DE S. PAULO: Anno XXXVII, edição nº 11.959 de 12 de setembro de 1911, p. 6; Anno XXXVII , edição de nº 11.960 de 13 de setembro de 1911 ,  p. 2; Anno XXXVII, edição de nº 11.978 de 01 de outubro de 1911, p. 5.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

RAPTO DAS SABINAS


Por Francisco José dos Santos Braga



I.  INTRODUÇÃO

A Intervenção das Sabinas (1799), por Jacques-Louis David


Na matéria anterior, cujo título foi "História das Origens do Povo Romano: brevíssima sinopse da história de Eneias até Rômulo e a Fundação de Roma" ¹, utilizei material que Pe. Suitbertus Siedl O.C.M. costuma adotar em seu manual de Latim, denominado Cursus Linguae Latinae Vivae.

Concluí minha tradução daquele material em latim, dizendo que "durante aquele tempo a cidade crescia, e o Estado romano se fortaleceu; mas, devido à falta de mulheres em Roma, em casa não havia esperança de descendência."

Dando prosseguimento àquela matéria, veremos como Rômulo resolveu esse problema de carência de mulheres em Roma.

Conforme já expliquei quando da minha apresentação do Pe. Suitbertus H. Siedl O.C.D. ao leitor do Blog do Braga, esse latinista é grande facilitador e palestrante de encontros da Família de São Jerônimo (Familia Sancti Hieronymi) em diversos países, especialmente nos Estados Unidos.  Nesses inesquecíveis encontros, seus participantes constatamos quão verdadeiras são as palavras de Cícero: "Non tam præclarum est scire Latine, quam turpe nescire" (Cic. Brutus 37, 140), ou seja: "Não é nada especial saber Latim, mas é uma vergonha não sabê-lo."

Como um grande docente de Língua Latina, o austríaco Pe. Siedl prefere acentuar as palavras latinas, como é usual em Português, a utilizar sílabas longas e breves, indispensáveis porém no caso da métrica poética. Como sabemos, tanto o verso grego quanto o latino se baseiam na quantidade: sua métrica se fundamenta na oposição de duração de sílabas longas e sílabas breves. Como aqui não se trata de poesia, mas de prosa, Pe. Siedl permite-se relaxar um pouco as regras   até na poesia admitem-se licenças poéticas! — e tornar mais acessíveis as explicações de temas complexos, o que é um dom dos grandes mestres.



II.  MINHA TRADUÇÃO DO TEXTO LATINO: O RAPTO DAS SABINAS, por Pe. Suitbertus Siedl 



RÔMULO enviou delegados a nações vizinhas que deviam pedir parceria e casamento com um novo povo. Mas em nenhuma parte a embaixada foi ouvida amigavelmente.

Um pouco mais tarde, Rômulo preparou jogos públicos e, tudo estando pronto, mandou anunciar o espetáculo às nações vizinhas. Muitos compareceram atraídos pelo interesse de ver a nova cidade, no meio dos quais havia toda uma multidão de Sabinos com filhos e cônjuges.

Assim que chegou a hora do espetáculo, tendo sido dado um sinal, os jovens romanos correram em todas as direções para raptarem as virgens e grande parte delas o foi.

Rômulo circulava e consolava as virgens raptadas e fazia saber com arrogância aos pais que isso tinha sido feito por terem negado o casamento. Assim os ânimos das raptadas foram consolados.

Mas os pais delas foram à guerra contra os Romanos. No meio da guerra, as mulheres sabinas raptadas irromperam no campo de batalha entre seus pais e (seus) maridos para pedir a paz: "Contra nós  clamaram  voltai as (vossas) iras; nós somos causa da guerra, de massacres e de ferimentos; preferimos perecer a viver viúvas ou órfãs sem uns (maridos) e outros (pais) de vós."

Fez-se silêncio e sobreveio repentina calma. Depois os chefes avançaram para fazerem uma aliança. Fizeram não só a paz, mas também um Estado, de dois. Todo o governo foi transferido para ROMA. 


III. TEXTO LATINO: DE RAPTU VIRGINUM SABINARUM


Abaixo é fornecido o texto que se traduziu acima. Esse texto encontra-se nas pp. 153-5 do manual "Cursus Linguae Latinae Vivae", de Pe. Suitbertus H. Siedl.



ROMULUS legátos ad finítimas géntes misit qui societátem conubiúmque cum pópulo novo péterent. Sed nusquam legátio benígne audíta est.

Paulo post, ludos Rómulus parávit et ómnibus rebus præparátis
²  spectáculum finítimis géntibus nuntiári jussit. Multi convenérunt addúcti stúdio vidéndæ novæ urbis, in quibus erat Sabinórum ³ omnis mutitúdo cum líberis et conjúgibus.

Ubi spectáculi tempus venit, sígnô dátô
, juvéntus Romána ad rapiéndas vírgines  discúrrit magnámque eárum partem rápuit. 

Rómulus circuíbat et raptas vírgines consolabátur docebátque supérbiâ
patrum id factum esse qui conúbium negavíssent. Ítaque raptárum animi mitigáti sunt.

At patres eárum contra Romános arma movérunt. Médio in bello raptæ Sabínæ mulíeres in áciem intra patres et viros irruérunt ut pacem péterent: "In nos — clamárunt
  — vértite iras; nos (sumus) causa belli, nos cædium et vúlnerum (causa) sumus; períre málumus quam sine álteris véstrum víduæ aut orbæ vívere."

Siléntium factum est et repentína quies. Deínde ad fœdus
faciéndum prodiérunt duces. Nec pacem modo , sed civitátem unam ex duóbus fecérunt. Impérium omne collátum¹⁰  ROMAM ¹¹.


IV.  NOTAS EXPLICATIVAS



¹   Cf. in http://bragamusician.blogspot.com/2015/10/historia-das-origens-do-povo-romano.html

²   Ómnibus rebus præparátis = ablativo absoluto (no plural).

³   Sabíni, -órum: um antigo povo da Itália, estabelecido na região norte de Roma.

  Expressão formada por substantivo e verbo (particípio), conhecida por ablativo absoluto. Sígnum: nominativo; sígnô: ablativo.

  Particípio passivo futuro, ou particípio de necessidade.

  Nominativo supérbia (f.); ablativo supérbiâ.

  Ou clamavérunt.

  Fœdus, -eris (n.): tratado, aliança, pacto. Ad faciendum fœdus ou ad fœdus faciendum = para fazer uma aliança.

  Nec... modo, sed (étiam) = non tantum..., sed étiam... = não só..., mas também...

¹⁰   Cónfero, confers, cóntuli, collátus,-a,-um, conférre: reunir, juntar, unir; transferir.

¹¹   Para bem podermos apreciar a bela expressão literária e avaliar os dotes do historiador Tito Lívio (mesmo que numa tradução), vou abaixo apresentar a minha tradução da versão inglesa do texto concernente ao Rapto das Sabinas, traduzido e comentado em Livy: The History of Rome, Books 1-5, em inglês,  por Valerie M. Warrior: 
"Roma já estava tão forte que igualava qualquer dos estados vizinhos em força bélica.  Mas a falta de mulheres significava que a grandeza de Roma duraria apenas para a geração corrente, uma vez que os Romanos nem tinham a esperança de descendência em casa nem de casamento com seus vizinhos. Por conselho dos senadores, Rômulo enviou embaixadores às tribos vizinhas para procurar aliança  e casamento para o novo povo. Os delegados argumentavam que as cidades, como tudo o mais, dão passos iniciais humildes; que a grande riqueza e um grande nome são obtidos por aquelas cidades que são ajudadas por seu próprio valor e pelos deuses. Foi suficiente dar a conhecer que os deuses tinham comparecido ao nascimento de Roma e que o valor de seu povo não iria falhar. Os romanos eram homens como eles próprios, e assim, como vizinhos, não deviam relutar em misturar seu sangue e negociar com eles. 
Em nenhuma parte a embaixada foi bem recebida. Os povos vizinhos os rejeitou, ao mesmo tempo temendo, para si e seus descendentes, o grande poder que era crescente no seu meio. Despedindo os delegados, muitos indagaram se os Romanos tinham também aberto um refúgio para mulheres, pois, pelo menos, seria um jeito de tomar esposas que eram suas iguais. Os jovens Romanos ficaram ressentidos com essa atitude, e as coisas estavam sem dúvida começando a ficar violentas. De forma a combinar um tempo apropriado e local para seu plano, Rômulo ocultou seu ressentimento e cuidadosamente preparou um festival solene em honra de Netuno como patrono dos cavalos, que ele chamou de Consuália. Então ele ordenou que o espetáculo fosse anunciado aos povos vizinhos. Com toda a pompa imaginável e munidos dos recursos daquela época, os Romanos prepararam-se para celebrar esse festival, dando-lhe publicidade para criar expectativa. 
Muitos povos vieram no afã de ver a nova cidade, particularmente os habitantes próximos de Cenina, Crustumério e Antemnas. Todos os Sabinos vieram também, trazendo seus filhos e esposas. Foram bem recebidos como hóspedes em toda casa, e, depois de ver o layout da cidade com seus muros e inúmeros edifícios, ficaram maravilhados com a rapidez do crescimento de Roma. Quando a hora do show chegou, e, enquanto os olhos e pensamentos de todos estavam atentos para ele, a violência premeditada estourou. A um sinal dado, os jovens Romanos irromperam em todas as direções para agarrar as solteiras. Na maioria dos casos, as donzelas foram agarradas pelos homens quando apareciam em seu caminho. Mas algumas garotas excepcionalmente bonitas tinham sido demarcadas pelos líderes do senado e foram separadas por plebeus que tinham recebido essa tarefa. Foi agarrada uma garota que se destacava das demais em aparência e beleza, assim se conta, pela gangue de certo Thalassius. Quando ela lhes perguntou a quem ela estava sendo levada, eles ficaram gritando "Para Thalassius!" para impedir que algum desavisado a violasse. Essa é a origem do grito de casamento ("Thalassio!").   
Os jogos desmembraram-se  em medo e confusão. Os pais das donzelas fugiram, acusando os Romanos de crime de violação da hospitalidade. Invocaram o deus para cujo solene rito eles tinham vindo, apenas para serem iludidos na violação de religião e boa fé. As donzelas abduzidas não estavam nem mais esperançosas da sua situação, nem menos enfurecidas. Mas o próprio Rômulo se aproximou, dizendo-lhes que isso tinha acontecido por causa da arrogância dos pais delas, ao recusar intercâmbio marital com os vizinhos. Entretanto, disse que as mulheres  teriam os plenos direitos de casamento, com participação nas suas posses, cidadania romana e a mais querida posse que a raça humana tem  filhos. Elas deviam acalmar o seu ressentimento e dar seus corações àqueles que a sorte tinha dado os seus corpos. Porque ele disse  muitas vezes a afeição eventualmente veio de um senso de injustiça. Elas encontrariam seus esposos mais amáveis porque cada um deles tentaria não só cumprir sua obrigação, mas também compensaria pela  saudade dos pais e da terra natal delas. Os homens lhes falaram palavras doces,  tentando desculpar-se de sua ação com base no amor apaixonado, uma jura que é particularmente eficiente quando está envolvido o coração de uma mulher. 
(Cf. in https://books.google.com/books?id=M-ikf_c0rB0C&pg=PR6#v=onepage&q&f=false, pp. 16-18)


Por sua vez, a Wikipedia dá a seguinte versão para o incidente conhecido como "O Rapto das Sabinas": 
"Este é o nome pelo qual ficou conhecido o episódio lendário da história de Roma em que a primeira geração de homens romanos teria obtido esposas para si através do rapto das filhas das famílias sabinas vizinhas. Narrada por Tito Lívio (Ab Urbe Condita, 1:9-13 e 1:33) e Plutarco (Vidas Paralelas II, 15 e 19), ela serviu como tema para diversas obras de arte do Renascimento e pós-renascentistas, que uniam um exemplo apropriadamente inspirador da audácia e coragem dos antigos Romanos, com uma oportunidade de retratar diversos personagens, incluindo figuras heroicamente seminuas, envolvidas numa disputa intensamente passional. (...) 
Segundo Lívio, o rapto teria acontecido no início da história de Roma, logo após sua fundação por Rômulo e seus seguidores, em sua maior parte homens. À procura de esposas com quem pudessem formar famílias, os Romanos negociaram, sem sucesso, com os Sabinos, que haviam povoado a região anteriormente. Temendo o surgimento de uma sociedade rival, os Sabinos recusaram-se a permitir que suas mulheres se casassem com os Romanos; estes tiveram então a ideia de raptar as mulheres sabinas. Rômulo inventou então um festival em homenagem a Netuno Equestre, e proclamou-o aos povos vizinhos de Roma. De acordo com Lívio, muitos habitantes destes povoados vizinhos compareceram ao festival, incluindo os Ceninenses, os Crustumerinos e os Antemnos, bem como muitos dos Sabinos. Durante o festival, Rômulo deu um sinal, indicando a seus conterrâneos que era hora de capturar as mulheres sabinas, o que eles fizeram, enquanto combatiam os homens. Após o rapto, as mulheres, indignadas, logo se viram diante de um Rômulo que lhes suplicava que aceitassem os Romanos como seus maridos. 
Lívio é claro em afirmar que não houve abuso sexual da parte dos Romanos; pelo contrário, Rômulo ofereceu a elas liberdade de escolha, prometendo-lhes direitos civis e de propriedade. Ainda de acordo com Lívio, ele teria pessoalmente ido a cada uma delas e indicado a elas que tudo aquilo era culpa de seus pais, que haviam negado a elas o direito de casar-se com seus vizinhos. Elas viveriam em uniões matrimoniais dignas, e partilhariam de todos os direitos civis e de propriedade, bem como — o mais precioso à natureza humana  seriam mães de homens livres. 
Furioso com o ocorrido, o rei dos Ceninenses invadiu o território de Roma com seu exército. Rômulo e os Romanos os enfrentaram em combate, assassinando o rei e derrotando suas tropas. Em seguida, Rômulo atacou a cidade de Cenina e a conquistou já na primeira tentativa. 
Ao retornar a Roma, Rômulo dedicou um templo a Júpiter Ferétrio (de acordo com Lívio, o primeiro templo dedicado em Roma) e ofereceu os espólios do rei inimigo como spolia opima. De acordo com os Fasti Triumphales, Rômulo teria celebrado um triunfo sobre os Ceninenses em 1º de março de 752 a.C. 
No mesmo período, o exército dos Antemnos fez uma incursão em território romano. Os Romanos então retaliaram, derrotando os Antemnos em combate e conquistando sua cidade. De acordo com os Fasti Triumphales, Rômulo teria realizado um segundo triunfo naquele mesmo ano, celebrando esta nova vitória. 
Os Crustumerinos também deram início a hostilidades com os Romanos, porém sua cidade foi rapidamente conquistada por estes. Colônias romanas foram enviadas em seguida para Antemnas e Crustumério por Rômulo, e diversos cidadãos destas cidades também migraram para Roma (especialmente as famílias das mulheres capturadas).  
Os Sabinos também entraram em guerra contra os Romanos, liderados por seu rei, Tito Tácio. Quando Tácio atacou Roma, ele quase logrou capturar a cidade devido à traição de Tarpéia, filha de Espúrio Tarpéio, governador da cidadela no topo do Monte Capitólio. Tarpéia abriu os portões da cidade para os Sabinos em troca do que eles portavam em seus braços, o que ela acreditava serem os braceletes de ouro usados por eles. Em troca, os Sabinos esmagaram-na até a morte com seus escudos, e em seguida a arremessaram de cima da rocha que posteriormente passou a levar o seu nome, a Rocha Tarpéia. 
As forças romanas atacaram os Sabinos, que agora tinham a posse da cidadela. O avanço romano foi liderado por Hosto Hostílio, enquanto os Sabinos eram comandados por Meto Cúrcio. Quando Hostílio foi morto, a linha de frente romana recuou até as portas do Palatino; lá, Rômulo reuniu seus homens e, prometendo construir um templo de Júpiter Estator naquele local, conduziu os Romanos de volta à batalha. Na sequência do combate, Meto Cúrcio foi derrubado de seu cavalo e fugiu da batalha; os Romanos conquistaram a vantagem, até que a um certo ponto as mulheres sabinas intervieram na batalha, tentando reconciliar os dois lados: 
"(Elas) entraram corajosamente no meio dos objetos que eram arremessados, com cabelos despenteados e roupas rasgadas. Correndo por entre o espaço entre os dois exércitos, tentavam fazer com que os combates cessassem e acalmar as paixões exaltadas apelando aos seus pais, num dos exércitos, e a seus maridos, no outro, para que não amaldiçoassem a si mesmos ao manchar suas mãos com o sangue de um sogro ou de um genro, nem desse a seus descendentes a mancha do parricídio. 'Se  gritaram  vocês estão cansados destes laços de parentesco, destes laços matrimoniais, voltem então sua ira para nós; somos nós o motivo desta guerra, fomos nós que ferimos e matamos nossos maridos e nossos pais. Melhor perecer do que viver sem um ou outro de vocês, seja como viúvas ou órfãs.' Após a reconciliação que se seguiu, os Sabinos concordaram em formar uma nação única com os Romanos, e o rei sabino, Tito Tácio, passou a governar Roma juntamente com Rômulo até a sua morte, cinco anos mais tarde. Os novos habitantes sabinos de Roma passaram a viver no Capitólio." 
(Cf. in https://pt.wikipedia.org/wiki/Rapto_das_Sabinas)


V.  BIBLIOGRAFIA  CONSULTADA





SIEDL, Suitbertus H.: Cursus Linguae Latinae Vivae, Clearwater, FL, USA: Editiones Familiae Sancti Hieronymi, 1991.

WARRIOR, Valerie M.: LIVY: THE HISTORY OF ROME, Books 1-5, Ed. Hackett Publishing Company,  2006, 496 p.

 

domingo, 4 de outubro de 2015

HISTÓRIA DAS ORIGENS DO POVO ROMANO: BREVÍSSIMA SINOPSE DA HISTÓRIA DE ENEIAS ATÉ RÔMULO E A FUNDAÇÃO DE ROMA



Por Francisco José dos Santos Braga


I.  INTRODUÇÃO

O que se lerá abaixo é minha tradução do texto elaborado pelo Pe. Suitbertus H. Siedl O.C.D., o grande facilitador e palestrante de encontros da Família de São Jerônimo (Familia Sancti Hieronymi) em diversos países, especialmente nos Estados Unidos.  Nesses inesquecíveis encontros, seus participantes constatamos quão verdadeiras são as palavras de Cícero: "Non tam præclarum est scire Latine, quam turpe nescire" (Cic. Brutus 37, 140), ou seja: "Não é nada especial saber Latim, mas é uma vergonha não sabê-lo."

No seu manual de Latim, intitulado "Cursus Linguae Latinae Vivae", Pe. Siedl nos brinda com a sua sinopse das origens do povo romano, a partir da destruição de Tróia pelos Helenos e da fuga de uma frota de Troianos, sob o comando de Eneias, herói da Guerra de Tróia, para a Itália.

Pe. Siedl baseou seu texto em prosa na versão de Virgílio, magistralmente exposta no seu poema épico, Eneida.

Como um grande docente de Língua Latina, Pe. Siedl prefere acentuar as palavras latinas, como é usual em Português, a utilizar sílabas longas e breves, indispensáveis porém no caso da métrica poética. Como sabemos, tanto o verso grego quanto o latino se baseiam na quantidade: sua métrica se fundamenta na oposição de duração de sílabas longas e sílabas breves. Como aqui não se trata de poesia, mas de prosa, Pe. Siedl permite-se relaxar um pouco as regras   até na poesia admitem-se licenças poéticas! — e tornar mais acessíveis as explicações de temas complexos, o que é um dom dos grandes mestres.



II.  TRADUÇÃO DO TEXTO LATINO




Eneias ¹, filho de Anquises e (deusa) Vênus (ou Afrodite, para os Gregos), um refugiado de Tróia, por ter sido incendiada a sua cidade (de Tróia), navegou com os seus por vários países. Viajou primeiro à Macedônia, dali à África, em seguida à ilha da Sicília, até que — tendo sofrido muitas dificuldades  finalmente chegou à Itália. Os Troianos, assim que chegaram á Itália, colheram trigo dos campos dos habitantes (da terra), porque estavam famintos.

Ali nada além de armas e navios tinha restado aos Troianos. Como os Troianos famintos, para debelarem sua fome, estivessem colhendo cereais dos campos dos agricultores, Latino, o dono do campo, aproximou-se com pessoal armado de modo a expulsar os estrangeiros com a força. Porém, antes de iniciar o combate, Latino convocou Eneas a uma negociação. Interrogou-lhe quem ele era, donde os (seus) homens tinham migrado, o que pretendiam.

A essa tríplice questão Eneas respondeu a Latino: 
— Sou o chefe dos Troianos; estes homens, refugiados comigo, tiveram sua terra (Tróia) incendiada, razão por que navegaram por diversas regiões e, depois de terem sofrido muitas adversidades, finalmente chegaram à Itália; agora, como nos resta nada além de armas e navios, procuramos primeiramente o alimento necessário, depois um local de habitação e firme amizade com os habitantes (da terra) e, finalmente, uma nova Pátria aqui na Itália, invocando a fé dos deuses.

Latino admirou os homens provados pelo duelo e, tendo dado sua mão direita, confirmou a amizade com os estrangeiros.

A Eneias deu Latino sua filha Lavínia em matrimônio, quando aquele chegou, embora ela já tivesse sido prometida a Turno, chefe dos Rútulos. Eneias fundou uma nova cidade, chamada por ele de Lavínio em homenagem à sua esposa.

Desse matrimônio nasceu um filho, que foi chamado Ascânio, que, empossado no império paterno após o falecimento de seu pai Eneias, deixou para sua mãe Lavínia governar  a então cidade florescente e rica de Lavínio. Por sua vez, ele próprio fundou uma nova cidade no sopé do monte Albano, a que chamou Alba Longa ²

Logo depois, Eneias e Latino deviam guerrear contra Turno, chefe dos Rútulos. Mezêncio, chefe dos Etruscos, posicionou-se como aliado dos Rútulos, porque já desde o começo não estava contente com a nova cidade fundada por Eneas. Nenhum povo saiu-se bem desse combate: os Rútulos foram vencidos, mas Latino foi morto na batalha.

Muitos anos depois de Ascânio ³, quando o reino já estava definitivamente confirmado, houve uma briga entre dois irmãos pelo reino de Alba Longa: Numitor e seu irmão mais novo, Amúlio. Amúlio venceu e destituiu do reino seu irmão Numitor. Em seguida, Amúlio mandou matar toda a estirpe viril de Numitor e tornou a filha de Numitor, Rea Sílvia, uma vestal, para que não houvesse nenhuma esperança de prole , pois virgens vestais deviam permanecer solteiras.

Entretanto, Marte (ou Ares, para os Gregos) desposou Rea, que deu à luz dois gêmeos: Rômulo e Remo.

Então, Amúlio, o usurpador, aprisionou Rea Silvia, tendo ordenado que os escravos pusessem os meninos gêmeos nas águas do rio Tibre. Naquela época, por acaso, o rio Tibre transbordava; assim, a tina, dentro da qual foram abandonados os meninos, com o refluxo da água, parou no seco. Aos meninos chorosos uma loba ofereceu sua teta.

O pastor Fáustulo, chefe dos rebanhos reais, achou os gêmeos, salvou-os e entregou-os à sua esposa para serem educados. Ali ambos cresceram e, sob a proteção de Fáustulo e sua mulher,  se fortaleceram no corpo e no caráter.

Rômulo e Remo, irmãos gêmeos, filhos de Rea Sílvia, netos do rei Numitor (que foi removido do reino pelo irmão Amúlio), quando adultos, restituíram, com outros jovens, Numitor ao trono.

Esta cidade, fundada por Rômulo no dia 21 de abril do ano de 753 a.C., foi chamada ROMA.

Durante aquele tempo a cidade crescia, e o Estado romano se fortaleceu; mas, devido à falta de mulheres em Roma,  em casa não havia esperança de descendência.




III.  TEXTO LATINO INTITULADO "BREVISSIMUS CONSPECTUS HISTORIÆ AB ÆNEA USQUE AD ROMULUM ET ROMAM CONDITAM", DA AUTORIA DE Pe. SUITBERTUS SIEDL






Abaixo é fornecido o texto que se traduziu acima. Esse texto foi coligido de trechos esparsos do manual "Cursus Linguae Latinae Vivae", de Pe. Suitbertus H. Siedl (pp. 26-7, 37-9, 67, 90-2, 112 e 131-8).  


"ÆNEAS, fílius Anchisæ et Véneris, dóminus Trojanórum, Troiâ prófugus cum suis, cremátâ pátriâ, primo in Macedóniam, deínde in Áfricam , póstea in Sicíliam ínsulam návigans, multa passus, donec tandem in Itáliam pervénit. Trojani, cum in Itáliam veníssent, fruméntum ex agris incolárum captavérunt, quia famélici erant.

LATINUS, dóminus agri, cum armátis appropinquávit, ut ádvenas, cum in Itália veníssent, qui  fruméntum in agris captábant, vi propulsáret. Sed Latínus Ænéam  ante pugnam ad collóquium evocávit, ut eum interrogáret  quis esset, unde viri migravíssent, quid optárent

Ad hanc tríplicem quæstiónem Aenéas Latino respóndit:
"Ego sum dóminus Trojanorum: — hi viri, cremátâ pátriâ mecum prófugi, per divérsas regiónes navigavérunt atque tandem multa passi in Itáliam pervenérunt; — nunc, cum praeter arma et navígia nihil omníno nóbis superésset, imprímis cibum necessárium, deínde locum ad habitándum idóneum, et cum íncolis fírmam amicítiam, tandem hic in Itália, deórum fidem invocántes, novam pátriam quaesitámus."

Latínus viros bello spectátos admirátus est, et datâ déxterâ amicítiam cum ádvenas firmávit. 

Ænéæ Lavíniam fíliam in matrimónium dédit. Ex novo matrimónio fílius natus est, qui nominátus est Ascánius. Oppidum novum a se cónditum Ænéas a Lavínia appellávit Lavínium. ASCANIUS, fílius Lavíniæ et Ænéæ , post mortem Ænéæ patris império pótitus, Lavínium, tunc jam floréntem atque opuléntam urbem Lavíniae matri regéndam relíquit; ipse autem novam urbem cóndidit, sub Albáno monte, quam appellávit Albam Longam.

Cum TURNO  deínde, Rutulórum domino, Ænéas Latinúsque pugnáre debébant. Néuter pópulus eâ pugnâ laetus fuit: Rútuli superáti sunt. Latinos in pugna necátus est. Rútulis superávit auxílio fuit Mezéntius, Etruscórum dóminus, qui jam inde ab inítio lætus non erat novo óppido ab Ænéa cóndito.

LAVINIA, Latíni fília, a Latino Ænéæ in matrimoniam data est, quamvis illa, cum Aenéas advénit, Turno, Rutulórum dómino, jam pacta fuísset.

AMULIUS, frater minor Numitóris regis, multis annis post Ascánium, cum regnum jam firmum esset, Numitórem fratrem, cui regnum a patre legátum erat, e regno demóvit; et omnem stirpem ejus virílem necávit; fíliam Ream (Rheam) Sílviam vírginem Vestálem légit ne nulla spes prolis esset, nam vírgines Vestáles innúptæ manére debébant.

De REA SILVIA, vírgine Vestáli, MARS DEUS — ut fama est — púeros géminos procreávit: ROMULUM et REMUM.

Amúlius usurpátor Ream Sílviam in cárcerem mísit; imperávit ut sérvi púeros géminos in aquam Tíberis amnis mítterent. Tíberis amnis tum forte redundábat; ítaque álveus in quo expósiti fúerant púeri, aquâ réfluâ, in sicco stetit. Púeris fléntibus lupa mammam præbuit.


FAUSTULUS pastor, magíster armentórum regiórum, púeros géminos invénit, servávit, uxóri educándos trádidit. Ibi ambo crevérunt, et sub tutéla Fáustuli et uxóris ejus corpóribus et ánimis corroboráti sunt.


ROMULUS et REMUS, fratres gémini, fílii Reae Sílviæ, nepótes Numitóris regis (qui ab Amúlio frátre a regno remótus erat) ætáte adúlti cum áliis juvénibus Numitórem in regnum restituérunt. Deínde consílium cepérunt eo loco subi expósiti et educai fúerant novam urbem cóndere. 


Quæ urbs, die 21 mensais Aprílis anni 753 ante Christum natum cóndita a Rómulo appelláta est ROMA.

Crescébat ínterim urbs, et res Romána válida facta est; sed quóniam Romae mulíeres deéssent domi spes prolis non erat."




¹  Eneias foi um chefe troiano, herói da epopeia "Eneida", de Virgílio. Tróia foi incendiada pelos Gregos por volta de 1250 a.C.

²  Hoje aí se situa uma vila chamada Castel Gandolfo, onde os Sumos Pontífices passam no verão algumas semanas. [Hódie ibi est vicus Castel Gandolfo appellátus, ubi Summi Pontífices aestáte per áliquas hebdómadas degunt.]

³  Com base em lista de reis e período de reinado do historiador Diodoro Sículo, foram os seguintes os reis de Alba Longa, entre Ascânio e Amúlio:
Sílvio, filho de Eneias com sua primeira esposa troiana Creúsa, filha de Príamo: 28 anos;
Eneias Sílvio: 31 anos;
Latino Sílvio: 50 anos;
Alba Sílvio, filho de Latino: 38 anos;
Épito Sílvio: 26 anos;
Cápis Silvio: 28 anos;
Calpetus, filho de Cápis: 13 anos;
Tibério Sílvio: 8 anos;
Agripa Sílvio: 41 anos;
Arramulius Sílvio: 19 anos;
Aventino: 37 anos;
Procas Sílvio, filho de Aventino: 23 anos.
Cf. in https://pt.wikipedia.org/wiki/Alba_Longa

  Assim, Rea Sílvia teria sido confinada à castidade por Amúlio, para que Numitor não viesse a ter descendência. O objetivo era impedir que os filhos de Rea competissem com ele (Amúlio) na disputa de poder na cidade.


⁵  O sinal ^ em Troiâ está aí para distingui-lo do nominativo Troia (caso do sujeito). Este sinal ^ não é um acento e a sílaba não deve ser acentuada. Se você quiser distingui-la acusticamente do "nominativo -a" em "Troia", por exemplo, pode pronunciar o "-â" em "Troiâ" um pouco mais longo; isso indica que essa forma do substantivo é o que os gramáticos romanos chamavam de "caso ablativo".


  O Canto IV da Eneida, de Virgílio, narra os amores entre Dido e Eneias na África, mais exatamente em Cartago. Segundo a visão do autor, Eneias, o herói "piedoso", responsável pela fundação de Roma,  foi envolvido em um romance mítico que podia retardar seu fatum[SILVA] entende que os dois mitos se fundem para resgatar e justificar fatos da História de Roma. Segundo ela, de acordo com a versão virgiliana, Dido se suicida por causa do abandono de Eneias e, com esse suicídio, ficam evidenciados dois fatos importantes. 
"O primeiro é que o herói demonstra toda sua pietas ao abdicar de seu amor para cumprir sua missão. O segundo é que, ao se suicidar, Dido invoca um vingador contra os Troianos. Esse será o motivo mítico das Guerras Púnicas, especialmente da segunda, quando o cartaginês Aníbal quase consegue derrotar os Romanos na própria Itália, aparecendo como o vingador de Dido e sendo derrotado com muita dificuldade." 
Virgílio é tido como o poeta maior das glórias romanas, já que em seus poemas retrata o povo romano e todo seu ideal de virtus, pietas e humanitas, as três virtudes que dão identidade aos Romanos e os diferenciam dos outros povos da Antiguidade.
"O herói Eneias é conhecido, especialmente, pela sua pietas; palavra muitas vezes erroneamente traduzida por piedade, nada tem em comum com nosso conceito cristão. A pietas para os Romanos consistia na obediência irrestrita aos deuses ou aos superiores, pais, governantes, etc., ainda que para isso fosse necessário abdicar de algo que desse prazer e alegria. (...) 
Em diversos momentos da narrativa épica, Eneias demonstra ser guiado pela pietas. Mostrando-se um homem de missão, ele não realiza ambições, mas cumpre seu dever. E, por isso, abandona Dido, rainha de Cartago. Apesar de estar apaixonado por ela, não pode ficar em Cartago, tornando-se rei, e deixar de cumprir sua missão: fundar a descendência romana."
Esses três valores morais romanos estão bem caracterizados no Canto V da Eneida, que narra os jogos fúnebres em honra de Anquises, pai de Eneias, morto um ano antes. Eneias aí é apresentado como o herói que não se deixa dominar pela 
"busca pela aretê grega, ou seja, a glória guerreira acima de tudo e de todos, conquistada de forma individual, como acontecia em Homero, mas a base heróica aqui é a virtus, que busca a glória que servirá para o bem-estar coletivo. O herói é membro de uma comunidade que deve ser honrada e preservada. (...)"
Apud [SILVA], Pierre Grimal menciona que 
"(...) Algumas tradições obscuras falam de Eneias como o fundador de Roma; outras atribuem-lhe quatro filhos: Ascânio, Eurileonte, Rômulo e Remo, mas é evidente que a versão virginiana se impôs a todos os escritores e que ela é a única variante sobrevivente depois do século I da nossa era. A lenda de Eneias tinha o mérito de dar a Roma títulos de nobreza, fazendo remontar a estirpe dos seus fundadores às origens dos tempos históricos, atribuindo-lhes antepassados divinos: Zeus e Afrodite. Além disso, a grandeza de Roma parecia ter sido predita pelo próprio Homero. Roma parecia realizar, no seio do seu império, a reconciliação das duas raças inimigas: os Troianos e os Gregos. (Grimal, 1993: 136)" 
[BRANDÃO, 2000, 330-1] observa que 
"(...) Enéias, portador dos Penates, dos ancestrais da raça latina, apresenta-se na Eneida como pius, um herói muito mais voltado para Palas Atena do que para o cruento Ares. Um grande herói, todavia, só se afirma quando faz a grande catábase, a descida, simbólica ou 'real': como Héracles, Enéias, uma vez em Cumas, descerá ao Hades em companhia da Sibila, com a finalidade de rever e consultar seu pai Anquises. Na realidade, 'fora das amarras do tempo', o filho de Afrodite visa a preparar-se para ser o grande ancestral do genus latinum, da raça latina, de que provirá a gens iulia, 'a família júlia', a que pertenceriam César e Augusto. (...)"
  De fato, há diversas tradições sobre Ascânio. Uma delas o apresenta como filho de Eneias e Creúsa; outra o apresenta como filho de Eneias e Lavínia. Outra tradição faz dele um guerreiro que, depois da morte do pai, assumiu a direção dos combates contra os Rútulos e, mais tarde, contra os Etruscos. Ainda, segundo outra versão, Ascânio e seu primo Astíanax, filho de Heitor, teriam fundado uma nova Tróia.

  [BRANDÃO, idem, 331] comenta que o poeta de Mântua não consegue dissimular a sua profunda admiração por Turno, o protagonista do Livro XII da Eneida, rei dos Rútulos, dando por concluída a missão de Eneias, quando este leva Turno a tombar vítima de um duelo mortal: 
"(...) A derradeira luta para implantação dos Penates na Itália foi a justa entre Enéias e Turno, o verdadeiro Heitor da Eneida. Apesar das hesitações do troiano, que é na epopéia vergiliana sobretudo um herói-sacerdote, um pius, este acabou por ferir mortalmente o rei dos Rútulos, o verdadeiro herói "militar" do poema.
As palavras finais de Turno traduzem a entrega total da Hespéria a Enéias, que se casará com Lavínia (noiva do herói rútulo) e símbolo do domínio sobre todos os povos que habitavam a Itália:
(...) vicisti et victum tendere palmas
Ausonii videre; tua est Lavinia conjux
ulterius ne tende odiis. (...)" (En. 12, 936-938)
Portanto, a morte de Turno encerra o poema de Virgílio, cujos três últimos versos (En. XII, 925-6) dizem: "Com essas palavras, ele enterrou a espada fundo em seu peito oposto ao golpe, / furioso; então súbito com frio mortal entorpeceram-se seus membros, e com um ronco / a alma encolerizada se afundou nas sombras (estigeanas)."
Ou em latim:
(...) Hoc dicens ferrum adverso sub pectore condit / fervidus; ast illi solvuntur frigore membra / vitaque cum gemitu fugit indignata sub umbras. (En. XII, 950-3)

Alguns autores interpretam que a conclusão desse belo poema épico não condiz com a dignidade da epopeia. Dizem eles: Se Virgílio tivesse vivido para concluí-lo como desejava, ele lhe teria dado, com toda a probabilidade, uma conclusão mais elegante.




IV.  BIBLIOGRAFIA  CONSULTADA



BRANDÃO, Junito: Dicionário Mítico-Etimológico, Petrópolis: Editora Vozes, 4ª edição, 2000, vol. I, p. 330-1. 

SIEDL, Suitbertus H.: Cursus Linguae Latinae Vivae, Clearwater, FL, USA: Editiones Familiae Sancti Hieronymi, 1991.

SILVA, Márcia Regina de Faria: "Dido e Enéias e o mito de fundação de Roma". Acesso ao seguinte site em 28/09/2015: http://www.filologia.org.br/revista/39/04.htm