segunda-feira, 26 de agosto de 2013

RUI BARBOSA em Haia (1907) e em Buenos Aires (1916)


Por Francisco José dos Santos Braga

Em homenagem aos eminentes Magistrados da Argentina, cumpridores da Constituição e mantenedores da Lei e da Ordem na Nação amiga e vizinha.

I. INTRODUÇÃO



O texto que se lerá abaixo foi extraído de um livro editado pela Academia Brasileira de Letras em 2006, intitulado TRIBUNA ACADÊMICA/OSCAR DIAS CORRÊA, nº 27 da Coleção Austregésilo de Athayde, p. 339-352 ¹.
A minha decisão de publicar neste espaço esta ilustre palestra de Oscar Dias Corrêa no Instituto dos Advogados do Brasil em 4 de novembro de 1999, intitulada "Rui Barbosa em Haia e em Buenos Aires", deve-se a inúmeras motivações de ordem intelectual. Inicialmente, visa compartilhar com todos os meus leitores lusófonos o pensamento de Rui Barbosa sobre importantes temas de Direito Internacional, muitas vezes comentado mas muito pouco conhecido pelos próprios brasileiros e, pior ainda, pouco difundido entre nós para enriquecimento das modernas gerações. Por outro lado, esse fato se deve a uma constatação de que no mundo contemporâneo estamos realmente carentes da "força do Direito" ², defendida por Rui, em contraposição a uma pregação subreptícia do "Direito da força", este, tão comum em nossos meios de comunicação quanto em nossas instituições culturais, acadêmicas, esportivas, legislativas, etc.,  deixando entrever que temos evoluído pouco no que se refere ao aprimoramento e à eficácia da nossa comunicação interpessoal, bem como "inter pares", entre eleitos e eleitores, entre Nações e entre povos. Nesta mesma linha de raciocínio, considero que resgatar um trabalho de pesquisa desta envergadura, conduzido por Oscar Dias Corrêa, constitui uma contribuição para a prática de uma efetiva democracia e de reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana e das Nações.
Esta Introdução e os comentários são de minha autoria e exclusiva responsabilidade.
Serão respeitadas a grafia e a redação do autor do texto a seguir.


II . PALESTRA DE OSCAR DIAS CORRÊA ³ NO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DO BRASIL



"Comemora este Instituto dos Advogados Brasileiros o sesquicentenário de nascimento de Rui Barbosa com o ciclo de conferências que lhe lembrará aspectos da vida e da obra, para que os brasileiros nos relembremos de quem nos deu, como nenhum outro, o sentido da Pátria, na grandeza de que a vestiu seu verbo inigualável.
Esta, por sinal, a Casa de Rui: advogado foi ele, sempre, em todos os hálitos de vida, e advogado imenso, tão grande que cobriu com seu vulto toda a incomensurável figuração territorial do País, tão nobre que lhe encarnou a alma, tão altivo que lhe serve, ainda hoje, de suporte à tradição e de estímulo e esperança no futuro.
Advogado nos cancelos dos tribunais populares, ou das cortes superiores e do Supremo Tribunal Federal, ao qual pregou, ensinando, a própria missão que lhe cumpria, na citação de Ésquilo, n'As Eumênides: "Eu instituo este tribunal venerando, severo, incorruptível, guarda vigilante desta terra, mesmo durante o sono de todos, e o anuncio aos cidadãos, para que assim seja de hoje em diante."
Advogado do Brasil, defendendo pobres abandonados, aos quais se negaram direitos, ou ricos desapossados pela injustiça; advogado da Nação, nas grandes causas do povo sofrido, que o seguia siderado pelo brilho da oratória e o fogo da eloqüência, que mereceu dele a definição lapidar que a conceitua e comprova:

"O privilégio divino da palavra, na sua expressão mais fina, mais natural e mais bela. É a evidência alada, a inspiração resplandecente, a convicção eletrizada, a verdade em erupção, em cachoeira, em oceano, com as transparências da onda, as surpresas do vento, os reflexos do céu e os descortinos do horizonte."

Advogado de todos os que clamavam por justiça e a quem não sonegou jamais o amparo de seu verbo, o mais inflamado que já ecoou nestas terras abençoadas de Santa Cruz.
Advogado do Brasil quando a Pátria esteve em risco e sua voz foi o alerta, ou o anátema, a advertência, ou a reação, a resposta, pronta, eficaz, irretorquível.
Advogado, sempre advogado, sua vocação se estenderia ao mundo, e é vê-lo, defendendo, antes que ninguém, da ignominiosa acusação que lhe macularia o nome e a vida, o capitão Dreifuss.
Advogado de todas as nações submetidas ao jugo das grandes potências, na Conferência da Paz, da Haia, em 1907, voz que sozinha se levantou como apóstolo da igualdade das nações e tornaria vitoriosa a tese que a sustentava.
Advogado das nações invadidas e pisadas pelo Império Germânico, em 1914, ao invectivar, com a autoridade de sua palavra, as ofensas aos que sofriam o peso da dominação opressora, definindo o dever dos neutros, na memorável Conferência de Buenos Aires.
Nada mais justo, pois, do que lhe tributar esta Casa as honras que merece, como símbolo da profissão, paradigma dos que lutam pela Liberdade, o Direito e a Justiça, que ele erigiu como lema de sua vida inteiramente voltada ao bem comum.
Não ensinou apenas com a palavra, mas o disse
"com a doutrina e o exemplo, mas ainda mais com o exemplo do que com a doutrina, o culto da legalidade, as normas e o uso da resistência constitucional, o desprezo e o horror da opressão, o valor e a eficiência da Justiça, o amor e o exercício da Liberdade."
Por isso me ufano de poder lembrar aqui, quando todo o Brasil lhe reverencia a memória, dois momentos pinaculares de sua atuação: Haia, em 1907; Buenos Aires, em 1916.

NA HAIA


Em 1907 reunia-se, na Haia, a Segunda Conferência da Paz, sugerida por Theodore Roosevelt e convocada pela rainha da Holanda e o czar da Rússia, com a participação de 44 Estados independentes, faltando apenas a Abissínia, Costa Rica, Honduras, Libéria e Marrocos.
Convidado, o Brasil resolveu fazer-se representar, e o Presidente Afonso Pena e o Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco, pensaram em quem honrasse o nome de nosso país, no grande conclave que discutiria os problemas da paz mundial.
Rio Branco cogitou, a princípio, de Joaquim Nabuco; mas, sugerido pelo Correio da Manhã o nome de Rui, por mais que Rio Branco desejasse ter os dois grandes nomes, Nabuco lhe ponderou que não poderia ir como segundo, e Rui somente poderia ir como primeiro.
Após recusa inicial e vacilações posteriores, Rui, que alegava não estar preparado para tão difícil missão, acabou aceitando e, em junho de 1907, se instalava a Conferência.
Nabuco, velho amigo e companheiro, que colaborara na indicação, ajudou-o na tarefa de conhecer os demais membros do conclave e as posições que sustentavam, e como Enviado Plenipotenciário, Rui foi eleito Presidente de Honra da Primeira Comissão, passando a participar, pessoal e ativamente, de todos os debates.
Foi então que, discutindo-se, em 12 de julho, na 5ª Sessão da 4ª Comissão, presidida pelo russo De Martens, a questão da "Transformação dos vasos mercantes em vasos de guerra", se verificou o incidente que marcou definitivamente a atuação de Rui, projetando-lhe a figura e elevando-a à posição de um dos "sete sábios da Conferência", ao lado do Barão Marshall, Nelidoff, Choate, Kapos Meré, Léon Bourgeois, Conde Tornielli, aos quais se acrescentou, depois, Sir Eduardo Fry, da Grã-Bretanha.
Ninguém nega a má vontade com que, a princípio, se ouvia a voz daquele homenzinho, o menor da Conferência, representante de um país desconhecido, que se pronunciava demoradamente sobre todos os temas.
O incidente com De Martens serviu-lhe à consagração. Ouçamos a descrição que dele faz Batista Pereira, presente à reunião, e que o narra no seu Figuras do Império e outros ensaios, que li, pela primeira vez, faz sessenta anos:
"Entramos no velho palácio dos Cavalleiros. Começava a sessão.
Presidia De Martens. Gotoso, usava muleta, do lado esquerdo. Cabeça branca, cútis de tijolo vermelho, com um quê de tártaro, quem quiser imaginá-lo, olhe um retrato de Clemenceau. Os mesmos longes de foca, no contorno do rosto, no bigode, no queixo redondo. Rui pediu a palavra e leu um discurso de meia hora sobre presas marítimas. De Martens ouviu-o de má vontade, a mão esquerda ao rosto, de lado, quase de costas. A sala, com raras exceções, afinava por esse diapasão; diálogos travavam-se por toda a parte. Era, dado o ambiente diplomático, uma verdadeira manifestação de desagrado.
Rui terminou numa atmosfera glacial. De Martens só então voltou-se para ele e disse:
— O memorial do nobre embaixador do Brasil constará dos processos verbais das nossas sessões; devo, porém, observar-lhe que a política não é da alçada da Conferência.
Correu-me um frio na espinha. Era o tiro de misericórdia, era a liquidação sumária, a decapitação do Brasil em Haia. Sem saber como, achei-me atrás da cadeira de Rui.
Rui, sentado como um menino de colégio, não pestanejou. Uma onda de palidez mais profunda empalideceu-lhe ainda a palidez. Mas as narinas vibraram-lhe. Os vidros dos óculos lampejaram.
Foi ainda numa voz sumida que pronunciou as palavras sacramentais:
— Je demande la parole.
A emoção fez-lhe pronunciar 'parôle' e não 'parole'.
Tendo-a, levantou-se com um movimento como que mecânico. E começou, não como reza o seu livro de discursos publicado em Haia, mas com esta interrogação:
— Un mémoire? E pourquoi pas un discours?
Ninguém esperava o relâmpago do revide. Ninguém o acreditava capaz de tomar o pião à unha. Ninguém esperava a instantaneidade da erupção.
Era formidável a posição de De Martens na Conferência, cuja iniciativa real passava por ser mais sua do que ninguém. Ninguém representava com mais títulos o pensamento do incitador ostensivo do grande congresso, o Tzar de todas as Rússias. Chocar-se com ele era uma audácia de Davi e nem todos os Davi têm pedras na funda.
No grupo mais hostil a Rui Barbosa o contentamento irrompia sem dissimulações. Rui liquidava-se pelas próprias mãos, era o pensamento que se lia nas fisionomias.
Mas o orador começou. A voz mal segura, de princípio, firmou-se. E o fio maravilhoso dos raciocínios começou a envolver a assembléia na rede de sua magia.
Foi, primeiro, a recordação de que havia muito presidia o Senado dum país que tinha sessenta anos de tradições parlamentares, alusão que não devia calhar muito ao súdito de uma autocracia. Depois, que seria incapaz de faltar ao regimento duma assembléia deliberante, sutil recurso para chamar à ordem um presidente desabrido. Depois, enfim, a luta, arca a arca, peito a peito, com o grande sofisma de De Martens: o de que a política estava banida da Conferência.
Nenhum internacionalista, nenhum mestre de direito, até àquela data, definira a política vedada à Conferência, e a permitida.
Não se conhecia senão uma política: e esta, para proibi-la. Rui tomou o touro à unha. Distinguiu entre a política prática, imediata, concreta, que pode separar os povos, e a política razão de Estado, a política regra geral, sem cuja exploração não se poderia conceber a própria Conferência.
— Há alguma coisa de mais eminentemente político, do que a soberania? — perguntou ele. — E não estamos aqui para traçar regras que a restrinjam e delimitem? Como, pois, afirmar, sem distinguir, que a política nos é vedada em todas as suas acepções?
À enunciação desta verdade, em que ninguém tinha refletido, ou que pelo menos ninguém até aí enunciara, a sala toda teve um movimento de atenção.
Rui estava à esquerda do hemiciclo, cujo centro era ocupado pela mesa da Presidência. À direita sentavam-se os delegados franceses, alemães e norte-americanos.
Léon Bourgeois conversava com Marshall de Bieberstein, que ficava numa cadeira bem atrás da sua.
D'Estournelles de Constant, quando Rui começou a definir a política, chamou-lhe a atenção, puxando-lhe a manga do casaco.
Bieberstein, o homem mais gigantesco da Conferência, o elefas germanicus, como lhe chamou Stead, numa designação que lhe definia a inteligência e o volume, levantou-se com o passo bamboleante de pernas que tinham de agüentar mais de cem quilos e mais de sessenta janeiros e veio encostar-se ao lado direito da mesa presidencial para melhor ouvir. Bourgeois e D'Estounelles seguiram-no.
A maravilhosa oração continuou na mesma altura de conceito, de conveniência, de polidez e de forma. O grupo hostil, desarmado, ouvia com tanta atenção, como os leaders da Conferência. A palavra fizera um milagre. Sentia-se que do rochedo da hostilidade começara a emanar a linfa, quando não da simpatia, ao menos do respeito.
"
A partir daí, todos lhe reconheceram o valor e passaram a ouvi-lo como voz que merecia respeito pela profundeza e amplitude dos conceitos que emitia, a ponto de Nabuco escrever, feliz, a Graça Aranha que Rui fora a maior figura da Conferência.
Em todos os temas, atento à orientação da linha diplomática brasileira, definiu, com propriedade, nossa posição.
Concisamente, o eminente internacionalista e Embaixador Hildebrando Accioly indica os temas de que tratou e que podem ser acompanhados, na íntegra, nas "Obras Completas" (v. XXXIV, t. II, ed. Ministério da Educação e Cultura, RJ, 1966, p. XII):
"a da cobrança compulsória das dívidas (que daria lugar à conhecida doutrina Drago), a da transformação dos navios mercantes em navios de guerra, da abolição do contrabando de guerra, a do bloqueio, a da colocação de minas pelos neutros, a da entrega de navios de guerra em construção num país neutro, a da solução pacífica dos litígios, sobretudo pela arbitragem. Sua ativude teve maior relevo, talvez, nas relativas, respectivamente, à criação de um tribunal internacional de presas marítimas e à organização da justiça arbitral."
Não há como discuti-los neste sumário; mas, após a apreciação das teses brasileiras, Hildebrando Accioly, com sua autoridade, conclui que "na defesa desse princípio (igualdade das nações), e, em geral, dos pontos de vista do nosso Governo, Rui pôs o brilho de seu talento genial e o melhor de seus esforços." (p. XXV)
É que, em todos esses temas sua intervenção foi a de quem os examinara, longa e proficientemente, sob todos os ângulos, norteado sempre pelos princípios da igualdade entre as nações, da liberdade dos povos e dos cidadãos, fundamentos nos quais formara seu espírito e amadurecera sua luta.
A verdade é que, afinal, os mais altos expoentes da cultura universal, sobretudo os presentes à Assembléia, lhe rendiam homenagem; e o "Dr. Verbosa", como lhe chamaram, a princípio, saía da Conferência como um de seus vultos mais preeminentes, se não o mais preeminente deles.
E o que mais nos honra, nosso país dava demonstração de que, nação jovem, sem ter atrás de si um grande exército ou uma poderosa armada, possuía tradições liberais tão nobres e altivas como as dos velhos povos europeus, ou da moderna democracia norte-americana.

EM BUENOS AIRES


Mas, caberia ainda a Rui prestar ao Brasil, no campo internacional, outro serviço inestimável.
A Guerra de 1914 ensangüentava a Europa e se alastrava por todo o mundo. A violência explodia sem limites e convulsionava as populações do Velho Continente, massacrando-as na luta sem trégua que foi o primeiro conflito mundial.
O Brasil, convidado pela Argentina, para comparecer aos festejos comemorativos do Iº Centenário de sua Independência no Congresso de Tucumã, de 9 de julho de 1816, credenciou Rui como Enviado Extraordinário e, após as solenidades oficiais, em 14 de julho de 1915, a convite da Faculdade de Direito de Buenos Aires, pronuncia ele conferência sobre "O dever dos neutros", na qual examina, em profundidade, este e alguns outros conceitos modernos do direito internacional.
Depois de historiar a luta argentina da Independência, e de lembrar as teses igualitárias da Haia, apoiadas pelo Delegado portenho, deplora a "falácia de nossas previsões", acentuando que "nega-se o direito, desterra-se a justiça, elimina-se a verdade, contesta-se a moral, proscreve-se a honra, crucifica-se a humanidade; o vendaval de ferro ataca os símbolos sagrados, a arte, os tesouros da ciência acumulada, os grandes arquivos da civilização, os santuários do trabalho intelectual. Apenas subsiste, de todas as leis, a lei da necessidade, a lei da força, a lei do sangue, a lei da guerra. O Evangelho está substituído pela religião do aço e da pólvora." (Todas as citações são feitas da publicação Os Conceitos Modernos do Direito Internacional, tradução do texto castelhano de Rui, por Sergio Pachá, ed. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983, p. 31.)
E se interroga: "Onde a igualdade dos direitos", "essa virtude do direito", essa "harmonia das leis históricas", esse "equilíbrio restaurado entre as nações", lembrando a posição do delegado argentino na Conferência de Haia, onde diz: "supúnhamos estar codificando num corpo de leis os usos internacionais, que o consenso unânime da sociedade santificava...". (p. 32)
Busca, então, as causas fundamentais dessa situação, que encontra nas "teorias, as aspirações, os devaneios de uma propaganda nutrida por um núcleo de espíritos cultos, porém pervertidos até o desvario por um nacionalismo enfermiço."
Assim, afirma:
"Os atos resultam das doutrinas. As doutrinas precedem aos atos. Os fatos materiais emanam dos fatos morais. Os acontecimentos resultam de um ambiente de erros ou de verdades. A guerra sob a qual se debate a Europa mutilada teve por origem montão de teorias disformes e virulentas, que, durante meio século, nas regiões mais acreditadas por sua cultura, encheram os livros dos filósofos, dos historiadores, dos publicistas, dos escritores militares."
Combate o culto da guerra, que vai a ponto de julgar que "até a paz é guerra", com a "descristianização da humanidade", "a guerra santificada por si mesma", e "o culto do Estado — o Estado por cima de todos os direitos", "alfa e ômega de si mesmo, existente por si próprio e a si próprio suficiente", "superior a todas as regras morais" (pp. 35-37), levando a "duas morais". E, resumindo as idéias dos pregoeiros dessas doutrinas, afima:
"Já agora o sistema está completo: em política interna, a força traduzida na razão de Estado; em política externa, a força exercida pela guerra. Nas relações internas duas morais: uma para o indivíduo, outra para o Estado. Duas morais, igualmente, nas relações externas: uma para os Estados militarmente robustos, outra para os Estados militarmente débeis." (p. 37)
 Clama pelas conquistas de Genebra e Haia, para afirmar, incisivamente, que "não há duas morais, a doutrinária e a prática. A moral é uma só: a da consciência humana, que não vacila em discernir entre o direito e a força." (p.38) Anatematiza a barbaria:
"Não existia a moral senão, justamente, para moderar os grandes e escudar os pequenos, refrear os opulentos e abrigar os pobres, conter os fortes e garantir os fracos. Entretanto, com a dualidade que introduziram na concepção da moral, a força e a guerra, apoderando-se do mundo, basearam a moral no dinheiro, na soberba e no poder, fizeram da moral a humilhação, o ergástulo, o cativeiro dos fracos, dos necessitados e dos pequenos. Duplicando a moral, aboliram a moral; e como a moral é a barreira das barreiras entre as sociedades civilizadas e as sociedades bárbaras, abolindo a moral, proclamaram implicitamente a barbaria como último destino do gênero humano," (p.39)
divididas as nações entre "nações de presa e nações de pasto" (p.43). E se não obsta a que existam tratados não obedecidos, porque "farrapos de papel", então, diz, em linguagem candente,
"porque se consignam em papéis, trapos de papel são todos os contratos, porque em papel se escrevem todos. Se, porque os celebramos no papel, os tratados não são, por isso, senão farrapos de papel, nada mais que farrapos são, igualmente, as leis, que no papel, sua forma visível, se decretam e promulgam. Se os tratados, porque recebem no papel sua forma visível, a trapos de papel se reduzem, as Constituições que no papel se pactuam, não passam de farrapos de papel. Trapos de papel maiores ou menores, mas, ao fim e ao cabo, papel, e em farrapos." (p. 46)
E menos ainda que o papel é a palavra, porque é um sopro; e, não obstante, imaginava-se outrora que ela vincula os reis e os povos, os homens e os numes. Mas, não nos é dado repetir tudo, no estilo grandiloqüente e na força demolidora do verbo de Rui, que conclui com sua notável contribuição à verdadeira noção de neutralidade:
"A reforma a que urge submetê-las (as regras da neutralidade) deve seguir a orientação... pacificadora da justiça internacional. Entre os que destroem a lei e os que a observam não há neutralidade admissível. Neutralidade não quer dizer impassibilidade: quer dizer imparcialidade; e não há imparcialidade entre o direito e a injustiça. Quando entre ela e ele existem normas escritas, que os definem e diferenciam, pugnar pela observância dessas normas não é quebrar a neutralidade, é praticá-la. Desde que a violência calca aos pés, arrogantemente, o código escrito, cruzar os braços é servi-la. Os tribunais, a opinião pública, a consciência não são neutros entre a lei e o crime. Em presença da insurreição armada contra o direito positivo, a neutralidade não pode ser a abstenção, não pode ser a indiferença, não pode ser a insensibilidade, não pode ser o silêncio." (p. 54)
Haveria, pois, pelo menos, o dever de protestar, ou "a obra de Haia não seria apenas um capricho fútil: seria uma cilada atroz" para os povos, que se "entregariam à expectativa do regímen jurídico cuidadosamente articulado ali, para despertar, de repente, sob o troar dos canhões que os fariam em pedaços" (p. 54).  Daí "o direito e o dever de constituir um tribunal de consciência, uma instância de opinião, uma jurisdição moral sobre os Estados em guerra, para julgar-lhes os atos e reprovar-lhes os excessos. A neutralidade inerte e surda-muda cedeu o passo à neutralidade vigilante e capaz de função judiciária". (p. 54) E conclui que "a imparcialidade na justiça, a solidariedade no direito, a comunhão na manutenência das leis escritas pela comunhão; eis aí: a nova neutralidade, que se deriva positivamente das conferências de Haia, não flui menos imperativamente das condições sociais do mundo moderno".
E clama para que a América assuma o seu papel, pois "quando vier o reino do espírito, virá pelo enlace da liberdade européia com a liberdade americana, numa comunhão hostil à guerra e armada contra ela de garantias inquebrantáveis".
A repercussão do pronunciamento, quando o mundo, atônito, assistia à prevalência das decisões da força das armas, foi a mais intensa possível, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos.
Compreendeu-o bem o Presidente da Câmara dos Deputados da Argentina, Demaria, ao assinalar, como diz Américo Jacobina Lacombe, "profeticamente" (prefácio a Rui Barbosa em Buenos Aires — Cinquentenário da Embaixada a Buenos Aires, de Regina Monteiro Leal, ed. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1969, p. X):
"Ele nos deu a honra de escolher a tribuna de Buenos Aires para enunciar as mais elevadas idéias que se têm manifestado nestes trágicos tempos. Elas circularão pelo mundo, serão discutidas, aplaudidas, combatidas, vingarão ou serão vencidas. Porém, a honra que representa o ter sido Buenos Aires a cidade em que o verbo da nova doutrina inicia a sua peregrinação através da consciência humana é a maior oferenda com que o Brasil se poderia ter associado ao nosso primeiro centenário de vida livre."
Mas, o pronunciamento de Georges Clemenceau a respeito é o que de mais alto se poderia esperar, quando se refere a Rui como "idéaliste humanitaire, éloquent à miracle, jurisconsulte de la Haye, enfin, pour couronner tant de vertus" (artigo em L' Homme Enchaîné, vendredi, 21 juillet, 1916, in: Regina Monteiro Leal, op. cit., pp. 2-3).

Meus caros colegas e amigos:
Estamos à véspera da comemoração dos 150 anos do nascimento de Rui Barbosa, amanhã, 5 de novembro.
Não temos o direito de lembrar-lhe a vida sem lhe proclamar a dignidade, a altivez, o denodo e a incorruptibilidade na defesa dos ideais da liberdade, do direito e da justiça, que nos vieram do berço, que a lembrança de sua vida fortaleceu, acrisolou e amadureceu, e que agora, mais do que nunca, temos o dever de apregoar e preservar.
Temos por Pátria o melhor país do mundo, desde as claridades do céu e as luzes do sol à natureza pródiga e fecunda, às virtudes da gente, pacata, tolerante, dada ao perdão, à compreensão, à harmonia e à paz.
Isto agrava, ainda mais, as responsabilidades que nós, homens do Direito, temos para com a sociedade e o País.
Não podemos permitir que a intolerância ou o radicalismo, de onde quer venham, ou que origem tenham, criem entre nós a divisão e a cizânia; nem que, ao sopro de egoísmos pessoais, projetos contrários aos interesses nacionais nos turvem a compreensão e a paz, que em quinhentos anos, graças a Deus, temos mantido.
Não nos tolde a visão parcial ou distorcida dos nossos problemas o sentido superior da unidade nacional, da coesão patriótica, da fraternidade da gente.
Que nossos graves problemas, a Amazônia cobiçada, o Nordeste sofrido, as falhas da ação do Estado na educação, na saúde, na habitação, na área social, enfim, com os males do desemprego e subemprego, que o subdesenvolvimento explica e agrava, não nos escureçam ou obliterem a visão da unidade nacional, nem nos levem ao paroxismo das lutas ideológicas que, após tanto tempo, se mostraram inexplicáveis, impróprias e retrógradas.
Pensemos no Brasil, só no Brasil, como república democrática, em que os direitos sejam reconhecidos e respeitados; os poderes atuem livremente, insuscetíveis de comando uns aos outros, ou tentativa de cerceamento uns sobre os outros; em que o povo, que trabalha, sofre e clama por desenvolvimento e harmonia, mais não quer do que a tranqüilidade da paz familiar, a ordem da sociedade organizada e a grandeza da pátria, nosso berço, nossa morada, nosso enlevo, nosso sonho, nossa certeza.
Lembremo-nos de Rui, o maior de todos os nossos, e que, tudo tendo feito pela Pátria, nem sempre mereceu a compreensão de muitos, a compensação do sacrifício, nas galas da retribuição; mas nem por isso desertou dos ideais, abdicou da luta permanente, impertérrita pelo Brasil e seu povo.
Esta há de ser a nossa missão, seus herdeiros, na grande herança do Brasil livre e unido que nos deu.
Esta a lição que esta nobre e altiva Instituição, que ele presidiu, há de sempre proclamar e defender, intérprete autêntica da nossa tradição e guardiã do nosso futuro."



III. COMENTÁRIOS DE FRANCISCO JOSÉ DOS SANTOS BRAGA



¹  A Academia Brasileira de Letras-ABL reuniu neste volume palestras de Oscar Dias Corrêa tanto na tribuna dessa Casa de Cultura quanto em algumas outras tribunas, entendendo ser útil a sua edição pelo desejo "de homenagear vultos eminentes de nossa vida cultural, ou proceder a breve exame de problemas e questões nacionais". Entendeu ainda que, "no caso dos homenageados, a relembrança no apreço e na saudade é a imortalidade: possibilita que gerações e gerações valorizem o que assegura a permanência da Pátria comum." A ABL ainda disponibilizou todo esse volume na Internet em arquivo PDF, no seguinte endereço eletrônico:
http://www.academia.org.br/antigo/media/Tribuna%20Acadêmica%20inteiro.pdf

²  Ubiratan Lustosa discorreu sobre "A Força do Direito" em artigo do mesmo nome, onde considerou que "Rui Barbosa, ao defender em Haia a prevalência da força do direito sobre o direito da força, traçou normas e indicou caminhos não apenas para o relacionamento entre nações, mas descortinou para toda a humanidade uma forma de vida, um modelo de convivência, uma regra básica para ser seguida em todos os níveis. Lamentavelmente, parece que suas palavras ficaram enclausuradas no recinto daquela Corte Internacional e a Águia de Haia, que voou tão alto e viu horizontes tão amplos, não foi ouvida como seria de esperar." (Cf. http://www.ulustosa.com/Cronicas/A_FORCA_DO_DIREITO.htm)

Por oportuno e a propósito, cabe lembrar aqui uma expressão muito usada nos meios jurídicos: "ainda há juízes em Berlim", toda vez que se quer falar da independência possível e desejável do Judiciário. A origem desse mote é atribuída a um conto em versos, Le meunier Sans-Souci, da autoria de François Andrieux. O incidente ali descrito, ocorrido no século XVIII e imortalizado pelo poeta francês, foi protagonizado por dois personagens principais: o dono do moinho "Sans-Souci" (trad. literal: Sem Preocupação) e o imperador da Prússia, Frederico II, "o Grande", na cidade de Potsdam.
O poeta francês iniciou seu poema meditando sobre como os seres humanos somos instáveis por natureza: "de manhã a gente acorda incrédulo; à noite, já é devoto." Quanto aos reis, infelizes para ele e de quem se falava muito mal, o poeta conseguia vislumbrar algo de bom no seu comportamento. E, para provar, citaria um traço que os honrava. Para tal recorreu ao episódio passado em Potsdam.
Tudo começou quando Frederico II decidiu construir um palácio na encosta de uma colina, onde já funcionava um moinho de vento chamado "Sans-Souci". O moleiro passou a ser chamado também de "Sans-Souci", pois vivia tranquilamente da venda de farinha (sem esquentar a cabeça, diríamos nós). Por analogia, "o grande rei, bom filósofo, mas péssimo cristão", decidiu chamar o seu palácio também de Sans-Souci, pois ali pretendia "cultivar as belas-artes ao sair das batalhas, construir para si um asilo, onde, longe de uma etiqueta arrogante e fútil, pudesse, não vegetar, beber e caçar cervos, mas sim meditar sobre os erros dos fracos humanos, e misturando a sabedoria com o lazer, cear com d'Argens, Voltaire, Lamettrie". O intendente real responsável pelas obras fez o moleiro comparecer à sua presença para expor-lhe a necessidade de o palácio real ampliar seus aposentos, avançando sobre a sua propriedade, ao que o moleiro retorquiu com energia que não pretendia vendê-la a ninguém. Atrevidamente disse que "a Prússia já era do rei, mas o moinho era sua propriedade". A recusa do moleiro em vender o moinho foi levada ao conhecimento do imperador. Ele próprio então decidiu entrevistar-se com Sans-Souci, o moleiro que se obstinava em não dispor de seu moinho em benefício da ampliação dos aposentos reais. Ouviu deste que "não podia vendê-lo, porque seu velho pai ali morrera, bem como ali seu filho acabava de nascer". "Potsdam é meu", concluiu intrepidamente Sans-Souci. Acrescentou ainda, com firmeza, que não entregaria seu moinho por mil ducados, nem por nenhum dinheiro do mundo. O imperador impaciente fez ver a Sans-Souci que estava sendo bom ao tentar convencê-lo da venda do moinho, já que, se quisesse, poderia tomá-lo sem pagar. A resposta de Sans-Souci não se fez esperar para surpresa do imperador: "Você!... tomar meu moinho? Como se não tivéssemos juízes em Berlim."
Então, o imperador, como déspota esclarecido que era, amigo de filósofos, "encantado de ouvir que em seu reino se acreditava na Justiça", abdicou de seu capricho e teria se dirigido a seus cortesãos com as seguintes palavras: "Creio ser necessário mudar nossos planos (de ampliar seu palácio)."
Em seguida, voltando-se para Sans-Souci: "Guarda teu bem; gosto da tua réplica".
E François Andrieux conclui seu poema com outro fato, mostrando como o ser humano é volúvel. Esse mesmo Frederico II, "justo para com um moleiro, certo dia, ao invadir a Silésia, ateou fogo na Europa inteira. Capricho de príncipe: respeita-se um moleiro, enquanto se põe a perder toda uma província."

³  Oscar Dias Corrêa foi eminente tribuno,  tendo sido  Deputado Federal, Secretário de Educação do Governo mineiro, Ministro da Justiça, Ministro e Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal, grande Acadêmico mineiro, ilustre conferencista, causídico competente, além de autor de vários livros e artigos em revistas especializadas. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 6 de abril de 1989, tendo ocupado a Cadeira nº 28, na vaga de Menotti del Picchia, e sido recepcionado por Afonso Arinos de Mello Franco.  Nasceu em Itaúna, em 1921, e faleceu no Rio de Janeiro, em 2005, aos 84 anos de idade, tendo sido sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no cemitério São João Batista.