sábado, 22 de outubro de 2022

HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte 4

Por Ari Belenkiy
Traduzido do inglês por Francisco José dos Santos Braga
 
Hipátia, primeira mulher na história a estudar matemática e astronomia
Um assassinato astronômico?
Por Ari Belenkiy
 

O assassinato da sábia Hipátia de Alexandria nunca foi adequadamente explicado. Proponho que ela se tornou vítima de um cataclismo político decorrente de desacordo dentro do Império Romano na data da Páscoa em 417 d.C., depois que ela forneceu expertise crítica em astronomia relacionada com o equinócio vernal. A refração atmosférica, um fenômeno desconhecido para Hipátia, poderia tê-la levado a concluir que o equinócio caiu em 16 de março, a data aceitável para a Igreja romana, e não em 21 de março, a data defendida por Alexandria. Sua posição poderia ter ameaçado a autoridade estabelecida da Igreja alexandrinense na questão de datar as Páscoas para todo o Império Romano. Argumento que essa ameaça política levou uma multidão cristã a matá-la. Como corolário, este argumento inclina a balança a favor do ano 416 para a data de sua morte, em vez de 415 como a maioria sustenta. Além disso, sugiro que ela morreu em 21 de março. 

A vida e a morte de Hipátia são conhecidas a partir de relatos contemporâneos, principalmente dos escritos de Sócrates Escolástico (ver seção “A Vida de Hipátia”). Ela era uma sábia de elevada reputação, cuja morte no primeiro quartel do século V (incidente geralmente aceito como ocorrido em 415 ou 416) surgiu, de alguma forma, de um desacordo entre Orestes, o Prefeito Imperial de Alexandria, que governava como parte do Império Romano, e Cirilo, Bispo de Alexandria, cujo poder vinha de sua posição na Igreja Alexandrinense. Por volta da mesma época da morte de Hipátia, houve um confronto cristão-judaico em Alexandria que levou à expulsão da comunidade judaica da cidade. 

Apesar de haver extensa literatura sobre o assunto (Dzielska e Lyra 1995, Deakin 2007, Berggren 2009), os historiadores não descobriram nenhuma razão séria para um desacordo entre Orestes e Cirilo que pudesse levar à violência contra o primeiro, nem uma razão convincente para o assassinato de Hipátia, nem nada mais do que uma razão um tanto superficial para a agitação religiosa. Ninguém tentou descobrir o assunto das “frequentes conversas dela com Orestes”. Referências gerais à “aversão aos dissidentes” de Cirilo entre os cristãos não podem explicar o assassinato brutal que seus seguidores infligiram a Hipátia. Afinal, Teófilo, predecessor e tio de Cirilo, coexistiu pacificamente com todas as partes por muitos anos. Parece provável que essas hostilidades tenham sido consequência de uma controvérsia particular que envolveu os diferentes grupos da sociedade alexandrinense. O problema certamente estava relacionado com a astronomia: Hesíquio de Mileto, do século VI, em seu Dicionário Biográfico de Pessoas Doutas escreve, por exemplo, que a inveja de Cirilo foi causada pela “extraordinária sabedoria e habilidade em astronomia” de Hipátia. 

Astronomia é uma palavra-chave aqui. João, um bispo copta egípcio de Nikiu (fl. 696), também menciona (embora superficialmente) as habilidades de Hipátia em astronomia em sua Crônica 84.87-103

“E naqueles dias apareceu em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipátia, e ela era sempre dedicada à magia, astrolábios e instrumentos musicais, e ela seduzia muitas pessoas através de ciladas do demônio.” 
Apesar de não serem definidas “ciladas do demônio”, um astrolábio é um objeto concreto que lida com medição das posições das estrelas. 
 
Um astrolábio, 1885 / Crédito: British Museum
 
Embora nenhum dos historiadores que escrevem sobre Hipátia tenha mencionado a astronomia como razão para seu assassinato, vou construir meu argumento sobre o fato de que o administrador do Estado (Orestes) esteve envolvido, o que eleva o problema ao nível do Império, e que teve alguma relação com astronomia. O problema que melhor parece satisfazer essas violências na Alexandria do século V foi a data da Páscoa. 
 
Datas incertas 
 
É geralmente aceito que a Páscoa é o primeiro domingo após a primeira lua cheia caindo em ou após o dia do equinócio vernal (a primeira lua cheia vernal). No primeiro quartel do século V, o equinócio vernal caiu em 19 ou 20 de março, então a Páscoa deveria ocorrer em ou após essas datas. Mas naquele período, as duas principais Igrejas usavam critérios diferentes para determinar a data da Páscoa. Consequentemente, em 417 a Igreja romana celebrou a Páscoa em março, enquanto os cristãos alexandrinenses a observaram em abril. Tal desacordo aponta para uma luta de poder entre Roma e Alexandria. Poderia Hipátia estar no centro dessa batalha política e, como famosa astrônoma, talvez ter sido encarregada de determinar a data do equinócio vernal? 
 
Para prosseguir com esta ideia, é importante saber a data da morte de Hipátia. Há evidências de que tenha ocorrido em 415 ou 416. O relato de Sócrates (ver seção “A vida de Hipátia”) inclui as palavras “no quarto ano do episcopado de Cirilo, sob o décimo consulado de Honório e o sexto de Teodósio”, que são problemáticos. Cirilo foi ordenado em outubro de 412; logo, a primeira parte aponta para o ano 416, mas os anos consulares apontam para 415. 
 
Baronius, o historiador eclesiástico, em seus Annales Ecclesiastici (1588-1607) escolheu 415 como a data do assassinato. O problema foi amplamente discutido pelos historiadores alemães, Wernsdorf (1748), Wolf (1879) e Seeck (1921), que argumentaram que o assassinato ocorreu em março de 416, porque, do contrário, teria transcorrido um ano e meio entre o assassinato e o decreto do imperador Teodósio de 5 de outubro de 416, que é geralmente visto como uma reação aos tumultos em Alexandria. Seeck alegou que a nomeação de cônsules foi muitas vezes adiada durante o século V, o que levou ao uso de “pós-consulados” (isto é, o ano é dado como o ano após o mandato de um determinado par de homens). Sócrates pode ter confundido o pós-consulado de 415 dos cônsules com seu consulado real. Seeck admitiu que também havia a possibilidade de o decreto de Teodósio estar datado incorretamente.
 
Hoche (1860) retrucou que um ano e meio é um intervalo de tempo razoável e não há razão para colocar em dúvida a datação consular. Ele sugeriu que é mais provável que os anos do mandato de Cirilo como bispo tenham sido sincronizados com o calendário romano (isto é, como tanto o ano consular quanto o episcopal começam em 1º de janeiro, o quarto ano seria 415 d.C. no calendário juliano). Campbell (1987) coloca a morte de Hipátia em março de 415 como “a única data virtualmente certa na vida de Hipátia” e que “a única alternativa razoável, março de 416, é geralmente rejeitada”. Outras datas também têm sido favorecidas, por exemplo, Van der Waerden (1956) sugere 418. 
 
Todos esses argumentos estão condicionados a circunstâncias externas, como o decreto de Teodósio; nenhuma razão independente foi oferecida até agora. Eu proponho que Hipátia foi assassinada em 417, com base em dados astronômicos e sua conhecida posição de eminência entre os astrônomos da região. Os anos em discussão fornecem uma primeira pista — eu sugiro que o assassinato de Hipátia esteja relacionado com o conflito entre as Igrejas de Roma e Alexandria quanto à data da Páscoa de 417. 
 
A Vida de Hipátia: informações de histórias contemporâneas 
 
Os detalhes que temos da vida e morte de Hipátia vêm de relatos contemporâneos. Damascius (c. 458 d.C., morreu depois de 538), que era conhecido como “o último dos neoplatônicos”, escreveu sobre ela em Vita Isidori, um texto que sobrevive graças a ter sido preservado e reproduzido na Souda, uma crônica bizantina do século X: 
“Hipátia nasceu e foi educada em Alexandria. Como ela tinha mais inteligência do que seu pai, não se satisfez com sua instrução em assuntos matemáticos e dedicou-se diligentemente aos estudos filosóficos. (...) Essa mulher vestia sua capa de filósofa e andava pelo meio da cidade. Ela interpretou publicamente Platão, Aristóteles ou as obras de qualquer outro filósofo para todos os que desejassem ouvi-la. Além de sua expertise no ensino, ela se elevou aos píncaros da virtude cívica.” 
Sócrates Escolástico de Constantinopla (nascido em 380 d.C.) relata detalhes que tornam justo supor que ele ouviu a história em Constantinopla cerca de 15 a 20 anos após o assassinato, de uma testemunha ocular então residente em Alexandria, que era jovem demais em 416 para entender o fundamento “científico” dos acontecimentos contemporâneos. 
 
Ele escreve sobre a morte de Hipátia em sua Historia Ecclesiastica, terminada c. 439 (HE VII. 15): 
“Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipátia, filha do filósofo Théon, que fez tantas realizações na literatura e na ciência, que superou em muito todos os filósofos de seu tempo... No entanto até ela foi vítima do ciúme político que prevalecia naquela época. Pois, como ela mantinha encontros frequentes com Orestes [prefeito imperial de Alexandria], correu o boato calunioso entre a população cristã de ter sido ela quem impediu Orestes de se reconciliar com o bispo [Cirilo de Alexandria]. Alguns deles, portanto, incitados por um zelo feroz e fanático, cujo líder era um leitor chamado Pedro, assaltaram essa mulher ao voltar para casa e, arrastando-a de sua carruagem, levaram-na para a igreja chamada Caesareum, onde a despiram completamente e, em seguida, a assassinaram com telhas. Depois de rasgarem seu corpo em pedaços, eles levaram seus membros mutilados para um lugar chamado Cinaron, e lá os queimaram. Este caso não trouxe o menor opróbrio, não apenas a Cirilo, mas também a toda a igreja alexandrina. E certamente nada pode estar mais longe do espírito do Cristianismo do que a permissão de massacres, lutas e ações semelhantes. Isso aconteceu no mês de março durante a Quaresma, no quarto ano do episcopado de Cirilo, sob o décimo consulado de Honório, e o sexto de Teodósio.”
Outras fontes incluem João Malalas (um cronista bizantino de Antioquia, c. 491-578) e Filostórgio (um assim chamado historiador da Igreja Anomoeana ¹, 368-c. 439). 
 
Páscoa e astronomia alexandrinense
 
De acordo com a fórmula moderna, a Páscoa cai no primeiro domingo após a primeira lua cheia vernal, onde “vernal” significa “em ou após o equinócio vernal”. No entanto, não se sabe quando essa definição foi adotada — tudo o que temos acessível são tabelas de calendário do século IV e V. As Páscoas romanas foram calculadas seguindo um ciclo de 84 anos (Mosshammer 2008), e a Páscoa Alexandrinense seguiu um calendário cíclico simples de 19 anos (Neugebauer 1979, Belenkiy 2002). Havia uma complicação adicional na Igreja Romana: se a lua cheia caísse em um sábado, a Páscoa não poderia ser celebrada até uma semana depois. As tabelas mostram que, nos séculos IV e V, as Igrejas Romana e Alexandrinense permitiam duas datas bastante diferentes para a primeira lua cheia da Páscoa: 16 de março e 21 de março, respectivamente. 
 
A razão para duas datas nunca foi claramente declarada; parece serem simples artefatos dos ciclos do calendário que cada Igreja seguiu: 84 anos (Romana) e 19 anos (Alexandrinense). Sabe-se, no entanto, que a Igreja Romana queria ter a Páscoa antes de 21 de abril, dia da fundação de Roma. Isso explica a insistência de Roma nas primeiras datas para a lua cheia da Páscoa, embora Roma tenha sido diligente em ter a Páscoa não antes de 21 de março. Por outro lado, parece que a Igreja Alexandrinense queria que as luas cheias da Páscoa caíssem após o equinócio vernal. Eusébio de Cesareia (c. 263-339) na Historia Ecclesiastica (7.20) diz que Dionísio, patriarca de Alexandria em meados do século III, usou uma regra de que o Domingo de Páscoa não poderia ocorrer antes do equinócio. Eusébio (HE 7.32.14-19) também diz que a regra do equinócio foi reformulada por Anatólio de Laodiceia em fins do século III para indicar que uma lua cheia de Páscoa não deve cair antes do equinócio. Entretanto, em caso afirmativo, o cálculo romano seguia a primeira regra, enquanto o alexandrinense usava a segunda. 
 
A Igreja Alexandrinense foi considerada especialista na data da Páscoa pelo Concílio de Niceia em 325, talvez porque tivesse um conhecimento prático da Sintaxe de Ptolomeu (mais conhecida pelo seu nome árabe Almagest) e da precessão dos equinócios. De fato, na carta ao imperador Marciano sobre outra Páscoa problemática, a de 455, o Papa Leão Magno escreveu que “os Santos Padres, a fim de eliminar qualquer ocasião para erro, delegaram todo o cuidado ao bispo alexandrinense, pois havia entre os egípcios uma ciência antiga para o cálculo” (Krusch 1880, Mosshammer 2008). 
 
Parece que ambas as Igrejas mantiveram 21/22 de março como um limite. Deixe-me mostrar como um seguidor de Ptolomeu do século IV pode ter chegado àquelas datas para um equinócio vernal: Ptolomeu fixou o equinócio vernal em 140 d.C. em 22 de março 13h AT (AT = hora local alexandrinense). Em 325, a Igreja Alexandrinense, revisando os fundamentos do calendário, deveria ter adiantado o tempo de Ptolomeu para os equinócios vernais em cerca de 14,8 horas, seguindo a afirmação de Ptolomeu de que os equinócios sofrem a queda de um dia no calendário juliano em 300 anos e, portanto, conseguindo a extensão entre 21 de março às 22h AT (nos anos bissextos) e 22 de março às 16h AT (nos anos pré-bissextos). 
 
Astronomia no século V d.C.
 
Encontrar o verdadeiro equinócio vernal poderia ter sido um problema delicado nos séculos IV e V, pois a Igreja Cristã suspeitava que a arte da astronomia era praticada em conjunto com o paganismo. Portanto, confiou-se nos dados de Ptolomeu ​​por muitos anos. O único astrônomo digno de nota naquela época foi Théon de Alexandria, pai de Hipátia, que é conhecido por ter observado um eclipse solar e lunar em 364 (Delambre 1817, Rome 1950). 
 
Théon, ao que parece, não era um astrônomo prático; acrescentou um comentário à Sintaxe e às Tabelas Fáceis (Prócheiroi Kanónes) de Ptolomeu, sem qualquer revisão de seus parâmetros — sinalizando sua aprovação da posição dos equinócios e da taxa de precessão de Ptolomeu. Ainda assim, no comentário ao Tabelas Fáceis, Théon menciona uma teoria da “trepidação dos equinócios” que sugere que os equinócios fazem um movimento curto de vai-e-vem em vez de uma mudança constante lenta (Delambre 1817). Qualquer que seja o valor da teoria (uma espécie de fuga teórica desse beco sem saída astronômico), ela demonstra a infelicidade do final do século IV com Ptolomeu, particularmente com a velocidade da precessão. Um observador procurando os equinócios na virada do século V não poderia deixar de notar um problema com a taxa de sucessão de Ptolomeu. 
 
Os equinócios caíram no calendário juliano mais de duas vezes mais rápido do que Ptolomeu havia postulado: movendo-se um dia em 129 anos, em vez de um dia em 300 anos de Ptolomeu. Como o próprio Ptolomeu fixou o equinócio vernal no ano 140 em 20,5 horas mais tarde do que deveria (21 de março 16:23 AT), o verdadeiro equinócio nos anos 410s caiu mais de dois dias antes do que as tabelas de Ptolomeu sugeriam. As efemérides modernas colocam o equinócio em 20 de março às 07:14 AT em 415 e 19 de março às 13:04 AT em 416. Mesmo descartando um terço de um dia para precisão na observação dos equinócios pelos antigos astrônomos gregos (Newton 1977), quaisquer observadores teriam discordado daqueles que calcularam as posições dos equinócios a partir da Sintaxe por cerca de dois dias. Se essa discrepância fosse conhecida, as verdadeiras datas dos equinócios poderiam possivelmente minar a autoridade alexandrina sobre o cálculo da Páscoa, certamente nos anos em que a lua cheia da Páscoa Romana foi definida em 19 ou 20 de março. Mas poderia um observador da época definir os equinócios? 
 
Havia duas maneiras bastante diferentes para um observador da época de Hipátia encontrar os equinócios. A primeira era seguir o método de Ptolomeu no Livro I de Sintaxe, erigindo um anel meridiano de metal relativamente grande ou um quadrante, subdividido em graus e, além disso, em tantas partes quantas possível, e observando as passagens do sol ao meio-dia por vários dias consecutivos em março. O equinócio vernal cai no dia em que a distância zenital do sol é igual à latitude. A latitude de Alexandria, 30°58, era bem conhecida por Ptolomeu e astrônomos depois dele. Como as observações são realizadas apenas ao meio-dia, para encontrar a hora exata do equinócio era preciso interpolar entre os dois pontos de passagem. 
 
Esta opção estava disponível para Théon e Hipátia? O anel ou o quadrante tinham que ser estabelecidos fora de casa, onde ficariam expostos aos olhos dos outros. Como consequência, os instrumentos e o procedimento de observação do céu teriam sido visíveis, e suspeitos aos olhos dos zelotes cristãos, o que poderia ser perigoso para um observador. Este parece um cenário improvável na época de Hipátia, quando os Cristãos eram a força dominante em Alexandria. 
 
Existe, contudo, um segundo procedimento mais simples para encontrar o dia do equinócio — através da observação dos horários do nascer e do por do sol todos os dias. No dia em que esses eventos são separados por 12 horas (mais ou menos um minuto ou dois), o tempo diurno seria igual ao noturno, conforme exigido pela própria definição do equinócio. Ter um bom relógio de areia ou de água em casa não seria tão suspeito e bastaria para encontrar a data do equinócio, desde que o observador soubesse as definições astronômicas básicas. Se Hipátia tivesse observado os nasceres do sol (para a primeira aparição do disco) e os pores do sol (a última aparição do disco), ela teria obtido os dados mostrados na Tabela 1. Como astrônoma competente, Hipátia poderia então ter subtraído o tempo necessário para o sol cair metade de seu próprio disco. O disco do sol tem 32' de diâmetro. Como o sol cobre 360° a cada 24 horas e, por isso, 1° por 4 minutos, o tempo equivale a um minuto e quatro segundos em cada extremidade. Isso teria chamado sua atenção para 17 de março, onde a duração do dia era 12h02 em 415 ou 12h03 em 416 e que, depois de subtrair os dois minutos, teria estado perto de 12h. Este fato está no cerne da definição de “equinócio”. Ela facilmente poderia ter convencido qualquer pessoa com bom senso de que 17 de março era a data do equinócio para anos não bissextos (como 415, 417), enquanto em anos bissextos (como 416) poderia ter caído, até a 16 de março. 
 
 Tabela 1
Duração do dia em 415 d.C. e 416 d.C. em 15-21 de março

 
Mas há outro fenômeno que afetaria a data do equinócio para um observador do século V, como Hipátia: a refração atmosférica, que sempre leva a um prolongamento do verdadeiro tempo diurno em vários minutos em ambos os lados, ao nascer e ao por do sol. A curvatura dos raios de luz é insignificante para observar o sol no alto do céu, mas chega a 33' no horizonte (calculado para Alexandria, onde a temperatura em meados de março é de 20°C e a pressão atmosférica é de 1 atmosfera; Meeus 1991). O sol precisa de 2,25 minutos para cruzar este arco, em ambos os lados, totalizando 4,5 minutos. A Sintaxe silencia sobre a refração atmosférica, com exceção de uma menção dúbia no Livro IX (Toomer 1998). É verdade que Ptolomeu mencionou esse efeito para observar as estrelas em sua Óptica, e Cleomedes sabia que o sol ainda deve ser visível abaixo do horizonte (Mahan 1962, Ross 2000), mas não temos indícios de que Hipácia estivesse familiarizada com Óptica de Ptolomeu e os Movimentos Circulares dos Corpos Celestes de Cleomedes. Ninguém que escreve sobre Hipátia menciona o nome de Cleomedes. Até mesmo não está claro quando e onde ele viveu (Neugebauer 1941). 
 
Se Hipátia tivesse ciência da refração atmosférica, certamente teria procurado o equinócio nas datas em que o tempo diurno durava 12h06 ou 12h07: 19 ou 20 de março. 
 
Théon e Hipátia 
 
Hipátia era uma astrônoma prática competente, capaz de trabalhar com um anel ou um quadrante? Não sabemos. Estava familiarizada com o problema da precessão dos equinócios? A resposta “sim” vem do fato de que ela colaborou com seu pai Théon no comentário a Sintaxe, especialmente o Livro III, que trata do movimento do sol (Cameron 1990). Portanto, a ideia dos equinócios se movendo pelo calendário juliano não teria sido uma pedra de tropeço para ela. Tal base teórica é mais do que suficiente para cumprir o segundo cenário acima — encontrar o dia do equinócio com um relógio de água ou de areia. 
 
Provar a historicidade do primeiro cenário — observações com um anel meridiano ou quadrante — é muito mais difícil. Sabemos que Théon fez observações dos eclipses solar e lunar em 364. Se ele tivesse tentado construir o anel e observar a hora dos equinócios, armado com a Sintaxe, certamente encontraria a hora correta em metade de um dia. Embora não tenhamos conhecimento de tais observações, e o comentário de Théon sobre a Sintaxe, bem como sua edição das Tabelas Fáceis de Ptolomeu, não trazem nenhuma marca delas, elas seriam extensões naturais das atividades astronômicas de Théon. Se ele tivesse continuado seu trabalho dessa maneira, sem dúvida Hipátia estaria ciente de suas descobertas. Então ela certamente teria chegado às datas corretas, 19 de março para 416 e 417 ou 20 de março para 415. E porque este cenário requer a observação do Sol no zênite, a refração atmosférica não teria nenhum papel. Mas, novamente, não há evidências de que ela tenha feito isso. 
 
Meu palpite é que Hipátia observou a hora do nascer e do por do sol em 415 e 416, usando um relógio muito bom, e se convenceu — e o prefeito, Orestes — de que o verdadeiro equinócio vernal caiu em 16 ou 17 de março, muito longe da estabelecida data de 21 de março. Este fato, combinado com a definição alexandrina de Páscoa, permitiria que a primeira lua cheia vernal caísse entre 17 de março e 20 de março, permitindo uma Páscoa antecipada em 417. Aceitando o equinócio de 17 de março como o verdadeiro, a Páscoa de 417 em Alexandria deveria ter sido celebrada em 18 de março, o que teria sido não apenas anterior à data romana, 25 de março, mas até antes do equinócio vernal — uma completa humilhação para a igreja alexandrinense! O relatório do Prefeito sobre o assunto certamente seria importante para o Imperador e poderia trazer consequências imprevisíveis para o Império como um todo; de fato, a hegemonia alexandrina no calendário pascal poderia ter sido solapada ou mesmo extinta.
 
O problema do equinócio às claras
 
O problema eclodiu em 417 ou imediatamente antes, quando Roma pretendia celebrar a Páscoa em 25 de março, mas Alexandria se preparou para observá-la em 22 de abril. Este evento — mesmo a sua expectativa — deve ter causado muita turbulência psicológica e política, pois mesmo 30-40 anos depois a próxima geração de clérigos cristãos ainda falava dele com amargura, como se pode ver na carta do Bispo Protério ao Papa Leão (abaixo). 
 
Supondo que Hipátia tenha sido assassinada porque foi seu conselho que levou a essa diferença entre Roma e Alexandria sobre a data da Páscoa, resta ainda a pergunta: quando aconteceu o assassinato? Meu argumento é a favor de 416. Cirilo certamente continuou a tradição de seu tio Teófilo (com origem em Santo Atanásio no século IV) de emitir cartas pascais festivas anuais que indicavam a data da Páscoa para o ano seguinte (Mosshammer 2008). As cartas eram despachadas para todo o Império no outono, para serem lidas na Epifania (6 de janeiro), mas provavelmente foram escritas antes, embora a data exata tenha sido decidida provavelmente por volta da Páscoa anterior. Aconteceu que, em 416, vendo a oposição de Orestes à data alexandrina da próxima Páscoa (de 417), e temendo que o mundo cristão se dividisse na celebração da Páscoa, os fanáticos cristãos decidiram resolver o problema assassinando a pessoa que era percebida como a principal causa do problema? O ano 415 parece muito distante de 417 para inflamar tal paixão.
 
Sócrates diz que o assassinato aconteceu em março, durante a Quaresma, em um lugar chamado Cinaron. A Páscoa em 416 foi em 2 de abril. A Quaresma em Alexandria deve ter terminado em 24 de março, a última sexta-feira antes do Domingo de Ramos. Se Hipátia convencesse Orestes de que 21 de março não era o equinócio, ela poderia ter continuado suas observações até 21 de março inclusive. Sugiro, portanto, que 21 de março seja o dia mais provável para seu assassinato. Cinaron poderia ter sido o local onde Hipátia realizou suas observações e, portanto, escolhido pelos fanáticos de Cirilo como o local de sua disposição final. 
 
Aliás, João de Nikiu fornece um detalhe curioso: 
“E depois disso uma multidão de crentes em Deus se levantou sob a direção de Pedro, o magistrado, e eles continuaram a procurar a mulher pagã que havia enganado o povo da cidade e o prefeito com seus encantamentos. E quando souberam o lugar onde ela estava, foram até ela e a encontraram sentada em uma cadeira (alta)...” 
Essa referência a uma cadeira alta pode sugerir que Hipátia estava envolvida em observações astronômicas? Parece uma interpretação possível. 
 
Cirilo tornou-se bispo em outubro de 412 e tinha uma ameaça potencial a enfrentar em 414. A lua cheia da Páscoa Romana ocorreu em 20 de março (sexta-feira), e Roma celebrou a Páscoa em 22 de março (Mosshammer 2008). Se Cirilo usou as tabelas (Neugebauer 1979), então a lua cheia da Páscoa Alexandrinense foi em 21 de março (sábado) e Alexandria também poderia ter comemorado a Páscoa em 22 de março. Isso poderia ter sido realmente um feliz acidente — 20 de março era um dia proibido para a lua cheia de Páscoa no calendário alexandrinense, para que os alexandrinenses pudessem reclamar sobre o cálculo romano — embora provavelmente estivessem satisfeitos com o resultado. 
 
Ainda assim, tal evento poderia ter soado alarmes na sociedade alexandrinense, levando Hipátia a investigar a causa do problema. É provável que o tenha feito por iniciativa do prefeito da cidade — daí a observação de que “ela tinha conversas frequentes com Orestes”. Embora as Páscoas nos anos 415 (11 de abril) e 416 (2 de abril) estivessem longe do equinócio e não estivessem sujeitas a qualquer controvérsia, suas investigações e um relatório ao prefeito em 415 poderiam ter levado a mais alarme na cidade, e suas conclusões em 416 poderiam ter sido a gota d'água. 
 
Motins religiosos em Alexandria c. 417 d.C.
 
A fonte mais importante (se não a única) sobre o confronto cristão-judaico de 417 em Alexandria, novamente, é Sócrates (cap. 13). Ele não dá tempo preciso, mas a ordem de sua narração parece colocar o primeiro motim em algum momento entre a ascensão de Cirilo a bispo (412) e o assassinato de Hipátia. 
 
Existe uma conexão astronômica entre as datas da Páscoa e do Pêssach. ² A Páscoa deveria cair na primeira lua cheia da primavera; a lua cheia da Páscoa é um análogo cristão direto. Portanto, a violência cristão-judaica em Alexandria na época do assassinato de Hipátia poderia ter a mesma causa: em 417, a Páscoa Judaica cairia em 17 de março, de acordo com a lua cheia da Páscoa Romana. 
 
Ao ler Sócrates, Bright (1860) chegou a resumir a situação da seguinte forma: “Se não houvesse ataque às sinagogas, sem dúvida não haveria nenhum assassinato de Hipátia”. Embora isso pareça apenas um palpite, vamos desenvolver a ideia. Primeiro, argumento que a Igreja Romana e os judeus fixaram a lua cheia e a Páscoa na mesma data, 17 de março. Na minha opinião, essa coincidência com as datas romanas poderia ter sido entendida tanto como real quanto infeliz pelo clero alexandrinense. Esta poderia ter sido a verdadeira razão da violência contra os judeus alexandrinenses. 
 
Em 417, os judeus alexandrinenses celebraram seu Pêssach em 17 de março, ou pelo menos pretendiam celebrá-lo nessa data, de acordo com uma evidência da data de realização de uma Ketubah (contrato de casamento) de outra cidade egípcia, Antinoópolis (Stern 2001). Uma carta de Paschasinus, um bispo da cidade Lilybæum, na Sicília, ao Papa Leão Magno, escrita na véspera da controversa Páscoa de 444, menciona a Páscoa de 417: “No 11º consulado de Honório augusto e no segundo de Constâncio, para evitar ter a Páscoa em 22 de abril, eles [romanos] celebraram-na em 25 de março.” O 11º consulado de Honório augusto e o segundo de Constâncio foi em 417. Para a Páscoa romana cair em 25 de março com Luna XXII (Krusch 1880, Mosshammer 2008) significa que a lua cheia da Páscoa Romana teve que cair em 17 de março. Paschasinus diz ainda que os alexandrinenses ainda a celebravam em abril e, além disso, conta uma história milagrosa que confirmou 22 de abril como o dia correto para a Páscoa. 
 
Alguns anos depois, essa polêmica repercutia em uma carta do bispo alexandrinense Proterius, às vésperas de outra controversa Páscoa, em 455 (Krusch 1880). A passagem a seguir é a mais notável: 
“Mas alguns, ignorantes da sutileza do cálculo, foram induzidos a erro pelas mentiras judaicas, isto é, a pensar que celebramos no segundo mês quando estendemos a Páscoa tão longe... Os judeus são tão ignorantes da Páscoa quanto de Deus. Eles muitas vezes retrocedem do primeiro mês e observam a Páscoa no décimo segundo.” (Krusch 1880, Jones 1943). 
A frase “alguns ignorantes da sutileza do cálculo” nesse contexto poderia se referir apenas aos romanos, ou melhor, ao próprio Papa. O problema que Protério identifica com as “mentiras judaicas” é o de celebrar a Páscoa no segundo mês e não no primeiro, ou seja, o equinócio alexandrinense é deslocado para que a Páscoa seja celebrada tarde demais no ano. 
 
As palavras escolhidas por Proterius revelam raiva e uma ameaça velada. Tal raiva sugere algum tipo de problema de longo prazo, talvez porque essa correlação entre os calendários romano e judaico em várias ocasiões tenha provocado uma suspeita arraigada entre o clero alexandrinense no século V. Se assim for, a Igreja Alexandrinense, e provavelmente o bispo Cirilo, poderia ter percebido uma conspiração por trás da posição de Hipátia — Orestes, Roma e os judeus alexandrinenses, sobre essas datas. Como a Igreja alexandrinense não era suficientemente poderosa para prejudicar Roma diretamente, ela provocou ataques às duas outras partes e ao prefeito, um representante do Império em geral.
 
Conclusão 
 
Apresentei uma reconstrução original do que poderia ter acontecido em Alexandria por volta de 417. Desconhecendo a refração atmosférica, Hipátia poderia ter calculado mal o tempo do equinócio vernal, colocando-o pelo menos dois dias antes e pelo menos quatro dias mais cedo do que a data calculada pela Igreja Alexandrinense. Sua lógica aparentemente simples ameaçava a supremacia da Igreja Alexandrinense sobre a data da Páscoa, porque levava à mesma data do cálculo romano. Como consequência, os fanáticos cristãos alexandrinenses seguidores do bispo Cirilo a assassinaram. Suspeitando que a comunidade judaica estivesse conspirando com Roma sobre a escolha da lua cheia da Páscoa em 417, a multidão cristã atacou também a comunidade judaica alexandrinense. 
 
Crédito deve ser dado a Hipátia por ter ido além dos limites sufocantes da Sintaxe de Ptolomeu. Mas ela certamente exagerou sua autoridade em astronomia observacional. Embora a rivalidade do calendário na Antiguidade sempre levasse aos confrontos mais violentos, o status da Sintaxe de Ptolomeu como autoridade astronômica em Alexandria contribuiu muito para esse efeito. 
 
As conjeturas descritas aqui oferecem questões sobre o estado da astronomia e a qualidade dos relógios na Alexandria do século V. Uma nota histórica também é relevante. O ano de 2010 está separado de 414 por 1.596 anos, exatamente três ciclos de 532 anos (dionisíacos). Aliás, também são oitenta e quatro ciclos de 19 anos (alexandrinenses) e dezenove ciclos de 84 anos (romanos). Portanto, todos os eventos de calendário relacionados à Páscoa em 416, incluindo Quaresma, motim, assassinato e assim por diante cairão nos mesmos dias da semana e datas em 2012. Esta é a primeira ocasião desse tipo desde 416. Portanto, será justo comemorar a morte de Hipátia no ano 2012, em 21 de março, de acordo com o calendário juliano, ou em 22 de março, de acordo com o calendário gregoriano (o calendário gregoriano proléptico estava apenas um dia atrás do juliano no século V).
 
BELENKIY, Ari: An astronomical murder?, Astronomy & Geophysics, Volume 51, Edição 2, abril 2010, pp. 2.9–2.13. Publicado em 01/04/2010.  ³

 
Rachel Weisz como Hipátia e Michael Lonsdale como seu pai Théon no filme Ágora da Sony Pictures de 2009. Situada em 391 d.C. no Egito romano, a história se concentra em um escravo que se volta para a maré crescente do Cristianismo na esperança de buscar a liberdade, enquanto também se apaixona por sua mestra, a famosa professora de filosofia e ateia Hipátia de Alexandria. (Newmarket Films)

 
Notas explicativas do tradutor/gerente do Blog do Braga 
 
¹ Membro da extrema divisão dos Arianos do século IV d.C. que declaravam que, por ter o filho de Deus sido criado, era diferente de Deus em essência. Tal doutrina foi pregada por Ário (250-336 d.C.), padre cristão de Alexandria, que afirmava ser Cristo a essência intermediária entre a divindade e a humanidade, negando-lhe o caráter divino e ainda desacreditando a Santíssima Trindade.  O termo "anomoean ou anomoian" é oriundo do adjetivo grego "anomoios", significando "diferente".
 
² Segundo o Macmillan Dictionary Online:
Páscoa (ou Easter em inglês): um domingo em março ou abril quando cristãos celebram o tempo em que Jesus Cristo morreu e ressuscitou de acordo com a Bíblia;
Pêssach (ou Passover em inglês): um festival religioso, também chamado Festa da Libertação, com duração de sete ou oito dias em março ou abril (dentro de nissan, primeiro mês do calendário judaico), durante o qual os judeus relembram o tempo que marca a saída do povo hebreu do Egito sob a liderança de Moisés. Pêssach começa com uma refeição especial.
A Páscoa judaica raramente coincide com a Páscoa cristã.
 
³ Posteriormente (talvez em 2016), Ari Belenkiy tem feito uma advertência a seus leitores, no site "History of Women Philosophers and Scientists", retificando sua posição exposta neste artigo. Em suas palavras: 
“No artigo de 2010 (Astronomy & Geophysics, 51 (2), 9-13), eu sugeri que o assassinato da filósofa alexandrinense Hipátia por um grupo de fanáticos do bispo Cirilo foi o resultado do envolvimento dela no conflito entre as Igrejas Romana e Alexandrinense sobre a data da Páscoa no ano de 417 d.C. O assassinato teria sido cometido em março de 416 depois de ela ter realizado observações astronômicas controversas que apoiavam a data romana em desfavor da alexandrinense. 
Esta versão enfrenta problemas graves de vários lados. Portanto, no artigo de 2016 (Vigiliae Christianae 70 (4), 373-400), eu sugiro outro cenário, onde uma posição pouco ortodoxa da Igreja Novaciana sobre a determinação da época da Páscoa e a celebração da Páscoa antecipada em 414 desencadeou a cadeia de eventos que levou ao assassinato de Hipátia. Esse cenário situa o assassinato em março de 415 e oferece um prazo único para todos os eventos relacionados. Aqui Hipátia exibe habilidades de astronomia que justificam sua reputação histórica subsequente. Também lancei luz sobre as circunstâncias imediatas de seu assassinato, sugerindo especificamente que ele aconteceu no dia em que ela estava fazendo as observações equinociais. 
Finalmente, propus instituir um dia memorial para Hipátia no dia do equinócio vernal: Link: https://www.change.org/p/canada-s-parliament-commemorating-the-first-female-astronomer-hypatia-of-alexandria 
 
Agradecimentos
 
Obrigado a Reinhold Bien (Heidelberg), Joan Griffith (Annapolis, MD), Axel Harvey (Montreal), Larry Horwitz (Tel-Aviv), Jan Kalivoda (Praga), Yaqov Loewinger (Tel-Aviv), Philipp Nothaft (Munique), Tom Peters (Amsterdã), Giancarlo Truffa (Milão), Eduardo Vila-Echagüe (Santiago, Chile) e Yaakov Zik (Haifa).
 
O gerente do Blog do Braga agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste ensaio.
 
Referências 
 
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Berggren J L., Metascience, 2009, vol. 18 (pp. 93-97)
 
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Campbell P J. & Grinstein L S., Women of Mathematics: a Bio-Bibliographic Sourcebook, 1987
 
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Wolf S., Hypatia, die Philosophin von Alexandrien, 1879 pg. 38

domingo, 16 de outubro de 2022

HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte 3

Por Christian Lacombrade
Traduzido do francês por Francisco José dos Santos Braga

"Morte da filósofa Hipátia" (1866), ilustração por Louis Figuier in "Vidas de sábios ilustres, desde a antiguidade até o século XIX", representando o que o autor imaginava ter sido o massacre de Hipátia pela multidão religiosa em 415 d.C.

 

 
 
I. INTRODUÇÃO DO TRADUTOR/GERENTE DO BLOG
 
 
Lacombrade, em seu texto intitulado "Ao redor do assassinato de Hipátia", constata a existência de duas fontes primárias básicas para estudar o assassinato da professora, filósofa neoplatônica, matemática e astrônoma Hipátia: a primeira constitui a tradição neoplatônica de Atenas, aqui representada pelo texto do escolarca Damáscio (c. 458-após 538 d.C.); a segunda recai sobre o texto do historiador Sócrates, o Escolástico (c. 380-após 439 d.C.), por ser o seu testemunho o tronco donde saíram vários ramos (Nicéforo, João Malalas e Hesíquio de Mileto). Descarta o relato de outro contemporâneo, Filostórgio da Capadócia, por considerá-lo um discurso vazio. Além de estabelecer uma diferença clara entre os dois relatos com base em  vários documentos que utiliza, o autor escolhe o relato de Sócrates Escolástico, por ser "contemporâneo dos acontecimentos que narra e dos quais nos oferece a versão mais explícita". Não obstante, não hesita em considerar o assassinato de Hipátia "um desses debates irritantes que a história se recusa a concluir".
 
Embora não tenhamos amplas informações sobre a biografia de Hipátia, o fato de possuirmos três capítulos da História Eclesiástica de Sócrates Escolástico dá para constatarmos a historicidade presente no relato deste, bem como sua lógica interna sadia, em comparação com a pobreza do relato do escolarca Damáscio. Lacombrade toma textos e interpretações sobre o relato de um e de outro para comparações e defesa de seu ponto de vista. 
 
O autor, tendo exercido sua preferência pelo texto de Sócrates Escolástico, convida o leitor para prestar atenção ao texto imparcial e de historicidade comprovada desse autor que, na opinião de Lacombrade, descarta o fanatismo religioso como causa da morte de Hipátia ou sua defesa do helenismo ou de valores pagãos, preferindo interpretá-la como um conflito de interesses temporais ou uma disputa de poder entre o patriarca e o prefeito augusto de Alexandria. Embora ao patriarca Cirilo não possa ser atribuída a morte de Hipátia, perpetrada por uma turba de fanáticos cristãos em 415 d.C., entretanto a Igreja saiu arranhada do caso em questão. O duelo era tão desigual que era impossível ao prefeito Orestes exercer seu mandato sem se submeter aos caprichos do patriarca. O erro de Hipátia, como sugere Sócrates, consistiu sem dúvida em encorajar o prefeito em seu desejo de independência, fato que levou o nome da filósofa ao centro do drama. 
 
Por fim, Lacombrade salienta que as partes em disputa, que determinaram a morte de Hipátia, não foram cristãos X "helenos", mas sim cristãos X judeus. Sugere que teriam sido a pura "filantropia" que animava Hipátia em relação aos judeus e a influência que tinha sobre o prefeito Orestes os fatores determinantes da morte cruenta de uma provável "judia helenizada". Ao mesmo tempo, o autor reconhece que "nada sabemos sobre a genealogia da filha de Théon", especialmente quanto à sua ascendência materna. Termina seu texto com a sugestão de que devam os pesquisadores históricos comprovar esta sua hipótese. 
 
 
II. TEXTO: Ao redor do assassinato de Hipátia 
 
Por Christian Lacombrade 
 
É um desses debates irritantes que a história se recusa a concluir. As causas do drama bárbaro, que em março de 415 d.C. ensanguentou a capital do Egito, ainda estão longe de serem elucidadas. Não que o trágico destino de Hipátia, imolada por uma população fanática, tenha deixado indiferentes tanto a opinião do século V quanto a posteridade mais distante; mas precisamente porque ambas evocaram sua memória com muita paixão. Escritores e poetas criaram, ao longo dos tempos, em torno dela outra lenda dourada, e se verificou no início deste século XX que a memória da filósofa alexandrinense constituía de agora em diante um tema da literatura europeia ¹
É certo que, alguns anos antes, dois estudos rigorosamente conduzidos fizeram uma análise metódica dos textos ², mas ainda levavam a uma confissão de incerteza, no que se refere à responsabilidade pelo assassinato ³. Nesse sentido, a ciência eclesiástica se engaja: ela alega com convicção a inocência de São Cirilo, mas se recusa a se aventurar além
Além disso, se houver alguma presunção em reivindicar hoje o fim deste debate abandonado, ainda restam poucas chances de que uma análise objetiva faça a pesquisa avançar. 
As pistas que obtivemos vieram essencialmente de duas fontes. Uma, que em breve se esgotará, é a tradição neoplatônica de Atenas, fixada no primeiro terço do século VI pelo último estudioso, Damáscio, contemporâneo de Justiniano. A outra, embora aparentemente ramificada, — inclui, recuando no tempo, os testemunhos de Nicéforo Calisto (século XV) , de João Malalas (século VIII) e de Hesíquio de Mileto (século VI) — procede de uma origem comum, o historiador Sócrates, o Escolástico *, contemporâneo dos acontecimentos que narra e dos quais nos oferece a versão mais explícita . De fato, o relato de outro contemporâneo, Filostórgio da Capadócia, estando reduzido neste caso a um processo verbal vazio , reteremos desta segunda série de textos apenas o relato de Sócrates. A partir dessa escolha preliminar, devidamente justificada, a pesquisa não tem nada a perder em precisão e muito a ganhar em clareza. 
 

 
O relato de Damáscio, porta-voz da Escola de Atenas, cabe nas seguintes linhas ¹⁰
O bispo... da seita oposta, Cirilo, passando diante da casa de Hipátia, notou uma grande multidão diante da porta, uma movimentação de homens e de cavalos, uns chegando, outros indo embora, alguns ainda permanecendo no local. Perguntou o que significava essa reunião de pessoas e a razão de todo o barulho ao redor da casa. Então ficou sabendo pelos seguidores dela que era a hora em que a filósofa Hipátia era saudada e que esta casa era dela. A notícia deu-lhe um golpe tão forte no coração que ele imediatamente concebeu o plano de mandar matá-la e da maneira mais abominável. De fato, quando ela saiu, como de costume, um bando de indivíduos, verdadeiras feras, se jogaram sobre ela. Esses verdadeiros bandidos, tão inacessíveis ao temor dos deuses quanto à indignada reprovação dos homens, massacraram a filósofa...
E enquanto ela ainda estava latejando fracamente, eles arrancaram-lhe os olhos...
Foi assim que eles infligiram a seu país essa mancha monstruosa e essa ignomínia. O imperador ficou indignado com isso [e ele teria sem dúvida punido severamente os culpados] se Edésio não tivesse se deixado subornar. Ele impediu a punição dos assassinos, mas a atraiu para sua pessoa e sua descendência, e seu descendente ¹¹ satisfez o apelo por justiça.
Comparado com esse relato, estilizado ao extremo, a narração em três capítulos do historiador Sócrates é, pelo contrário, densa. Também não se trata de traduzi-lo na íntegra aqui. Contentar-se-á em apresentar uma análise do mesmo, enfatizando, ao longo do caminho, as observações que interessam à nossa intenção. 
O caso começa no teatro, no dia de sábado. Ali, seriam publicados dois decretos, entre duas pantomimas. Um professor, chamado Hiérax, partidário caloroso de Cirilo, foi reconhecido ali pelos judeus e vaiado. Eles dizem: "É o espião, o devoto do patriarca." Consciente do fato, Orestes, prefeito augusto, que em princípio julgava insustentáveis ​​todas as pretensões políticas dos bispos (καΐ πρότερον μεν έμίσει τήν δυνάστείαν τῶν επίσκοπῶν), cede a seu partidarismo e, sem mais informações, abandona Hiérax ao carrasco. 
Constatando imediatamente o desafio, Cirilo convoca os ​​judeus notáveis e os ameaça com represálias. Estes persistem na controvérsia e, na noite que se segue, a igreja de Alexandre é tomada pelas chamas. Cabe aos cristãos se apressar em defender seus santuários, e eles lutam confusos até o raiar do dia. 
Mas eis que, quando amanheceu, o bispo reúne suas tropas. Elas invadem amplamente o bairro judeu, e saqueiam casas e sinagogas. Tomados pelo pânico, os habitantes feridos deixam a cidade para o exílio. (O historiador observa aqui que conheceu um desses refugiados em Constantinopla, o iatrosofista Adamâncio). Em Alexandria, por mais que prefeito e patriarca enviem seus respectivos relatórios ao tribunal, este os deixa sem resposta. 
Esse mutismo oficial faz pensar em Cirilo. Cedendo à pressão da opinião pública (τοΰτο γαρ δ λαός των 'Αλεξανδρέων εαυτov ποιείν κατηνάγκαζεν), ele propõe ao prefeito fazer as pazes. Outro passo inútil: Orestes, teimoso, foge, e com essa reconciliação fracassada, repercute perigosamente nos campos rivais a inimizade dos dois chefes ¹²
Então intervêm os monges da Nítria. Cerca de quinhentos em número, eles vêm de seu deserto, ferozmente determinados a derramar seu sangue pelo triunfo da Igreja. Durante uma reunião, o prefeito é atacado. Em vão ele enumera seus títulos de cristão e de batizado (έβόα Χριστιανός τε είναι και ύπό του Αττικού επισκόπου έν τη Κωνσταντίνου πολει βεβαπτισθαι): pedras são lançadas. Uma delas o acertou no rosto. Não há dúvida de que ele teria morrido na aventura, se os alexandrinos não tivessem corrido em seu auxílio. De novo se reproduz a lei do talião. Apreende-se um certo Ammonios, o autor do delito, que é torturado imediatamente. O patriarca, de fato, logo faz dele um mártir, que ele defende sob o nome de Thaumásios (o Admirável), mesmo que um pouco mais tarde esqueça seu mártir de ocasião, seguindo o conselho de seus fiéis que ainda conservaram seu sangue frio (οι σωφρονουντες) ¹³
Na calma enganosa que se segue, a tempestade paira. Os parabolanos ¹, devotados de corpo e alma a Cirilo **, não podem aceitar a persistente briga de seu líder com o prefeito. As calúnias vão no mesmo passo. Conforme Sócrates Escolástico: 
“(...) Como Hipátia tinha conversas bastante frequentes com Orestes, ela deu origem a essa calúnia entre as massas cristãs: ela era suspeita de se opor à reconciliação de Orestes e do bispo. Esses homens de cabeça quente formam um complô. Eram chefiados por um certo Pierre, leitor ¹. Vigiam o retorno da infeliz à sua casa e a arrancam de sua carruagem. 
Eles a arrastaram para a igreja do Cesareum e, depois de despi-la de suas roupas, mataram-na com cacos de cerâmica. O cadáver foi despedaçado, os restos foram reunidos na Praça do Cinaron e reduzidos a cinzas. Tudo isso rendeu críticas muito fortes a Cirilo e à Igreja de Alexandria (ου μικρον μῶμον); pois é uma coisa absolutamente inadmissível para os seguidores de Cristo esse assassinato, luta armada e outros excessos da mesma ordem. Esses eventos ocorreram no quarto ano do pontificado de Cirilo, durante o décimo consulado de Honório, sexto consulado de Teodósio, no mês de março, na época da Quaresma ¹⁶.” 
Tal é a versão de Sócrates, que bem merece ser lembrada nesta forma explícita, já que críticos geralmente bem informados não a levam em conta, retendo desde o início, com exclusão de todos os outros, o testemunho oposto de Damáscio ¹. No entanto, como veremos, a veracidade deste é altamente questionável. 
O escolarca ateniense, de fato, está separado por várias gerações dos acontecimentos que relata ¹⁸ e, por outro lado, como todo bom filósofo neoplatônico, orgulha-se de ignorar as contingências. Sócrates, ao contrário, nascido por volta de 360, pertence à geração de Hipátia e Cirilo; historiador de profissão, dotado de senso crítico, é experiente em métodos de pesquisa e aficionado por documentos de arquivo ¹⁹
O primeiro toma sua narrativa de relatos indiretos e sucessivos; o segundo é informado diretamente por testemunhas oculares, cujos nomes ele ocasionalmente exibe (20). 
Damáscio não é imparcial. Ele não quer e não pode ser. Ele pertence a uma seita perseguida, cujos adeptos — Olímpio, Hiérocles, Isidoro — pagam, desde então por mais de um século com prisão, tortura ou exílio por seu apego a uma causa condenada. Forçado em breve ao exílio junto ao rei da Pérsia Chosroés, ele também inscreverá seu nome no martirológio do paganismo ²¹
Sócrates, por outro lado, oferece sem grande mérito todas as garantias de objetividade. Ele não está de forma alguma envolvido nos fatos que ele narra. Recebendo, como notamos, suas informações de testemunhas oculares, este contemporâneo de Cirilo não hesitou, a partir de Constantinopla, onde escreveu sua história, em contar fatos aos correligionários dele. É porque esse cristão moderado repugna a todos os fanatismos: ele seguiu as lições de dois γραμματικοί pagãos, Helladius e Ammonius, que, por volta de 390, durante o caso do Serapeum, se refugiaram na Trácia ²², e ele, está ainda mais apto, atualmente, a se pronunciar sem preconceito sobre as duas facções opostas porque ele compartilha a fé religiosa dos partidários do arcebispo, enquanto professa um sincero apego aos valores culturais dos quais Hipátia é o símbolo ²³
Além disso, se nos aproximarmos do exame dos dois documentos, fica confirmado o estado de espírito que atribuímos aos seus autores. A despeito do academismo do estilo, a indignação vingadora de Damáscio transparece em todas as linhas: o filósofo descarta de sua prosa o abominável termo χριστιανοί, e não tem termos suficientemente violentos para estigmatizar a conduta dos assassinos ². Ao contrário, comedido aparece o relato de Sócrates, que projeta sobre o duplo aspecto do drama uma luz igual e pesa na mesma balança todas as responsabilidades. O prefeito, insinua ele, é culpado de preconceito e intransigência; mas o arcebispo, apesar de algumas auto-reflexões a respeito de si mesmo, não está isento dos mesmos erros, e, na sequência de seu chefe, a Igreja de Alexandria, cega pelo ódio, ignorou sua sublime missão ²
Daí os juízos de valor que de agora em diante se impõem. Como é fácil mostrar, a historicidade do relato de Damáscio é praticamente nula, tão pobre de detalhes é esse relato e, sobretudo, maculado de improbabilidades. É improvável, de fato, que, três anos após sua elevação ao patriarcado, Cirilo ainda não tivesse tido conhecimento da existência de Hipátia, então no auge de sua fama ². Igualmente inexplicável permanece em Damáscio o ódio veemente que o patriarca sente, a partir daquele momento, em relação à filósofa. Por outro lado, procurar-se-ia em vão, na versão ateniense, a mínima precisão de tempo e de lugar e, com exceção do nome de Cirilo, a mínima indicação de pessoa, o autor que englobe no mesmo ódio feroz todos os adversários do helenismo. 
Essas previsões e razões são fornecidas, ao contrário, na versão de Sócrates. Neste relato todos os personagens são apresentados, não só os protagonistas, Orestes, Cirilo, mas também os comparsas, Hiérax, Ammonios, Pierre. As circunstâncias de tempo e de lugar são exatamente anotadas — a ação se passa durante a Quaresma de 415 d.C., e um leitor contemporâneo poderia ter acompanhado, texto na mão, as etapas do suplício de Hipátia, a vítima. Quanto ao esquema da crise, encontra-se repetidamente reproduzido ao longo da crônica alexandrina dos séculos IV e V: na metrópole egípcia, onde as dissensões políticas sempre foram agravadas pelo antagonismo de raças e seitas, o representante do imperador , neste caso o prefeito, se esforça para restaurar a primazia do poder civil, pelo qual é o responsável, contra as usurpações do poder religioso, encarnado pelo patriarca, e vidas humanas são a moeda do jogo deles. 
 

 
Igualmente, agora é possível sondar com mais precisão o testemunho do historiador e, dentro deste quadro costumeiro, inferir as razões ocasionais que, no decorrer do duelo opondo Orestes a Cirilo, levaram Hipátia à sua perda. 
Sem dúvida haveria algum paradoxo em alegar que o fanatismo religioso não desempenhou um papel na fúria dos assassinos. Que a parcela desse fanatismo tenha sido, no entanto, exagerada, superestimada para as necessidades da propaganda neoplatônica, é este um dos aspectos pouco conhecidos do drama, para o qual Sócrates honestamente chama nossa atenção. Durante o conflito que, segundo ele, tinha oposto anteriormente o prefeito Orestes aos ferozes parabolanos, por mais que o prefeito enumerasse seus títulos de cristão e batizado ², sua profissão de fé não tinha desarmado os amotinados, prova evidente de que a fraternidade religiosa contava pouco aos olhos destes últimos, e que se tratava antes de tudo para os rebeldes reduzirem à misericórdia o depositário do poder laico, para restabelecer a todo custo a supremacia, já tradicional no Egito, do patriarca. Sobre esse ponto é fácil comparar os testemunhos do autor. Nada realmente indica que Hipátia tenha professado este helenismo militante que teria sido, como foi dito de bom grado, a causa direta de sua perda. Como, nessas condições, teria sido permitido à filósofa exercer seus ensinamentos sob o patriarcado do pontífice anterior, Teófilo, inimigo declarado do politeísmo, cujo proselitismo furioso não tinha jamais temperado nenhuma consideração pela humanidade? Todavia, longe de desaparecer durante esse período conturbado, Hipátia nunca deixou de ampliar seu crédito. Muito melhor: à vista de todos, o bispo Sinésio permaneceu seu fiel discípulo até o fim de sua vida, e também parece estabelecido que ela contou entre seus ouvintes aquele que a Igreja honra com o nome de São Isidoro de Pelúsio ²
De fato, se estivermos dispostos a ouvir nosso informante, o cerne dessa tenebrosa intriga é, como sugerimos acima, constituído por um conflito de interesses temporais muito mais do que por um duelo ideológico. No início do século V, os patriarcas de Alexandria atingiram o auge de seu poder ². Com o exemplo de Santo Atanásio e de Teófilo, Cirilo não permite nenhuma divisão. Ele declara ser o mestre soberano em casa. Só tolera o prefeito na medida em que este favoreça seus desígnios. Contra o prefeito, vindo de Constantinopla e para um mandato de duração limitada, o patriarca, filho do país, provido de enormes recursos materiais, beneficia-se da permanência, que faz dele, aos olhos das massas, "o sucessor dos antigos faraós ³". Este sentimento é ainda mais vívido sob o patriarcado de Cirilo, já que Schenoudi de Atripé acaba de fundar a igreja copta, e quando um espírito nacional começa a nascer em torno de uma igreja nacional" ³bis. Diante desse movimento de opinião, era singularmente inapropriado — como é compreensível — o prefeito Orestes querer exercer seu mandato sem se submeter aos caprichos do arcebispo. O erro de Hipátia, como sugere Sócrates, consistiu sem dúvida em encorajar o prefeito em seu desejo de independência. Nada, porém, a destinava, em princípio, a desempenhar os primeiros papéis nesse duelo cerrado. Foi o brilho de seu nome que, de uma intervenção episódica, se tornou o centro do drama, cuja verdadeira força motriz constituía uma briga por prestígio. A prova é que depois da morte dela, com grande espetáculo, a luta continuou no silêncio das chancelarias. Sobre o fundo real do debate, a corte de Constantinopla não incorreu em erro. Um ano depois desse pseudo-desfecho, ela emitiu seu parecer. Enquanto ela permitia que o assassinato da filósofa ficasse impune — como Damáscio nota amargamente —, a preocupação na alta camada social era devolver ao prefeito suas prerrogativas oficiais. Em 29 de setembro de 416, um edito limitava o número de parabolanos a quinhentos e previa sua progressiva secularização ³¹. Um segundo edito, publicado em 5 de outubro, interditava o patriarca de enviar daqui em diante ao imperador qualquer delegação cujos votos não tivessem, anteriormente, sido submetidos ao prefeito ³²
Como, então, foram estabelecidas as responsabilidades incorridas por Cirilo? Quanto ao assassinato de Hipátia, nenhuma acusação de premeditação pode ser validamente feita contra ele. Era impossível para o arcebispo prever a que excessos levaria o zelo dos auxiliares fanáticos e praticamente subtraídos de seu controle. Por outro lado, ele podia calcular facilmente, — toda consideração moral à parte, — que a morte da filósofa causaria infinitamente mais danos à Igreja do que lhe asseguraria vantagens. Podemos estar convencidos, além disso, de que, se a menor suspeita tivesse manchado sua conduta, o historiador Sócrates, muito pouco inclinado à benevolência para com ele, não teria deixado de coletá-la. 
Quanto ao misterioso Edésio, encarregado pelo imperador de prosseguir com o caso, e que, segundo o testemunho de Damáscio, teria se deixado subornar ³³, ninguém certamente poderia garantir sua integridade em um momento em que a venalidade da justiça era uma coisa tão comum. Ninguém poderia, por outro lado, acusá-lo formalmente de prevaricação. A repressão de um crime coletivo — acontecimentos recentes nos lembraram disso — é infinitamente delicada. Se, na ocorrência, o juiz instrutor julgou acabar com um ressentimento popular ao declarar incompetente o tribunal do prefeito ³, talvez tenha se equivocado; ele estava certo, por outro lado, ao evitar com sua decisão que a lei de retaliação fosse aplicada indefinidamente. Para isso, sem dúvida, bastou-lhe, senão arquivar o caso que teria revoltado a opinião pública, pelo menos estender aos assassinos por algum artifício processual as estipulações de uma lei recente ***: “Clericos non nisi apud episcopos accusari convenit ³.”
Resta, para esgotar o interesse dos nossos documentos, sublinhar sua coesão interna e explicar mais profundamente suas discordâncias: a lógica sadia observada por Sócrates e o ódio que vibra no relato de Damáscio. 
Em geral, considerou-se que o caso, no qual, para seu azar e para sua glória, Hipátia se viu envolvida, opondo os cristãos aos "helenos". Este ponto de vista, como sublinhei mais acima, dá uma visão distorcida das realidades: o conflito colocava em disputa menos crenças religiosas hostis do que prestígios rivais e interesses divergentes. 
Há mais. Tal interpretação não responde aos dados do problema. As partes em disputa não são — o testemunho de Sócrates não admite ambiguidade — os cristãos e os "helenos", mas os cristãos e os judeus, cujos interesses oprimidos foram proibidos pelos poderes oficiais. É então a pura "filantropia" que animava a nossa heroína, no momento em que, com toda a probabilidade, inspirou ao prefeito uma atitude intransigente em relação aos primeiros? Reconheçamos que, nesta ocasião, sua conduta conviria tanto e melhor do que a uma filósofa, a uma judia helenizada. 
É um fato estabelecido que no século V muitos judeus se tornaram seguidores do neoplatonismo. Tal foi o caso do matemático Domninos, colega de Proclos (410-485), que só poderia ter adquirido sua cultura científica em Alexandria, onde o próprio Proclos havia feito seus estudos ³. Igualmente tal foi o caso, entre outros, do escolarca ateniense Marinos, sucessor em título de Proclos ³
Objetar-se-á que tais conversões não dizem respeito apenas à Escola de Atenas e que nada sabemos sobre a genealogia da filha de Théon. É fácil responder que um argumento e silentio não prova nada, e que a história desta época não está interessada em verdades comuns, mas em mirabilia. Ora, o que poderia ser mais comum do que a presença de uma elite intelectual judaica em uma cidade, cuja população era de dois quintos de judeus ³, os quais, segundo uma tradição constante, haviam iniciado a tradução de sua Bíblia a partir do reinado de Ptolemeu II Filadelfo, e tinham conseguido acesso a empregos oficiais com Ptolemeu VII Physcon ³
Em todo caso, a hipótese lançaria nova luz sobre a estranha personalidade de Hipátia; explicaria melhor o fervor apaixonado, dedicado à sua memória pelos últimos escolarcas de Atenas; e certamente isso não é forçar os textos tal como explicar por essas ascendências, talvez maternas, o encanto singular atribuído por todos os seus contemporâneos à última herdeira de Plotino, como suas raras aptidões para as ciências especulativas. 
 
 
III. NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
¹  Cf. J.R. Asmus, Hypatia in Tradition und Dichtung, in Studien zur vergl. Litteraturgesch., VII, 1907, pp. 11 ss. 
 
²  R. Hoche, Hypatia die Tochter Theons, in Philologus, XV, 1860, pp. 435-474, e W.A. Meyer, Hypatia von Alexandria, ein Beitrag zur Geschichte des Neuplatonismus, Heidelberg, 1886.  
 
³  "Unerweislich", tal é o termo que emprega a esse propósito K. Praechter in R. E., 9, s.v. Hypatia, 248, para resumir as conclusões das monografias acima. 
 
Cf., entre outros autores, J. Faivre in Dic. d'hist. et de géo. ecclésiast. de Baudrillart, Paris, 1914, 2, s. v. Alexandrie, 324-325, e J. Mahé in Dic. de Théol. cath., 1938, 32, s. v. Cyrille, 2477. 
 
Hist. Eccles., XIV, 14-16. 
 
Chronogr., XIV. 
 
In Fragm. historic. Graec., IV, Ed. Müller-Didot, 1851, 176, fragm. 67.
 
* N.T.: Do século III ao VII d.C., o número de pessoas conhecidas como "escolásticas" é particularmente alto. Essas pessoas eram bem formadas em retórica e conhecimento jurídico. O termo não designava uma profissão específica; embora muitas vezes durante esse período um σχολαστικός reunisse as características de um jurista no sentido atual, podia o termo ser aplicado a consultor jurídico, professor de direito, juiz, notário, etc. Embora não estivesse diretamente relacionado com o sistema educativo como professor ou professor de retórica, ocasionalmente um σχολαστικός  poderia ter sido, em determinadas circunstâncias, professor particular de gramática (gramático, γραμματικός em grego).
 
Hist. Eccles., VII, 13-15. 
 
Hist. Eccles., VIII, 9. 
 
¹⁰ É preciso pesquisá-los no léxico de Souda, s.v. 'Yπατία (Cf. Sudae Lexikon, Ed. A. Adler, IV, 644). Foi P. Tannery quem por primeiro (Ann. de la Fac. de L. de Bordeaux, II, 1880, 197-200) detectou que a segunda parte do artigo em questão (a partir de Αϋτη έν 'Αλέξανδρεία segundo esse autor) era efetivamente a transcrição dum fragmento da Vita Isidori de Damáscio, cujo patriarca Photius (Bibl., cod. 242) nos conservou mais amplos extratos. Desde então, essa observação decisiva foi verificada e completada por J.R. Asmus em sua magistral reconstituição da Vita (Das Leben des Philosophen Isidoros... wiederhergestellt übersetzt und erklärt, Leipzig, 1911), cuja versão traduzimos aqui (Ibid., 33). 
 
¹¹ Γένος ... εκγονος. A alusão designa Valentiniano III, imperador do Ocidente, que morreu assassinado em 455. Valentiniano III era, na verdade, não o "descendente", mas o primo por aliança de Teodósio II que o narrador julga responsável pela impunidade assegurada aos assassinos de Hipátia. O termo εκγονος pode-se explicar, no entanto, por sua aproximação combinada com γένος, e pelo fato que Teodósio II morreu efetivamente cinco anos antes de Valentiniano III. Quanto a Edésio, cujo nome não está atestado em outra parte senão pela subscrição de uma carta de Isidoro de Peluso (Ep. V, 14), trata-se aparentemente dum alto funcionário, enviado de Constantinopla a Alexandria para inquérito; cf. Asmus, Das Leben..., 154. 
 
¹² Hist. Eccles. VII, 13 (Hussey, II, 358-59). 
 
¹³ Ibid., ibid., 14 (Hussey, ibid., 360). 
 
¹Lembremos que os membros desta corporação, prepostas ao serviço dos ritos fúnebres, constituíam na ocasião como os guarda-costas dos patriarcas do Egito. 
 
** N.T.: Conforme a Wikipedia, "parabolanos" era a denominação dos membros de uma irmandade cristã que, nos primeiros séculos da Igreja, se encarregavam, de forma voluntária, de realizar obras de misericórdia, tais como cuidar dos enfermos e  enterrar os mortos. Geralmente extraídos dos estratos mais baixos da sociedade, eles também funcionavam como assistentes de bispos locais e às vezes eram usados ​​por eles como guarda-costas e em violentos confrontos com seus oponentes. Os parabolanos não tinham ordens nem votos, mas eram enumerados entre o clero e gozavam de privilégios e imunidades clericais.
Sua presença em reuniões públicas ou nos teatros era proibida por lei.
Como seu fanatismo resultou em tumultos, leis sucessivas buscaram limitar seus números: assim, uma lei emitida em 416 restringiu a inscrição em Alexandria a 500; seu número aumentou para 600 dois anos depois. 
 
¹ Cabia ao leitor fazer entender, durante os ofícios, os textos da Escritura destinados à meditação dos fiéis. Sabe-se que Juliano tinha sido admitido na sua juventude a este primeiro grau da clericatura. 
 
¹⁶ Hist. Eccles., VII, 15 (Hussey, ibid., 360-61). 
 
¹A. e M. Croiset, Histoire de la littér. grecque, V, 1928, 1028: "Esses incidentes mesmo a perderam (SC. Hypatie). O populacho de Alexandria, excitado pelos monges, passaram a considerar a casa de Hipátia como o ponto de encontro dos inimigos de Deus. Não se sabe exatamente qual foi naquilo o papel do patriarca Cirilo. Assim é que um dia do ano 415, uma multidão selvagem se lançou sobre aquela casa, dali arrastou a infeliz e nobre mulher, e a desmembrou ignominiosamente sem que nenhuma autoridade interviesse a tempo para salvá-la. 
 
¹⁸ Seu ensino oficial tem fim em 529, quando do encerramento da Escola por Justiniano. 
 
¹⁹ Cf. Christ (W. von), Gesch. der Griech. Litter., VII, II, 1, München, 1920, 1434-35, e R.E., II, 3, s. v. Sokrates Scholasticus, 893-901 (Eltester). 
 
²⁰ Cf. Supra, p. 20: "le hiatrosophiste Adamantios". 
 
²¹ Cf. E. Ruelle, Le philosophe Damascius..., Paris, 1861, e R.E., s.v. Damaskios, 2039-42 (Kroll). 
 
²² Hist. Eccles. V, 16 (Hussey, ibid., 282). 
 
²³  Cf. As reflexões que lhe sugere a fé escolar de Juliano, Hist. Eccles., III, 16 (Id. ibid., 191). 
 
²Damasc. apud Souda, loc. cit. (Φόνον ... άνοσιώτατον, θηριώδεις, σχέτλιοι, κ.τ.λ.) 
 
² Cf. nossa análise (Supra pp. 20-21), onde as expressões mais significativas foram assinaladas. 
 
² A observação foi feita muitas vezes, entre outras por Tannery e Asmus. 
 
²Hist. Eccles. VII, 14; Supra, p. 20. 
 
² Sobre as tendências presumidas do ensino de Hipátia e sobre a clientela de sua escola, cf. nosso Synésios de Cyrène..., Paris, 1951, pp. 47-53. 
 
²Cf. Fliche et Martin, Histoire de l'Église, Paris, 1939, III, pp. 446-7. É, de fato, Dióscoro, sucessor de Cirilo, que reivindicará primeiro o título de "patriarca ecumênico"; cf. L. Bréhier, Les Institutions de l'Empire byzantin, Paris, 1949, p. 450. 
 
³ e ³ bis Diehl e Marçais, Histoire du Moyen Âge, III, Paris, 1936, p. 25. 
 
³¹ Cod. Theod., XVI, II, 42. 
 
³²  Ibid., XII, XII, 15. 
 
³³  Supra, p. 13. 
 
³  Esta, de fato, era a única habilidade a evocar as causas criminais; cf. A. Piganiol, L'Empire chrétien, Paris, 1947, p. 368. 
 
*** N.T.: Em 392 d.C., Teodósio reuniu as porções oriental e ocidental do Império, sendo o último imperador a governar todo o mundo romano. Após a sua morte em 395 d.C., as duas partes do Império Romano cindiram-se definitivamente em Império Romano do Oriente, com sede em Constantinopla, sendo seu filho Arcádio o herdeiro,  e Império Romano do Ocidente, com sede em Roma, herdado por seu filho Honório. Este último isentou todos os clérigos da jurisdição dos tribunais seculares. Em dezembro de 411, o imperador decretou que os clérigos só poderiam ser acusados ​​perante os bispos: "clericos non nisi apud episcopos accusari convenit". Se a acusação fosse infundada, o acusador perdia sua honra e, se fosse uma pessoa de alto escalão, seu status de nobre. Se, por outro lado, a acusação fosse comprovada, o acusado deveria ser excluído do clero.
 
³ Cod. Theod., XVI, II, 41 (412). 
 
³ Cf. R.E., 5, s.v. Domninos, 1521-2 (Hultsch) e Asmus, op. cit., p. 81. 
 
³ Ibid., 14, s.v. Marinos, 1759-61 (Schissel), e Asmus, p. 87. 
 
³ Cf. Christ, op. cit., pp. 542-3. 
 
³ Id., ibid., pp. 11, 31, 538. 
 
 
 
IV. BIBLIOGRAFIA
 

 
BRAGA, Francisco José dos Santos: HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte I, postado no Blog do Braga em 17/09/2022

_________________________________: HIPÁTIA DE ALEXANDRIA > > Parte II, postado no Blog do Braga em 04/10/2021

_________________________________: DISCURSO "SOBRE A REALEZA" DE SINÉSIO DE CIRENE AO IMPERADOR ARCÁDIO, postado no Blog do Braga em 02/01/2015 
 
LACOMBRADE, Christian: Autor du meurtre d'Hypatie, Pallas. Revue d'études antiques, Année 2/1954, pp. 17-28.