sexta-feira, 23 de março de 2018

A CRISE GREGA NÃO É ECONÔMICA, MAS CULTURAL

Por Stélios Rámfos
(em entrevista a Richard Werly, enviado especial a Atenas, pelo jornal O TEMPO, edição de 14/06/2012)
Traduzido do francês por Francisco José dos Santos Braga

> Entrevista: O filósofo grego Stélios Rámfos julga com severidade seu país, enquanto as reformas patinam
> À véspera das eleições legislativas, ele descriptografa as mentalidades helênicas à prova de choque sócio-econômico
> A ocasião de denunciar a cegueira da Europa


Stélios Rámfos, filósofo


Um Sócrates moderno? No seu café preferido de Atenas, não longe dum parlamento grego sonolento diante das eleições de 17 de junho, o filósofo Stélios Rámfos, 73 anos, se diverte com a comparação audaciosa com o mestre-para-pensar da Antiguidade, que um novo processo fictício acaba de inocentar ¹. E, no entanto, os debates que ele suscita na Grécia, e a singularidade de suas críticas sobre a Europa, na tormenta político-financeira atual, derrubam as verdades helênicas estabelecidas e questiona muito bem “valores tradicionais”. Tudo como há dois milênios...

O tempo: Uma nova Grécia está ou não emergindo?
Stélios Rámfos: De qual Grécia a gente está falando? A Grécia das relações comunitárias? Ou a Grécia real? Minha resposta é que a crise, por mais dolorosa que seja, ainda não mudou as mentalidades. Os que assim crêem se enganam. Umas das razões do beco sem saída das reformas é que a população nem sempre se convenceu da solidez delas. Você me dirá que as estatísticas são incontestáveis, que nossa falência está consumada... Talvez. Mas os Gregos permanecem sentimentais. Para eles, a percepção continua a ser mais importante que os fatos e os algarismos.

Falar de “mentalidade grega” não é reducionista?
– Circule neste país, fale com as pessoas, escute-as... Os Gregos não são absolutamente racionais. Não raciocinam como os Europeus ocidentais. Não conhecemos a Renascença. Nossa história não forjou as consciências individuais. Nossa estrutura mental permaneceu de certa forma atrofiada, focalizada sobre problemas do momento. A Grécia se reencontrou, após sua independência, impelida à categoria dos Estados “modernos”, sem ter forjado real contrato social. Diz-se muitas vezes, mas é verdadeiro: o nó central de nossa sociedade continua a família em sentido amplo. Tudo passa pelo prisma das relações pessoais. Construir alguma coisa com outro, com o cidadão distante, não faz sentido. O clientelismo do Estado grego e dos partidos tem um fundamento muito cultural. Os Europeus fizeram a aposta de que o euro nos transformaria. Ora o que se produziu foi o contrário. O crédito barato permitia satisfazer as necessidades da família, dos clãs... As mentalidades enganaram as finanças.

As mentalidades podem mesmo assim evoluir!
– É preciso compreender com qual país tu estás lidando. Nossa modernização fica amarrada por nosso fundo cultural medieval que rejeita a novidade e a organização, que supostamente geram um futuro melhor. A relação com o tempo é essencial. Os Gregos não vivemos na mesma temporalidade que os Alemães que, contrariamente a nós, separam bem distintamente o passado, o presente e o futuro. Aqui, só conta o presente!
Ora, sem perspectiva, tudo se torna preto e branco. Tudo se polariza. As reformas europeias só são aceitáveis se tu te projetas no futuro. Os Gregos pensam, sem o saber ou sem o confessar, à moda do século XVIII. Pensam sempre em termos de lutas de classes. Em termos de bem e mal. Uma união nacional a serviço de um projeto de futuro é, a partir de então, muito difícil. Na medida em que a confiança não exista. O Grego não tem confiança nem em seu vizinho, nem em seu Estado. Ele acredita na sua família, no seu partido, naquele com o qual possui, de nascença ou vida social, uma ligação de parentesco. É o alicerce da catástrofe.

Fazer o inventário desses comportamentos é fácil. O desafio está em compreendê-los, de levá-los em conta no processo de reforma. Como fazê-lo?
– A União Europeia confunde geografia e cultura. O alargamento não significa que nós nos parecemos mais. A problemática grega, intimamente ligada à religião ortodoxa, é a de uma boa parte da Europa oriental, e sobretudo a da imensa Rússia. Os traços de caráter que evoco se acham de Chipre a Vladivostok! Nossa cristandade é a da Idade Média. Fazemos parte da civilização europeia, sem partilhar os valores culturais da Europa moderna. Sei que isso vai chocar, mas os valores europeus não penetraram sempre. Trinta anos de pertencimento à União Europeia é muito pouco. Não houve neste país nenhuma reforma da educação, somente mudanças superficiais. Tornaram o Estado grego compatível com a União Europeia. Não o transformaram.

A transformação de uma sociedade não é o papel de suas elites?
– O que fizeram as elites gregas desde trinta anos atrás? Ocuparam-se com sua integração na Europa. Entraram nas redes de poder, as universidades... Mas elas não procuraram modernizar a sociedade grega. Pior: nossas elites lisonjearam, na Grécia, o desinteresse pelo Estado. Os armadores, para tomar essa categoria modelo de empreendedores globalizados, são uma caricatura. Fazem seus negócios, se mantêm o mais possível longe do Estado grego, que não os tributa, e eles redistribuem, via suas fundações privadas. Como queres que os Gregos não reflitam em termos marxistas?

Não é culpa da Europa...
– É sim, porque os Europeus construíram seus planos de reformas sobre certezas estatísticas. Raciocinaram em termos de verdade absoluta: a austeridade orçamentária é a condição da viabilidade do Estado. Então se cortam as despesas públicas e se diminuem os salários de forma horizontal, em equidade. Mas que fazer se a população não se reconhece nas verdades absolutas dela? É o que se passa na Grécia. Os Alemães teriam feito melhor relendo Kant e se inspirando nas suas “ideias reguladoras” ². Releia Kant, Sra. Merkel! É preciso achar uma síntese entre o grande projeto europeu, as exigências econômicas e as tradições. Tentemos compreender porque Europa do Sul é afetada por esta crise. O peso do catolicismo muito tradicional – o que eu chamo de paleo-catolicismo – desta periferia meridional desempenha, como a ortodoxia na Grécia, um papel considerável. A grecidade não é folclore. Isto não tem nada de fútil. Tu falas aos Gregos da saúde de seu Estado, enquanto eles estão obsedados pela saúde da alma. Como te fazeres compreender?

Não se deve, às vezes, desrespeitar as tradições?
– Elas constituem o alicerce da Europa. Ignorá-las é impossível, suicida. Não se pode dissociar a rejeição das reformas na Grécia da nossa propensão ao niilismo. É o famoso “não temos mais nada a perder” que tu ouves por toda a parte. A teologia ortodoxa raciocina em termos de sentimentalismo. Nosso sentimentalismo é apocalítico. Ele favorece as grandes catástrofes, o impasse. A tróika [a missão de experts europeus encarregados de supervisionar as reformas] teria feito melhor cercando-se de antropólogos ou de filósofos, em vez de se fechar nos ministérios. A Europa não é homogênea. Aceitemo-lo. Questões tão essenciais como o valor de trabalho não são compartilhadas nos mesmos termos. Os Gregos – está aqui também o peso da ortodoxia – privilegiam a tradição ascética. Têm uma relação diferente com a eternidade. Nós não tivemos um Tomás de Aquino ³. O trabalho é um pouco um pecado. A razão, ignoramos.

E a democracia? A União Europeia negocia com governos eleitos. Cabe a eles mudar seu país...
– Não se pode parar nas eleições e crer que elas vão resolver tudo. A riqueza de Kant e de suas ideias reguladoras é exatamente a busca da síntese. Na Grécia, nossas necessidades financeiras excedem de longe a capacidade de nossos políticos de assumir suas responsabilidades. É preciso, portanto, forjar soluções adaptadas. Eis o problema estrutural! Esta crise não é senão um assunto de economistas. Por que os funcionários de Bruxelas não consultam jamais os filósofos, os antropólogos? Nós lhes teríamos explicado porque o processo das reformas fracassará, enquanto os Gregos pensarão que podem manter apenas uma parte delas: a que lhes convém...

Então os Europeus são ingênuos?
– Sim, são. Estou sempre atento às referências à Grécia antiga. Ora, quem são os grandes especialistas da Antiguidade e da Arqueologia? Europeus, não Gregos. Entre os Europeus, grandes pesquisadores alemães. Ora, o que eles deduziram? Que o berço deste país era Atenas de Sócrates, enquanto nós somos tanto quanto, ou mais, os filhos dos pais da Igreja ortodoxa. Vou ser provocador, mas a herança de Aristóteles ou de Platão, é um assunto alemão, não grego. Os Europeus moldaram nossa herança à sua imagem.

Que fazer, nessas condições? Largar a Grécia?
– Não, pelo contrário. A União Europeia deve ter clemência e repetir aos Gregos uma única mensagem antes e após o 17 de junho: tudo depende dela. Não se deve fechar a porta, pois a União precisa de seu flanco sul para ser a Europa. A sociedade europeia só pode existir se ela assumir e gerar suas contradições. De novo digo alto e bom som: essa crise não é econômica. Ela é cultural. É preciso falar de educação. É preciso colocar as questões existenciais e responder a elas. É preciso ir além do niilismo com o qual flerta uma parte cada vez maior da população grega. Essa crise deve servir de psicoterapia. Na Grécia, a tróika deve mudar interlocutores, reencontrar aqueles que escrevem, que fazem vibrar a alma grega. É preciso que a tróika provoque nosso "philótimo ", nosso ímpeto de honra. É preciso estimular nosso amor pela União Europeia. Paremos de desenrolar um tapete vermelho aos políticos medíocres. Eles apenas representam uma parte da solução. Pensam em termos de partidos. É preciso recriar formas, reinventar uma dinâmica. O que mata a Europa é a indiferença dos funcionários. A Grécia das tradições populares talvez alimente os clichês, mas é a Grécia real.





NOTAS   EXPLICATIVAS



¹    Um processo fictício inocentou em maio de 2012 o filósofo Sócrates, que os juízes atenienses, em 399 a.C., tinham obrigado a se envenenar com cicuta.

²  Kant (1724-1804) defende como “ideia reguladora” um “conceito tirado de noções e que ultrapassa a possibilidade da experiência”.
N.T. A Infopédia portuguesa define as “ideias reguladoras” de Kant da seguinte forma: “(...) Enquanto faculdade que opera a síntese suprema do conhecimento, a razão terá no entanto, também, de se orientar por princípios a priori, que Kant designa como ideias reguladoras (ou transcendentais): Deus, alma e mundo, entendidas doravante não como entidades transcendentes mas como valores teleológicos apontando para a necessidade de um aperfeiçoamento constante do conhecimento, visando a unidade crescente deste. (...)

³    Tomás de Aquino (1224-1274), dominicano, sustenta que a fé crista não é nem incompatível, nem contraditória com o exercício da razão.

  N.T.: No verbete philótimo (φιλότιμο, em grego), a Wikipedia explica que é um substantivo grego que traduz o "amor à honra". Contudo, philótimo é quase impossível de ser traduzido suficientemente, visto que descreve uma complexa gama de virtudes. Philótimo é considerado a mais elevada de todas as virtudes gregas que determina e regula como alguém deve comportar-se na sua família e nos grupos sociais. Refere-se especialmente a respeito e a fazer a coisa certa. (...) Philótimo para um Grego é essencialmente um estilo de vida.
Considera-se que as crianças possuem philótimo quando mostram amor incondicional e respeito para com seus pais, avós e amigos. Ou quando mostram  gratidão por um pequeno presente ou por um pequeno gesto de gentileza que alguém possa ter-lhes dispensado. (...)
Philótimo é o sentimento de não ser capaz de fazer o suficiente por sua família, pela sociedade e por sua comunidade; manifesta-se através de atos de generosidade e sacrifício sem esperar nada em troca. Philótimo é ter mais satisfação de dar do que de receber.
Cf. in https://en.wikipedia.org/wiki/Philotimo


The Washington Oxi Day Foundation, em sua autodeclarada missão de educar os responsáveis por decisões políticas nos Estados Unidos e o público em geral sobre o papel desempenhado pela Grécia  para o desfecho da II Guerra Mundial, chama o conceito de philótimo como “o segredo grego”. Cf. in https://www.youtube.com/watch?v=aXPJNDVfBgU

sábado, 10 de março de 2018

CARTA DE EPICURO A MENECEU > > > Parte 2


Traduzida por Francisco José dos Santos Braga

(132) Pois não são as bebedeiras e as diversões ininterruptas nem os prazeres de garotos e mulheres, nem a degustação de peixes e de outras iguarias que uma suntuosa mesa oferece, que geram a vida agradável, mas sim o cálculo sóbrio que examine em profundidade as causas para cada escolha ou rejeição, e que elimine as crendices por meio das quais uma grande perturbação toma conta das almas.
O princípio de tudo isso e o maior bem é a prudência ¹⁸ ; por isso, deve-se preferi-la à própria filosofia, pois dela provieram todas as restantes virtudes, e porque ela nos ensina que não é possível levar uma vida feliz, se não se vive com prudência, ética e justiça, nem é possível viver-se com prudência, ética e justiça sem levar uma vida feliz. Porque as virtudes brotaram da mesma raiz que a vida feliz. E a vida feliz é inseparável delas.

(133) Ó Meneceu, quem pensas ser superior àquele que tem opiniões corretas acerca de Deus, que está liberto completamente do temor da morte, que tem consciência da finalidade que a natureza colocou e crê ser fácil poder atingi-la e conseguir o bem supremo, e (sabe) quão breves são a duração e a intensidade dos males? ¹⁹ Por um lado, alguns propõem o destino como senhor de tudo ²⁰, enquanto outro zomba afirmando que algumas coisas acontecem necessariamente, umas por acaso e outras por nós, porque vê que, por um lado, a necessidade é irresponsável, por outro lado o acaso é inconstante ²¹ , porém a nossa própria atividade é livre; por isso é de sua natureza estar submetida à censura ou ser louvada,

(134) porque é preferível seguirmos o mito sobre os deuses a sujeitarmo-nos ao destino dos filósofos naturalistas. Porque o mito sobre os deuses deixa transparecer alguma esperança de expiação com a mediação do respeito aos deuses. Por outro lado, o destino mostra a necessidade de não conhecer expiação. Nem o acaso ele (o destino) considera Deus, como muitos o fazem, porque nada é gerado desordenadamente por Deus, nem mesmo ele (o destino) considera-o (acaso) uma causa incerta, porque não crê que dele (acaso) é concedido o bem ou o mal para a felicidade das pessoas, apesar de criar o ponto de partida para os grandes bens e males.

(135) Ele (o destino) crê, então, que é melhor fracassar alguém depois de um pensamento correto, do que ser bem sucedido disparatadamente. Porque é melhor nas ações da pessoa o fracasso naquilo que foi bem escolhido, do que aquele sucesso, devido ao acaso, que foi mal escolhido.
Medita, então, Meneceu, sobre essas coisas ²² afins, noite e dia por ti mesmo ou com alguém semelhante a ti e nunca serás perturbado, nem no sono nem desperto, viverás como um deus entre as pessoas ²³ , pois de forma nenhuma se parece com um animal mortal a pessoa que vive entre bens imortais.


NOTAS EXPLICATIVAS (cont.)



¹⁸ Qual será, então, a contribuição da "prudência"? Constituirá as virtudes aceitas, porque mostrará que a vida feliz é aquela na qual se praticam a honra e a justiça. Desta forma, por meio de uma austera reflexão, Epicuro, partindo do primeiro princípio da aspiração do prazer, chega à aceitação das normas reconhecidas da ética; a resposta aos opositores é mais completa.

¹⁹ Um hino para o "prudente". Epicuro volta a argumentos que desenvolveu anteriormente: o "prudente" que conhece as circunstâncias da vida, que possui completa compreensão da natureza dos deuses e da morte, que reconhece as leis que regem o mundo e a responsabilidade da pessoa liberal, a qual não considera que o acaso determina as ações, mas que constitui oportunidade para ação, e prefere sofrer com temperança a prosperar na imprudência.

²⁰ Subentende o destino, de um ponto de vista ético. Os primeiros filósofos e especialmente Demócrito, invocando uma "necessidade" todo-poderosa pelas suas teorias sobre a natureza, chegavam obrigatoriamente à aceitação do determinismo nas relações humanas. Epicuro desvencilhou-se da noção da "necessidade" com a introdução da παρέγκλισις, o primordial impulso voluntário dos átomos durante a sua queda. A tal παρέγκλισις, de acordo com a integração consciente da "psiquê", constitui a causa da vontade livre. Epicuro não rejeita que a "necessidade" constitua causa das muitas coisas, contudo considera que a maior parte da nossa vida é controlada por nós próprios.

A teoria de Epicuro difere do atomismo primevo de Demócrito, porque ele admite que os átomos não seguem sempre linhas retas, mas a direção de seu movimento pode ocasionalmente exibir um "swerve" (inclinação, declinação, viés, desvio ou "efeito" da bola no futebol), παρέγκλισις (fem. em grego) ou clināmen (traduzido por Lucrécio para o latim in De Rerum Natura). Isso permitiu a Epicuro evitar o determinismo implícito no atomismo primitivo e afirmar uma vontade livre.

²¹  Parece que Epicuro considera o acaso como potência em conexão com a necessidade. A lei natural provoca o inevitável curso das coisas, sendo o acaso, contudo, aquele que governa a produção das causas específicas. Por exemplo, a "necessidade" causa o movimento e os choques dos átomos; o acaso, porém, faz com que eles ocupem as posições que criaram o nosso mundo.

²² Se a "necessidade" fosse universal, como afirmam os deterministas, não seria possível existir responsabilidade no espaço da ética, mas nunca aconteceriam alguns "vácuos" no espaço da natureza, os quais denominamos "casuais".

²³   A pessoa prudente subentende a natureza do casual: não se trata de poder divino nem efeito direto do bem ou do mal, simplesmente se refere a boas ou más condições.



REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS



HAMELIN, Octave: ÉPICURE, Lettre à Ménécée, publiée dans la Revue de métaphysique et de morale, 1910, in https://nicomaque.files.wordpress.com/2013/09/lettre_a_menecee.pdf

LAËRCE, Diogène: Vie, doctrines et Sentences des Philosophes Illustres, 2 tomos, Paris: Garnier-Flammarion, tradução do grego, introdução e notas por Robert Genaille, 1965

LAÉRTIOS, Diógenes: Vidas de Filósofos, Atenas: Cactus Editions, 1994, coleção Literatura Grega Antiga "Os Gregos", tomo 284 referente a Epicuro no Livro X (Editor: Odysséas Chatsópoulos - edição bilíngue: grego antigo e moderno), 331 p. 

LAÊRTIOS, Diôgenes: Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, tradução do grego, introdução e notas por Mário da Gama Kury, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008, 357 p. 

LORENCINI, Álvaro & CARRATORE, Enzo del: Carta sobre a felicidade (a Meneceu), com texto baseado na edição de ARRIGHETTI, G.: Epicuro. Opere, Torino, 1973), São Paulo: Editora UNESP, 2002
 

quinta-feira, 8 de março de 2018

CARTA DE EPICURO A MENECEU > > > Parte 1

Traduzida por Francisco José dos Santos Braga



I.  INTRODUÇÃO



A carta escrita pelo filósofo Epicuro a seu discípulo Meneceu, transcrita por Diógenes Laércio no livro X (dedicado a Epicuro e especialmente apreciado pelos historiadores e filósofos) de sua obra "Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres" é importantíssima, porquanto é uma das poucas fontes referentes ao pensamento de Epicuro (a maior parte das obras do seu autor se perderam), sobre os assuntos ali tratados: a ética e a busca da felicidade. A doutrina de Epicuro foi perpetuada no Império Romano no século I d.C., graças ao poeta filósofo Lucrécio que, retomando as teses epicuristas, as traduziu com linguagem poética em sua obra De rerum natura (Sobre a Natureza das Coisas). Cabe lembrar que Diógenes Laércio não salvou apenas a dita carta do olvido; no livro X, salvou ainda outra carta a Heródoto, onde a física de Epicuro é exposta, e na qual são discutidos os princípios, o método e a constituição do mundo; além disso, preservou da destruição a carta a Pithoclês, cujo eixo é um estudo dos meteoros ou fenômenos naturais; e, finalmente, transcreveu as Máximas Principais (Οι Κύριες Δόξες) de Epicuro.

Sobre a vida de Laércio, o principal biógrafo da filosofia grega, sabe-se pouca coisa, apenas que nasceu na Cilícia, ao norte da Síria. Há quase uma unanimidade sobre seu período de vida (⭐︎ c. 225-✞ c. 300), mas ignora-se quais foram seus pais, a sua formação e tendência filosófica, sua profissão e o local de sua morte. Ou seja, é impressionante que esse autor, cuja obra é citada em todos os estudos sobre a história da filosofia, seja um desconhecido biograficamente.

Vejamos o que o doxógrafo Diógenes Laércio diz de Epicuro como autor, segundo [LAÊRTIOS, 2008, 289]
"Epicuro foi um polígrafo extraordinário, e superou todos os seus antecessores pelo número de obras, que totalizaram cerca de trezentos volumes; nelas não há citações de outros autores, sendo todas as palavras do próprio Epicuro. Crísipo tentou sobrepujá-lo em autoria de obras, e Carneades o chamou de parasita dos livros de Epicuro: "Crísipo tenta emular Epicuro abordando cada obra escrita por ele sobre um determinado assunto em outra obra da mesma extensão. Por isso ele se repete com frequência e escreve tudo que lhe vem à mente, e por causa da pressa deixa tudo por rever; as citações são tantas que somente elas enchem seus livros. E é possível descobrir o mesmo procedimento em Zenão e em Aristóteles."
São esses então os dados sobre as obras de Epicuro e suas peculiaridades, sendo as melhores entre elas as seguintes: Da Natureza, em trinta e sete livros; Dos Átomos e do Vazio; Do Amor; Epítome dos Livros contra os Físicos; Contra os Megáricos, Problemas; Máximas Principais; Do que deve ser escolhido e rejeitado; Do Fim Supremo; Do Critério, ou Cânon, Cairêdemos; Dos Deuses; Da Santidade; Hegesiânax; Dos Modos de Vida, em quatro livros; Da Maneira Justa de Agir; Neoclês, a Temista; O Banquete; Eurílocos, a Metrôdoros; Da Visão; Do Ângulo no Átomo; Do Tato; Do Destino; Opiniões sobre os Sentimentos; Contra Timocrates; Prognóstico; Exortação à Filosofia; Das Imagens; Da Apresentação; Aristôbulos; Da Música; Da Justiça e das Outras Formas de Excelência; Dos Benefícios e da Gratidão; Polimedes; Timocrates, em três livros; Opiniões sobre as Doenças e a Morte, a Mitres; Calistolás; Da Realeza; Anaximenes; Epístolas."
Em [LAÊRTIOS, 2008, 5-11], Mário da Gama Kury, tradutor da obra Vidas dos Filósofos de Diógenes Laércio, autor da Introdução na edição brasileira e autor das notas da referida obra, defende que o autor teria escrito as Vidas dos Filósofos nas primeiras décadas do século III d.C., sendo portanto contemporâneo mais novo de Luciano, Galeno, Filóstrato e Clemente de Alexandria, não muito distante de Apuleio e Ateneu. Considera mais provável que este biógrafo de filósofos não tenha pertencido a nenhuma escola filosófica, nem mesmo tenha tido a pretensão de estudar filosofia. Apesar de seus elogios fervorosos a Epicuro (Livro X), Laércio não professou sua condição de adepto de Epicuro. [LAÊRTIOS, 2008, 9] entende ainda que 
"a condição de mero compilador atribuída a Laércio (alguns estudiosos falam até de plágio puro e simples) não diminui de forma alguma o valor inestimável de sua obra para nós, entre outras razões porque quase nada sobreviveu das obras compiladas (ou plagiadas) além dos fragmentos conservados por nosso autor." 
Apesar de todas as limitações que lhe foram imputadas, Laércio, segundo Kury, deixou-nos a obra mais preciosa da Antiguidade sobre a história da filosofia e Nietzsche achava a exposição da Laércio preferível à grande história de Zeller em seis volumes, principalmente por seu conteúdo humano. Assim, conclui ser  
"um dos méritos da obra ora traduzida é a evocação da atmosfera do mundo em que viveram os filósofos antigos, graças aos numerosos detalhes aparentemente insignificantes e aos elementos míticos e fantásticos em mistura com anedotas de sabor popular, tudo muito significativo e esclarecedor. (...)
Outro aspecto a destacar é o caráter às vezes superficial da exposição, que passa abruptamente da constatação cosmológica para a anedota jocosa, revelando uma dimensão nova: a intenção de popularizar a filosofia. (...)"  

II. Minha tradução da Carta de Epicuro a seu discípulo Meneceu (Vidas, Livro X, 122-131)


Epicuro saúda Meneceu.

(122) Que ninguém ¹ quando jovem demore a filosofar nem, quando chegar à velhice, se canse de filosofar. Porque ninguém é imaturo ou demasiado idoso para fazer aquilo que torna a alma saudável. Quem disser que ainda não é tempo ou que (já) passou a hora de filosofar, assemelha-se àquele que diz que não chegou o tempo ou que (já) passou o tempo para a felicidade. Desse modo, tanto o jovem quanto o idoso deve filosofar: o jovem, para se jovializar enquanto envelhece por causa do medo das coisas que estão por vir; o idoso, para permanecer jovem com a lembrança das coisas boas que gozou. Devemos, então, examinar tudo aquilo que proporciona a felicidade, para que, quando a temos, tenhamos tudo, e quando ela nos faltar, façamos tudo para obtê-la.

(123) Põe em prática e exercita essas coisas ² que continuamente eu te recomendava, distinguindo as que constituem elementos fundamentais do bem viver ³. Em primeiro lugar, pensando que deus é um ente imortal e bem-aventurado, como se esboçou a percepção comum de deus, não acrescentes a ela nada que seja estranho à sua imortalidade nem inadequado à sua bem-aventurança. Ao contrário, pensa a respeito dele tudo o que for capaz de conservar-lhe a bem-aventurança e a imortalidade. De fato, os deuses existem, visto que é claro o conhecimento que temos deles.
Mas eles não existem como os imagina a maioria, pois esta não conserva íntegra a noção primordial que tem deles. Ímpio não é aquele que não admite os deuses da maioria, mas sim quem atribui aos deuses as crendices da maioria.

(124) Com efeito, o que muitos declaram sobre os deuses não são ideias inatas, mas suposições falsas; donde, para os maus, os maiores malefícios são causados pelos deuses, e, para os bons, os benefícios; portanto, familiarizados continuamente com as suas próprias virtudes aceitam seus semelhantes e consideram estranho tudo que não seja tal.
Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, porque todo mal e todo bem residem na sensação , enquanto a morte é a privação da sensação. Por isso, a consciência clara de que a morte não significa nada para nós faz-nos desfrutar nossa vida efêmera, sem querermos acrescentar-lhe tempo infinito, mas suprimindo-lhe o desejo de imortalidade.

(125) Com efeito, não há nada terrível para quem tem consciência legítima de que não há nenhuma desgraça em deixar de viver . Desse modo, é tolo quem diz que teme a morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige o que está por vir. Aquilo que, estando presente, não nos preocupa inutilmente nos aflige, enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível dos males - a morte - não é nada para nós, porque, exatamente, quando somos, a morte não está presente; quando, porém, a morte estiver presente, então nós não somos (mais). Portanto, a morte não é nada nem para os vivos, nem para os mortos, já que para os primeiros a morte não existe, ao passo que os segundos não estão mais aqui (quando ela vier). Mas a maioria das pessoas ora foge da morte como o maior dos males, ora aspira a ela como descanso dos males no viver.

(126) O sábio, contudo, nem se despede da vida, nem teme deixar de viver. O viver não o entedia, nem presume-se que o não viver seja um mal. Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, assim também não produz frutos no tempo extenso, mas no (tempo) melhor desfrutado. Quem aconselha o jovem a bem viver, e o velho a morrer bem é um tolo, não somente pelo que a vida tem de agradável, mas também porque se deve ter o mesmo cuidado tanto em viver bem quanto em morrer bem. Pior ainda é aquele que diz: 
"Bom seria não ter nascido, mas uma vez tendo nascido, passe o mais depressa possível pelas portas do Hades ¹⁰.

(127) Com efeito, se alguém diz isso com convicção, por que não se vai da vida? Pois é muito cômodo para ele, se - claro - for esse o seu desejo. Se fala por brincadeira, é leviano nas coisas que não admitem zombaria. Cabe lembrarmo-nos ¹¹ de que o futuro nem é totalmente nosso, nem totalmente não nosso, de tal modo que não devemos esperar que seguramente será nosso, nem de forma nenhuma nos desesperarmos como se não estivesse por vir. Devemos também considerar que, dentre os desejos ¹², há uns que são naturais e outros que são infundados; dentre os (desejos) naturais, uns são necessários e outros são apenas naturais; dentre os (desejos) necessários, uns são necessários (sic) à felicidade, outros, à tranquilidade do corpo, e ainda outros, à própria vida.

(128) O cuidado correto para com eles nos leva a dirigir toda preferência e toda recusa à saúde do corpo e à impassibilidade da alma, uma vez que esse é o objetivo da vida bem-aventurada. Graças a esse (objetivo) praticamos todas as coisas, para não sentirmos dores nem temermos. Uma vez que tenhamos atingido esse estado, aplaca-se toda a tempestade da alma, porquanto a criatura viva não tem necessidade buscar algo que lhe falta, nem procurar outra coisa para se realizar a não ser o bem da alma e do corpo. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; por outro lado, quando não sofremos, não sentimos mais necessidade do prazer.
Por isso afirmamos que o prazer é o princípio e o fim da vida bem-aventurada.

(129)  Como nós o identificamos como bem primeiro ¹³ e congênito, e, partindo dele, acabamos por fazer toda escolha e toda recusa e a ele chegamos, tendo o sofrer como critério para julgarmos todo bem. Embora ele seja o bem primeiro e congênito, nem por isso escolhemos qualquer prazer, mas muitas vezes evitamos muitos prazeres, quando deles nos advém o maior aborrecimento. Consideramos muitos sofrimentos melhores do que os prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos as dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem, por ter uma natureza condizente conosco; nem por isso todo prazer deve ser escolhido. Do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem por isso devemos fugir de toda dor por sua própria natureza.

(130) Convém, portanto, avaliar tudo isso com o cálculo das coisas que forem úteis e das que forem prejudiciais. Pois, em certas circunstâncias usamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
E consideramos a auto-suficiência ¹⁴ como um grande bem, de forma nenhuma para utilizarmos as poucas coisas, se não possuímos as muitas, mas para nos contentarmos com esse pouco, sinceramente convencidos de que desfrutam as coisas mais agradáveis da abundância os que menos precisam dela, e tudo o que é natural é fácil de conseguir, difícil é tudo o que é inútil. E os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias luxuosas, desde que se remova a dor (provocada) pela falta;

(131) e o pão e a água produzem o prazer supremo, quando ingeridos por quem deles necessita. Habituar-se ¹⁵ às iguarias simples e não às luxuosas garante a boa saúde como ainda torna o homem ativo nas adversidades necessárias da vida e nos predispõem a apreciar as suntuosidades, nos períodos em que nos prepara para enfrentarmos sem temor as vicissitudes da sorte. Quando, então, dizemos que o prazer é o fim último da vida, não queremos dizer os prazeres dos dissolutos e os que consistem no gozo (dos sentidos), como acreditam algumas pessoas ¹⁶ que ignoram o nosso pensar ou não concordam com ele ou o interpretam erroneamente, mas (queremos dizer) o não sofrer no corpo e o não perturbar-se na alma ¹⁷.


III.  NOTAS EXPLICATIVAS (basicamente tradução de notas explicativas da edição grega a cargo do editor Odysséas Chatsópoulos, com exceção da Nota nº 3, por Francisco José dos Santos Braga)


¹  Na abertura da carta Epicuro deixa claro que a filosofia é para todos; ninguém é muito jovem ou muito velho para a filosofia e recusá-la a outrem equivale a tirar-lhe o direito à felicidade. Trata-se de uma prova inabalável dos democráticos pontos de vista de Epicuro, o qual não tinha nenhum desejo de criar escola fechada; aspirava, ao contrário, colocar a sua filosofia a serviço de quem quer que entrasse em contato com ela.

²  Aqui se elabora a teologia epicurista a partir da sua perspectiva ética, na medida em que influencia as pessoas. É certo que os deuses existem, porque o conhecimento sobre eles provém de noções diretas (mentais), que são comuns a todas as pessoas. Os deuses são também, conforme o senso comum, felizes e imortais; a religião, contudo, se engana quando lhes atribui a gestão do mundo e sentimentos de ódio e amor para com os homens, coisa diametralmente oposta à sua felicidade. Os deuses vivem além do mundo e não lhes diz respeito a sorte deste. Acolhendo as imagens emanadas dos deuses ("εικόνες"), é possível à pessoa conseguir participar da impassibilidade (αταραξία) deles e por essa única razão há na pessoa lugar para a religião. Desse modo, abolir o medo e tomar parte na imperturbabilidade dos deuses contribuem para a vida feliz. Entenda-se por ataraxia a tranquilidade ou imperturbabilidade absoluta da alma, que é, segundo o Epicurismo, o apanágio dos deuses e o ideal do sábio.
Não somente pelo fim que tem em vista, mas também pela sua natureza, o saber humano fica rebaixado. Todo conhecimento é, para os epicuristas, apenas percepção sensível, e nada mais. Por isso, o Epicurismo é sensualista e materialista, dando seguimento a seu modelo, o Atomismo de Demócrito. Estas percepções vêm à existência porque dos objetos emanam eflúvios (ou reflexos) que penetram nos órgãos dos sentidos. Isto se aplica, principalmente, às percepções visuais, mas o mesmo se dá com os demais sentidos; também estes são postos em movimento por meio de certos eflúvios. Esses eflúvios ininterruptos produzem a impressão do compacto e do volumoso e, portanto, a realidade corpórea. Os objetos estão continuamente emitindo tais eflúvios, dando origem às percepções sensíveis da primeira espécie, formando o conhecimento propriamente dito, esgotando-lhe toda a possibilidade. Nisto consiste a percepção sensível normal, ficando assim garantida a percepção da realidade.
Há também eflúvios da segunda espécie, tênues como teias de aranha, que estão fora dessa incessante emissão, não encobrindo nenhuma realidade. Tais eflúvios não penetram em nós pelos órgãos sensoriais, mas pelos poros da pele e tomam a direção do coração. Geram imaginações vãs e representações fantasiosas.

³  Observe que Epicuro utilizou o genitivo του καλώς ζην (do bem viver, conforme minha tradução), um conceito muito caro aos frequentadores da escola que Epicuro dirigiu no seu Jardim (Κήπος του Επίκουρου), em Atenas, a partir de 306 a.C. E foi devido a esse Jardim de Epicuro que os epicuristas receberam a denominação - "os do Jardim" (οι από τον Κήπον).

  Deus é ser vivo; contudo, sua própria constituição o diferencia de todos os seres restantes.

O segundo grande princípio, ou seja, que a morte não nos diz respeito, é novamente analisado do ponto de vista ético. Ter uma compreensão real da natureza dos deuses nos liberta do medo na vida, assim também saber que a consciência cessa com a morte nos liberta do medo referente a uma próxima vida. Além disso, uma vez que a morte não será terrível quando chegar, não há razão para nos perturbar a sua espera.

   Tanto no mundo físico quanto no moral, a sensação ou percepção dos sentidos (αἴσθησις>estesia=sentimento do belo, sensibilidade, emoção) constitui o critério supremo, apenas que aqui toma a forma da paixão (consciência interna do prazer e da dor, que é a medida do bem e do mal).

À primeira vista, essa conclusão soa como algo inesperado; contudo, para Epicuro, o medo da morte não é apenas o maior de todos os medos, mas também causa de todas as coisas terríveis.

Ettore Bignone considera que aqui Epicuro faz referência a Epicarmo (poeta cômico grego natural da ilha de Cos, que passou sua vida em Siracusa, onde morreu em 450 a.C.); já segundo Bailey, o filósofo avançou mais provavelmente uma tentativa de confrontação com as concepções populares sobre a morte, a saber, que a morte não será algo doloroso quando vier, mas que o nosso pensamento sobre tal coisa é doloroso. Epicuro pensa que ambas se identificam. Não tememos a chegada de nenhuma coisa que não seja penosa quando chegar. É possível respondermos que o pensamento da morte é penoso porque a morte significa a pausa de todo prazer presente, ao que Epicuro responderia que "não estaremos lá para o compreendermos".

  Tendo desenvolvido seu ponto de vista, agora Epicuro se volta para as crendices comuns. Então, inicialmente afirma que as pessoas são inconsequentes, pois umas vezes temem a morte como a maior de todas as coisas terríveis e outras vezes a abraçam como a libertadora de suas perturbações. O homem sábio, por sua vez, não teme a morte nem deseja evadir-se da vida; não pretende que a vida seja mais duradoura, mas mais feliz.

¹⁰  Já na mitologia aparece esse pessimismo radical. Sileno o diz ao rei Midas: "o melhor para o homem, quando muito, é não nascer, e o que o segue imediatamente é morrer quanto antes". Essa mesma frase encontra-se em Sófocles e em Aristóteles (no diálogo Eudemo ou Sobre Alma, embora tenha chegado até nós através de Plutarco). Igualmente, aparece essa mesma ideia em Eurípides (nas tragédias Cresfontes e Belerofonte) e em Baquílides, como informou Antonio Ruiz de Elvira, em "La herencia del mundo clásico: ecos y pervivencias", pp. 208-209. Algo simelhante diz também Têognis. Vide Théognis. Poèmes Elègiaques, versos 425-427. Por outro lado, faz-nos lembrar também a teoria sobre a degeneração da cultura que Hesíodo desenvolve em Os Trabalhos e os Dias. Todas essas citações levam muitos autores a concluir que os Gregos tiveram uma visão pessimista da vida. Por isso mesmo, pode-se imaginar quão revolucionárias foram as ideias epicuristas para esta cultura impregnada por essa visão da vida e da morte.

¹¹  Esta passagem se encerra com um breve aforismo quanto à visão correta sobre o futuro: não devemos pensar que ele nos pertence, nem também que não nos pertence. Está nas mãos do verdadeiro epicurista desfrutar os prazeres da vida e, ao mesmo tempo, ser independente de quase tudo que lhe guarde o futuro.

¹²  Depois que se referiu aos dois pressupostos para a vida bem-aventurada - a correta consciência da natureza dos deuses e a real consciência da morte, - Epicuro dedica o restante da carta à exposição da sua teoria ética. Referindo-se ao objetivo da vida e ao modelo de comportamento correto, Epicuro não segue o raciocínio que já apresentou (124. 8: porque todo bem e todo mal reside na sensação), para mostrar o prazer como fim último baseando-se na natureza fundamental do prazer, que é o único sentimento no campo ético. A carta dirige-se ao público mais amplo e consequentemente prefere chegar ao seu objetivo através dos processos mais tradicionais e menos epicureus. O motivo de toda ação é o desejo; a hierarquização dos desejos consente como sedimento "indispensável" a saúde do corpo e a serenidade da alma, coisa que implica ausência de dor, tanto no corpo quanto na alma, e a ausência da dor certamente é o prazer. O prazer, então, é a causa e o objetivo da vida. Observamos que para Epicuro o prazer não constitui (proposição) gozo, como era, por exemplo, para a escola cirinaica, mas (negação) libertação da dor, coisa que alguns filósofos não consideravam como prazer mas como situação neutra ou indiferente. Essa distinção tem importância fundamental para toda a especulação ética epicurista: para Epicuro a vida correta depende essencialmente da consciência exata dos limites.

¹³  Tendo colocado o prazer como objetivo das ações, é necessário a seguir analisar o que significa isso na prática. Segundo Epicuro, significa que, apesar de todos os prazeres serem por si mesmos um bem, porque são naturais para nós, há alguns que precisamos evitar por causa da dor que têm como resultado. Correspondentemente, há algumas dores que deveremos escolher, devido ao prazer que é causado por suavização delas. Finalmente, todas as coisas são assunto de reflexão: é preciso contrabalançarmos prazeres e dores e escolhermos aquele caminho que finalmente conduz ao maior prazer e menor dor. Deveremos aqui parar em dois pontos: primeiro, que chegamos a algo que parece muito com o pensamento utilitarista do prazer e, segundo, que, apesar de Epicuro desmentir as difamações contra a visão popular do Epicurismo e rejeitar todo prazer exagerado, não abandona o seu principal ponto de vista de que o próprio prazer constitui um bem, e que, por essa exata razão, devemos evitar os prazeres que implicam dor.

¹⁴  Epicuro continua com a aplicação prática do seu princípio que é a escolha dos prazeres, apenas os que não se relacionam com a dor. A auto-suficiência é uma virtude que é elogiada por todos (constituía também o objetivo ético dos Estóicos) e se for aplicado aos prazeres significa "tornar-se independente dos desejos". Isso nos orienta para sermos felizes com as simples alegrias (prazeres), que não provocam reações contrárias. E ademais, embora o prazer seja apenas suavização da dor, a comida e a bebida simples podem nos dar uma prazer tão pleno quanto a mesa mais abundante. Finalmente, acrescenta quase cinicamente: se nos acostumarmos à simplicidade, teremos sido preparados melhor para o desfrute da suntuosidade, quando quer que nos apareça.

¹⁵  Tendo explicado analiticamente o que significa na prática ser o prazer objetivo da vida, Epicuro pode agora confrontar os falsos conceitos. Não incitou a bulimia nem o sensualismo, que têm como resultado maiores males, mas propõe a suprema felicidade da vida simples, a qual satisfaz as necessidades do corpo e mantém a mente longe das perturbações e, em consequência, livre para ocupar-se do estudo da filosofia.

¹⁶ Existem três categorias de pessoas que se equivocam: aqueles que não conhecem o ponto de vista correto, aqueles que o conhecem mas que não concordam com ele, - os filosoficamente adversários, - e aqueles que não podem compreendê-lo.

¹⁷ Tendo colocado o caráter geral do seu ideal, Epicuro avança no método da própria aquisição. É claro que o curso correto da ação não é ditada pelo instinto, como poderíamos supor, uma vez que os prazeres não são simplesmente coisas boas, mas coisas escolhidas. Para alguém viver uma vida realmente prazerosa, é indispensável ter "julgamento correto para todas as coisas", para se basear na reflexão do menos e do mais, no que se refere ao prazer e à dor. Esse julgamento correto Epicuro caracteriza como prudência, porque sempre os filósofos diferenciam entre a sabedoria prática e a mental; é simultaneamente o "princípio" de cada passo para a direção correta e o "melhor bem" que a pessoa pode atingir. A prudência é mais preciosa do que a filosofia pura, a qual não pode ser posta em prática, mas pode apenas constituir a base da prática ao ponto de ser conhecimento prático das circunstâncias.

CONTINUA NA PARTE 2