sábado, 22 de junho de 2019

EPISÓDIO DA VIDA DO MESTRE FERNAND JOUTEUX



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)




I.  INTRODUÇÃO



É de meu especial interesse seguir os passos do compositor francês Fernand Jouteux pelo nosso País em busca de encenar o seu drama musical sertanejo, até aqui nomeado "Canudos" por seu autor.
Este é mais um episódio de uma série que o Blog do Braga está publicando com o objetivo de divulgar o trabalho desse grande homem que, "sendo francez de nascimento, é o mais brasileiro dos nossos autores musicaes".
Deixando de lado um certo exagero do autor dessa frase, lembro que o resgate desse autor esquecido pelos estudos musicológicos nacionais só engrandece essa ciência, se se admitir a importância de inserir-se o valor musical das obras desse compositor francês radicado definitivamente no Brasil em 1911 e morto em 1956 e tirá-lo da obscuridade em que se encontra desde a sua partida. Foram 45 anos de vida musical vividos intensamente com amor por nossa terra. Com certeza teria composto muito mais obras musicais de valorização dos fastos nacionais, caso não encontrasse tanta dificuldade em seu caminho, quando tentava divulgá-las.
Consta que, naqueles anos de 1926 e 1927, portanto aos 50-51 anos de idade, Fernand Jouteux era hóspede do Hotel do Russell, tentando viabilizar a representação de sua ópera "Canudos". Enquanto isso não acontecia por razões que declino de analisar aqui por não ser o espaço mais adequado para esse fim, ele conseguiu espaço na sala do Instituto Nacional de Música (atual Escola de Música da UFRJ) para realizar um concerto de suas obras e, especialmente, de trechos de sua ópera "Canudos", contando com o concurso do mezzo-soprano Dolores Belchior, tenor Machado del Negri e barítono Adacto Filho, acompanhados ao piano pelo ilustre maestro Giovanni Gianetti. ¹
Resumidamente o que será visto no presente resgate oferecido pela hemeroteca de periódicos antigos, junto com todas as suas adversidades e episódios com toda a certeza dramáticos, é a cobertura de um concerto de Fernand Jouteux, feita pelo jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, quase sempre na sua coluna Correio Musical, observando a seguinte sequência:
– apresentação de Fernand Jouteux aos leitores do Correio da Manhã (26/08/1927)
– anúncio do concerto divulgado em 18/09/1927, originalmente previsto para realizar-se do dia 30/09/1927 ², prometendo para breve a publicação do programa
– no dia 23/09/1927, o Correio da Manhã, na sua coluna O dia de hontem no Palacio do Cattete, informa que Fernand Jouteux convidou o chefe de Estado para o concerto que se realizará no dia 30 do corrente mês, no salão nobre do Instituto Nacional de Música, onde serão cantados trechos de sua ópera "Canudos"
– na data prevista para o concerto (30/09/1927), Correio da Manhã informa a transferência, por iniciativa do próprio compositor, do concerto para o dia 28/10/1927, alegando "falta de tempo necessário para os ensaios da ópera Canudos, que apresenta sérias responsabilidades artísticas"
– em 09/10/1927, Correio da Manhã publica que Fernand Jouteux "acaba de ser nomeado membro do jury do Instituto Nacional de Musica para o concurso actual de composição". O jornal se serve da autoridade da poetisa francesa France Darget laureada da Academia Francesa, para pronunciar-se a respeito da individualidade do músico francês Fernand Jouteux
– em 25/10/1927, o Correio da Manhã anuncia para 28/10 a apresentação de trechos da ópera "Canudos" de Fernand Jouteux (cuja letra é da sua autoria também), além de outras obras de Fernand Jouteux
– em 1º de novembro de 1927, o Correio da Manhã publica, sob o título "Audições de obras do Maestro Fernand Jouteux", crítica do concerto de obras do referido Maestro, realizado no dia 28/10/1927 no salão nobre do Instituto Nacional de Música.




II. PREPARATIVOS PARA A REALIZAÇÃO DO CONCERTO  NO JORNAL CORREIO DA MANHÃ



1) UM COMPOSITOR FRANCEZ QUE FAZ MUSICA BRASILEIRA  (na coluna "Correio Musical")


O maestro Fernand Jouteux

Tivemos, ha tempos, o prazer da visita do maestro Fernand Jouteux, um dos discipulos predilectos do grande Massenet. Foi para nós uma surpresa e – para que não dizer – verdadeiro espanto, quando soubemos que esse musicista, de real valor, vinha de Alagoas, recommendado pelo governador do Estado, e era assim uma especie de anachoreta que vivia retirado do bulicio do mundo no seu sitio patriarchal de Garanhuns, em plenos dominios do sr. Costa Rego...

O maestro Jouteux, entretanto, não é desconhecido nesta capital: ha cerca de sete annos os jornaes daqui já se occuparam com a sua personalidade artistica. Agora, o compositor, novamente entre nós, pretende fazer-nos ouvir, no proximo mez de setembro, no Theatro Municipal, alguns trechos do seu grande drama musical sertanejo “Canudos”, inspirado no episodio sangrento de que foi heroe Antonio Conselheiro.

Fernand Jouteux viveu trinta annos no sertão brasileiro, inspirando-se directamente no ambiente mais propicio para escrever a sua obra typicamente nacional.

A seu respeito escreveu Annibal Fernandes excellente “Estudo”, do qual destacamos as seguintes linhas: “Massenet havia dito ao pae do maestro que não tinha mais nada a lhe ensinar. Que elle voasse então com as suas proprias asas...

Fernand Jouteux tomou à letra as palavras do Mestre, transpoz o Atlantico e veiu “como o beija-flor sugar nas nossas flores a essencia de sua originalidade”...

Vogou pelas aguas do Rio-Mar, embrenhou-se no coração das mattas, e depois quiz conhecer e praticar a vida do sertão.
– Eu resolvi, referiu-me elle, trocar a penna pela enxada e revestir o “chapéo de couro”...

“Não esqueça a nossa Arte”, dizia-lhe Massenet de longe, receiando (sic) que os seus trabalhos campestres o absorvessem inteiramente.

O maestro Fernand Jouteux, entretanto, não aspirava mais que ligar a sua musica à nossa natureza. Por uma coincidencia amavel, adquiriu em Garanhuns uma fazenda que se chamava “Bela Aliança”. E ahi viveu elle durante quasi vinte annos, lavrando a terra, compondo musicas no silencio e no recolhimento, longe do rumor dos homens, naquella desejada paz do campo de que nos fala Carducci.

No silencio esse ermitão procurou inspirar-se nos motivos que o rodeiavam (sic). Do Amazonas trouxe elle os seus “Souvenirs de l’Amazone”, em que descreve as magestosas (sic) florestas virgens dos Solimões.

No Rio Grande do Norte, recolheu, numa bella noite de estio, uma deliciosa phrase musical que faz o ornamento do “Scherzo” da grande “Symphonie Brésilienne”.

Essa “Symphonie” faz communicar ao auditorio, atravez de seus desenhos melodicos e symphonicos, o quente effluvio de nossa alma, o “cheiro da nossa terra”, como me dizia o seu inspirado autor.

Mas não é tudo. De volta a Paris, o maestro Fernand Jouteux fez applaudir, em alguns concertos, os seus “Cantos Brasileiros” (premiados pelo Salon des Musiciens), a “Symphonia Brasileira” que obteve ruidoso successo, o oratorio “São Martinho”, “Bellator Domini” e varios trechos de “Canudos”.

É um caso deveras curioso, o desse compositor: sendo francez de nascimento, é o mais brasileiro dos nossos autores musicaes.

Podemos também adeantar que o maestro Fernand Jouteux está tratando, desde já, da representação da sua opera “Canudos”, inspirada na obra “Os Sertões”, de Euclydes da Cunha, na temporada lyrica do anno vindouro. Para tal fim encontrou o maestro a melhor acolhida nas nossas altas autoridades. E é justiça, – pois trata-se de uma obra de caracter eminentemente nacional local e talvez unica no genero.

A expectativa dessa audição é de grato interesse para os nossos meios musicaes e, especialmente, para os amantes de folk lore.

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, sexta-feira, 26 de agosto de 1927, p. 5.
Link: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_03&pagfis=31440&url=http://memoria.bn.br/docreader#



2)  CONCERTO FERNAND JOUTEUX  (na coluna "Correio Musical")

Realiza-se em 30 do corrente, no Instituto Nacional de Musica, o concerto do maestro francez Fernand Jouteux, discipulo de Massenet.

O referido maestro vae realizar uma audição dos trechos principaes da sua opera brasileira “Canudos” inspirada sobre a obra prima de Euclydes da Cunha.

O programma será brevemente annunciado com todos os detalhes. A sra. Dolores Belchior e os srs. Del Negri e Adacto Filho serão os interpretes da sua opera. Os acompanhamentos ao piano pelo maestro Gianetti.

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, domingo, 18 de setembro de 1927, p. 3.


3)  Na coluna "O dia de hontem no Palacio do Cattete"

(...) Estiveram, ainda, no Cattete: (...) o maestro Fernand Jouteux, tambem para convidar o chefe de Estado para o concerto que realizará no dia 30 do corrente mez, no salão nobre do Instituto Nacional de Musica, onde serão cantados trechos de sua opera “Canudos”.

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, sexta-feira, 23 de setembro de 1927, p. 2.


4)  O CONCERTO DO MAESTRO FERNAND JOUTEUX  (na coluna "Correio Musical")

Devido à falta de tempo necessario para os ensaios da opera “Canudos”, que apresenta sérias responsabilidades artisticas, o seu autor, maestro Fernand Jouteux, viu-se obrigado a transferir o seu concerto de 30 do corrente, isto é, hoje, para o dia 28 de outubro proximo.

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, sexta-feira, 30 de setembro de 1927, p. 5.


5)  QUEM É O MAESTRO FERNAND JOUTEUX  (na coluna "Correio Musical")

A respeito da individualidade do musico francez Fernand Jouteux, que acaba de ser nomeado membro do jury do Instituto Nacional de Musica para o concurso actual de composição ³, a escriptora France Darget , laureada da Academia Francesa, escreveu o seguinte:

“Fernand Jouteux, um dos mais poderosos, dos mais originaes entre nossos compositores modernos, uma organização musical na força da palavra, Fernand Jouteux não está mencionado muitas vezes no programma dos concertos, a razão da difficuldade de execução das suas obras, quasi tôdas cheias de obstaculos provenientes da audacia dum ideal que não admitte limites.

Seu Oratorio “Bellator Domini”, que acaba de tocar com sucesso na “Salle Gaveau L’Union des Femmes artistes musiciennes”, e que foi applaudido outrora nas Cathedraes de Tours e Bordeaux, esse Oratorio, por exemplo, não comporta menos de uma orchestra, 5 ou 6 solistas, côros mixtos, 2 orgãos e uma banda de musica. Não são elementos faceis de reunir nesses tempos de carestia...

E o sr. Jouteux nos confessou que não teve a satisfação legitima, ao parecer indispensavel, de ensaiar, nem uma vez, a totalidade dos seus musicos.

Entretanto, que alegria unica, que sensação de novidade, que diluvio de lyrismo, que afastamento de todas as mesquinhas e artificiaes combinações escolares nos offerece a musica de Fernand Jouteux!

Não vos falarei dessa musica, podereis já apreciar, melhor que eu, a sua solidez e o seu valor. Ella contem a victoria do maestro.

Quero somente, como me parece ser o complemento necessario de toda justa critica, esclarecer, por meio de algumas informações biographicas, a personalidade do compositor que apresento.

Nascido em Chinon, na Touraine, Fernand Jouteux, ainda menino, alma candida e aventurosa, enthusiasta e curiosa, quis ser musicista ou colono. Poz ao serviço desse duplo ideal uma infatigavel juventude, um labor e uma coragem imaginaveis. Seu pae mandou-lhe dar uma educação musical completa. Saiu da “Classe Massenet” com o “brevet” mais brilhante que jamais concedeu esse mestre, declarando que não tinha mais que lhe ensinar.

Jouteux podia então solicitar as recompensas e os concursos officiaes. Porém, preferiu embarcar para o Brasil, paiz em que desembarcaram, ha tempo, os conquistadores, e donde voltaram menos carregados de ouro que de sonho...

Visitou o Amazonas, penetrou no coração das florestas, quis conhecer e praticar a vida perigosa do Sertão, e afinal adquiriu uma fazenda de café no Estado de Pernambuco, querendo, dizia elle “trocar a penna pela enxada e cobrir-se com o chapéo de couro”.

Ao lado de sua esposa encantadora, corajosa e devotada, roçou, plantou, cultivou durante muitos annos, cheios de aventuras que dariam assumpto para um longo romance.

Numa das muitas viagens à Europa elle foi nomeado Director da Escola de Musica de Oran (Algeria), transformando em poucos mezes num verdadeiro Conservatorio.

Tão afastado que seja do mundo artístico, Jouteux não abandonava a musica. Punha à disposição dessa suprema expressão de arte todas as impressões, todas as sensações que lhe proporcionava o contacto perpetuo com a natureza, os costumes e a civilização de uma terra estranha.

Dessa synthese original sairam muitas obras curiosas, das quaes a opera nacional brasileira “O Sertão” (ex-Canudos), que tive a occasião de ler e cujo libretto, que se trata de um episodio da revolta de Canudos, não podia ser escripto senão pelo proprio compositor.

Depois de algum tempo, tendo cumprido a unificação da sua vocação, Fernand Jouteux pensou regressar à França, afim de tratar da edição de suas obras.

Com justo orgulho e fidalga esperança, imitando Chateaubriand, saudoso elle deixou sua pátria adoptiva, e voltou a Paris para lutar contra o mercantilismo artistico, num combate mais renhido e difficil do que na sua vida colonial, enfrentando as pistolas dos matutos...

Nascido, entretanto, num seculo de força e pertencendo a uma geração notavel de bravura, Fernand Jouteux, por não possuir a gloria de Chateaubriand, não lhe eguala (sic) tão pouco a sua melancolia.

Uma perseverança incansavel e uma fé tenaz no successo final não deixarão de ser um dia coroados de louros nos theatros lyricos e pela alta critica.

Fernand Jouteux tem em si, como diz Barrès, “essas incomparaveis exaltações que são, além de trinta annos, o privilegio de algumas naturezas reaes.”

Eis porque eu saudo aqui, não somente o valoroso colono dos sertões americanos, o autor das cem obras que talvez um dia sejam disputadas com o maximo interesse, como tambem, em resumo, um grande poeta! – France Darget.”

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, domingo, 9 de outubro de 1927, p. 2.


6)  A EPOPÉA SERTANEJA MOTIVO DE UMA OPERA  (na coluna "Canudos")


O maestro Fernand Jouteux, discipulo de Massenet, grande amigo do Brasil, escreveu uma opera em 4 actos, intitulada “Canudos”.

O compositor inspirou-se nas bellezas e nas originalidades do sertão brasileiro, e fez de Antonio Conselheiro, com as suas desgraças domesticas, o seu mysticismo e os seus desvarios, o heróe da partitura.

A letra é de proprio maestro e tanto quanto possível, elle se apegou ao episodio dessa tremenda e penosa campanha que deu a Euclydes da Cunha o seu maravilhoso livro.

Dessa sua opera, como de outras composições, o maestro Jouteux dará uma audição no dia 28 de outubro, no Instituto Nacional de Musica.

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, terça-feira, 25 de outubro de 1927, p. 5.


7)  AUDIÇÕES DE OBRAS DO MAESTRO FERNAND JOUTEUX (na coluna "Correio Musical")

Uma audição ao piano, ou mesmo com orchestra reduzida, como a que effectuou a 28 do mez proximo findo, no salão do Instituto Nacional de Musica, o maestro francez Fernand Jouteux, para apresentação de algumas das suas obras e, especialmente, de trechos de sua opera “Canudos”, é uma empresa excessivamente ingrata e arriscada. O valor dos cantores – mezzo-soprano Dolores Belchior, tenor Machado del Negri e barytono Adacto Filho – não compensou a pobreza dos contornos harmonicos, bem que sejamos forçados a reconhecer os esforços inauditos empregados pelo illustre maestro Giovanni Gianetti para tentar salvar a situação.

Aguardamos, pois, a execução de “Canudos” completa, com grande orchestra, para nos pronunciarmos a respeito.

Quanto às outras peças do programma, “Symphonia Brasileira”, “Carillon” para dois pianos, a quatro mãos, “Hymen”, “Bellator Domini”, “Aux Étoiles” e, especialmente, os “Cantos Brasileiros”, achamol-os interessantes, reveladores de uma bôa technica musical e de algum cuidado para fazer coisa original.

Entretanto, não nos parece que nas suas inspirações brasileiras tenha sido muito feliz o maestro Jouteux; a não ser na “Miry Pupé”, na “Invocação a Rudá” e na “Serenata Sertaneja”, tudo mais frisa pela banalidade.

Não é sem perigo que um autor vive afastado de movimento artistico por tantos annos, na sua Thebaida, de Garanhuns como o maestro Fernand Jouteux.

Não adeantamos aqui uma opinião definitiva, conforme já declaramos, esperando ouvir o distincto compositor francez de “Canudos” em condições mais propicias.

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, terça-feira, 1º de novembro de 1927, p. 7.



III. NOTAS EXPLICATIVAS


¹  Parece que esse ilustre Maestro italiano e grande pianista tinha em alta conta Fernando Jouteux, já que a ele se referiu com profunda admiração, dando-lhe o apelido de “Herdeiro de Massenet” (Revista Musical do Rio, 3-11-1937).

²  De acordo com o anúncio do jornal A Manhã, edição nº 541, igualmente de 18/09/1927, programava-se originalmente para o dia 30 de setembro de 1927 a apresentação do concerto, no Instituto Nacional de Música, conforme noticiado no post intitulado "Fernand Jouteux no Rio de Janeiro e em Santos Dumont", publicado no Blog do Braga em 07/06/2019.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2019/06/fernand-jouteux-no-rio-de-janeiro-e-em.html

³  [CARVALHO, 2010, 72-76] trata do referido júri no Instituto Nacional de Música, com destaque para dois jurados: Giovanni Gianetti e Fernand Jouteux, assunto que acho conveniente reproduzir aqui. A parte que nos interessa faz parte do capítulo intitulado "O Concurso de 1927: Début de Joanídia Sodré", analisado dentro do contexto de sua dissertação ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na USP, intitulada Renome, Vocação e Gênero: duas musicistas brasileiras. Joanídia Sodré (1903-1975) foi escolhida como uma de duas musicistas brasileiras porque, de acordo com a autora da dissertação, permite-lhe comprovar que, na busca pela profissão de "artista", Joanídia Sodré criou novos valores e sentidos que lhe possibilitou transitar entre profissões "masculinas" e "femininas".
Vejamos então em que consistiu o Concurso de Composição de 1927, no qual se destacou como vencedora Joanídia Sodré. Assim relata a autora da dissertação:

Em 1927, o Instituto Nacional de Música-INM realizou um concurso de composição, cujo prêmio era um curso de aperfeiçoamento na Europa. O edital publicado no Diário Oficial dizia:


Instituto Nacional de Música concurso para pensionistas
(...) estará aberta na secretaria deste instituto, pelo prazo de trinta dias, a contar de 19 do corrente, a inscrição ao concurso para prêmio de viagem ao estrangeiro, para os discípulos do estabelecimento diplomados no concurso de composição.

Para ser admitido ao concurso, provará o candidato:
1º) Ser brasileiro nato e ter, no máximo, 30 anos de idade;
2º) Ser diplomado no referido curso. Nos termos do art. 248, do regulamento, e 42, do regimento interno, o candidato demonstrará ter conhecimentos gerais das línguas francesa e italiana, observando-se na parte musical o seguinte programa: Composição de uma cantata para solo e coro com acompanhamento de orquestra, sendo o texto de escolha do concorrente, mas sujeito à aprovação da comissão julgadora. A composição será executada sob a direção do concorrente ou de um regente à sua escolha.”

O edital revela, ao mesmo tempo, o perfil social do compositor almejado e o dos alunos do INM, já que o concurso é dirigido aos “discípulos”, isto é, aos compositores por eles formados. Fica claro dessa forma que o concurso não contemplava todo e qualquer compositor, mas apenas os que tinham um diploma e uma boa educação, capazes, por exemplo, de dominar uma língua estrangeira (o que já eliminava muitos candidatos de “talento”, mas de origem humilde, sem condições de ter acesso a esses bens culturais). De modo que estudar música no INM e dominar outro idioma eram bens simbólicos acessíveis a poucos.

Joanídia, que seguia sua carreira como professora, decidiu participar da competição. Se a condição de professora do INM, por si só, já a colocava em uma posição privilegiada em relação aos demais concorrentes, é preciso dizer que, desde sua formatura no curso de composição em 1924, não se destacava como compositora, fato comprovado pela inexistência de obras neste período.

Das inscrições à divulgação do ganhador, o concurso foi cercado por celeumas de grande repercussão que ocuparam as páginas dos principais jornais da cidade. O primeiro fato envolveu o compositor Antônio Assis Republicano (1897-1960) – negro, conterrâneo e colega de turma de Joanídia Sodré (ambos alunos da turma de composição de Francisco Braga e diplomados em 1924). Assis Republicano era um compositor conhecido no Rio de Janeiro. Em 1925, sua ópera O Bandeirante foi encenada no Teatro Municipal da cidade na fase áurea das temporadas de ópera; em 1926, regeu um concerto de obras suas no Teatro Lírico.

Joanídia e Assis Republicano foram os únicos inscritos na competição que se tornou manchete de jornais quando foi descoberto que Republicano tinha mais de 30 anos e havia falsificado sua certidão de nascimento para tomar parte no concurso. A justiça interveio, impedindo a participação do compositor. Tal decisão acabou beneficiando Joanídia, que concorreu sozinha ao prêmio. Em consequência, houve divergências entre os professores do INM, pois muitos não concordaram com a decisão judicial que afastou Assis Republicano da disputa, por entenderem que Joanídia, na condição de professora da instituição, tampouco poderia participar da disputa. Alguns professores, tais como Luiz Amábile, se recusaram a participar do júri. Sua carta de recusa foi publicada no jornal A Noite em 5 de setembro de 1927:

“Parece, à primeira vista, que a intenção do legislador fora criar prêmios tão somente para os discípulos diplomados no Instituto. Puro engano. O Art. 247 reza: “Não poderão inscrever-se professores conjuntamente com alunos.”. É este o lado antipático da lei que faculta ao professor, forte, afastar o aluno fraco e humilde, embora este se chame Assis Republicano e a sua bagagem musical já se imponha à admiração dos mestres que o apontam como uma glória atual da geração brasileira. (...)

A solução do governo, afastando por uma questão de somenos importância, um candidato de valor de Assis Republicano, para amparar uma professora catedrática, a quem, aliás, estimo, considero e admiro, tornou-se antipática.”
(...)
Apesar de todos esses incidentes, Joanídia fez as provas previstas pelo edital em outubro. Em seguida, outro problema a levou a recorrer à justiça.

Segundo o regulamento, a prova escrita deveria ser mantida em sigilo até que o júri, conjuntamente, viesse a julgá-la. Contudo, antes que o júri se reunisse, dois professores tiveram acesso à prova e divulgaram o voto desfavorável sem esperar o resultado oficial.

Mais uma vez, amparada pela justiça, Joanídia leu sua refutação ao voto destes dois jurados, Giovanni Giannetti e Fernand Jouteux, perante o comitê julgador do concurso de Composição para o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro do Instituto Nacional de Música, em 19 de dezembro de 1927. Ao longo da carta, rebateu o argumento dos dois jurados, usando terminologia técnica especializada que demonstrava seus conhecimentos musicais. Refutou, de saída, a acusação de ser uma principiante, afastando-se da pecha de “amadora” e provando sua competência por meio do diploma do curso de composição, obtido em 1924:

“Relativamente ao voto do maestro Giannetti, passo a analisá-lo:
Diz no início: “O trabalho apresentado pela senhorita Joanídia Sodré no concurso para prêmio de viagem à Europa e destinado a um primeiro exame foge a qualquer análise técnica demonstrando, à primeira vista, uma deficiente posse de conhecimentos fundamentais de harmonia, contraponto e composição em virtude da qual uma obra orgânica e obediente às leis técnicas e estéticas desaparece.

Enganou-se o Sr. Giannetti não é este o primeiro exame de composição que presto, pois já fiz em prova prestada por ocasião de meu exame final de instrumentação e composição em 1924, perante banca examinadora composta de competentes mestres e professores deste estabelecimento, da qual obtive aprovação unânime, o que depõe contrariamente à sua primeira alegação.”

Afastados os dois jurados, uma nova comissão julgadora foi constituída e formada pelos seguintes professores: Henrique Oswald (1852-1931), professor de piano, e Agnello França (1875-1964), professor de harmonia (ambos antigos professores de Joanídia). Os demais: Joaquim Antonio Barroso Neto (1881-1941), professor de piano; José de Lima Coutinho (1862-1946) e José Raymundo da Silva (?-?), professores de solfejo e, por fim, Agostinho Luiz Gouvêa (?- 1941), professor de fagote. Por cinco votos contra um, eles concederam o prêmio a Joanídia Sodré pela composição da ópera intitulada Casa forte, com texto do escritor Goulart de Andrade (1881-1936).

A polêmica em torno do concurso de composição, envolvendo personagens como a justiça, os professores do INM e os jornais, marca a entrada de Joanídia no campo da música erudita carioca. (...)


France Darget é autora do poema intitulado Rosée, Lied op. 15 musicado por Fernand Jouteux e dedicado à Madame Mellot-Joubert, a saber:

ROSÉE
                                    France Darget

Maman, qu'est-ce donc qu'à l'aurore,
Aux milles pointes des buissons,
On voit briller, briller encore,
On voit briller sur les gazons?

Mon cher petit, c’est la rosée
Qui tombe la nuit du ciel bleu
Dans la grande plaine grisée;
Ce sont les larmes du Bon Dieu.

Ses larmes! l’étrange mystère…
J’en vois semé tout le jardin:
Pourquoi pleure-t-il tandis, mère?
Il a donc beaucoup de chagrin?

Oui, certes; car il est sur terre
Bien des enfants méchants, sans coeur.
Et, quand on fait pleurer sa mère,
On fait pleurer le Créateur.

Mais, sois toujours docile et sage,
Et cela le consolera:
Alors, comme un doux témoignage,
Son clair soleil s’éveillera.

Et, dans sa lumière superbe,
Pour éblouir tes yeux charmants,
Il fera de chaque brin d’herbe
Une aigrette de diamants.

Identificação no acervo na F-CEREM: JOU.01.007-MUn

 
A seguir, ofereço a seguinte tradução para o poema intitulado Rosée de France Darget:

ORVALHO
                         France Darget

Mamãe, o que é que de madrugada,
Nas mil pontas dos arbustos,
A gente vê brilhar, brilhar mesmo,
A gente vê brilhar sobre a relva?

Meu queridinho, é o orvalho
Que cai de noite do céu azul
Na grande planície acinzentada;
São as lágrimas do Bom Deus.

Suas lágrimas! o estranho mistério...
Vejo todo o jardim semeado delas:
Por que Ele chora então, mamãe?
Ele sente então muita tristeza?

Sim, claro; pois há na terra
Muitas crianças malvadas, sem coração.
E, quando se faz chorar sua mãe,
Faz-se chorar o Criador.

Mas, sê dócil e sábio,
E isso O consolará:
Então, como um doce testemunho,
Seu claro sol despertará.

E, na Sua luz magnífica,
Para maravilhar teus olhos encantadores,
Ele fará de cada ramo de grama
Um penacho de diamantes.



IV. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA



CARVALHO, Dalila Vasconcellos: Renome, Vocação e Gênero: duas musicistas brasileiras, dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social, 2010, 158 p.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

GRANDE FESTIVAL ARTÍSTICO EXCLUSIVAMENTE DE PEÇAS COMPOSTAS POR FERNAND JOUTEUX E APRESENTADAS NO TEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)




I. INTRODUÇÃO



Desde o dia 21 de novembro de 1948, o Estadão vinha anunciando, na coluna "A Sociedade", edição nº 22.551, p. 11, um FESTIVAL MUSICAL constando de obras do maestro Fernand Jouteux a realizar-se no dia 25 no Teatro Municipal, sob o patrocínio do Sr. Robert Valeur, cônsul geral da França em São Paulo, e com o concurso da Banda Militar da Força Pública. Assim, no dia 25 de novembro de 1948, dia do concerto, a edição nº 22.554 do jornal Estado de S. Paulo estampou, na coluna “A Sociedade”, na p. 7, a mesma matéria anunciada desde 21/11, intitulada FESTIVAL MUSICAL, nos seguintes termos:
Realiza-se hoje, às 21 horas, no Teatro Municipal, um festival musical de obras do maestro francês Fernand Jouteux, sob o patrocínio do sr. Robert Valeur, consul geral da França em São Paulo, e com o concurso da Banda Militar da Força Pública.
O programa é o seguinte: “Impressões de meu jardim”, “Árias sudanesas”, “Dança chinesa”, Sinfonia das Americas”, “Pavane de amor”. – “Bailado” (Canudos): Ópera “Os Sertões”: a) Valsa nostálgica; b) Baiano; c) Sarabanda dos Punhais; e Marcha solene dos “maquis”.

Em todos os dias seguintes ao Festival Musical, tentei localizar alguma referência ao concerto, mas, neste caso, nenhuma palavra, bem como nenhuma crítica ao Festival Musical no acervo do “Estadão”.

Pior ainda se portou o Jornal de Notícias: nenhum anúncio do Festival Musical, nem notícia no dia do concerto. Silêncio completo!

Também, não houve qualquer referência ao Festival Musical na Folha da Manhã.

É possível que aquela apresentação de obras de Fernand Jouteux no Teatro Municipal de São Paulo tenha tido um caráter reservado, já que de iniciativa do Consulado Geral da França em São Paulo. Mas, neste caso, não justificaria o anúncio-convite desde o dia 21/11/1948 para os leitores do Estadão comparecerem.

Abaixo apresento três páginas do Programa, sendo minha a tradução do texto em francês.



II. O PROGRAMA DO FESTIVAL MUSICAL

Teatro Municipal
====================

São Paulo, quinta-feira, 25 de novembro de 1948

Sob o sumo patrocínio de Sr. Valeur
Cônsul Geral da França e de Sra. Valeur
GRANDE FESTIVAL ARTÍSTICO
em benefício da Ajuda Mútua francesa
Execução de obras francesas, brasileiras, chinesas
e africanas de

Fernand Jouteux

Discípulo predileto de MASSENET
pela “Orquestra Sinfônica Militar da Força Pública”
graciosamente oferecida pelo Sr. Comandante
Cel. Eleutherio Brum Ferlich

Direção do autor

Identificação no acervo na F-CEREM: JOU.05.015

PROGRAMA

I

IMPRESSÕES DE MEU JARDIM de Garanhuns-PE    Fernand Jouteux
I – Minha vida de poeta e o jardineiro amador na “Suíça Pernambucana”.
II – A sesta, sob a encantadora varanda.
III – Os mamoeiros, à beira do abismo
IV – Apoteose do TRABALHO, que transformou matagal em “Jardim das Hespérides”
Obras de caráter exótico:                                 Fernand Jouteux
África: ÁRIAS SOUDANESAS – da Corte de Samory, ex-rei do Sudão
Ásia: DANÇA CHINESA – sobre a escala chinesa de 6 notas: dó, ré, mi, fá, sol, lá.

II

SINFONIA DAS AMÉRICAS                                          A. B. Cunha
PAVANA DE AMOR – da Suíte de Orquestra HIMENEU
( VALSA NOSTÁLGICA – a nostalgia do “sertão”).
( BAIANO (as burlescas) – cena carnavalesca).
( SARABANDA DOS PUNHAIS – os Jagunços), do Balé da ópera “O SERTÃO” sobre a epopeia de Canudos                                                           Fernand Jouteux
OS MAQUIS – marcha solene – dedicada ao glorioso General de Gaulle –sobre o Oratório de Saint-Martin
BELLATOR DOMINI                                            Fernand Jouteux


Fernand Jouteux

Nasceu na cidade histórica de Chinon (Indre-et-Loire, França). Após ter terminado seus estudos literários no Ginásio de Pontlevoy (Loir-et-Cher), e musicais no Conservatório de Paris, com Massenet, o imortal autor da Manon e da Thaïs, ele vogou pelas águas do Rio-Mar, para ligar sua música com o ambiente brasileiro, e sugar às nossas floras a essência de sua originalidade. Durante quarenta anos, percorreu o Pará, o Amazonas e os sertões do Norte, em busca de impressões novas, de assuntos exóticos, para saturar de sonhos inéditos o seu espírito de Bandeirante do Ideal, vestir os seus poemas sinfônicos de um sabor intenso de brasilidade, fazendo de sua propriedade Bela Aliança (nome predestinado!) em Pernambuco, a sua tenda de trabalho.
Lá, escreveu a Sinfonia Brasileira – Os Cantos Brasileiros – e a grande ópera brasileira O Sertão, sôbre a epopéa de Canudos. Trechos dessas obras, assim como o seu Oratório de São Martinho, Bellator Domini, e uma outra ópera Klytis obtiveram em Paris um ruidoso sucesso e deram ao seu nome uma fama mundial.
Seus Cantos Brasileiros foram premiados pelo “Salon des Musiciens Français” e a sua cena dramática Le Retour de Marin pela Société des Compositeurs de Paris.
Massenet, de quem foi o aluno predileto, declarou “ser ele um compositor vibrante, um Mestre em toda a acepção da palavra”.
O Mestre italiano Gianneti deu-lhe o apelido de “Herdeiro de Massenet” (Revista Musical do Rio, 3-11-1937).
O Maestro brasileiro Hernani Bastos, quando Diretor do Conservatório de Niterói, publicou que “suas obras, debordantes de brasilidade, no alto estilo de sua personalidade, empolgam aos mais eruditos”.
Enfim o exímio poeta brasileiro Sylvio Moreaux dignou-se qualificar na Imprensa a sua obra-prima O Sertão: PATRIMÔNIO NACIONAL.





III. AGRADECIMENTO 



À minha esposa Rute Pardini Braga pelas fotos que formatou e editou para os fins desta matéria.
À F-CEREM, na pessoa de Márcio Saldanha, Secretário do Programa de Pós-Graduação em Música da UFSJ, pela boa acolhida para a realização desta pesquisa no acervo francês do compositor Fernand Jouteux.





quinta-feira, 13 de junho de 2019

ANTÔNIO CONSELHEIRO NA ÓPERA “O SERTÃO”



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)




I. INTRODUÇÃO


Quando da montagem da ópera O Sertão em Belo Horizonte, a orquestra, solistas e coro tiveram dificuldade em utilizar a versão produzida por Jouteux quase 40 anos antes. Por isso, vários trechos foram reorquestrados, além de providenciada a cópia das partes cavadas para a orquestra e solistas. Testemunhos do Campo das Vertentes narram que o seu aluno Adhemar Campos Filho, de Prados, colaborou em algumas dessas tarefas. O libreto original por Fernand Jouteux era bilíngue (francês/português), porém para a estreia foi providenciada uma nova tradução para o português por Celso Brant, o presidente da comissão de montagem da ópera.

A estreia da ópera O Sertão deu-se finalmente em 29 de novembro de 1954, no Teatro Francisco Nunes, com renomados solistas, acompanhados pela Orquestra da Polícia Militar de Minas Gerais, sob a direção de Hostílio Soares, com a participação de (também estreante) Luiz Aguiar. Foram realizadas mais três récitas da ópera em 1954, uma delas novamente no Teatro Francisco Nunes no dia seguinte à estreia, outra no Cine Teatro Brasil de Belo Horizonte e a última no Cine-Teatro Central de Juiz de Fora, em 30 de maio de 1955, sob a direção de Sebastião Vianna. Uma tentativa para a quinta récita dessa ópera em São João del-Rei foi feita em 1956, mas que acabou não sendo realizada.

Após a estreia da ópera em Belo Horizonte, Jouteux teria declarado aos amigos: "Posso morrer agora". Viúvo, debilitado após a montagem da ópera, sem parentes no Brasil e totalmente sem recursos, aos 90 anos de idade e já vivendo em Belo Horizonte desde meados de 1953, Fernand Jouteux passou a residir, a partir de meados de 1955, na casa de uma das cantoras do elenco (e maestrina interna), Corina Elisabeth de Tompa (Rua Martim de Carvalho, 503), onde faleceu em 16 de setembro de 1956 de uma crise de uremia, tendo sido sepultado no Cemitério do Bonfim.

A maior parte de seus pertences e os de Magdeleine Aubry permaneceram na segunda casa em que residiu na Rua Direita de Tiradentes (atualmente nº 7) e somente foram encontrados décadas após a sua morte. O autógrafo da ópera O Sertão não permaneceu em seu arquivo pessoal em Tiradentes, pois estava em Belo Horizonte por ocasião das representações da ópera em 1954 e 1955, não tendo sido localizado até o momento. ¹

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernand_Jouteux


II. TEXTO: UM FRANCÊS, MAESTRO FERNAND JOUTEUX (DISCÍPULO DE MASSENET), CRIA VIGOROSA PEÇA LÍRICA SOBRE A EPOPÉIA DE CANUDOS.

Reportagem de EUGÊNIO H. SILVA



O MAESTRO Fernand Jouteux, autor da ópera “O Sertão”,
 ao lado da soprano Lia Salgado, esposa do Governador 
de Minas Gerais, que interpretou muito bem 
o papel de Cília, mulher de Antônio Conselheiro


O PROFESSOR francês Fernand Jouteux, herdeiro musical e aluno predileto de Massenet, conseguiu afinal realizar em Belo Horizonte a estréia (mundial) de sua ópera em quatro atos, “O Sertão”, inspirada na epopeia de Canudos. Nasceu o autor da ópera, de motivo genuinamente brasileiro, em Chinon (França). Foi diretor da “École de Musique de Oran” (África), tendo sido distinguido pelo governo francês com as “Palmas Acadêmicas”. Seus “Cantos Brasileiros” foram premiados pelo “Salon des Musiciens Français” e a cena dramática “Le Retour du Marin” pela “Societé des Compositeurs de Paris”. Narrar a luta de Jouteux para conseguir montar a bela peça lírica é transportar-nos a cerca de 20 anos atrás, quando se completou a partitura. Jouteux, caçador de melodias, sobrinho de um Rei no Pacífico, eremita em Sabará e Tiradentes (Minas), fazendeiro e garimpeiro em Garanhuns (Pernambuco), tem sido principalmente um artista em luta com dificuldades terríveis. Viveu pobremente nas caatingas do sertão pernambucano e baiano, para melhor se integrar nos costumes da região de Antônio Conselheiro. Sempre trabalhando, obscura e minuciosamente, em suas composições musicais, parecia que ia ser vítima da maior ingratidão: ter de legar “O Sertão” inédito aos pósteros.
“Eu não me resigno”, disse certa vez a Georges Bernanos, referindo-se ao desejo natural de ver sua ópera encenada. E só agora, com 90 anos, pôde Jouteux comparecer a um teatro para assistir à estréia de sua principal obra musical. Não lhe foi possível conter as lágrimas. Havia por perto um médico de coramina em punho, pronto para uma eventual crise cardíaca do velho maestro. Jouteux comentou:
“Quem durante 40 anos não morreu de dor, decerto não morrerá num dia de alegria”.







O ILUMINADO Antônio Conselheiro exorta  o povo de Canudos à resistência contra as tropas federais. (Cena do II ato, em frente ao templo.)







PROCISSÃO DOS PENITENTES: Eis uma cena impressionante de “O Sertão” (II ato). Vêem-se Antônio Conselheiro (personificado por Edison Macedo) e sua mulher Cília.
LADY FRANCISCO na “Dança dos Cairus”, 
bailado do III ato da ópera de autoria do Maestro Fernand Jouteux.

CENA FINAL da ópera “O Sertão”. Depois da luta sangrenta, 
jazem mortos os bravos defensores de Canudos.
A ópera “O Sertão” é cantada em português, em versão feita por Celso Brant, do libreto francês. Segundo o comentário geral, Jouteux foi de grande felicidade na composição. Trouxe para a lírica tôda a realidade e mística do sertão agitado pela imensa tragédia descrita por Euclides da Cunha na sua obra imortal.

A ópera obedece ao sistema temático ensinado ao autor pelo seu famoso mestre Massenet. Recebe a influência de três escolas: francesa e italiana, nas árias e conjuntos; alemã, quer dizer, wagneriana, nos recitativos, fazendo com que haja alternação entre melodia e a sinfonia. Contém diversos motivos do folclore e numerosos temas sinfônicos, que evoluem de acordo com a ação cênica. Em resumo, a música de “O Sertão” tem, dentro de sua beleza genuína, aliada à sensibilidade de Massenet, o ímpeto melodioso de Verdi, a técnica vigorosa de Wagner. E aureolado pela magnificência da sinfonia, como referência central do patético teatral, ergue-se a figura de Antônio Conselheiro – agora imortalizado na ópera.

Fonte: revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro, edição de 4/6/1955, Ano XXVII, nº 34, p. 24-29
Identificação no acervo na F-CEREM: JOU.04.008



III. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


¹  A Internet traz dois vídeos da ópera “O Sertão”. Consta que foram localizados no porão da casa que hospedou Fernand Jouteux em Tiradentes por João Jorge de Almeida Soares, fragmentos da ópera que era tida como perdida. Ele próprio rege a Orquestra Sinfônica da Polícia Militar de Minas Gerais nas gravações disponíveis nos vídeos abaixo. Seja como for, esta é uma excelente amostra que nos dá uma ideia do que deve ter sido a ópera integral do compositor francês.  
Links disponíveis no YouTube:

https://www.youtube.com/embed/kVn7IGQ8slQ





IV. AGRADECIMENTO 



À minha esposa Rute Pardini Braga pelas fotos que formatou e editou para os fins desta matéria.
À F-CEREM, na pessoa de Márcio Saldanha, Secretário do Programa de Pós-Graduação em Música da UFSJ, pela boa acolhida para a realização desta pesquisa no acervo francês do compositor Fernand Jouteux.





quarta-feira, 12 de junho de 2019

UM VELHO DISCÍPULO DO AUTOR DE “MANON” ESCREVE UMA ÓPERA INSPIRADA NA GRANDE OBRA DE EUCLIDES DA CUNHA



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)




I. INTRODUÇÃO


Continuemos a acompanhar os passos de Fernand Jouteux na sua marcha pelo País. Ei-lo agora recebendo a visita de um repórter do Correio da Manhã, que vem do Rio de Janeiro em outubro de 1938, se hospeda em algum hotel de São João del-Rei e toma um ônibus com destino a Tiradentes, onde o compositor francês se radicou em companhia de sua esposa Magdeleine Aubry.

Lá chegando, o repórter não encontra o músico, mas sua esposa, que o deixa maravilhado por sua facilidade de expressão, intensidade de seu amor pelo marido, mesmo diante do fato de serem "caminheiros errantes" – certamente passando por privações –, e conhecimento profundo da ópera O Sertão, composta por seu marido "nas cordilheiras de Garanhuns-PE" e que ele identifica estar num “dossier”, em cuja capa lia-se em letras azuis bordadas de vermelho: “O Sertão – Drama musical em 4 actos. Letra e musica de Fernand Jouteux” sobre uma mesinha rústica.

A decepção do repórter também é nossa, porque não temos propriamente uma entrevista feita com o compositor francês, conforme era o objetivo inicial, mas sim com sua esposa. Mas a decepção inicial do repórter se transforma em vivo entusiasmo à medida que mme. Magdeleine se expressa, revelando a grandeza do seu sentimento em relação ao marido, à sua obra e a seu ideal artístico, o que leva aquele a dar-nos a exata dimensão do perfeito conhecimento de tudo por parte dela. E isso é encantador e é uma prova de como Jouteux era feliz ao lado dessa mulher excepcional.

Diante dessa figura feminina, não pude deixar de me lembrar da Odisseia de Homero que, além de narrar a Guerra de Tróia, trata do amor de uma mulher (Penélope) por seu marido (Odisseu ou Ulisses, rei de Ítaca), o qual partiu para a guerra e se ausentou do lar por vinte anos, entretanto sem deixar nenhuma evidência de sua morte em batalha. Sem qualquer notícia de seu amado, a fidelidade dela foi submetida a grandes tentações, a começar por seu pai que insistia para que ela se casasse novamente: ela, fiel ao marido, recusava o apelo do pai e a insistência dos mais diversos pretendentes. Sabiamente estabeleceu uma condição: o novo casamento somente se daria depois que ela terminasse de tecer uma colcha em tricô. Durante o dia, aos olhos de todos, Penélope tecia e, à noite, secretamente, desmanchava todo o trabalho para não desmanchar o seu amor. Denunciada por uma serva, ela então impôs outra condição ao pai. Conhecendo a dureza do arco de Ulisses, ela afirmou que se casaria com o homem que conseguisse retesar o arco. Dentre todos os pretendentes, apenas um humilde camponês conseguiu realizar a proeza. Esse camponês, disfarçado, era o próprio Ulisses, que então despertou Cupido, o qual flechou o casal de amantes nova e definitivamente.

Sobre a cidade de São João del-Rei, o repórter confirma que em 1937 o compositor francês ali desembarcou, interessado em dar um concerto e viu-se cercado de atenção pelas principais figuras da cidade centenária, comprovando a sua fama de "cidade da música". Mas, infelizmente, nenhuma palavra do repórter do Correio da Manhã sobre nosso homenageado ter sido Diretor Efetivo do Conservatório de Música Sanjoanense,  durante o referido ano – conforme já tive a oportunidade de provar em artigo anterior, pesquisando as páginas do periódico são-joanense A TRIBUNA durante 1937 – mas reconhece que ele já se achava radicado em Tiradentes em 1938, aonde vai a seu encontro para a frustrada entrevista com o Maestro.


II. TEXTO: À PROCURA DE FERNAND JOUTEUX


Onde os extremos se tocamÀ procura de Fernand Jouteux, compositor francez, que se integrou nas montanhas de Minas GeraesCanudos!Um concerto para o padre CiceroOs “Sertões” na SorbonneO amorVida errante.
(De Lincoln S. Gomes, especial para o Correio da Manhã)


Das cidades mineiras, Tiradentes é, provavelmente, a única que vive com menos intensidade a vida que foi vivida há mais ou menos dois séculos, quando por ali passaram os turbulentos taubateanos empunhando bandeiras tremulantes e bacamartes pesados à procura do metal que até hoje é o mais procurado e ambicionado e que, como em épocas remotas, é e será sempre o mais fascinante.

Houve guerra, paulistas e portugueses se degladiavam (sic) em tremendas e interminaveis lutas; em 1707 teve inicio a “Guerra dos Emboabas”, desenrolando na Ponta do Morro, onde se acha actualmente localizada Tiradentes, as mais encarniçadas batalhas. Os paulistas camouflados (sic) em ramagens, entrincheirados nas arvores frondosas, faziam fogo contra os lusos, derrotando-os. Conhecida essa tactica, aquelles foram obrigados a tomar posições differentes e um dia a “casa caiu”.

Bento Amaral, caudilho velho e sem escrúpulos, ordenou a sua gente que hasteasse uma bandeira branca. Os homens de Piratininga renderam-se. De ambas as partes fizeram juramentos por tudo quando é sagrado e em nome da Santissima Trindade – as vidas dos prisioneiros seriam respeitadas. Não obstante essa formalidade christã, houve a maior “ursada” de todos os tempos, registada na Historia do Brasil e o local denominou-se “Capão da Traição”.

Depois veiu o socego (sic). Só se falava em oitavas de ouro.

Foi o seguinte o movimento economico-financeiro apresentado pela camara municipal da vila de São José, em 1729: Escravos, 5.419; Lojas, 17; Vendas, 106; Officio, 75; Caixa, 59.781; oitavas e um quarto de ouro do manejo.

Nesse mesmo anno s. majestade recebeu os tributos pagos pelo povo no valor de 8.740 e ¾ de ouro, restando para os fallidos, 135 oitavas. Bons tempos.

Hoje, a antiga Villa de São José atravessa dias esquecidos numa somnolencia agradavel de cansaço de quem muito lutou e que recosta exausto numa tranquilidade reparadora. As suas ruas sinuosas apresentam uma melancolia impressionante. Quem passa, olhando a sumptuosidade de seu casario velho, vetusto e colonial, nota-se (sic) por entre as rotulas largas das venesianas entreabertas, olhares que espreitam, investigando e conferindo os forasteiros que por ali transitam em busca de historia ou do grande tesouro de prata que dorme no porão da Matriz, pesando pouco menos de 50 arrobas. Apezar desse bucolismo, Tiradentes é uma cidade amena e seu povo é bom e forte. Calmo e conciente (sic) que ri dos habitantes de outras terras onde energias são gastas inutilmente.

ONDE OS EXTREMOS SE TOCAM

Seria arriscado fazer uma comparação entre Tiradentes e Paris. Absurdo, não resta a menor duvida. Mas uma ligação entre estas duas cidades está feita por intermédio de uma pessoa que é mais parisiense que a propria Torre Eiffel. Trata-se de um discipulo de Massenet, que sentava na mesma carteira de Debussy, que dirigiu a Escola de Musica e Declamação de Oran e que nasceu em Chinon onde Joanna d’Arc organisou o exercito para sitiar Orleans.

Essa extranha figura é Fernand Jouteux, autor de uma opera que já se acha escripta e orchestrada, prompta para ser executada, inspirada nos “Sertões” de Euclydes da Cunha, portanto puramente brasileira.

UM POUCO DE SUA VIDA

Ha mais ou menos um anno, desembarcou em São João d’El-Rey, um personagem curioso que desejava dar ali um concerto musical, procurando as principaes figuras da cidade centenária, apresentando-se simplesmente assim: “Fui discipulo de Massenet, chamo-me Fernand Jouteux e desejo offerecer-vos uma hora de musica e de arte”.

Como se sabe, São João d’El-Rey é culta por radiação. Cada sanjoannense é um artista. Dahi a attenção de que o maestro Jouteux foi cercado. Espirito mais arguto ponderou-lhe de que proximamente se realisariam ali as eleições e com a vinda de eleitores e forasteiros a renda da bilheteria seria mais compensadora. Accedendo esse alvitre o compositor francez dirigiu-se para a visinha e quieta Tiradentes.

Até o presente momento elle aguarda as eleições, calmo e contagiado pela quietude que dorme resguardada pela serra São José, muralha natural daquella terra e defensora intransigente da pressa e da civilização.

À PROCURA DE FERNAND JOUTEUX

Procuramos ouvir Fernand Jouteux. De São João d’El-Rey subimos a estrada num velho omnibus, circumdando o rio das Mortes. Poucos minutos depois em Tiradentes batiamos à porta do maestro. Uma senhora de sotaque afrancezado recebeu-nos. Apresentamo-nos. Estavamos portanto à frente de madame Magdaleine (sic) Jouteux, esposa de Fernand e neta de monsieur Claude Aubry, antigo presidente da Côrte de Appellação de Angers, figura de destaque nos meios forences (sic) francezes onde deixou diversas obras sobre legislação juridica.

Mme. Magdaleine, demonstrando satisfação e desculpando-se da falta de conforto da ampla sala modestamente mobiliada, convidou-nos a sentar. Na parede, uma caricatura do maestro e diversas photographias de pessoas da familia. Ao fundo, uma mezinha rustica repleta de papeis de musica e um “dossier”, em cuja capa lia-se em letras azues bordadas de vermelho: “O Sertão – Drama musical em 4 actos. Letra e musica de Fernand Jouteux”.

Falamos sobre o artista. No momento elle não se encontrava em casa e isso deu margem para que mme. Magdaleine conversasse mais à vontade. Ella é grande admiradora de seu esposo. Cita-o constantemente e manifesta o seu pezar sobre o nosso imprevisto desencontro. Offerece-nos um delicioso licôr e relembra as passagens interessantíssimas e aventuras romanticas de seu tempo de jovens enamorados. E os paineis parisienses vinham-lhe à mente cheios de um colorido muito tropical e que bem mostrava o modo porque essa antiga dama franceza assimilou às suas caras recordações o encanto e as bellezas naturaes do Brasil.

Passamos a falar da arte de seu marido. E mme. Magdaleine tomou a palavra:

– Foi maravilhado pela facilidade de expressão do grande escritor brasileiro Euclydes da Cunha que meu marido se inspirou para fazer a verdadeira obra séria, bem cuidada e carinhosamente elaborada de sua vida artistica. A magistral descripção da formação geologica do Brasil, a decomposição das camadas de seu sólo, estudando, com perfeito conhecimento de causa, a razão de ser de tantos thesouros e tão valiosas jazidas encrustadas no seio dessa terra fertil e encantadora, deram ao meu marido a perfeita comprehensão da grandeza da obra desse brasileiro illustre e a noção da responsabilidade que assumiria ao traduzir em sons musicaes esse hymno de grandeza e de esplendor que é a Terra, parte inicial dos “Sertões”. As obras de maior renome da literatura franceza, com que Jouteux embalou os seus primeiros dias de uma mocidade dourada por um sonho de arte, jamais conseguiram despertar em seu espirito commodista a idéa da realisação de uma grande obra musical. No Brasil, porém, deante da majestade dessa natureza prodigiosa, compartilhando do mesmo enthusiasmo vivido por um povo jovem e cheio de idéas, extasiado ante o immenso e envolvente mysterio natural dos tropicos, e depois vendo tudo isso tão bem descripto na obra de uma intelligencia inegualavel (sic), como é esse livro de Euclydes da Cunha, seu genio musical não pôde permanecer indifferente. Embora filho de regiões diversas em tudo da em que vivemos agora, Jouteux sentiu muito mais a propria força dessa natureza vigorosa e cheia de virgindade do que as impressões causadas ao seu espirito, pelos calmos paineis dos campos europeus, cansados de seculos e seculos de trabalho. A “ouverture” da opera de meu marido é assim apotheotica como a propria Terra, dos “Sertões” e cheia de harmonia como o solo brasileiro é prenhe de thesouros.

E mme. Magdaleine prossegue:
– Nesse scenario grandioso da terra brasileira, em meio das caatingas enroscadas pelo sol causticante do sertão bravio, entra então a musica descriptiva. São os instrumentos a chorar na lamuria orchestral as supplicas pungentes saidas de todos os entes que ainda mostram um resto de vida nessa natureza esmaecida pela aridez da secca. O numeroso côro entôa agora a aria da sêde. São milhares de homens que abandonam as casas onde nasceram e os campos onde viram a vida para um destino que elles mesmos não conhecem. É essa a triste e eterna canção dos retirantes. – Mas, não faltam tambem na opera as scenas nervosas das vaquejadas. O vaqueiro com sua aguilhada curta e seu cavallo adestrado segue o encalço da rez bravia que se perde na matta rasteira. O homem é resolvido e não esmorece nunca. O sertanejo é antes de tudo um forte... Depois, na sua phase final, a luta que quasi desfez o Exercito brasileiro nos fins do seculo passado.

CANUDOS !

– No ultimo acto da opera meu marido descreve então a batalha de Canudos, com a figura lendaria de Antonio Conselheiro e as varias expedições militares enviadas ao reducto dos fanaticos nordestinos pelo poder “divino”, do homem que se dizia o ultimo salvador da humanidade.

UM CONCERTO PARA O PADRE CICERO

– Tambem Jouteux não encontrou a minima difficuldade para traduzir em sons o espirito sublevado e as scenas de revolta e de valentia dos caboclos. Tendo vivido durante annos no sertão de Pernambuco, pôde conhecer de perto o temperamento desses homens fortes e ousados, acostumados às adversidades de uma natureza rigida e quasi hostil.

No Joazeiro deu varios concertos para o padre Cicero que applaudia com verdadeira admiração as musicas executadas em um piano velho, aquelle mesmo instrumento que durante as missas marcava os compassos dos psalmos.

OS “SERTÕES” NA SORBONNE

Mme. Magdaleine faz uma pausa, e, mais enthusiasmada, prossegue na sua narrativa:
– Uma noite, estavamos em Paris, – a Universidade da Sorbonne achava-se iluminada para as festas commemorativas do encerramento do anno letivo. Jouteux havia sido convidado para dar um concerto. E, ante uma assistência calculada em mais de mil espectadores e composta da mais fina flôr da aristocracia do mundo, meu marido executou varios trechos de “Os Sertões”. A musica escripta nas cordilheiras dos Garanhuns e transportada para a maior fonte de sabedoria da intelligencia universal, era perfeitamente sentida por um povo extranho (sic) a essa natureza verde e forte, mas que jamais poderia passar a desprezar as melodias quentes que ella inspirara. E as palmas se repetiam freneticas attestando a admiração da platéa...

MAIS COMPOSIÇÕES

Jouteux é fertil e inspirado. Além de sua opera elle compoz: Le Retour du Marin, scena dramatica para Soprano, Côro e Orchestra (Théâtre de la Bodinière, Paris). Klytis, idyllio dramatico. Ode à Balzac. Oratorio de Santa Joanna d’Arc. Noces Célestes, vidraça symphonica, para orchestra. Oocystis ¹, para Oboé, Viola e Orchestra. Prélude Bachique. Poema Mystico. Arias Sudanenses e muitas melodias e musicas sacras.

QUALQUER COISA DA VIDA DO COMPOSITOR

– Mas, madame Magdaleine – dissemos interrompendo a sua interessante narrativa – queremos saber tambem qualquer coisa da vida de seu marido. Onde nasceu, quando iniciou sua carreira artistica e as outras coisas que mais directamente se prendem à sua existência – não seria muita indiscrição?

– Nenhuma – respondeu madame – sou uma admiradora de meu marido desde que delle recebi as primeiras lições de musica, e agora que o professor se fez esposo, ha tantos anos, a admiração transformada em carinho me levou tambem à curiosidade de saber tudo que mais directamente fale sobre a sua existencia. Como o senhor vê, é bem facil para mim responder a sua pergunta. – Nasceu a 11 de janeiro de 1866 em Chinon, pequena cidade da França, mas dona de uma historia cheia de encantos e de belleza. Na terra natal de meu marido foi que Joanna d’Arc solicitou ao rei Carlos VII a espada e o exercito para sitiar Orleans que estava ocupada pelos inglezes. E a cidade de meu marido se acha muito ligada à historia do Brasil por ter nascido ali, tambem, Charles Devaux, um dos fundadores de São Luiz do Maranhão, como se sabe.

E carinhosamente madame Magdaleine entrou na outra phase de sua narrativa:
– Fernand fez os seus primeiros estudos no Gymnasio de Pontlevoy (Loir-et-Cher); dahi saindo, matriculou-se no Conservatorio de Paris, cursando a classe de Harmonia. Dois annos depois Jouteux não era mais aquelle adolescente ingenuo que vagava quasi timido pelas ruas de Paris. Os sons que lhe vinham de fóra transformavam-se na sua imaginação em phrases musicaes delicadas e eternas symphonias. Nessa época já se dedicava ao estudo de Composição. Era seu mestre o autor de Manon, o grande maestro Massenet. Jouteux foi um de seus mais destacados alumnos e tambem um de seus mais fervorosos admiradores. Discipulo na classe durante as horas de aula é ainda o seu discipulo na preferencia inegualavel do seu gênio musical. Até hoje Jouteux vê as combinações das partituras e traduz as impressões da vida com aquelle mesmo frizante sentimento e aquella mesma doçura de phrases que ouvira outróra nas licções inesqueciveis de seu mestre. Massenet não morreu para elle. E cada nova inspiração que nasce para meu marido, o antigo professor do Conservatorio de Paris, o genial musico da obra do Abade Prévost reapparece vivo para Fernand e canta com elle esses poemas musicaes que eu ouço saindo cheio de belleza das teclas encardidas desse nosso velho companheiro collocado ali no canto da sala. Meu pae era um homem de grandes posses e bastante dado à arte. Um dia, na nossa casa, fui apresentada ao maestro Fernand Jouteux, meu novo professor de Harmonia. Desde esse momento, não sei porque, não mais pensava em sair de casa na hora da aula de Harmonia. Um anno depois eu me tornava esposa de Fernand.

VIDA ERRANTE

E madame Magdaleine prosseguiu:
– O genio irrequieto de meu marido não permitiu que levássemos uma vida pacata e sonhando, como todos os casaes burguezes da França de nosso tempo. E assim desembarcamos no Brasil. Percorremos os principaes Estados desse paiz e ficamos maravilhados com a sua exuberante belleza tropical. Jouteux, desde logo estabeleceu que este era o paraiso sonhado para o seu grande ideal artistico. Voltamos à França diversas vezes e numa dessas viagens trouxemos bastante dinheiro e compramos uma fazenda em Pernambuco. Fomos mal succedidos, entretanto. Vendemos a fazenda, seguindo o nosso destino de caminheiros errantes e aqui estamos hoje tranquillos e – por que não? – felizes.

ENCONTRAMOS FERNAND JOUTEUX

Despedimo-nos de Mme. Magdaleine e regressamos a São João d’El-Rey. No ponto de parada do omnibus que faz o trajeto entre aquellas duas cidades mineiras, ao apeiarmos (sic), encontramos com Fernand Jouteux. Ninguem precisou de apresentar-nos. A sua figura de verdadeiro artista francez, o seu chapéo preto de abas largas e sua gravata latina convidavam-nos para uma ligeira palestra ou uma entrevista. Na sua modestia, disfarçou com a partida do auto para Tiradentes, que estava por minutos apenas. E quando insistimos novamente sobre a entrevista, sem dizer que vinhamos de sua casa, elle respondeu num gesto muito parisiense:

– Para que isso? Porque desejaria o senhor contar a todo o mundo a vida pacata de um velho esquecido? Entretanto, quero a sua amizade de moço. Vá a minha casa tomar o meu licôr preparado por Magdaleine para as visitas amigas...

Fonte: CORREIO DA MANHÃ, Supplemento, Rio de Janeiro, edição 13491, 30/10/1938, p. 4.
http://memoria.bn.br/pdf/089842/per089842_1938_13491.pdf 

Identificação no acervo na F-CEREM: JOU.04.007

III. NOTAS  EXPLICATIVAS

¹  O texto menciona o título "Oatystis", não encontrado nos dicionários que consultei. O termo mais próximo em francês é: "Oocystis", denominação de uma espécie de alga.


IV. AGRADECIMENTO 



À minha esposa Rute Pardini Braga pelas fotos que formatou e editou para os fins desta matéria.
À F-CEREM, na pessoa de Márcio Saldanha, Secretário do Programa de Pós-Graduação em Música da UFSJ, pela boa acolhida para a realização desta pesquisa no acervo francês do compositor Fernand Jouteux.