sexta-feira, 26 de agosto de 2022

“MOSCOU”, CANTATA DE TCHAIKOVSKY SOBRE LIBRETO DE APOLLON MAYKOV


Por Francisco José dos Santos Braga 
 
Dedico este texto ao Prof. Dante José de Araújo, ex-provedor do Albergue Santo Antônio e irmão da Ordem Terceira de S. Francisco de Assis, em S. João del-Rei, que, ciente de meu interesse pelo destino e brilhante porvir da capital russa, me forneceu cópia de CD com a cantata MOSCOU, incentivando-me a pesquisar e discorrer sobre ela neste Blog do Braga.
Gravação antológica da cantata Moscou: Orquestra, Solistas e Coro do Teatro Mariinsky sob a regência de Valery Gergiev (2009) no Mariinsky Concert Hall de São Petersburgo (selo Hyperion FLAC 24/96) / Link: https://www.youtube.com/watch?v=4S07V-wK3mw&t=1238s  👈


 
Compositor Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1993)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

I. INTRODUÇÃO 

 

Poeta Apollon Nikolayevitch Maykov (1821-1897)
Antes de trazer alguns elementos específicos sobre a cantata MOSCOU de Piotr Ilitch TCHAIKOVSKY, convém brevemente definir o que seja "cantata", objeto deste estudo. O gênero da cantata secular no século XIX-XX tende a referir-se esquematicamente a três tipos de composição, ou mais exatamente a três abordagens, que de forma nenhuma se excluem e cuja diferença, além da natureza do assunto, reside essencialmente no grau de envolvimento pessoal do compositor: 
1) a obra de circunstância, encomendada para a celebração de um acontecimento ou de uma personagem, em que o papel do compositor, conforme se sinta interessado ou não pelo acontecimento em causa, será mais ou menos circunscrito ao de um artesão. A cantata "Moscou" de Tchaikovsky está enquadrada nesta modalidade de cantata; 
2) a cantata-oratório, com uma mensagem religiosa ou ética que o compositor seguirá de bom grado; 
3) o equivalente a uma cena de ópera, condensando uma ação dramática e devolvendo a cantata à sua atribuição original, tal como era definida no período barroco. 
 
Tchaikovsky dedicou-se apenas ocasionalmente à composição de cantatas. Uma Ode à Alegria em 1865 foi seu trabalho de graduação no Conservatório de São Petersburgo; em 1872 foi escrita a extensa mas pouco notável Cantata para a Exposição Politécnica organizada por ocasião do bicentenário do nascimento de Pedro o Grande; em 1875 seguiu-se uma pequena homenagem para o Jubileu de Ossip Petrov, consagrando a longa carreira do grande cantor. E é no final da lista que vem a cantata Moscou, cujo estilo se situa claramente à parte na obra de Tchaikovsky. Escrita sobre um texto do poeta Apollon Nikolayevitch Maykov, a cantata Moscou (não exatamente com este título no momento da encomenda ¹) foi encomendada no final de 1882 para a coroação do czar Alexandre III. ²
 
Sem ser uma obra-prima de primeira importância, a cantata Moscou constitui uma notável exceção na obra de Tchaikovsky, porque é a única obra escrita no estilo nacional épico e arcaico caro a Borodin e Rimsky-Korsakov. O poema de Maykov é escrito de acordo com o modelo de bylines (chansons de geste), repleto de metáforas típicas, imbuídas das ideias de grandeza nacional e pan-eslavismo, tornando a Moscóvia o centro de atração e a esperança única de todo o mundo eslavo confrontado com a ameaça otomana. ³ Sem a encomenda , uma obra desse tipo certamente nunca sairia da pena de Tchaikovsky, que não estava muito predisposto a esse tipo de estética. Executou sua tarefa de artesão consciencioso e, assim, pôde expressar suas convicções patrióticas , monárquicas e religiosas de uma maneira nova.

 

II. BREVE HISTÓRIA DE MOSCOU 

 

Preliminarmente, acho importante que é pouco conhecida a história de Moscou, a cidade que nasceu às margens do rio Moscou e que recebeu o nome do rio que a banhava, o qual flui por pouco mais de 500 km através da planície europeia oriental na Rússia central. Por isso, farei uma retrospectiva histórica, de forma muito sumária dentro da linha do tempo, da velha e grandiosa cidade de Moscou, capital da Rússia, e do seu coração que é o Kremlin, que abriga a casa do Presidente da Rússia, bem como muitas das instalações do governo nacional. A história de Moscou está intimamente ligada à imagem do Kremlin com suas catedrais de cúpula dourada. 

"Grandeza imortal do Kremlin / inexprimível por palavras mortais"
foi assim que Nikolay Rubtsov referiu-se ao Kremlin de Moscou.

1ª referência histórica a Moscou: em 1147 d.C. o príncipe de Suzdal, Yuri Dolgoruky (o "Mão Longa"), fundador de Moscou, convidou o príncipe Svyatoslav para visitá-lo, segundo Crônica da época: 
Venha a mim, irmão, a Moscou! E mandou arranjar um jantar para os fortes.
Em 1156 foram construídas as primeiras paredes de madeira do futuro Kremlin de Moscou. Uma pequena fortaleza uma paliçada foi construída de pinho. O Kremlin de pinho foi construído no topo da colina Borovitsky. 
No período 1240 - 1480: Os mongóis-tártaros governam a Rússia. 
Em 1263 - Moscou é a capital. Formação do principado de Moscou. 
Em 1340 - Novas paredes de carvalho do Kremlin foram construídas. 
Em 1367 - Uma fortaleza de pedra branca foi construída sob o príncipe Ivan Dmitrievich Donskoy. O principado de Moscou cresceu e se fortaleceu, anexando a maior parte das terras russas. Ivan III, bisneto de Dmitry Donskoy, formou um forte estado russo. Ele declarou Moscou a capital do estado russo. Ele começou a ser chamado de "O Grão-Duque de Toda a Rússia." (Relato histórico) 
Em 1380 - Os guerreiros russos iniciaram uma campanha que culminou na vitória sobre os tártaros no campo de Kulikovo. 
No período 1492-1505: um novo Kremlin de tijolos vermelhos foi construído.
Moscou então se tornou a capital do estado centralizado russo e já era chamada de "cidade real" em fontes escritas.
A capital passa a ser conhecida como a "terceira Roma", como sucessora do Império Bizantino. Moscou tem seu próprio emblema com a imagem de São Jorge, o Vitorioso
o santo padroeiro de Moscou. (Relato histórico)
No período 1440-1505: Ivan III (Ivan, o Grande) triplica o tamanho de seu país. Renovou o Kremlin de Moscou com tijolos vermelhos. Moscou então se tornou a capital do estado centralizado russo e já era chamada de "cidade real" em fontes escritas. A capital passa a ser conhecida como a "terceira Roma", como sucessora do Império Bizantino. Moscou tem seu próprio emblema com a imagem de São Jorge, o Vitorioso o santo padroeiro de Moscou. (Relato histórico) 
Em 1712 - A corte real se estabeleceu em São Petersburgo. A cidade do rio Neva tornou-se a capital do Estado e assim permaneceu por mais de dois séculos. Durante todos esses anos, apenas por um período muito curto (de janeiro de 1728 a janeiro de 1732), Moscou foi a capital. 
Em 14 de setembro de 1812 -  As tropas de Napoleão Bonaparte atingiram Moscou, mas encontraram a cidade abandonada e completamente incendiada (emboscada previamente definida desde o momento em que Napoleão chegou às fronteiras russas). Sem nada para comer e com o intenso rigor do inverno russo, as tropas francesas viram-se obrigadas a bater em retirada.
Março de 1918, Moscou tornou-se novamente a capital do Estado, mas agora o soviético. Moscou, Grande Teatro. 
Em 30 de dezembro de 1922, o Primeiro Congresso dos Sovietes da URSS aprovou a Declaração e o Tratado sobre a Formação da URSS. A Federação Russa (Ucrânia, Bielorrússia e a Federação Transcaucasiana: Geórgia, Azerbaijão e Armênia) uniram-se voluntariamente em um estado de união - a URSS. No artigo 23 do Tratado da União, estava escrito que a capital da URSS era a cidade de Moscou. Desde então, a capital da RSFSR-República Socialista Federativa Soviética da Rússia ou Rússia Soviética tornou-se a capital da URSS. 
Final de 1924 - Nova Constituição legislou a adoção do exposto acima por unanimidade pelo Segundo Congresso Soviete da URSS. 
Novembro de 1941 - Moscou volta a ser atacada, desta vez pela Alemanha Nazi, durante a Segunda Guerra Mundial. Em meio à invasão, a cidade dava continuidade à construção do metrô iniciada em 1930 que, ironicamente, foi beneficiada pelos bombardeamentos, que permitiram a expansão rápida das linhas e cujas estações serviram de refúgio para o resto da população não evacuada. Em uma batalha mortal, os povos da URSS e as hordas da Alemanha nazista terçaram armas perto dos muros da capital soviética. 
Maio de 1965 - Em comemoração ao 20º aniversário da vitória sobre a Alemanha nazista, Moscou tornou-se uma cidade heróica. Agora na bandeira da cidade a Estrela Dourada e a segunda Ordem de Lenin. Em homenagem a Moscou com o título honorário de cidade heróica, um obelisco especial foi erguido na bifurcação da Kutuzovsky Prospekt e da rua Bolshaya Dorogomilovskaya. De Kalinin a Tula, ao longo da linha onde o inimigo foi detido em 1941 e de onde os defensores da capital lançaram uma contra-ofensiva, se estende um marco de glória de 500 quilômetros um complexo de edifícios memoriais e espaços verdes que lembrem a façanha imortal do exército e do povo soviético.  
Em 1980 - Moscou foi a cidade-sede mundial das Olimpíadas, caracterizadas pelo boicote de parte dos países ocidentais como represália destes à guerra que a União Soviética travava com o Afeganistão. Em Em 1985 - Mikhail Gorbatchev assumiu o contro do Partido Comunista soviético: a perestroika (reestruturação) e a glasnost (transparência): a primeira visava modernizar a economia russa com a adoção de medidas que diminuía a participação do Estado na economia. A glasnost tinha como objetivo abrandar o poder de intromissão do governo nas questões civis.  
Em 1991 - Nações que compunham a União Soviética começam a exigir autonomia política de seus territórios.
No período 1999-2022 - Com a renúncia de Boris Ieltsin em 1999, Vladímir Putin é quem de fato tem governado a Rússia desde então, diretamente de Moscou.
 

III. RÁPIDA ANÁLISE MUSICAL DA CANTATA MOSCOU 

 

Seções: 6 movimentos   

I. Introdução e coro. Andante religioso (Lá maior)  [5'09’’]
II. Arioso. Moderato con moto (Ré maior): mezzo  [2'36’’]
III. Coro. Allegro (Ré maior)  [1'43’’]
IV. Monólogo e coro. Moderato—Largo (Si menor): barítono e coro  [5'03’’]
V. Arioso. Andante molto sostenuto (Mi♭ menor): mezzo  [3'34’’]
VI. Finale. Moderato con moto (Ré maior): barítono, mezzo e coro  [5'15’’]
A apresentação completa dura de 20 a 25 minutos.  
Regente: Valery Gergiev 
Solistas: mezzo Lyubov Sokolova
Barítono: Aleksey Markov
Orquestra, solistas e coro do Teatro Mariinsky de São Petersburgo, Rússia

A cantata consiste em seis partes distintas. 
O Andante religioso faz uma breve introdução, serenamente recolhida, religiosa em espírito sem ser qualquer imitação litúrgica, ainda que esses sons de cellos divididos nos primeiros 10 compassos lembrem a da Abertura de 1812. O coro, com muitos ornamentos instrumentais, narra as origens de Moscou, a invasão tártara e as trevas que a opressão inimiga espalhou sobre a Rússia. 
O movimento seguinte Arioso, Moderato con moto, é um curto solo para mezzo-soprano, com uma orquestração mais leve: "Não é uma estrela que brilha nas trevas, é uma chama que se acende na cidade de Moscou [...] ilumina toda a Rússia...". 
Um Allegro então lança um grande tutti coral e orquestral, reluzente e solene na medida do possível. 
Os episódios mais notáveis ​​da cantata são os dois números solo, a saber: 
1) O monólogo de barítono com coro, Moderato, começa com uma introdução para cordas, esboçando um fugato sobre um motivo austero e arcaico. Pontuada pelos tímpanos, a música adota um estilo épico recitativo, com suas células melódicas girando em torno de intervalos de terça e quarta; é reforçado pelo coro nas últimas palavras. 
2) A mezzo-soprano responde com o soberbo assim chamado Arioso (do Guerreiro), Andante molto sostenuto, que é certamente a ária mais inspirada da cantata. O acompanhamento consiste em acordes verticais rítmicos, nas cordas e harpa; a extensão, no final da primeira estrofe, cobre quase duas oitavas (lá bemol 3-sol bemol 5). 
O Finale, Moderato con moto, reúne todo o conjunto: barítono, mezzo e coro. Um curto solo de barítono, contra um acompanhamento de tercinas (tresquiálteras) pontuadas, serve como introdução. Então, o coro segue-o; depois, em alternância com os dois solistas, encadeia na glorificação do poder e do povo. 
Ainda é essencial realçar a participação do coro misto e dos solistas barítono e mezzo-soprano, sobretudo nas suas respectivas atuações o barítono faz o papel de narrador e a mezzo-soprano faz o papel de um jovem guerreiro, sendo ao mesmo tempo uma alegoria da própria Moscou. Esta é a única obra de Tchaikovsky, distinguida por um épico estilizado, determinado pelas peculiaridades do texto de Maykov. 
As partes da cantata são relativamente pequenas; a maioria apresenta uma forma de três partes com uma reprise variada. A quinta parte é a mais desenvolvida. 
Em seis números corais e solos três esferas figurativas são incorporadas: narração em espírito épico, oração e glorificação. 
O foco da esfera de oração é o quinto número, um arioso para mezzo-soprano. A forma da oração desse "guerreiro" é baseada na repetição de frases musicais, assim como as palavras são repetidas em uma oração. Características do canto da igreja plagais harmônicos penetram em outras partes (na época da criação da cantata "Moscou", o compositor estava bem familiarizado com a música sacra russa afinal, ele já havia escrito "Liturgia de São João Crisóstomo, Op. 41 (1878)" e "A Vigília Toda a Noite, Op. 52 (1881-82)"). 
 
Cf. partitura integral da cantata MOSCOU de Tchaikovsky e áudio em vídeo: Link: https://www.youtube.com/watch?v=ZV1DkEP5rYs  👈

 

IV. HISTÓRIA DA CANTATA MOSCOU 

 

Em 8 de março de 1883, Tchaikovsky recebeu uma carta oficial de P. A. Richter, presidente da comissão de coroação, com a proposta de escrever uma cantata para o texto de A. N. Maykov e apresentar a partitura até 17 de abril. Simultaneamente com a cantata por encomenda da cidade de Moscou, Tchaikovsky escreveu a Marcha Solene para a coroação. Um tempo tão curto para escrever uma cantata é explicado pelo fato de que a comissão de coroação inicialmente recorreu a Anton Rubinstein com a proposta de escrever uma cantata. Como Rubinstein, por sua vez, foi fundador, diretor e professor do Conservatório de São Petersburgo e teve Tchaikovsky por aluno, parece que foi quem indicou seu aluno predileto para a comissão de coroação. Em 1890, numa carta ao Grão-Duque Konstantin Konstantinovitch, Tchaikovsky escreveu: 

"A respeito de Maykov, lembro-me de como me coube escrever uma Cantata de Coroação sobre seu texto. Na época eu estava hospedado em Paris... De repente, recebi uma proposta, já recusada por A. G. Rubinstein, de escrever uma Cantata de Coroação em duas semanas... Considerei que realizar tal proposta era impossível dentro de um prazo tão escandalosamente curto, e dei vazão dos meus sentimentos ao meu irmão Modest, que na época tinha que entregar um livro com os versos de Maykov; minha admiração por eles era tal que eles involuntariamente despertaram minha inspiração, e para que eu não esquecesse, escrevi no livro a lápis as idéias musicais que haviam surgido na minha cabeça. Se isso não tivesse acontecido, provavelmente não teria havido Cantata de Coroação, mas sob o feitiço dessa magia a cantata estava pronta e despachada a tempo, e eu a considero uma das melhores de minhas composições."
Em 21 de junho, a Comissão de Coroação informou a Tchaikovsky que pela Cantata e Marcha, por ordem do czar, seria entregue a ele um presente de 1.500 rublos. Para desgosto do compositor, não eram honorários, mas um presente - um anel com diamantes. Precisando de dinheiro, Tchaikovsky hipotecou-o à Sociedade de Crédito, recebeu um empréstimo de 375 rublos e imediatamente perdeu o dinheiro e o recibo, deixando-o, como escreveu à sua benfeitora Madame von Meck, com "nada". Já em dezembro, Pyotr Ivanovitch Jurgenson, o maior editor de partituras musicais da Rússia e amigo de Tchaikovsky, publicou a parte pianística da Cantata, cujo lançamento ocorreu no verão do ano seguinte.

 

V. MINHA TRADUÇÃO PARA O TEXTO DA CANTATA MOSCOU, POR APOLLON MAYKOV 

 

1. INTRODUÇÃO E CORO 
 
Como de uma fontezinha brotou um grande rio,
De uma pequena vila nasceu Moscou, 
Os príncipes vieram aqui para se divertir, 
Para caçar javali nas florestas sombrias, 
Atirar em cisnes em remansos tranquilos. 
 
Não é uma nuvem cobrindo o céu azul: 
Tártaros malignos, onda após onda, abatem a Rússia. 
A fumaça escurece o sol vermelho, 
Lamentações ressoam sobre a face da terra, 
Quando não massacradas, são as pessoas levadas em cativeiro. 
 
Os cativos, a caminho, indagam um ao outro: 
"De onde você é, de que cidade?" 
"Sou de Kiev de Tchernigov
Sou de Suzdal de Pereslavl
Adeus para sempre, querida terra natal! 
 
Ó Senhor, estais zangado com a Rússia até o fim! 
Não haverá misericórdia para ela, nem salvação. 
Desentendimentos dividem o povo, príncipes guerreiam entre si, 
Onde quer que se olhe há noite escura, 
Trevas impenetráveis. 
 
 2. ARIOSO 1 (mezzo-soprano) 
 
Não foi uma estrelinha que brilhou na escuridão impenetrável
uma luzinha se acendeu em silêncio, na vila de Moscou, 
um raio de esperança se nasceu nela de uma fagulhinha 
o povo russo o observou de longe, 
observou, animou-se, olhando para Moscou, 
e nela a luz arde, se inflama, brilha por toda a Rússia. 
E o povo, em Moscou, não dorme, medita o pensamento, 
medita o pensamento, faz seu trabalho, sem pressa. 
 
Não foi uma estrelinha que se iluminou na treva impenetrável, 
uma vela foi acesa em cera ardente na vila de Moscou; 
acenderam-na São Pedro e o Príncipe de Moscou, 
o povo russo observava-a de longe. 
Encorajado, ele olha para ela, reza a Deus, 
e ela queima, inflama, brilha por toda a Rússia; 
e o Príncipe de Moscou se levanta, medita o pensamento, 
medita o pensamento, faz seu trabalho, sem pressa. 
 
3. CORO 
 
Soou a hora esperada, alegre da libertação para toda a Rússia; 
e Moscou encontra um dia brilhante e alegria por toda a terra!
Como neve ao sol, as hordas inimigas se derreteram, 
escorreram como água barrenta. 
Nuvens negras passaram, o sol saiu de trás das nuvens, 
o Kremlin de Moscou se iluminou para elas, as cúpulas de templos 
[dourados. 
E na câmara com desenhos se reunira bravos cavaleiros, 
e toda a Moscou festeja com eles: o povo jogou fora de seus 
[ombros 
o jugo dos inimigos, o jugo pesado, 
expulsamos os ladrões e pisoteamos a bandeirola dos Khans 
[tártaros 
e correm os cavaleiros em multidão a varrê-la para o fundo do 
[quintal. 
 
Soou a hora do esperado, alegre som de sino por toda a Rússia; 
e as orações são cantadas nas igrejas, e a alegria está por toda a 
[terra! 
Como águas lamacentas da nascente, a Horda Dourada derreteu, 
[recuou da santa Rússia! 
Nuvens negras passaram, o sol saiu de trás de nuvens escuras, 
o Kremlin de Moscou se iluminou para eles, as cúpulas de templos 
[dourados! 
E na câmara com desenhos o próprio Príncipe de Moscou se senta 
[no trono 
o mais brilhante e alegre de todos, autocrata de toda a Rússia, 
e não um Khan já subordinado. 
É derrubada a bandeirola dos Khans, pisoteada por seus pés. 
 
4. MONÓLOGO E CORO (barítono) 
 
Duma floresta sombria saiu um valente para um campo limpo, 
Para um campo limpo, num grande clarão. 
Deixe-o passear e se divertir, gabar-se de força e coragem, 
Quando saiu num grande clarão viram-no seus irmãos de sangue, 
Que vieram até ele com uma queixa amarga, e pediram,
[clamando em alta voz: 
"As forças do mal nos venceram, nossos olhos embaçados de 
[lágrimas, 
Nossos reinos foram todos derrubados; reino da Sérvia, reino de 
[Iversk, 
de Tchernogorsk e Bolgarskiy as pessoas se queixar por toda a 
[parte, sangue é derramado 
em todos os lugares. 
Você é para todos agora: para todos os países eslavos 
Uma estrela guia que surgiu em sua Rússia natal, na Moscóvia! 
Foi-lhe prometido um quinhão glorioso, um quinhão glorioso 
[heróico! 
Não foi você desde o nascimento designado para ser o defensor 
[de todos os ofendidos, 
Para ser o salvador dos oprimidos, não foi em vão que se diz de 
[Moscou: 
Duas Romas caíram, uma terceira está de pé, e não haverá uma 
[quarta! 
 
5. ARIOSO 2 OU "ARIOSO DO GUERREIRO" (mezzo-soprano) 
 
O dever me ordena levantar o estandarte da luta, entrar em 
[combate mortal?  
Quem vai me ajudar no meu caminho? 
Tu mesmo sozinha, verdade brilhante, vais me dar forças, 
Vais me fortalecer nesta hora terrível 
Se estou destinado a morrer em batalha, 
Estou pronto para enfrentar a morte cara a cara. 
A vida não me é cara, nem o respeito humano, 
Valorizo mais a sua causa justa. 
 
Ó Deus, é possível que eu te dê uma cruz pesada? 
Eu não sou digno de vosso amor. 
Será possível que ides me dar força poderosa? 
Fazei-me sábio com vossa sabedoria! 
Bem, como um escravo fiel me rendo a vós 
E pronto para o fogo e toda a aflição, 
Pois cara para mim não é a honra terrena, 
Não a honra terrena, mas a coroa de Cristo. 
 
6. FINALE (barítono, mezzo-soprano e coro) 
 
Pela Rússia fez-se um grande barulho de martelos e bigornas, 
de modo a formar para si uma dura couraça; 
dura couraça não para si sozinha, 
mas para quantos povos existirem entre os cinco mares, 
para eles todos viverem como uma família, 
para que seja uma família indivisível, 
que se busque apenas a verdade divina 
e que não se poupe para o próximo 
de sucumbir por sua salvação 
porque não há amor maior do que este! 
Por causa dessa glória trabalhou duro 
em sua vida o povo russo 
segundo os preceitos paternos e avoengos, 
a mando da pátria amada, 
e nós prometemos insistir nisso 
todos, do velho ao jovem! 
 
Pela Rússia fez-se um grande barulho de martelos e bigornas, 
de modo a formar para si uma dura couraça; 
dura couraça não para si sozinha, 
mas para quantos povos existirem entre os cinco mares, 
para eles todos viverem como uma família, 
como uma família sob um líder, 
que se busque apenas a verdade 
e que não se poupe para a Pátria 
de sucumbir por sua salvação 
porque não há amor maior do que este! 
Por causa dessa glória eles trabalharam duro 
e todos os teus antepassados, amado Rei, 
ungido para o nosso reino hoje, 
adornado com virtude, 
dado a nós por mercê divina! 
 
Então vive para sempre, nossa querida terra, 
floresce jovem, como a terra na primavera, 
sê adornada pelo trabalho de seus filhos, 
Para que olhando para a Pátria-mãe, o Povo se alegre! 
E tua glória terá vida longa! Glória! Glória! 
 
E segue teu caminho, czar ortodoxo! 
Sim, por seus grandes feitos reais 
E sua humildade diante do Senhor 
Que os corações de seus súditos se regozijem por ti! 
E tua glória terá vida longa junto das pessoas! Glória! Glória! 
 
Glória ao sol no céu, glória! 
Glória a toda a poderosa terra, nossa Pátria! 
Glória aos sábios pilotos do nosso poder! 
Glória aos nossos valentes guerreiros! 
A todos os que trabalham para o bem, glória! 
Glória a todo o povo para sempre! 
Glória a todas as nações irmãs, 
Glória a todos os irmãos e convidados! 
Para que a verdade na Rússia seja mais bonita que o sol 
[brilhante, glória! 
E cantamos esta canção ao pão, honramos o pão! Glória! 
Cantamos esta canção ao pão: para confortar os velhos, 
Para os jovens, sim para ouvir, para ouvir. 
Glória, glória, glória para todo o sempre, 
 
Glória a Deus no céu, glória! 
Glória ao nosso soberano na terra! 
Para Sua esposa soberana, glória! 
Herdeiro Soberano, glória! 
A toda a casa real dele, glória! 
E a todo o povo dele, glória! 
Aos servos fiéis dele, glória! 
E aos eminentes convidados, glória! 
 
Para que a verdade na Rússia seja mais bonita que o sol
[brilhante, glória! 
E cantamos esta canção ao pão, (ao qual) prestamos honra, 
[glória! 
Para conforto, aos idosos 
Para ouvir, à gente boa, glória! 
Glória para todo o sempre, glória! 
 
Link para o texto original russo: https://latosca.ru/petr-il-ich-chaykovskiy-kantata-moskva/  👈

 

 

VI. NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹  O texto russo foi especialmente preparado para a cantata por Apollon Maykov (1821-1897). As edições soviéticas da partitura usaram uma edição com texto "politicamente corrigido" por Gorodetsky, segundo uns, que removeu todas as referências a Deus e ao czar; segundo outros, a versão censurada/corrigida é de Aleksey Mashistov. Independente de quem seja o censor/revisor do poema de Maykov, na era soviética, o texto da cantata devia ser “politicamente correto”, tendo sido removidas todas as referências a Deus e ao czar. Nessa forma revisada, a obra foi publicada, executada e gravada por muitos anos (principalmente entre 1927 e 1953, período conhecido por "era Stalin"), mas até mesmo após, durante o período de "degelo" (relaxamento da censura), passando por Nikita Khrushchev, Leonid Brejnev e chegando até à perestroika e glasnost, lançadas por Mikhail Gorbachev.
O título que se lê na partitura manuscrita é "Cantata para coro e orquestra (solistas mezzo-soprano e barítono), composta para a ocasião da coroação de Sua Majestade Imperial Alexandre III". O título MOSCOU foi acrescentado quando a cantata foi publicada pela primeira vez. 
As estrofes sem rima de Maykov no estilo folk-épico (à moda de chanson de geste) determinam o tom e o andamento para a Cantata (especialmente nas partes corais). Diante de nós se desdobra um panorama da história russa desde a fundação de Moscou até a entronização do primeiro autocrata. A acentuação dada ao Monólogo do barítono, com seu texto pan-eslavo, e ao Finale em louvor ao casal da coroação é dramática. Na ocasião da estreia não houve Hino Nacional, mas a música foi escrita para soar como um hino e, como foi apresentada pela primeira vez no Palácio das Facetas no Kremlin de Moscou, esta foi possivelmente a peça mais grandiosa que Tchaikovsky já tinha escrito, na opinião de alguns.

² Completar a encomenda deve ter sido uma tarefa árdua, pois, ao mesmo tempo, o compositor estava também escrevendo uma MARCHA SOLENE a ser executada na coroação. A urgência com que ambas as obras foram exigidas significou que Tchaikovsky teve que interromper a composição da sua ópera Mazeppa

³ Diferentemente da maioria de seus predecessores russos, a fama de Tchaikovsky deve muito às encomendas que ele recebeu de forma regular para novas obras ele foi o primeiro compositor russo "profissional". De fato, Tchaikovsky foi comissionado para a composição de uma Cantata e uma Marcha Solene como parte das celebrações para assinalar o momento da coroação do imperador Alexandre III. Seguiu seus rastros uma nova geração, incluindo Stravinsky e Prokofiev: para estes o comissionamento (consequentemente os honorários musicais) foram a norma. 
 
Mais uma vez Tchaikovsky estava relutante em aceitar a encomenda (devido ao prazo apertado), mas seu deleite com a qualidade poética do texto de Maykov e, claro, a devoção ao czar o persuadiram do contrário. No evento, a cantata Moscou foi concluída em duas semanas e exibiu mais uma vez a notável concentração criativa de Tchaikovsky dentro das restrições de tempo e gênero. Tchaikovsky compôs a cantata durante uma estadia em Paris em março de 1883, completando-a em três semanas (5/17 de março - 24 de março/5 de abril), ao mesmo tempo que a Marcha Solene também encomendada para a mesma ocasião. A Cantata foi apresentada em 15 de maio de 1883 em Moscou, no Palácio das Facetas do Kremlin, quando das festividades da coroação, durante um jantar de gala. Foi a única apresentação completa da obra durante a vida de Tchaikovsky, o qual, no entanto, a colocava entre seus sucessos.

Tal como ocorreu com outra obra de circunstância, a Abertura 1812, composta por Tchaikovsky no ano anterior (1882) para a abertura da Exposição Universal das Artes em Moscou, coincidente com a consagração de uma nova catedral, erigida para comemorar o fracasso da invasão de Napoleão à Rússia há 70 anos antes, a cantata Moscou foi encomendada para uma ocasião patriótica e foi aceita por Tchaikovsky mais ou menos por razões financeiras. Ao contrário do trabalho anterior (da Abertura 1812), ele descobriu, enquanto trabalhava na composição da Cantata, que foi tomado de grande entusiasmo pessoal pelo projeto, em grande parte devido ao texto arrebatador e poético de Maykov. Escrita para as festividades em torno da coroação do czar Alexandre III, a cantata narra a história de Moscou.

Tchaikovsky não teria sido Tchaikovsky se não tivesse feito do segundo Arioso em tonalidade menor para mezzo-soprano (que costumamos chamar de "Arioso do Guerreiro") o melhor episódio. A música aqui é extremamente emocionante, lembrando as personagens femininas das óperas de Tchaikovsky, de Joana d'Arc em A Donzela de Orleans (1878-79) à Pauline na 2ª cena de A Dama de Espadas (peça surpreendentemente semelhante e ainda não composta, àquela altura). Aqui a música evoca as características líricas e heróicas da feminilidade russa, características que se fundem em uma disposição para o auto-sacrifício, independentemente da personagem retratada ou da sua natureza individual.  

 

VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GAKKEL, Leonid:  anotações no encarte (liner note) acompanhando o CD gravado pela Orquestra, Solistas e Coro do Teatro Mariinsky sob a regência de Valery Gergiev (2009) no Mariinsky Concert Hall de São Petersburgo (selo Hyperion FLAC 24/96)
 
LISCHKE, André: anotações no encarte (liner note) acompanhando o CD gravado pelo Coro da Orquestra da Academia Coral de Moscou regida por Andrey Chistiakov (1993), regente da Orquestra do Teatro Bolshoï de Moscou, e intitulado "Three Russian Cantatas: Tchaikovsky, Taneyev and Rachmaninov" (selo Le Chant du Monde)  
 
WIKIPEDIA: Moscow (Cantata) 

sábado, 13 de agosto de 2022

“DANÇA MACABRA: PARÁFRASE DO DIES IRÆ” DE FRANZ LISZT (1859)


Por Francisco José dos Santos Braga

Gravação antológica da Dança Macabra de Liszt: Alexander Brailowsky, pianista/Eugene  Ormandy, regente (selo Columbia "Masterworks" 1961) /  Link: https://www.youtube.com/watch?v=SsT9-WsivEM  👈
 

I. INTRODUÇÃO 

 

Antes de trazer alguns elementos específicos sobre a Dança Macabra de Liszt, convém brevemente definir o que seja "dança macabra", objeto deste estudo. Dança macabra ou Dança da Morte é um gênero artístico de alegoria da Baixa Idade Média sobre a universalidade da morte. A Dança Macabra consiste em pessoas mortas, ou uma personificação da morte, convocarem representantes de todas as esferas da vida para dançarem junto ao túmulo, normalmente constituídas por um papa, um imperador, um rei, uma criança e um trabalhador, pelo menos. O efeito foi ao mesmo tempo leviano e aterrorizante, ao implorar ao seu público para se emocionar de forma reativa. Foi produzido como memento mori (lembre-se de que você vai morrer), para lembrar as pessoas da fragilidade de suas vidas, e quão vãs são as glórias da vida terrena. 

Na Inglaterra, originalmente a Dança da Morte era uma variedade de peça teatral semelhante ao drama religioso e às peças de milagres. As epidemias, tão frequentes e destrutivas naquela época, como a Morte Negra (ou Peste Negra), trouxeram perante a imaginação popular o assunto da morte e de sua influência universal. O desenvolvimento do movimento dramático no teatro levou ao seguinte tratamento: a morte aparecia não como destruidora, mas como mensageira de Deus convocando as pessoas ao além-túmulo. O movimento de personagens dançando foi um desenvolvimento posterior, começando com a Morte, seguida de suas vítimas, todas se movendo num passo pausado e solene. Porém, como a Morte atuava no papel de mensageira, era natural que ela adotasse a postura e "entrasse no clima" com violinistas e outros músicos, e o resultado foi a Dança da Morte

Agora, passando à exposição da Dança Macabra de Liszt, gostaria de dizer que a seção que vem a seguir é reservada exclusivamente a musicistas e críticos musicais, pois é a reprodução traduzida por mim de uma análise musical que em 1998 anotou para o selo Hyperion Records o pianista, musicólogo e compositor australiano LESLIE HOWARD, mais conhecido por ser o único pianista a ter gravado pela Hyperion as obras completas de Liszt para piano solo. Caso o leitor não seja um musicista, pode pular a presente seção sem prejuízo para a compreensão do texto que preparei para Totentanz (Dança Macabra) de Liszt. 

 

II. ANÁLISE MUSICAL DE DANÇA MACABRA POR LESLIE HOWARD *

 

 MOVIMENTOS DA DANÇA MACABRA DE LISZT

Introdução: Andante – Presto – Allegro – Allegro moderato
Variação I: Allegro moderato
Variação II: [L'istesso tempo] – Un poco animato
Variação III: Molto vivace
Variação IV, 'Canonique': Lento – Presto
Variação V: Vivace. Fugato – Cadenza
Variação VI: Sempre allegro, ma non troppo – Un poco meno allegro – Cadenza – Presto – Allegro animato
 
ANOTAÇÕES DE LESLIE HOWARD PARA O SELO HYPERION RECORDS

Os temas do cantochão eram importantes para Liszt, tanto por razões de sua fé quanto por seu valor musical intrínseco, e embora se pudesse esperar encontrá-los com mais frequência nas obras de seu período romano na década de 1860, eles aparecem em toda a extensão de sua vida de compositor, e notadamente em dois dos títulos aqui registrados. Diferentemente de Berlioz, que já havia empregado dois versos do Dies iræ em sua Symphonie fantastique, o Totentanz de Liszt usa toda a primeira stanza ou estrofe do tema, cujos três versos espelham o famoso texto da Sequência do Réquiem:
 
Dies iræ, dies illa 
Solvet saeclum in favilla 
Teste David cum Sibylla. 
 
Dia de ira, aquele dia 
Em que o Universo dissolverá em cinza, 
Sendo testemunha Davi com a Sibila. 
 
Liszt faz introdução do material de forma dramática: o piano e os tímpanos acompanham os sopros mais graves, metais e cordas nos dois primeiros versos; depois, uma série de cadências agudas culmina em uma reafirmação, seguida pelo terceiro verso, tocado três vezes. Por fim, o piano reitera apenas os dois primeiros versos. 
A variação I é uma variação dupla onde fagote e violas tocam um novo contraponto rítmico aos dois primeiros versos nas cordas graves, que o piano então repete, e então clarinete e fagote entram em contraponto com as cordas para o terceiro verso, novamente repetido pelo piano. 
É o piano que assume o controle da Variação II, com um novo contra-tema da trompa e múltiplos glissandos do solista. 
Oboés e clarinetes adicionam outro novo contra-tema na Variação III, enquanto a Variação IV é um assunto muito mais livre para piano solo, onde cada frase é introduzida no cânone a quatro vozes. 
Até agora, a obra permaneceu firme em Ré menor, mas o piano agora ganha asas muito suaves em uma delicada cadência que leva a Si maior e daí a Sol menor, onde um clarinete solitário se junta por dez compassos antes de Ré menor ser abruptamente restaurado na brilhante transição para a Variação V. Este fugato usa apenas os dois primeiros versos do tema como material e leva a um desenvolvimento em que o tutti orquestral desempenha importante papel. A seção é encerrada por uma grande cadência que faz uma breve excursão a Fá sustenido maior, antes de encerrar o material em Ré menor. 
Aquilo que Liszt assinala como Variação VI equivale a um novo tema e seis variações – também em Ré menor, também sobre um tema que se encaixa nos versos do texto Dies iræ, mas que é bastante diferente e cujas origens são incertas. A última dessas variações em miniatura é estendida para introduzir uma cadência final, que traz de volta o tema original. 
A coda começa com glissandos de piano sobre o terceiro verso do tema, após o que o solista é deixado para improvisar até o final, já que a partitura de Liszt está em branco na parte do solo para a última declaração das duas primeiras frases. A tradição de adicionar a escala em oitavas contrárias à orquestra a sete compassos do final certamente vem do próprio Liszt ainda vivo, e também é encontrada na edição/versão (sob outros aspectos, muito pouco confiável) produzida pelo aluno de Liszt, Alexander Ziloti.
 
* Das anotações de Leslie Howard (1998) para o selo Hyperion
 
 
Cf. partitura integral da Dança Macabra de Franz Liszt e áudio em vídeo:
 

III. TOTENTANZ (LISZT) NA WIKIPEDIA 

 

Há um pequeno ensaio sobre Totentanz ou Todtentanz (Dança dos Mortos ou Dança Macabra) na Wikipedia cujo texto tem sido muito reproduzido em várias situações na Internet, nem sempre citando a fonte infelizmente (por exemplo, o texto acompanhando a partitura integral da Dança Macabra de Liszt sugerida no item 1 acima, sem indicação da fonte) e que aqui venho traduzir do inglês para enriquecimento da minha exposição. Ei-lo: 

Dança Macabra: Paráfrase do Dies iræ para Piano e Orquestra, S.126 é o nome de uma peça sinfônica para piano solo e orquestra de Franz Liszt, que é notável tanto por ser baseada no hino gregoriano Dies Iræ, quanto por suas ousadas inovações estilísticas. A peça foi originalmente planejada em 1838 e concluída em 1849; no entanto, foi revista duas vezes, em 1853 e 1859. 

Obsessão com morte

Alguns dos títulos das peças de Liszt, como Totentanz, Funérailles, La lugubre gondola e Pensée des morts, mostram o fascínio do compositor pela morte. No jovem Liszt já podemos observar manifestações de sua obsessão pela morte, pela religião, pelo céu e pelo inferno. De acordo com Alan Walker, Liszt frequentava "hospitais, cassinos e asilos" parisienses no início da década de 1830, e até desceu às masmorras da prisão para ver os condenados à morte. 

Fontes de inspiração

Na época romântica, devido ao fascínio por tudo o que fosse medieval, o aspecto da ironia fantástica ou grotescamente macabra substituiu muitas vezes a intenção moral original. Um exemplo musical de tal ironia pode ser encontrado no último movimento da Sinfonia Fantástica de Hector Berlioz, que cita a melodia medieval (gregoriana) Dies Irae (Dia do Julgamento) de uma maneira chocantemente modernista. Em 1830, Liszt assistiu à primeira apresentação da sinfonia e ficou impressionado com sua poderosa originalidade. O Totentanz (Dança da Morte), de Liszt, um conjunto de variações para piano e orquestra, também parafraseia o cantochão Dies Iræ

Outra fonte de inspiração para o jovem Liszt foi o famoso afresco "Triunfo da Morte" de Francesco Traini (na época de Liszt atribuído a Andrea Orcagna e hoje também a Buonamico Buffalmacco) no Campo Santo, Pisa. 

"O Triunfo da Morte" (1338-39) por Buonamico Buffalmacco






 
 
 
 
 
 
 
"O Triunfo da Morte" (1338-39), afresco (gravura)
 
 
 
 
 
 
 
Detalhe no canto esquerdo inferior de "O Triunfo da Morte" (1338-39)
 
 
Liszt "fugiu" com sua amante, a condessa d'Agoult, para a Itália e em 1838 visitou Pisa. Apenas dez anos depois, os primeiros esboços de Liszt se materializaram em uma versão completa de seu Totentanz. As revisões se seguiram em 1853 e 1859, e sua forma final foi realizada pela primeira vez em Haia em 15 de abril de 1865 pelo aluno de Liszt Hans von Bülow, a quem o trabalho é dedicado. 
 
Inovações estilísticas
 
Por se basear em material gregoriano, o Totentanz de Liszt contém passagens de sonoridade medieval com contraponto canônico, mas, de longe, o aspecto mais inovador da partitura é a natureza chocantemente modernista, até percussiva, da parte do piano. A abertura chega surpreendentemente próximo à introdução da Sonata para Dois Pianos e Percussão de Bartók, obra composta quase cem anos depois. Isso pode não ser coincidência, já que Bartók frequentemente tocava Totentanz de Liszt. Outras características modernistas são as seções tipo tocata, onde o pianista ataca notas repetidas enquanto a orquestra se encarrega de apresentar intensidade diabólica e efeitos sonoros especiais por exemplo, o col legno nas cordas soa como ossos arrepiantes chocando-se. Richard Pohl (um dos primeiros biógrafos) observa a respeito da Dança Macabra de Liszt: "Cada variação revela algum novo caráter o homem sério, o jovem volúvel, o cético desdenhoso, o monge orante, o soldado ousado, a donzela meiga, a criança brincalhona". 

Versões existentes

Como a maioria das peças de Liszt, para esta peça existem inúmeras versões. Imediatamente depois da primeira versão de Liszt do Totentanz, uma segunda versão de De Profundis foi preparada a partir de fontes manuscritas de Liszt por Ferruccio Busoni (1919). 
Cf. Totentanz - Phantasie für Pianoforte und Orchester "De Profundis version", S. 126i com Leslie Howard ao piano e Budapest Symphony Orchestra (com anotações de Leslie Howard para a Hyperion)
 
A versão-padrão é a terceira e final da peça (1859). Liszt também escreveu versões para dois pianos (S. 652) e piano solo (S. 525). Editada por Emil von Sauer, a edição original para dois pianos, no entanto, apenas incorporou a parte solo da interpretação de Liszt para piano e orquestra, com uma transcrição do acompanhamento orquestral no segundo piano. Dr. Andrey Kasparov, desde então, reimaginou este cenário como um trabalho para duo de piano. Mostra com grande efeito a amplitude do Totentanz, quando distribuído uniformemente entre dois artistas. (...) 
 
 

IV. ANOTAÇÕES DE JOHN MANGUM 

 

John Mangum, comentarista no encarte de programas para o Hollywood Bowl, Los Angeles Opera e Festival de Artes de Hong Kong, anotou o seguinte sobre Liszt e sua Dança Macabra (Totentanz): 

Em 1847, Franz Liszt (1811-1886) se aposentou de sua carreira como pianista profissional. Ele tocava há 27 anos em toda a Europa, de Dublin a Constantinopla e em quase todas as cidades de permeio. Durante seus anos como virtuoso de turnês, Liszt produziu uma série de obras destinadas a encantar o público e exibir suas próprias habilidades virtuosísticas. Foi transcrevendo, arranjando e escrevendo séries de variações de obras de outros compositores (incluindo arranjos das nove sinfonias de Beethoven, a Sinfonia Fantástica do compositor francês Hector Berlioz, bem como árias de ópera e canções folclóricas) que o pianista se familiarizou com praticamente todos os estilos musicais existentes. 

Após sua aposentadoria, Liszt colheu os frutos dessa espécie de educação musical. Com uma existência mais estável que lhe permitiu concentrar-se na composição e em fazer da cidade alemã de Weimar, onde foi diretor musical, o centro da Europa musical progressiva, Liszt produziu um fluxo constante de obras-primas, a partir do final da década de 1840. Entre estes estava o primeiro de seus dois Concertos para piano e o Totentanz para piano e orquestra. 

Ambas as obras foram concebidas durante os anos virtuosos (até 1847). Liszt completou o Primeiro Concerto para piano em Weimar em 1849, orquestrou-o em colaboração com seu assistente e o revisou em 1853. O compositor estreou a obra em Weimar em 17 de fevereiro de 1855, sob a regência de Berlioz. (Os dois se conheceram em Paris durante os dias inebriantes que se seguiram à Revolução de julho de 1830 e permaneceram amigos por toda a vida.) (...) 

Enquanto Liszt encanta e delicia sua audiência com o seu Concerto em mi bemol maior, ele destrava o piano e a orquestra com força apocalíptica no Totentanz. Como o Primeiro Concerto, o Totentanz foi composto a partir do final da década de 1830. Foi concluída uma década depois e revisada em 1853 e 1859. O genro de Liszt, o pianista e maestro Hans von Bülow, foi o solista na estreia da obra em Haia em 15 de abril de 1865. Na ocasião, este era genro de Liszt, já que estava casado com Cosima, filha do gênio húngaro. 

Há duas histórias conflitantes sobre o programa da obra. A biógrafa de Liszt, Lina Ramann *, afirma que a obra foi inspirada em O Triunfo da Morte, um afresco que Liszt viu no Campo Santo durante uma visita a Pisa. Parece, no entanto, que a inspiração para o Totentanz pode ter sido uma série de xilogravuras de Holbein representando a Dança da Morte. Pelo menos é nisso que vários comentaristas iniciais da peça alguns deles próximos a Liszt acreditavam. 

"A Velha" por Hans Holbein, o Jovem

 
 
"O Velho" por Hans Holbein, o Jovem

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
"A criancinha" por Hans Holbein, o Jovem
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A ideia do Totentanz a dança macabra, a dança da morte havia conquistado o imaginário europeu pela primeira vez durante a Idade Média. A dança da morte fez girar a cabeça de todos, independentemente do status. A beleza atraente, a velha murcha, o rico comerciante e o pobre mendigo todos eventualmente acabavam morrendo. Nas palavras do notável historiador holandês Johan Huizinga, “entrou no reino que cerca a ideia da morte um elemento novo e fantástico, um arrepio que surgiu do reino horrivelmente consciente do pavor fantasmagórico e do terror frio”. 
 
Pavor fantasmagórico e terror frio marcam o Totentanz de Liszt desde o início. A obra é um conjunto de seis variações do “Dies iræ”, um hino gregoriano medieval associado à Missa de Réquiem. Liszt dá um tom frio e rude à escrita virtuosa do teclado. A música evoca os esqueletos descarnados das xilogravuras de Holbein girando, com naturalidade, suas danças de mortos impulsionadas pela composição hedonista de Liszt para o macabro.
 
* Lina Ramann (1833-1912) foi uma escritora e professora alemã, conhecida por seus livros sobre Liszt. Entre 1874 e a morte do compositor em 1886, ela o entrevistou e teve acesso a todos os seus manuscritos e publicações em sua biblioteca. Segundo ela, La Lugubre Gondola devia originalmente ser intitulada Terceira Elegia e devia ter sido dedicada a ela. 
A gênese desta partitura está bem documentada em cartas pelas quais sabemos que Liszt foi hóspede de Wagner no Palazzo Vendramin sobre o Grande Canal em Veneza em fins de 1882. Ali Liszt pode ter tido uma premonição da morte de Wagner que inspirou a primeira versão da obra: uma peça pianística no compasso 4/4, escrita em dezembro de 1882 (recomposta em janeiro de 1883, e pouco depois arranjada para violino ou cello e piano. 
A versão para piano foi publicada em 1885, com mínimas mudanças (hoje chamada de A lúgubre gôndola II). 
 
 

 

V. BIBLIOGRAFIA 

 

 

BRAGA, Francisco José dos Santos: RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 13: MISSA DE RÉQUIEM, in Blog do Braga, postado em 05/08/2022.
 
––––––––––––––––––––––––––––– : FRANZ LISZT EM MILÃO (1837-38), in Blog do Braga, postado em 07/03/2022.
 
BUFFALMACCO,  Buonamicco: O TRIUNFO DA MORTE, afresco no Camposanto Monumentale di Pisa, Itália. 
 

 
HOLBEIN, Hans, der Jungere: "THE DANCE OF DEATH" (EBook). "The Project Gutemberg", lançado em 10/06/2007.