domingo, 27 de junho de 2021

D. QUIXOTE NA POÉTICA DE EUCLIDES DA CUNHA


Por Francisco José dos Santos Braga 
 


 

Folheando o livro "Euclides da Cunha: Poesia Reunida", localizei dois sonetos de Euclides que me chamaram a atenção. O primeiro deles, publicado dentro do capítulo "Dispersos", aparece na página nº 266 acompanhado de seu manuscrito original na página nº 267. O segundo figura no livro, dentro do capítulo "Principais Variantes & Cotejos (1883-1905)", e aparece na página 368. Tratam ambos de Dom Quixote, o "cavaleiro da triste figura", criação de Miguel de Cervantes, que se transformou, através da sua imaginação, numa espécie de arquétipo ocidental de um certo cavaleiro medieval, ensandecido pela leitura de vários romances de cavalaria. "D. Quixote" parodiou esses romances de cavalaria que gozaram de imensa popularidade no período anterior e que no começo do século XVII já se encontravam em declínio. 

Miguel de Cervantes Saavedra

 

A obra-prima foi publicada na Espanha em dois livros: O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha em 1605 e O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha em 1615. 

A criação do autor espanhol, levada ao público no início do século XVII, foi tão bem acolhida que se converteu no romance que parece ter gerado a literatura secundária mais volumosa do mundo metaliteratura, portanto , nos séculos que se seguiram até o presente. 

Numa conferência sobre Cervantes na ABL, o Acadêmico Ivan Junqueira analisa e resume magnificamente a profunda e duradoura influência que o Dom Quixote exerceu sobre a literatura ocidental: 

(...) Afinal de contas, Cervantes é o criador do romance moderno, e já se disse, como o fez o escritor norte-americano Lionel Trilling, que “toda prosa de ficção é uma variação sobre o tema de Dom Quixote”, ou seja, o problema da aparência e da realidade. Vamos encontrar semelhante opinião no crítico norte-americano Harry Levin, segundo quem o Dom Quixote é o “protótipo de todos os romances realistas” porque trata da “técnica literária da desilusão sistemática”. E para o ensaísta francês Michel Foucault o Dom Quixote seria o sintoma de um divórcio moderno entre as palavras e as coisas, uma vez que Cervantes procura desesperadamente por uma nova identidade, uma nova semelhança num mundo em que aparentemente nada se parece com o que antes parecia. (...)

Os heróis do grande romance de Cervantes foram Dom Quixote, sua fugaz amada Dulcinea del Toboso, seu fiel escudeiro Sancho Pança e o pangaré Rocinante. Os quatro participam de um enredo do livro que granjeou a glória de ter ficado em primeiro lugar no ranking dos melhores livros de todos os tempos, eleito por 100 escritores de 54 países, reunidos em Oslo em princípio de maio de 2002. A Reuters, em Oslo, informou que, entre os escritores que votaram, figuravam Salman Rushdie, Milan Kundera, John Le Carré, John Irving, Nadine Gordimer, Carlos Fuentes e Norman Mailer. Eles deram a Dom Quixote 50% a mais de votos que o segundo lugar "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust na pesquisa de 100 livros, histórias e peças de teatro. Foi um resultado consagrador, sem dúvida. 

 

Euclides da Cunha

Vamos então aos dois poemas, o original e sua variante. Quanto ao soneto original, [org. BERNUCCI & HARDMAN, 2009, 378] descobriram que o manuscrito de "D. Quixote" da BN-Biblioteca Nacional, cujas versões impressas lhe atribuíram a data equivocada de 1890, revela tratar-se de variante posterior à versão de 1893, pois mais bem elaborado em sua feitura, inclusive pela caligrafia límpida e ordenada, autêntica, é certo, mas diferente da escrita usual e espontânea de Euclides. Supostamente, terá sido "passado a limpo" na década seguinte, assim como "As Catas", pois esses dois poemas manuscritos da BN são as versões que leu em voz alta e ofereceu ao amigo Coelho Neto, numa certa noite entre 1906 e 1908, depois de seu regresso de Purus, quando este o visitou em sua casa da rua Humaitá. (Cf. Coelho Neto, Livro de prata, 1928, p. 236-44) 

 D. Quixote 

 Assim à aldeia volta o da triste figura, 
Ao tardo caminhar do Rocinante lento: 
No arcabouço dobrado um grande desalento, 
No entristecido olhar uns laivos de loucura. 
 
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura 
Do Ideal e da Fé, tudo isto num momento 
A rolar, a rolar, num desmoronamento, 
Entre os risos boçais do bacharel e do cura. 
 
Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente, 
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco 
O brilho da ilusão do espírito doente; 
 
Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco 
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente 
E ardentes ilusões e não se ficar louco! 
 
Manuscrito de "D. Quixote". Fonte: BN

 
Quanto à variante do soneto "D. Quixote", intitulado "Volta à aldeia", [org. BERNUCCI & HARDMAN, idem, 378] informam que ela foi publicada na matéria de Henrique Novak: "Descoberto soneto inédito de Euclides da Cunha, escrito em 1893", na seção literária "Página do Livro" do Diário Popular, São Paulo, 21 de março de 1986. Segundo este, o achado deu-se na última entrecapa de um exemplar da edição espanhola da obra-prima de Cervantes que pertenceu a Euclides, autografado e datado de 1893, adquirido na Livraria Teixeira em São Paulo e depois doado a Valdomiro da Silveira, quando de sua morada em Lorena (1902-1903). O poema foi manuscrito na capa interna do livro, talvez após a leitura. O artigo de Novak anota: No entanto, seja pela má qualidade do papel que guarda a capa, seja pela pena usada ou mesmo a tinta, foi difícil reconstituir o texto, já que muitas palavras aparecem borradas e só a muito custo puderam ser 'decifradas'. Houve inclusive alguma indecisão de Euclides quanto à melhor expressão de sua ideia, tanto é que riscou palavras e mesmo versos, até encontrar a melhor forma.
 
Volta à Aldeia 
 
E assim à aldeia torna el da triste figura
Acabrunhado e triste, exangue e macilento 
Na acorvada postura em torno desalento 
No desvairado olhar um laivo de loucura. 
 
Dias de Glória! Ideais! A alcantilada altura 
De um sonho! Nada mais resta de tal intento. 
Essa nossa carcaça vil o Rocinante lento 
E amigos carnais o bacharel e o cura... 
 
Feliz Herói! Que importa o riso mau das gentes 
Se ele não sói entrar dentro de um crânio oco 
Repleto das visões dos cérebros doentes… 
 
Há uma coisa pior que é ir-se a pouco e pouco 
Perdendo qual perdeste ideais grandes e ardentes 
E ardentes ilusões e não ficar-se louco! 
 
 
BIBLIOGRAFIA 
 
 
BRAGA, Francisco José dos Santos: Apontamentos sobre a poética de Euclides da Cunha, in Blog do Braga, postado em 19/04/2018 
 
                                      — A nossa Vendêa, in Blog de São João del-Rei, postado em 15/05/2018 
 
CUNHA, Euclides da: POESIA REUNIDA. Org. de Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot Hardman. São Paulo: Ed. da UNESP, 2009, 492 p. 
 
                                     Primeiras poesias de Euclides da Cunha, aos 17 anos de idade 
 
GOMES, Hélder: Metaliteratura, 2010 
 
JUNQUEIRA, Ivan: Conferência sobre Cervantes 
 
MACIEL, Lucas Vinício de Carvalho: Considerações sobre heterodiscurso a partir de Dom Quixote, Scielo, 2018 
 
REUTERS em Oslo: "Dom Quixote" é eleito o melhor livro de todos os tempos, FolhaOnline, 07/05/2002 

terça-feira, 22 de junho de 2021

NOS RASTROS DO CABALISTA DE PRAGA



Por Marek Halter *
Traduzido do espanhol e comentado/ilustrado por Francisco José dos Santos Braga

Em Praga nasceu o primeiro humanóide da história, o Golem, produto resultante de palavras e barro. Muito tempo depois da morte de seu criador, o grande Rabino Judah Loew Ben Bezalel (1512-1609) continua a inspirar temor. 
Praga, a judia
 
Em Praga, em frente à antiga Prefeitura Judaica, ergue-se a imponente estátua do grande Rabino Judah Loew Ben Bezalel (1512-1609), conhecido como MaHaRaL, o Cabalista. 
 
Esta estátua representa a morte do grande Rabino Judah Loew ben Bezalel (o MaHaRaL), obra realizada por Ladislav Šaloun em 1910. A estátua fica na fachada da Prefeitura de Praga.

A estátua do grande Rabino Loew em 1º plano
 
A estátua tem mais de um século. Ninguém ousou destruí-la, nem os nazistas, nem os soviéticos, nem mesmo os grafiteiros de nossos dias. Lá está ele, imutável, protegido por sua própria lenda. Durante o processo de Slánský, movido em 1952 pelo poder stalinista contra espiões e cosmopolitas — isto é, os ex-líderes comunistas de origem judaica —, o governo instalou uma guarda no monumento para protegê-lo de possíveis ataques anti-semitas. Por que essa exceção? Por medo de uma maldição. Aqui nasceu, produto das palavras e do barro, o primeiro humanóide da história: o Golem. Muito depois de sua morte, seu criador continua a inspirar temor. 
 
Em Praga nasceu, produto das palavras e do barro, o primeiro humanóide da história: o Golem.
 
 
Os habitantes de Praga dizem que em 1941, Heydrich, recém-nomeado vice-governador do Reich na Boêmia-Morávia, propôs a seu amigo Himmler que usasse a força do Golem para vencer a guerra. Apaixonado pelo esoterismo, Hitler o aprovou. Faltava apenas decodificar as fórmulas cabalísticas que possibilitaram o aparecimento do prodígio, numa noite no ano de 1600, antes que uma multidão se reunisse ao pé da Sinagoga Velha-Nova em Praga. 
 
Naquela época, a Europa estava em chamas: católicos e protestantes guerreavam entre si. Tudo os separava, exceto seu ódio aos judeus. As perseguições anti-semitas se multiplicaram. Os judeus se voltaram para seu rabino em busca de proteção. Ele hesitou e então recebeu milhares de baldes de barro da margem do rio Moldava, que atravessa a cidade. O rabino modelou com ele uma forma enorme com contornos quase humanos e deu vida a ela. E assim nasceu o Golem, pura força sem boca, pois o Verbo só corresponde aos homens. Esta espécie de bomba atômica intimidou os anti-semitas, mas poderia se voltar contra seus criadores da noite para o dia. 
 
O monstro de argila garantiu a segurança da cidade judia e restabeleceu a paz e o bem-estar. Depois disso, o Golem deixou de ter utilidade e se viu relegado a obras de construção e tarefas vulgares. As crianças zombavam dele. As pessoas o insultavam. Um dia o Golem se rebelou e destruiu tudo em seu caminho. Alertado, seu criador, o grande Rabino Loew, teve que tirar a vida de sua obra: o Golem voltou a ser barro. Os habitantes da cidade, cheios de remorsos, transportaram esse barro para o porão da sinagoga Velha-Nova, a mais antiga da Europa. 
 
Para trazer aquele monte de argila de volta à vida, o nazista Heydrich organizou uma unidade chamada "Comando Golem". Seu objetivo: encontrar os últimos oficiantes da sinagoga e, se necessário, torturá-los para obter as fórmulas necessárias para sua ressurreição. 
 
Segundo os habitantes de Praga, o comando obteve as informações que procurava. Mas, como explica Rabi Haim, guardião da sinagoga, "por não conseguir descobrir a melodia que acompanhava as palavras ditas pelo MaHaRaL", ele não foi capaz de realizar o sonho de Hitler. Arno Parik, curador do Museu Judaico de Praga, cita David Gans, testemunha do prodígio: "Ninguém, exceto o MaHaRaL, era puro o suficiente para conhecer este segredo da Cabala." 
 
MaHaRaL, o grande Rabino Loew, nasceu em 1512 em Worms, às margens do Reno, e veio para Praga com idade avançada e a pedido da comunidade judaica e do imperador romano germânico Rodolfo II. Ali ele permaneceu como grande Rabino até sua morte aos 97 anos, em 1609. Um Cabalista de renome, Loew também era apaixonado por Filosofia e Astronomia. Em Praga, ele fez amizade com Tycho Brahe e Johannes Kepler, os dois astrônomos famosos que, junto com Galileu e seguindo Copérnico, provaram que não apenas a Terra girava em torno do Sol, mas que uma infinidade de sistemas solares e planetas povoavam o céu infinito. Para os Cabalistas, não foi uma revelação. O Zohar, ou Livro do Esplendor, obra emblemática da Cabala, escrita, acredita-se, na Espanha do século XIII por Moisés de León, já tratava disso. Para os gentios, por outro lado, essa descoberta foi fulminante. Desde o início dos tempos, os homens estavam convencidos de que a Terra era o centro do Universo. Entre Deus e os homens, havia uma simples relação vertical: o homem estava embaixo; o Senhor, nos céus. Mas se o espaço acima de nossas cabeças, aquele espaço reservado para Deus, realmente tinha uma infinidade de estrelas e planetas, onde estava Sua morada? MaHaRaL responde: na linguagem. Não nos foi dito que no princípio era o Verbo?
 
Todo o mundo então se aproximou da Cabala. Sua estranha antecipação desta descoberta essencial lhe rendeu um interesse repentino e desenfreado que ultrapassou os círculos judeus.
 
Era uma aventura extraordinária para mim, natural de Varsóvia, percorrer as ruas onde o Golem voltou à vida. Unindo meus passos aos do MaHaRaL estava realizando um sonho de infância, um raro privilégio. Logo descobri, para minha surpresa, que o bairro antigo de Praga permanecia intacto, que suas sinagogas, sua prefeitura e seus cemitérios ainda continuavam lá. Isso me intrigou: minha cidade, a cidade judia de Varsóvia, desapareceu completamente. 
 
Por que os nazistas respeitaram Praga? Por medo do MaHaRaL e do Golem? O próprio Goethe visitou a Velha-Nova sinagoga de Praga antes de escrever O aprendiz de feiticeiro. Golem de Gustav Meyrink (1915) foi um dos primeiros best-sellers da literatura mundial. Por outro lado, o fascínio que os judeus exerciam sobre Heydrich era tal que fez com que a Comissão de Avaliação Racial lhe entregasse um certificado que comprovava sua pureza de sangue: "Nem sangue de cor nem sangue judeu". Ele sempre carregou aquele documento junto do coração; também naquele 4 de junho de 1942, quando a resistência tcheca conseguiu abatê-lo. No entanto, antes, ele teve tempo de apresentar seu projeto a Hitler: transformar o bairro de Josefov de Praga no "museu exótico de uma raça extinta". 
 
Sinagoga Velha-Nova no bairro de Josefov de Praga

 
Já que era perigoso a Praga judia tocar a causa do MaHaRaL, o demiurgo do Golem, por que não transformá-la em uma espécie de Parque Jurássico no qual as gerações futuras pudessem contemplar os rastros de um povo maléfico, apagado para sempre da face do mundo? No número 1 da rua Staré Školy, em um belo edifício modernista no antigo bairro judeu de Praga se encontra o Museu Judeu. Seu historiador, Arno Parik, me explica que "sob o controle dos nazistas, 40 funcionários trabalhavam 12 horas por dia para refundar um museu em vez do nosso — encerrado em 1939 — que abriria suas portas em 3 de agosto de 1942. Para fazer isso, eles catalogaram mais de 200.000 objetos."
 
Museu Judeu de Praga

 
Naquela época, cerca de 120.000 judeus viviam em Praga. Hoje, são apenas 1.700. Seu bairro continua como então, com seus "cantos escuros, passagens secretas, janelas condenadas, pátios sujos, cervejarias barulhentas e pousadas sinistras", como Kafka o descreve. Salvo pelo medo que o Cabalista de Praga exercia e continua exercendo? Sob os auspícios da Sinagoga Klausen, a escola MaHaRaL descobriu o antigo cemitério judeu. Milhares de túmulos. Mais de 12.000. O tempo produziu múltiplas fissuras na pedra imponente sob a qual repousam o Grande Rabino Loew e sua esposa Perl. 
 
Lápide do MaHaRaL no cemitério judeu de Praga em 2009. Obs: as pedras pequenas foram colocadas por visitantes de maneira ritual.
 
Não me agradaria sair de Praga sem tornar a ver o MaHaRaL. Mas, seguindo a velha máxima iídiche, "nunca perguntes teu caminho a alguém que o conheça, pois poderias extraviar-te", eu me perco. Por engano, virei as costas para a estátua do grande Rabino Loew e estou novamente em frente da casa de Kafka, no 2B da rua Cihelná. Aqui, nada parece ter mudado. Com exceção de um café no térreo — o Café Franz Kafka, claro — e de uma loja onde se vendem canetas com a efígie do escritor e estatuetas de terracota representando o Golem. 
 
Um casal de idosos hesita entre a caneta e a estatueta. Finalmente, eles compram 20 Golem's de uma vez; “são para presentes”, explica o homem de cabelos grisalhos em um inglês com forte sotaque alemão. Então, voltando-se para mim com o pequeno Golem na mão, ele acrescenta: "Será meu amuleto." Digo a mim mesmo que talvez não seja uma má ideia e também compro alguns. 
 
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*  Marek Halter é pintor e novelista francês de origem polaca. É mais conhecido por seus romances históricos, que foram traduzidos para inglês, polonês, hebraico e muitas outras línguas. Escreveu inúmeros romances históricos, a saber: O Cabalista de Praga, O Messias, A Rainha de Sabá, Os Mistérios de Jerusalém, O Vento dos Khazares, Khadija: A Mulher de Maomé, Fátima: A Filha de Maomé, Sara, A Bíblia no Feminino, A Rainha de Sabá, A Memória de Abraão, Memórias, etc.
 
 
 
COMENTÁRIOS SOBRE O CABALISTA DE PRAGA
 
 
Ele nasceu em 1512, dependendo das fontes, em Poznań no reino da Polônia ou em Worms no Sacro Império Romano. Na linha do tempo, seu nascimento ocorre cerca de 20 anos após a expulsão dos judeus da península ibérica e a descoberta das Américas. É o autor de uma obra abundante cobrindo a maioria dos domínios intelectuais da vida judia, pela qual realiza a passagem do pensamento judeu medieval à da Renascença. Distinguiu-se, além disso, por um conhecimento das ciências profanas de seu tempo, dentre elas, a astronomia e as matemáticas. Ele foi um rabino, talmudista, místico e filósofo do século XVI, geralmente associado à cidade de Praga.

Em 1553, ele se tornou o grande Rabino da Morávia, em Mikulov. Rabino Loew fundou e dirigiu a yeshivah de Praga de 1573 a 1584. Desde então deixou Praga até 1588. Comprovadamente despachou com o imperador Rodolfo II em fevereiro de 1592; na ocasião, estava acompanhado por seu irmão, Sinai, e seu enteado, Isaac Cohen. Ele deixou Praga novamente em 1592 para se tornar o grande Rabino de Poznań. Candidatou-se várias vezes ao posto de grande Rabino de Praga, mas só foi eleito em 1597, aos 85 anos. Ele morreu ali com quase cem anos, em 1609, cercado pela lenda de taumaturgo, e foi sepultado no cemitério judeu de Praga.

Seu nome tem sido associado à famosa lenda do Golem, uma criatura humanóide de argila que se move, caso se lhe afixe o nome inefável de Deus. Segundo alguns, teria sido criado pelo MaHaRaL para proteger os judeus do gueto contra os muitos pogroms ou, segundo outros, atendendo aos pedidos insistentes de seu amigo Mordekhaï Maisel, muito triste por não ter filhos.

 

domingo, 13 de junho de 2021

SERMÃO AOS PEIXES DE ANTÓNIO DE PÁDUA

Por Francisco José dos Santos Braga

 
Em memória de Santo António de Pádua, O.F.M. (✰ Lisboa, 1195 - ✞ Pádua, Itália, 13/06/1231, aos 35 anos de idade. Em 1263, teve suas relíquias reconhecidas por São Boaventura, que encontrou incorrupta a língua do pregador sacro, assim permanecendo até o tempo presente. 

Capa da edição de 1874 de "Des Knaben Wunderhorn"

 

Começando pelo início, o Sermão aos Peixes de Antônio de Pádua (em alemão, Des Antonius von Padua Fischpredigt) é um poema que serviu de base para um Lied de Gustav Mahler, tendo sido extraído de uma publicação literária intitulada A Trompa Mágica do Menino ou, em alemão, Des Knaben Wunderhorn (referindo-se a um objeto mágico como a cornucópia) em três volumes, lançada em Heildelberg entre 1805 e 1808, consistindo numa coletânea de textos de canções folclóricas alemãs publicada pelos escritores Achim von Arnim (1781-1831) e Clemens Brentano (1778-1842). Essa primeira coleção continha texto de canções desde a Idade Média até o século XVIII inclusive. 

Imagem do Sermão aos Peixes de Santo António de Pádua

Foi essa primeira coleção que inspirou Gustav Mahler a compor seu ciclo de 24 Lieder "Wunderhorn", como passaram a ser chamados (sobre poemas do Des Knaben Wunderhorn). De fato, suas vinte e quatro canções tiveram a inspiração 'Wunderhorn', sendo que nove pertencem às canções da juventude (1ª fase); doze formam a base do agora denominado ciclo Des Knaben Wunderhorn (composto entre 1892 e 1895, durante suas férias de verão em Steinbach-am-Attersee) (2ª fase); e, finalmente, três foram compostas mais tarde (3ª fase). Interessa-nos tratar aqui da canção nº 6, Pregação aos peixes de Antônio de Pádua, que faz parte do ciclo de 12 canções, que didaticamente chamamos de 2ª fase. 

Embora haja alguma controvérsia, consta-nos que foram as seguintes as 12 canções: 
1. Canção noturna do sentinela 
2. Tudo em vão (literalmente 'Esforço perdido') 
3. Consolo na desgraça 
4. Quem inventou esta cançãozinha? 
5. Vida terrena 
6. Sermão aos peixes de Santo Antônio de Pádua 
7. Pequena lenda do Reno 
8. Canção do prisioneiro na torre 
9. Lá onde soam os belos trompetes 
10.Louvor a uma mente brilhante 
11.Três anjos cantavam 
12.Luz primordial 
 
Esta coleção de 12 Lieder de Mahler foi publicada em 1899 sob o título "Humoresques" para voz e piano, entre os quais figura a Pregação aos Peixes de Antônio de Pádua de nº 6 (portanto, até então nenhuma versão orquestral tinha sido produzida pelo compositor). O referido Lied é para barítono com acompanhamento de piano. O andamento exigido pelo compositor para a interpretação desse Lied é descrito como "Behäbig, mit Humor", ou, em português, Relaxante com Humor. O mesmo cantor deve interpretar vários personagens nessa mesma canção, algo complexo, posto que são vários os peixes que devem se apresentar ao longo da canção. Para cada um dos personagens, requer-se um tipo de inflexão vocal característica. 
 
Link: https://www.youtube.com/watch?v=7lmjMpRoZ9Q (vídeo na voz do barítono Hermann Prey e piano de Michael Krist gravado pela Phonogram GmbH em 1972) 

Foto  das primeiras páginas de Des Antonius von Padua Fischpredigt, partitura editada por G. Schirmer, Inc. para voz (low voice) e piano


 
[MANNIS & ZAMPRONHA, 2005], no trabalho em que se propõem a verificar a relação estreita entre os materiais utilizados  nas Canções Wunderhorn e no primeiro movimento da 3ª Sinfonia de Gustav Mahler, observam corretamente que 
(...) concomitantemente verificou-se, através de dados históricos e musicais, que três das Sinfonias de Mahler (a segunda, a terceira e a quarta) podem ser agrupadas em uma trilogia. Esta trilogia costuma ser denominada "Wunderhorn", uma vez que se identifica grande influência de um ciclo de canções de mesmo nome composto praticamente no mesmo período (Gartenberg, 1978:263).
Mahler também reelabora, altera e amplia suas canções, como ocorre com Des Antonius von Padua Fischpredigt (Sermão aos Peixes de Antônio de Pádua), que se converte no terceiro movimento inteiramente instrumental de sua segunda sinfonia (intitulada "Ressurreição"). Este parece ser o eixo através do qual se pode compreender como a redução para voz e piano influenciou trechos do 3º movimento da 2ª sinfonia de Mahler. Por isso, a canção 'Wunderhorn' nº 6 é fundamental tanto para a compreensão dos procedimentos composicionais quanto dos materiais utilizados por Mahler no 3º movimento de sua 2ª Sinfonia. 
 
Link: https://www.youtube.com/watch?v=4MPuoOj5TIw (vídeo para toda a 2ª Sinfonia de Mahler gravada em 21/08/2003 sob a regência de Cláudio Abbado à frente da Orquestra do Festival de Lucerna. O 3º movimento vai de 32:25 até 43:43)
 
Segundo [GROUT & PALISCA, 1994, 655-9], a Sinfonia nº 2 de Mahler 
é uma obra tipicamente romântica: longa, formalmente complexa, de caráter programático, requerendo enormes recursos de execução. (...) 
Estreada em 1895, exige, além de um grande naipe de cordas, 4 flautas (duas são às vezes substituídas por flautins), 4 oboés, 5 clarinetes, 3 fagotes e 1 contrafagote, 6 trompas e 6 trombetas (mais quatro trompas e quatro trombetas, com percussões, formando um grupo à parte), 4 trombones, 1 tuba, 6 tímbales e numerosos outros instrumentos de percussão, 3 sinos, 4 ou mais harpas e órgão, a que se somam um soprano e um contralto solistas e um coro. (...)
Num esforço fáustico de abarcar tudo, Mahler esteve em perfeita sintonia com o espírito romântico, de que a 2ª Sinfonia é a encarnação mais perfeita. (...) 
Mahler é um dos compositores mais audaciosos e mais exigentes no tratamento das combinações orquestrais, só comparável talvez a Berlioz neste domínio; o seu gênio natural para a orquestração foi estimulado pela atividade constante como maestro, que lhe deu a oportunidade de aperfeiçoar até ao pormenor as partituras à luz da experiência prática. (...)
Em outro trecho, [idem, ibidem] observa o seguinte: 
A 2ª Sinfonia, uma das obras mais frequentemente executadas de Mahler, é conhecida como Sinfonia da Ressurreição. Tal como Beethoven, Mahler utiliza aqui as vozes no clímax final da obra
e neste ponto se estende sobre a concepção da Sinfonia da Ressurreição: 
A um primeiro movimento longo, agitado e extremamente desenvolvido segue-se um andante no ritmo fluente, dançante e de tipo popular de um Ländler ou valsa lenta austríaca. O terceiro movimento é uma adaptação sinfônica de uma das canções do ciclo Wunderhorn e o breve quarto movimento é uma nova versão para contralto solista de outra canção da mesma coletânea ¹. Este movimento serve de introdução ao finale, que, após uma seção orquestral expressiva e dramática, ilustrando o dia da Ressurreição, prossegue com um trecho monumental para solistas e coro que toma como ponto de partida o texto de uma ode sobre a Ressurreição do poeta setecentista alemão Klopstock.

 

I. NOTA EXPLICATIVA

 

¹  Trata-se da canção intitulada Urlicht ou Luz primordial (composta em 1892? e orquestrada em 1893) que foi rapidamente incorporada (com orquestração expandida) na 2ª Sinfonia como quarto movimento. 
 
 
II. Letra do Sermão aos Peixes de António de Pádua (em minha tradução do alemão)
 
 
António encontra a igreja vazia 
Quando queria pregar 
Ele vai aos rios 
E prega aos peixes. 
 
Eles abanam sua cauda, 
Brilhante ao sol. 
 
As carpas com ovas 
Vieram aqui 
Abriram suas bocas 
Ouvindo interessadas; 
 
Não há pregação de que 
Tenham mais gostado. 
 
Percas inteligentes 
Brigando todo o tempo 
Rápido nadaram 
Para ouvir o pio; 
 
(De nenhuma pregação 
  As percas gostaram mais.) *
 
Também fadas 
Que sempre se apressam; 
Quero dizer os codfishes 
Que vêm para o sermão. 
 
Codfish nunca tinha ouvido
Um sermão tão amável. 
 
Boas enguias e esturjões 
Que os nobres saboreiam 
Até aqueles condescendem 
Assistir ao sermão: 
 
(De nenhuma pregação 
   As enguias gostaram mais.) *
 
Lagostas, tartarugas 
Por um lado mensageiros lentos 
Levantam-se rápido do chão 
Para ouvirem essa boca! 
 
Nenhuma pregação agradou 
Tanto as lagostas! 
 
Peixe grande, peixe miúdo! 
Nobres e arraia miúda, 
Ergam as cabeças 
Como criaturas sábias. 
 
Para ouvir à pregação 
Como Deus deseja. 
 
Ao fim da pregação, 
Todos voltam à estaca zero, 
As percas ficam ladras, 
Enguias amam demais. 
 
A pregação agradou 
Mas eles ficam os mesmos. 
 
As lagostas andam para trás, 
Codfishes ficam gordos, 
As carpas são gulosas, 
A pregação é esquecida. 
 
A pregação agradou 
Mas eles ficam os mesmos.
 
* Trechos omitidos por Mahler na sua canção 'Wunderhorn'.
 
O texto de Des Antonius von Padua Fischpredigt provavelmente seja  o equivalente de uma cena de algum  medieval retábulo alemão que Mahler se baseou para, primeiro compor a redução musical para voz e piano, e mais tarde desenvolvê-la no scherzo de sua Sinfonia nº 2. Neste painel, Santo Antônio, farto da indiferença de sua congregação, desce ao rio para pregar aos peixes. A piada (e a moral) é: por mais que todos gostem do sermão, essas criaturas de sangue frio não são melhor reformadas por ele do que seus equivalentes humanos. 
 
Na redução para voz e piano, o cenário de Mahler tem um senso de humor maravilhosamente direto, seu ostinato 3/8 repleto de peixes que se lançam, também mergulham nas profundezas do teclado em reluzentes terças paralelas. Quando o deleite dos peixes é expresso ('De nenhuma pregação...'), o Ländler subjacente se torna uma dança aberta, exibindo seu material com uma politonalidade quase bergiana, enquanto uma seção fá maior mais suave e nobre em 'Boas enguias e esturjões' transmite perfeitamente distinções de posição. No final, entretanto, tudo é desilusão; o verso final é sustentado por um pedal de dó menor e a cena se dissolve em uma passagem cromática descendente que é notavelmente semelhante ao final de Das ist ein Flöten und Geigen do ciclo Dichterliebe (Amor de Poeta) de Schumann. 



III. BIBLIOGRAFIA


GARTENBERG, Egon: MAHLER, THE MAN AND HIS MUSIC. Londres: Panther, 1978

GROUT, Donald J. & PALISCA, Claude V.: HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL, Lisboa: Gradiva Publicações Ltda, 1994, 1ª edição, 759 p.

MANNIS, Guilherme & ZAMPRONHA, Edson: Inter-relações entre o ciclo "Des Knaben Wunderhorn" de Gustav Mahler e sua Terceira Sinfonia, trabalho apresentado no XV Congresso da ANPPOM - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-gradução em Música, 2005, disponível na Internet em PDF.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

UM MALFEITOR



Por Antón Pávlovitch Tchékhov
Traduzido do russo e comentado por Francisco José dos Santos Braga

Publicado em 24/07/1885 na Gazeta de São Petersburgo, na edição de nº 200, na seção "Notas Fugazes", com o subtítulo Uma Pequena Cena («Сценка»), assinado pelo pseudônimo "A. Tchekhonté". Posteriormente, Tchékhov incluiria esse conto no seu livro Contos Heterogêneos (ou, em russo, Пёстрые рассказы de 1886) e nas Obras Completas por A.P. Tchékhov, publicadas por Adolf Marks (1899-1901), em ambas com pequenas trocas estilísticas e com a supressão do subtítulo. Liev Tolstói incluiu "Um Malfeitor" em sua lista pessoal dos melhores contos de Tchékhov. Durante a vida de Tchékhov, o conto foi traduzido para as línguas búlgara, húngara, alemã, servo-croata, eslovaca e tcheca. 
"Um Malfeitor", ilustrado por Kukryniksy (1941)

 

Diante do juiz de instrução está de pé um mujique pequeno, extremamente magro, trajando camisa colorida e calções remendados. Seu rosto coberto de pelos hirsutos e todo picado das bexigas e seus olhos, mal visíveis por trás de suas sobrancelhas espessas e eriçadas, possuem uma expressão de severidade carrancuda. Na cabeça, um gorro cheio de pelos, há tempos sem pentear e emaranhados, lhe confere ainda maior aspereza, de aranha. Está de pés no chão. 
Dênis Grigóriev! — dá início o juiz. — Aproxima-te e responde às minhas perguntas. No dia sete deste mês de julho, o vigia ferroviário Ivan Semiónov Akínfov, tendo passado de manhã pela linha férrea, no km 149,5, te surpreendeu desatarraxando uma porca, com a qual os trilhos são presos aos dormentes. Aqui está ela, a tal porca!... Com essa porca ele te prendeu também, não foi? Foi assim mesmo que aconteceu? 
O quê? 
Tudo aconteceu, da forma como explica Akínfov? 
Claro que foi. 
Bem; então, para que desatarraxavas a porca? 
O quê? 
Deixa este teu "o quê", e responde à pergunta! para quê desatarraxavas a porca? 
Se eu não tivesse precisão dela, não a desatarraxaria, — respirou fundo Dênis, olhando de soslaio para o teto. 
Para quê tu precisas desta porca? 
Porca? Ah sim, nós fazemos chumbadas com as porcas... 
Quem é "nós"? 
Nós, o povo... Quer dizer, os mujiques de Klímov. 
Escuta, maninho, não me faças de idiota, e fala claro. Não me venhas contar lorotas de pescador sobre chumbadas! 
Nunca na vida menti, e agora estou mentindo... — resmunga Dênis, piscando os olhos. — Então, Meritíssimo, dá pra pescar sem chumbada? Se a gente colocar uma isca viva ou minhoca no anzol, acha que ela irá ao fundo sem uma chumbada? Estou mentindo... — Dênis sorri. — Só se a isca estiver com o diabo no corpo para ir ao fundo sem uma chumbada! A perca, o lúcio, o burbot sempre vão para o fundo, mas o peixe que nada no raso, este quem sabe só um chilichper vai pegar, e assim mesmo é raro... O chilichper não vive no nosso rio... Este peixe adora muito espaço. 
Para quê tu estás me falando de chilichper? 
O quê? Mas se é o sr. mesmo que me pergunta! Lá onde eu moro, também os nossos patrões pescam assim. Nem o guri menorzinho se meteria a pescar sem chumbada. É claro que alguém que não entende pode ir pescar sem chumbada. Tolo não observa as convenções... 
Então tu dizes que desatarraxaste esta porca para fazer dela uma chumbada? 
Para que mais? Não era para brincar no jogo da vovó! ¹
Mas para a chumbada, tu podias usar chumbo, uma bala ... um prego qualquer...
Não se acha chumbo na estrada, é preciso comprá-lo, e um prego não serve. Não se encontra nada melhor do que uma porca... É pesada e tem um buraco. 
"Ele se faz de bobo, como se tivesse nascido ontem ou caído do céu!", pensou o juiz. 
Será que não entendes, cabeça-tonta, a que leva desatarraxar essas porcas? Se o guarda não tivesse percebido, o trem poderia ter descarrilhado dos trilhos, gente teria sido morta! Terias matado gente." 
 
O trem poderia ter descarrilhado dos trilhos, gente teria sido morta!

 
Deus me livre, meritíssimo! Para que matar? Será que nós somos pagãos ou uns malfeitores? Graças a Deus, meu bom senhor, em toda nossa vida não só nunca matamos ninguém, como nem nos passou pela cabeça uma ideia desse tipo... Que nos livre e guarde, Rainha do Céu! ... O que o sr. está dizendo? 
E de onde você acha que vêm os acidentes ferroviários? Solta duas ou três porcas e tens um acidente.  
Denis sorri e franze os olhos para o magistrado, incrédulo. 
Então vamos lá! Faz um tempão que temos todos na aldeia desatarraxado porcas, e os srs. têm feito vista grossa; e agora, acidentes... morte de pessoas. Se eu tivesse tirado um trilho ou, digamos, colocado uma tora atravessada sobre o trilho, bem, então, talvez isso tivesse derrubado o trem, mas ... ufa! uma porca? 
Mas precisas entender que a porca prende o trilho firme nos dormentes! 
Isso entendemos... Por isso, não desatarraxamos todas elas... Deixamos algumas... Não fazemos sem pensar... Nós entendemos...  
Denis boceja e faz o sinal da cruz na boca. 
No ano passado o trem descarrilhou aqui”, diz o magistrado. "Agora se compreende o porquê!" 
O que o sr. está dizendo? 
Estou lhe dizendo que agora entendo por que o trem descarrilhou no ano passado ... Estou entendendo! 
Para isso os senhores, nossos benfeitores, são instruídos: para entender... Deus sabia a quem dar entendimento... O sr. entendeu e ajuizou o como e o quê, mas o vigia é um mujique que nem nós mesmos, sem entendimento nenhum, pega pelo colarinho e arrasta a gente... Entende primeiro e arrasta depois! Como se diz, mujique com mentalidade de mujique mesmo... Meritíssimo, queira registrar que ele me deu dois murros nos dentes e no peito. 
Quando revistaram tua casa, encontraram mais uma porca... Esta outra, em qual lugar foi que desatarraxaste, e quando? 
O sr. está falando daquela porca, que estava debaixo do cofrinho vermelho? 
Não sei onde estava, mas só sei que a encontraram em sua casa. Quando foi que a desatarraxaste? 
Não fui eu quem a desatarraxou; foi o Ignachka, filho do Sémyon zarolho que me deu. Estou falando daquela porca debaixo do cofrinho, mas aquela que está no quintal, no trenó, fomos eu e Mitrofan juntos que desatarraxamos. 
Qual Mitrofan? 
O Mitrofan Petrov... Ainda não ouviu nada dele? Ele faz redes em nossa aldeia e as vende aos patrões. Ele tem precisão de muitas dessas porcas. Para cada rede, calculo, umas dez. 
Escuta... O artigo 1.081 do Código Penal diz que por qualquer dano deliberado à ferrovia, quando venha a por em perigo o transporte que segue por essa via e o culpado saiba que a conseqüência disso deve ser um acidente... (Estás entendendo? tu o sabias! E tu não podias desconhecer aonde este desatarraxamento leva...) ele é sentenciado à deportação em trabalhos forçados. 
Claro, o sr. sabe melhor do que... Nós somos gente ignorante... Que é que nós entendemos? 
Tu entendes tudo! Estás mentindo, fazendo-te de bobo! 
Para que mentir? Pergunte na aldeia, se não acreditar... Sem chumbada só se pesca alburnete, e não há peixe pior do que um gobião, mas até este não belisca sem um peso. 
Conta-me mais sobre o chilichper! — sorri o juiz de instrução. 
Não se encontra chilichper por aqui... lançamos nossa linha sem chumbada na superfície, com uma borboleta; dessa forma, cai no anzol um góbio, mas raramente. 
Ora, cala-te... 
Baixa o silêncio. Denis muda o peso do corpo de um pé para o outro, olha para a mesa coberta com um pano verde e pisca seus olhos com força, como se visse à sua frente não um pano, mas o sol. O magistrado escreve rápido. 
Posso retirar-me? — pergunta Denis após algum silêncio. 
Não. Tenho que te prender e meter-te no cárcere. 
Dênis para de piscar e, erguendo as espessas sobrancelhas, olha interrogativamente para o juiz de instrução. 
Como assim? Para o cárcere, Meritíssimo? Não tenho tempo, preciso ir à feira; cobrar três rublos de Yegor pelo toicinho... 
Cala a boca, não te incomodes. 
Para o cárcere... Se houvesse uma razão, eu ia, mas desse modo... Assim de repente... Para quê? Não roubei, ao que parece, e não briguei... Mas se o sr. estiver em dúvida sobre o imposto atrasado, Meritíssimo, não acredite em nosso estaroste... pergunte ao membro permanente... é um pagão este estaroste...² 
Cala-te! 
Já estou calado mesmo... — balbucia Dênis. 
Mas que o estaroste sonegou nas contas, eu posso até jurar... Somos três irmãos: Kuzmá Grigóriev, quer dizer, Yegor Grigóriev e eu, Dênis Grigóriev... 
Estás me importunando... Ei, Sémyon — grita o magistrado — leva-o embora. 
Somos três irmãos. — resmunga Dênis, enquanto dois soldados fortes o agarram e o arrastam para fora do recinto — Um irmão não é responsável pelo outro. Kuzmá não paga, então Dênis tem que responder... Juízes, com efeito! É pena que nosso patrão-general esteja morto, — que o Reino do Céu o tenha! — do contrário ele mostraria aos srs. juízes como se faz... É preciso julgar com entendimento, e não de qualquer maneira... Açoitem, se quiserem, mas que seja merecidamente, com consciência... 
 
Resmunga Dênis, enquanto dois soldados fortes o agarram e o arrastam para fora do recinto.

 
 
 
 

II. NOTAS  EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga




¹  Aqui Dênis se refere ao "jogo das pedrinhas" ou "das cinco marias" ou "das mariquinhas", como o conhecemos no Brasil. É um jogo composto de cinco peças. Na antiguidade esses dados eram feitos com ossos de tornozelos de ovelhas ou de cabras e seu nome varia de acordo com o país. Tais ossos retirados dos metacarpos de ovelhas e cabras recebiam o nome de astragaloi em grego e tali em latim. O nome do jogo em alguns países ainda lembra a origem de seus dados na época da sua invenção, tais como "knucklebones", em inglês, e "osselets", em francês). 
 
Ossos dessa articulação, usados para brincar de avós, um jogo folclórico russo em que um desses ossos arranca outros ossos de um círculo, colocados de uma certa maneira
 
Na Rússia, recebeu o nome de "jogo de vovós" (игра в бабки), que foi melhor descrito por Astafyev, tendo merecido de Pushkin um famoso poema. 
 
Tela de V.E. Makóvskii, "Jogo de vovós" (1870)

 
O jogo possui um grande número de variantes que foram inventadas em diferentes épocas, em diversos países, e nas quais são usadas diversas peças do jogo ​​(principalmente pequenos ossos das pernas de ungulados). Na versão russa do jogo, via de regra, era utilizado chumbo para dar maior peso aos dados, metal que era despejado nos ossos de tálus de boi cozidos. 
Modernamente, como dados são utilizadas pedras polidas ou outro material industrializado como latão, cobre, bronze, prata, ouro, vidro, marfim, mármore, madeira, pedra, terracota ou pedras preciosas, ao invés dos metacarpos de animais. A versão de mesa mais moderna do jogo costuma usa "ouriços" (estrelas) de plástico ou metal de seis pontas e uma bola de borracha. Os jogadores lançam os dados no ar e tentam pegar o maior número possível na parte de trás de uma das mãos enquanto caem. O processo lúdico consiste na destreza de lançar os dados, ou seja, ganha no "jogo de vovós" o jogador que pegar o maior número de pedras.
 
²  Estaroste: representante eleito de comunidade rural ou urbana, na Rússia czarista. 
 
 
 
III. BREVE ANÁLISE LITERÁRIA DE "UM MALFEITOR" por Francisco José dos Santos Braga
 
 
Caracterização 
 
Este é um daqueles muitos contos tchekhovianos que são lidos, enquanto sorrimos em meio às lágrimas. Ao analisar o conto, abre-se um montão de relações entre camponeses e "patrões", que estavam presentes na Rússia naquela época. 
 
Enredo 
 
A trama começa com o destino do camponês Dênis Grigóriev sendo decidido no julgamento. Ficou imediatamente óbvio que ele não era muito inteligente, mas o fato de ter tentado defender sua inocência mostra que é bastante teimoso. Em geral, um homem simples. Seu crime foi que desenroscou as porcas dos trilhos da ferrovia. Conforme ele explica ao juiz, isso é uma coisa extremamente necessária na hora de fazer uma rede, porque a rede não afunda sem ela. Em resposta aos argumentos do juiz de que, por causa dessas porcas retiradas dos trilhos, o trem poderia descarrilhar e pessoas morrerem, Grigóriev bate na mesma tecla: nunca teve isso em mente. 
E realmente é isso. Ele não tinha intenção de fazer por mal, apenas é tão estúpido que não consegue perceber as consequências de seus atos. Além disso, no decorrer da investigação, descobriu-se que todos os camponeses em sua aldeia estão fazendo isso e há dezenas de porcas desenroscadas dos trilhos. E os senhores ("patrões") compram as redes usando essas porcas. Resta apenas ao juiz mandar levar Grigóriev para a prisão. Naturalmente, o réu ficou pasmo, porque ele claramente não sabia por que a sentença foi proferida contra ele. 
 
Análise do conto e conteúdo de ideias na obra 
 
O conto "Um Malfeitor" levanta o tema da negligência, que sempre é doloroso para a Rússia. Quem é o culpado pelo fato de os trens saírem dos trilhos e as pessoas morrerem? Mujiques analfabetos, em sua maioria absoluta, não entendem aonde podem levar seus atos, ou senhores espertos (patrões), que entendem tudo perfeitamente bem, compram suas redes com essas porcas cortadas com alicate? 
Parece que, se o próprio Dênis Grigóriev soubesse que estava realmente se tornando um assassino, se alguém explicasse isso a ele, então muito provavelmente ele não faria isso, já que o camponês russo é basicamente temente a Deus e deliberadamente não iria cometer tal pecado qual assassinato. O problema é que, a julgar pelo final do conto, por sua estupidez e trevas inatas, ele não entendeu a razão por que estava sendo punido, pois só ganha a vida com a sua profissão. 
O conto articula claramente quem são os verdadeiros malfeitores. Senhores espertos e competentes ("patrões" ou atravessadores) que compram apetrechos de pesca dos mujiques para desfrutar ainda mais da pesca estão bem cientes da tecnologia de fabricação dessas redes, mas se calam. Eles sabem aonde leva esse tipo de trabalho artesanal dos mujiques, mas continuam a comprar essas redes, incentivando-os assim a uma maior "criatividade". 
O conto obedece aos cânones da escola realista, porque reflete não só a realidade concreta da realidade russa no final do século XIX, mas também dos tempos modernos, porque, de fato, o problema continua atual. A composição da obra é incomum. Nela não há começo nem fim. Como se a cena com Dênis tivesse sido arrancada do quadro geral de outra obra mais volumosa e apresentada ao leitor (daí o subtítulo "pequena cena"). O veredito é desconhecido. Pode-se sentir o desejo do autor de que o leitor lhe dê suporte. O conto foi escrito há mais de cem anos, mas um leitor perspicaz pode facilmente traçar paralelos vivos com a modernidade. 
 
Heróis do conto 
 
Claro, o personagem central aqui é o mujique Dênis Grigóriev. O segundo personagem é um investigador que interroga o mujique. Esse personagem é antes neutro, não possuindo características especiais. Em seu conto, Tchékhov dá continuidade ao tema do "HOMENZINHO" (mujique Dênis Grigóriev), preenchendo-o com novos conteúdos e desenvolvendo-os. Diante do investigador, o "homenzinho" é completamente honesto e sincero sobre o que fez e por quê. A princípio, faz com que o leitor sinta pena dele, como quem está sendo punido injustamente. 
Mas, no decorrer da narrativa, descobre-se que ele é, de fato, um malfeitor. O único problema é que nessa hipóstase ele se viu do outro lado da ignorância, da própria limitação e, na verdade, do embotamento sem limites. Ele não pode ser chamado de idiota ou uma pessoa mentalmente anormal. Não! Ele simplesmente não percebe a que consequências seu artesanato pode levar. Ele não pode ser chamado de mau ou um homem com más intenções. Na vida real, muito provavelmente, ele não fará mal a uma mosca. 
Mas, sua escuridão e embotamento impenetrável assumem uma conotação sinistra à luz das consequências que podem ocorrer devido às suas ações. Mas coisas terríveis poderiam ter acontecido. O investigador tenta chegar à sua consciência: "Se o guarda não tivesse percebido, o trem poderia ter descarrilhado dos trilhos, gente teria sido morta!" O raciocínio posterior de Grigóriev torna sua figura cada vez mais sinistra. Ele tenta convencer o investigador de que está fazendo tudo de forma pensativa e "precipitada". E pelas palavras dele está realmente assustado, porque agora está absolutamente claro o que se pode esperar dele. Grigóriev vive o momento presente, está interessado apenas em suas necessidades vitais imediatas. 
Quando você lê o conto e o diálogo entre o investigador e Grigóriev, então vem à mente a frase gasta: "eu falo com senso e tu, com estupidez" (em russo, "Я говорю про Ивана, а ты про болвана"). O investigador explica-lhe que podem morrer pessoas e ele responde que é impossível apanhar um bom peixe sem chumbadas. O egoísmo é perfeito, mas não é o resultado de sua natureza malvada. Este personagem é uma criatura abatida. O número dos que, como Grigóriev, são forçados a pensar constantemente em como alimentar sua família, podemos supor que não é pequeno. Além disso, ele é completamente ignorante, esmagado pelas difíceis circunstâncias da vida. Seu comportamento pode ser facilmente compreendido e explicado. 
Portanto, é compreensível a amarga ironia com que o autor descreve seu "malfeitor". Qual é o culpado? Ele realmente não entendia qual era sua culpa. O terceiro herói, que pode ocupar o lugar principal junto com Grigóriev, pode ser chamado de "patrões" que compram de pessoas como Dênis Grigóriev apetrechos de pesca com porcas desenroscadas. Eles são os principais malfeitores. Os homens que desatarraxam as porcas não entendem o que estão fazendo. E aqueles entendem tudo. A questão é: qual deles é o maior culpado? 
"Um Malfeitor" não é apenas uma crítica ao sistema que transforma as pessoas comuns em um rebanho covarde, com o qual as autoridades que estão no poder podem fazer tudo o que quiserem. 
O autor também expressa alguns traços nacionais bem conhecidos. O mais famoso deles é o "talvez" russo: "talvez continue e dê certo". O escritor mostra que seu personagem não é tão simplório, é astuto a seu modo, simplesmente não tolera quem está no poder e não pensa muito nas consequências de seus atos, contando com "talvez". A razão para isso está tanto na mentalidade russa quanto nas condições em que as pessoas comuns têm de sobreviver. 
 
 
FUNDO HISTÓRICO

Vladimir Gilyarovsky afirmava que o protótipo para o personagem de Dênis Grigóriev era um camponês chamado Nikita Pantyukhin, "o grande mestre da captura de burbot", natural da aldeia Kraskovo, na província de Moscou. Embora Tchékhov tenha reagido negativamente à questão dos protótipos de seus heróis, já que em sua maioria são personagens idealizados.
Escreveu Gilyarovsky:
"Antón Pávlovitch estava tentando dizer a ele que não se deveria desatarraxar porcas dos trilhos da ferrovia, o que poderia causar acidente de trem, mas Nikita parecia não ser capaz de entendê-lo."
"Claro, eu sei o que é permitido, o que não é", — dizia o mujique. — "Claro, não foi em todos os lugares que as desatarraxei: uma aqui, outra ali. Não há razão para não entendermos o que está errado, o que não está!", — o mujique repetia.
Segundo ele, Tchékhov havia anotado algumas palavras e expressões usadas pelo malfeitor da vida real, tendo-as reproduzido depois em seu conto.
Cfr. V. Gilyarovsky. Moscow and Moskovites. 1959, p. 354
 
 
Uma característica do storytelling de Tchékhov, que difere da técnica praticada por Maupassant, anotei-a na minha tradução do conto de Tchékhov intitulado Um Escândalo
A crítica normalmente aponta a irresolução característica de Tchékhov na sua ficção muito curta e assinala que essa é uma marca de sua grandeza, bem distinta da que era praticada por seus contemporâneos russos no referido gênero (e também por Guy de Maupassant, vale acrescentar). Normalmente, o fim do conto, além de possuir sua irresolução, deixa ao leitor completar a história. O próprio Tchékhov costumava repetir: 
“Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que ele próprio vai acrescentar os elementos subjetivos que faltam ao conto.” 

 

Contribuição para análise do conto por um jurista brasileiro

Assim sendo, respeitando esse desejo expresso de Tchékhov, apresento a análise do professor universitário José Osterno Campos de Araújo (UniCEUB), Mestre em Ciências Criminais, por se tratar de um conto com implicações jurídicas. 

[ARAÚJO, 2013], utilizando a tradução do conto "Criminoso Intencional" (outro título consentâneo com Um Malfeitor, mais literal) feita por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, analisa as fases de audiência de instrução e julgamento no ordenamento jurídico da época czarista na Rússia (1885), indagando finalmente se foi justa ou injusta a condenação de Denis Grigóriev, o mujique magro, "de camisa colorida e calças remendadas" e "de pés no chão", a saber: 

1) Imputação fática: “No dia 7 de julho deste ano o vigia da estrada de ferro Ivan Semiônovitch Akínfov, ao passar de manhã pela linha do trem, na versta 141, encontrou você desatarraxando uma das porcas que prendem os trilhos aos dormentes. Aqui está ela, esta porca!… Por causa desta porca ele o prendeu.” 

2) Interrogatório 

3) Imputação jurídica: “O artigo 1.081 do Código Penal diz que se há qualquer danificação à estrada de ferro executada deliberadamente e que possa pôr em risco o transporte por essa via, e se o culpado sabia que as consequências disso seriam desastrosas… Está entendendo? Se ele sabia! E você não poderia não saber a que levaria desatarraxar a porca… O culpado será sentenciado ao exílio e a trabalhos forçados”. 
Após a acusação, o autor indaga se, no conto, estão presentes os três conceitos jurídicos para a existência do crime: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a culpabilidade. A seu ver, a imputação procede, quanto à tipicidade da conduta do mujique de Klímov, seja em seu aspecto objetivo, por haver, é certo, retirado a porca do trilho, criando o aventado perigo, seja em seu aspecto subjetivo, já que quis realizar a retirada da porca (vontade – elemento volitivo do dolo) e também sabia o que, de fato, fazia (consciência – elemento intelectivo do dolo). 
É preciso ainda indagar se estava presente na conduta do mujique o terceiro elemento do conceito analítico do crime, a saber, a culpabilidade. O autor conclui pela ausência do crime em razão da impossibilidade de provar a culpabilidade nos seguintes termos: Os costumes da região, em que todos (inclusive os patrões, de quem se poderia cobrar maior conhecimento das coisas do mundo) faziam aquilo – desatarraxar porcas, para fazer chumbada -; a condição pessoal de Denis, simples e de pouca cultura e informação; a inexistência de anteriores prisões, ou mesmos processos, por condutas idênticas à de Dênis, praticadas na região; tudo isto embasa a conclusão de que Dênis Grigóriev, ao desatarraxar a malfadada porca da linha do trem, não possuía a condição de saber que seu agir era contrário ao direito, ou seja, não possuía a consciência da ilicitude de seu ato. A falta da potencial consciência da ilicitude afasta a culpabilidade. Sem culpabilidade, não há crime. 

4) Em verdade, fez-se justiça a Dênis Grigóriev? A Justiça que, ao ser sentenciado, ele invocou? De fato, ao final da instrução (e do conto), Dênis Grigóriev é preso, quando, atônito, balbucia que ao juiz compete julgar habilmente: 

“Juízes! Morreu o finado general, nosso patrão, que Deus o tenha, senão ele ia mostrar aos senhores juízes… É preciso julgar com sabedoria, e não assim, de qualquer jeito… Podem até açoitar, mas com um motivo, com justiça…”. 

Link: https://www.pauloqueiroz.net/o-criminoso-intencional-de-tchekhov-e-a-consciencia-da-ilicitude/ 

 

OBSERVAÇÕES FINAIS

Permito-me ainda acrescentar que o interrogado repele veementemente, com horror, qualquer insinuação do juiz de instrução quando alertado do perigo de sua conduta para a via férrea (retirando porcas dos trilhos para transformá-las em chumbadas de pesca) e para os tripulantes do trem, quando, assustado, retrucou: 

Deus me livre, meritíssimo! Para que matar? Será que nós somos pagãos ou uns malfeitores? Graças a Deus, meu bom senhor, em toda nossa vida não só nunca matamos ninguém, como nem nos passou pela cabeça uma ideia desse tipo... Que nos livre e guarde, Rainha do Céu! ... O que o sr. está dizendo?

Aqui cabe uma observação. Com este conto, Tchékhov procura mostrar vividamente as verdadeiras feições do povo russo na época czarista. Mostrou que a pessoa mais importante com a qual se preocupar é você mesmo(a). Acusações de que as pessoas poderiam ter morrido por negligência não são válidas para Dênis. Muito pelo contrário. Ele dá desculpas e não se considera um malfeitor, muito menos consegue entender por que foi detido. Pensando apenas na sua sobrevivência, um homem com sua mente não é capaz de compreender que algo que seja seu ganha-pão constitua perigo para as vidas humanas. Leia-se esta situação como críticas a um sistema, sob o qual as pessoas sem cerimônias se embotam, incapacitando-se para tomar decisões sensatas. Aqui está incluído o julgamento do mujique, em que uma pessoa foi ingenuamente julgada, sem se observar certo rigor para se determinar sobre a intencionalidade do crime, como vimos.

Observe que a ingenuidade do mujique é tamanha a ponto de, ao depor, incriminar-se a si mesmo, apresentando, como se vantagem fossem, provas de seus crimes e entregando, como se alcaguete fora, seus parceiros nos feitos.

Também observe que não se deve nem sonhar com a presença de um advogado de defesa que o aconselhasse, muito menos com um defensor público, por ser o réu juridicamente necessitado, que atuasse naquele caso em razão de desrespeito aos direitos do cidadão, individuais ou coletivos.

Entendo que um detalhe importante que deve ser destacado pode ser encontrado numa resposta de Dênis a respeito de Mitrofan Petrov, um parceiro do mujique no procedimento de desatarraxar porcas. Pelo que Dênis disse, trata-se de um agente que opera para os patrões (capatazes? receptadores? atravessadores? "coronéis"?), para os quais ele vende redes de pesca que fabrica. Conta que esse broker ou agente intermediário precisa de muitas porcas: 

O Mitrofan Petrov... Ainda não ouviu nada dele? Ele faz redes em nossa aldeia e as vende aos patrões. Ele tem precisão de muitas dessas porcas. Para cada rede, calculo, umas dez.

O investigador parece não se interessar pela preciosa informação do mujique, fazendo vista grossa àquela movimentação comercial na aldeia de Klímov. Ou seja, não vê interesse em fazer uma investigação a fundo para chegar à causa da ação criminosa. O que Dênis tentava dizer é que os "patrões" que compram redes de pesca com porcas furtadas também são malfeitores.

Em minha opinião fica difícil provar a consciência do sentenciado quanto ao real alcance de seus atos. Indago: Qual juiz, em sã consciência, dormiria tranquilo após sentenciar o mujique, levando em conta todo o contexto da situação indefinida e diante de todos os argumentos do réu mostrando a conivência pacífica entre patrões e a Justiça Pública, que é complacente com suas práticas delituosas? Ainda ecoa o argumento do mujique:  

Lá onde eu moro, também os nossos patrões pescam assim.

 
 

IV. BIBLIOGRAFIA



ARAÚJO, J.O.C.: O "criminoso intencional" de Tchékhov e a consciência da ilicitude, in Direito penal na literatura de Camus, Suassuna e outros iluminados, Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018, p. 87-92. 
 
GYLIAROVSKY, V.A.: Moscow and Muskovites. 1959, 512 p.