quinta-feira, 10 de junho de 2021

UM MALFEITOR



Por Antón Pávlovitch Tchékhov
Traduzido do russo e comentado por Francisco José dos Santos Braga

Publicado em 24/07/1885 na Gazeta de São Petersburgo, na edição de nº 200, na seção "Notas Fugazes", com o subtítulo Uma Pequena Cena («Сценка»), assinado pelo pseudônimo "A. Tchekhonté". Posteriormente, Tchékhov incluiria esse conto no seu livro Contos Heterogêneos (ou, em russo, Пёстрые рассказы de 1886) e nas Obras Completas por A.P. Tchékhov, publicadas por Adolf Marks (1899-1901), em ambas com pequenas trocas estilísticas e com a supressão do subtítulo. Liev Tolstói incluiu "Um Malfeitor" em sua lista pessoal dos melhores contos de Tchékhov. Durante a vida de Tchékhov, o conto foi traduzido para as línguas búlgara, húngara, alemã, servo-croata, eslovaca e tcheca. 
"Um Malfeitor", ilustrado por Kukryniksy (1941)

 

Diante do juiz de instrução está de pé um mujique pequeno, extremamente magro, trajando camisa colorida e calções remendados. Seu rosto coberto de pelos hirsutos e todo picado das bexigas e seus olhos, mal visíveis por trás de suas sobrancelhas espessas e eriçadas, possuem uma expressão de severidade carrancuda. Na cabeça, um gorro cheio de pelos, há tempos sem pentear e emaranhados, lhe confere ainda maior aspereza, de aranha. Está de pés no chão. 
Dênis Grigóriev! — dá início o juiz. — Aproxima-te e responde às minhas perguntas. No dia sete deste mês de julho, o vigia ferroviário Ivan Semiónov Akínfov, tendo passado de manhã pela linha férrea, no km 149,5, te surpreendeu desatarraxando uma porca, com a qual os trilhos são presos aos dormentes. Aqui está ela, a tal porca!... Com essa porca ele te prendeu também, não foi? Foi assim mesmo que aconteceu? 
O quê? 
Tudo aconteceu, da forma como explica Akínfov? 
Claro que foi. 
Bem; então, para que desatarraxavas a porca? 
O quê? 
Deixa este teu "o quê", e responde à pergunta! para quê desatarraxavas a porca? 
Se eu não tivesse precisão dela, não a desatarraxaria, — respirou fundo Dênis, olhando de soslaio para o teto. 
Para quê tu precisas desta porca? 
Porca? Ah sim, nós fazemos chumbadas com as porcas... 
Quem é "nós"? 
Nós, o povo... Quer dizer, os mujiques de Klímov. 
Escuta, maninho, não me faças de idiota, e fala claro. Não me venhas contar lorotas de pescador sobre chumbadas! 
Nunca na vida menti, e agora estou mentindo... — resmunga Dênis, piscando os olhos. — Então, Meritíssimo, dá pra pescar sem chumbada? Se a gente colocar uma isca viva ou minhoca no anzol, acha que ela irá ao fundo sem uma chumbada? Estou mentindo... — Dênis sorri. — Só se a isca estiver com o diabo no corpo para ir ao fundo sem uma chumbada! A perca, o lúcio, o burbot sempre vão para o fundo, mas o peixe que nada no raso, este quem sabe só um chilichper vai pegar, e assim mesmo é raro... O chilichper não vive no nosso rio... Este peixe adora muito espaço. 
Para quê tu estás me falando de chilichper? 
O quê? Mas se é o sr. mesmo que me pergunta! Lá onde eu moro, também os nossos patrões pescam assim. Nem o guri menorzinho se meteria a pescar sem chumbada. É claro que alguém que não entende pode ir pescar sem chumbada. Tolo não observa as convenções... 
Então tu dizes que desatarraxaste esta porca para fazer dela uma chumbada? 
Para que mais? Não era para brincar no jogo da vovó! ¹
Mas para a chumbada, tu podias usar chumbo, uma bala ... um prego qualquer...
Não se acha chumbo na estrada, é preciso comprá-lo, e um prego não serve. Não se encontra nada melhor do que uma porca... É pesada e tem um buraco. 
"Ele se faz de bobo, como se tivesse nascido ontem ou caído do céu!", pensou o juiz. 
Será que não entendes, cabeça-tonta, a que leva desatarraxar essas porcas? Se o guarda não tivesse percebido, o trem poderia ter descarrilhado dos trilhos, gente teria sido morta! Terias matado gente." 
 
O trem poderia ter descarrilhado dos trilhos, gente teria sido morta!

 
Deus me livre, meritíssimo! Para que matar? Será que nós somos pagãos ou uns malfeitores? Graças a Deus, meu bom senhor, em toda nossa vida não só nunca matamos ninguém, como nem nos passou pela cabeça uma ideia desse tipo... Que nos livre e guarde, Rainha do Céu! ... O que o sr. está dizendo? 
E de onde você acha que vêm os acidentes ferroviários? Solta duas ou três porcas e tens um acidente.  
Denis sorri e franze os olhos para o magistrado, incrédulo. 
Então vamos lá! Faz um tempão que temos todos na aldeia desatarraxado porcas, e os srs. têm feito vista grossa; e agora, acidentes... morte de pessoas. Se eu tivesse tirado um trilho ou, digamos, colocado uma tora atravessada sobre o trilho, bem, então, talvez isso tivesse derrubado o trem, mas ... ufa! uma porca? 
Mas precisas entender que a porca prende o trilho firme nos dormentes! 
Isso entendemos... Por isso, não desatarraxamos todas elas... Deixamos algumas... Não fazemos sem pensar... Nós entendemos...  
Denis boceja e faz o sinal da cruz na boca. 
No ano passado o trem descarrilhou aqui”, diz o magistrado. "Agora se compreende o porquê!" 
O que o sr. está dizendo? 
Estou lhe dizendo que agora entendo por que o trem descarrilhou no ano passado ... Estou entendendo! 
Para isso os senhores, nossos benfeitores, são instruídos: para entender... Deus sabia a quem dar entendimento... O sr. entendeu e ajuizou o como e o quê, mas o vigia é um mujique que nem nós mesmos, sem entendimento nenhum, pega pelo colarinho e arrasta a gente... Entende primeiro e arrasta depois! Como se diz, mujique com mentalidade de mujique mesmo... Meritíssimo, queira registrar que ele me deu dois murros nos dentes e no peito. 
Quando revistaram tua casa, encontraram mais uma porca... Esta outra, em qual lugar foi que desatarraxaste, e quando? 
O sr. está falando daquela porca, que estava debaixo do cofrinho vermelho? 
Não sei onde estava, mas só sei que a encontraram em sua casa. Quando foi que a desatarraxaste? 
Não fui eu quem a desatarraxou; foi o Ignachka, filho do Sémyon zarolho que me deu. Estou falando daquela porca debaixo do cofrinho, mas aquela que está no quintal, no trenó, fomos eu e Mitrofan juntos que desatarraxamos. 
Qual Mitrofan? 
O Mitrofan Petrov... Ainda não ouviu nada dele? Ele faz redes em nossa aldeia e as vende aos patrões. Ele tem precisão de muitas dessas porcas. Para cada rede, calculo, umas dez. 
Escuta... O artigo 1.081 do Código Penal diz que por qualquer dano deliberado à ferrovia, quando venha a por em perigo o transporte que segue por essa via e o culpado saiba que a conseqüência disso deve ser um acidente... (Estás entendendo? tu o sabias! E tu não podias desconhecer aonde este desatarraxamento leva...) ele é sentenciado à deportação em trabalhos forçados. 
Claro, o sr. sabe melhor do que... Nós somos gente ignorante... Que é que nós entendemos? 
Tu entendes tudo! Estás mentindo, fazendo-te de bobo! 
Para que mentir? Pergunte na aldeia, se não acreditar... Sem chumbada só se pesca alburnete, e não há peixe pior do que um gobião, mas até este não belisca sem um peso. 
Conta-me mais sobre o chilichper! — sorri o juiz de instrução. 
Não se encontra chilichper por aqui... lançamos nossa linha sem chumbada na superfície, com uma borboleta; dessa forma, cai no anzol um góbio, mas raramente. 
Ora, cala-te... 
Baixa o silêncio. Denis muda o peso do corpo de um pé para o outro, olha para a mesa coberta com um pano verde e pisca seus olhos com força, como se visse à sua frente não um pano, mas o sol. O magistrado escreve rápido. 
Posso retirar-me? — pergunta Denis após algum silêncio. 
Não. Tenho que te prender e meter-te no cárcere. 
Dênis para de piscar e, erguendo as espessas sobrancelhas, olha interrogativamente para o juiz de instrução. 
Como assim? Para o cárcere, Meritíssimo? Não tenho tempo, preciso ir à feira; cobrar três rublos de Yegor pelo toicinho... 
Cala a boca, não te incomodes. 
Para o cárcere... Se houvesse uma razão, eu ia, mas desse modo... Assim de repente... Para quê? Não roubei, ao que parece, e não briguei... Mas se o sr. estiver em dúvida sobre o imposto atrasado, Meritíssimo, não acredite em nosso estaroste... pergunte ao membro permanente... é um pagão este estaroste...² 
Cala-te! 
Já estou calado mesmo... — balbucia Dênis. 
Mas que o estaroste sonegou nas contas, eu posso até jurar... Somos três irmãos: Kuzmá Grigóriev, quer dizer, Yegor Grigóriev e eu, Dênis Grigóriev... 
Estás me importunando... Ei, Sémyon — grita o magistrado — leva-o embora. 
Somos três irmãos. — resmunga Dênis, enquanto dois soldados fortes o agarram e o arrastam para fora do recinto — Um irmão não é responsável pelo outro. Kuzmá não paga, então Dênis tem que responder... Juízes, com efeito! É pena que nosso patrão-general esteja morto, — que o Reino do Céu o tenha! — do contrário ele mostraria aos srs. juízes como se faz... É preciso julgar com entendimento, e não de qualquer maneira... Açoitem, se quiserem, mas que seja merecidamente, com consciência... 
 
Resmunga Dênis, enquanto dois soldados fortes o agarram e o arrastam para fora do recinto.

 
 
 
 

II. NOTAS  EXPLICATIVAS por Francisco José dos Santos Braga




¹  Aqui Dênis se refere ao "jogo das pedrinhas" ou "das cinco marias" ou "das mariquinhas", como o conhecemos no Brasil. É um jogo composto de cinco peças. Na antiguidade esses dados eram feitos com ossos de tornozelos de ovelhas ou de cabras e seu nome varia de acordo com o país. Tais ossos retirados dos metacarpos de ovelhas e cabras recebiam o nome de astragaloi em grego e tali em latim. O nome do jogo em alguns países ainda lembra a origem de seus dados na época da sua invenção, tais como "knucklebones", em inglês, e "osselets", em francês). 
 
Ossos dessa articulação, usados para brincar de avós, um jogo folclórico russo em que um desses ossos arranca outros ossos de um círculo, colocados de uma certa maneira
 
Na Rússia, recebeu o nome de "jogo de vovós" (игра в бабки), que foi melhor descrito por Astafyev, tendo merecido de Pushkin um famoso poema. 
 
Tela de V.E. Makóvskii, "Jogo de vovós" (1870)

 
O jogo possui um grande número de variantes que foram inventadas em diferentes épocas, em diversos países, e nas quais são usadas diversas peças do jogo ​​(principalmente pequenos ossos das pernas de ungulados). Na versão russa do jogo, via de regra, era utilizado chumbo para dar maior peso aos dados, metal que era despejado nos ossos de tálus de boi cozidos. 
Modernamente, como dados são utilizadas pedras polidas ou outro material industrializado como latão, cobre, bronze, prata, ouro, vidro, marfim, mármore, madeira, pedra, terracota ou pedras preciosas, ao invés dos metacarpos de animais. A versão de mesa mais moderna do jogo costuma usa "ouriços" (estrelas) de plástico ou metal de seis pontas e uma bola de borracha. Os jogadores lançam os dados no ar e tentam pegar o maior número possível na parte de trás de uma das mãos enquanto caem. O processo lúdico consiste na destreza de lançar os dados, ou seja, ganha no "jogo de vovós" o jogador que pegar o maior número de pedras.
 
²  Estaroste: representante eleito de comunidade rural ou urbana, na Rússia czarista. 
 
 
 
III. BREVE ANÁLISE LITERÁRIA DE "UM MALFEITOR" por Francisco José dos Santos Braga
 
 
Caracterização 
 
Este é um daqueles muitos contos tchekhovianos que são lidos, enquanto sorrimos em meio às lágrimas. Ao analisar o conto, abre-se um montão de relações entre camponeses e "patrões", que estavam presentes na Rússia naquela época. 
 
Enredo 
 
A trama começa com o destino do camponês Dênis Grigóriev sendo decidido no julgamento. Ficou imediatamente óbvio que ele não era muito inteligente, mas o fato de ter tentado defender sua inocência mostra que é bastante teimoso. Em geral, um homem simples. Seu crime foi que desenroscou as porcas dos trilhos da ferrovia. Conforme ele explica ao juiz, isso é uma coisa extremamente necessária na hora de fazer uma rede, porque a rede não afunda sem ela. Em resposta aos argumentos do juiz de que, por causa dessas porcas retiradas dos trilhos, o trem poderia descarrilhar e pessoas morrerem, Grigóriev bate na mesma tecla: nunca teve isso em mente. 
E realmente é isso. Ele não tinha intenção de fazer por mal, apenas é tão estúpido que não consegue perceber as consequências de seus atos. Além disso, no decorrer da investigação, descobriu-se que todos os camponeses em sua aldeia estão fazendo isso e há dezenas de porcas desenroscadas dos trilhos. E os senhores ("patrões") compram as redes usando essas porcas. Resta apenas ao juiz mandar levar Grigóriev para a prisão. Naturalmente, o réu ficou pasmo, porque ele claramente não sabia por que a sentença foi proferida contra ele. 
 
Análise do conto e conteúdo de ideias na obra 
 
O conto "Um Malfeitor" levanta o tema da negligência, que sempre é doloroso para a Rússia. Quem é o culpado pelo fato de os trens saírem dos trilhos e as pessoas morrerem? Mujiques analfabetos, em sua maioria absoluta, não entendem aonde podem levar seus atos, ou senhores espertos (patrões), que entendem tudo perfeitamente bem, compram suas redes com essas porcas cortadas com alicate? 
Parece que, se o próprio Dênis Grigóriev soubesse que estava realmente se tornando um assassino, se alguém explicasse isso a ele, então muito provavelmente ele não faria isso, já que o camponês russo é basicamente temente a Deus e deliberadamente não iria cometer tal pecado qual assassinato. O problema é que, a julgar pelo final do conto, por sua estupidez e trevas inatas, ele não entendeu a razão por que estava sendo punido, pois só ganha a vida com a sua profissão. 
O conto articula claramente quem são os verdadeiros malfeitores. Senhores espertos e competentes ("patrões" ou atravessadores) que compram apetrechos de pesca dos mujiques para desfrutar ainda mais da pesca estão bem cientes da tecnologia de fabricação dessas redes, mas se calam. Eles sabem aonde leva esse tipo de trabalho artesanal dos mujiques, mas continuam a comprar essas redes, incentivando-os assim a uma maior "criatividade". 
O conto obedece aos cânones da escola realista, porque reflete não só a realidade concreta da realidade russa no final do século XIX, mas também dos tempos modernos, porque, de fato, o problema continua atual. A composição da obra é incomum. Nela não há começo nem fim. Como se a cena com Dênis tivesse sido arrancada do quadro geral de outra obra mais volumosa e apresentada ao leitor (daí o subtítulo "pequena cena"). O veredito é desconhecido. Pode-se sentir o desejo do autor de que o leitor lhe dê suporte. O conto foi escrito há mais de cem anos, mas um leitor perspicaz pode facilmente traçar paralelos vivos com a modernidade. 
 
Heróis do conto 
 
Claro, o personagem central aqui é o mujique Dênis Grigóriev. O segundo personagem é um investigador que interroga o mujique. Esse personagem é antes neutro, não possuindo características especiais. Em seu conto, Tchékhov dá continuidade ao tema do "HOMENZINHO" (mujique Dênis Grigóriev), preenchendo-o com novos conteúdos e desenvolvendo-os. Diante do investigador, o "homenzinho" é completamente honesto e sincero sobre o que fez e por quê. A princípio, faz com que o leitor sinta pena dele, como quem está sendo punido injustamente. 
Mas, no decorrer da narrativa, descobre-se que ele é, de fato, um malfeitor. O único problema é que nessa hipóstase ele se viu do outro lado da ignorância, da própria limitação e, na verdade, do embotamento sem limites. Ele não pode ser chamado de idiota ou uma pessoa mentalmente anormal. Não! Ele simplesmente não percebe a que consequências seu artesanato pode levar. Ele não pode ser chamado de mau ou um homem com más intenções. Na vida real, muito provavelmente, ele não fará mal a uma mosca. 
Mas, sua escuridão e embotamento impenetrável assumem uma conotação sinistra à luz das consequências que podem ocorrer devido às suas ações. Mas coisas terríveis poderiam ter acontecido. O investigador tenta chegar à sua consciência: "Se o guarda não tivesse percebido, o trem poderia ter descarrilhado dos trilhos, gente teria sido morta!" O raciocínio posterior de Grigóriev torna sua figura cada vez mais sinistra. Ele tenta convencer o investigador de que está fazendo tudo de forma pensativa e "precipitada". E pelas palavras dele está realmente assustado, porque agora está absolutamente claro o que se pode esperar dele. Grigóriev vive o momento presente, está interessado apenas em suas necessidades vitais imediatas. 
Quando você lê o conto e o diálogo entre o investigador e Grigóriev, então vem à mente a frase gasta: "eu falo com senso e tu, com estupidez" (em russo, "Я говорю про Ивана, а ты про болвана"). O investigador explica-lhe que podem morrer pessoas e ele responde que é impossível apanhar um bom peixe sem chumbadas. O egoísmo é perfeito, mas não é o resultado de sua natureza malvada. Este personagem é uma criatura abatida. O número dos que, como Grigóriev, são forçados a pensar constantemente em como alimentar sua família, podemos supor que não é pequeno. Além disso, ele é completamente ignorante, esmagado pelas difíceis circunstâncias da vida. Seu comportamento pode ser facilmente compreendido e explicado. 
Portanto, é compreensível a amarga ironia com que o autor descreve seu "malfeitor". Qual é o culpado? Ele realmente não entendia qual era sua culpa. O terceiro herói, que pode ocupar o lugar principal junto com Grigóriev, pode ser chamado de "patrões" que compram de pessoas como Dênis Grigóriev apetrechos de pesca com porcas desenroscadas. Eles são os principais malfeitores. Os homens que desatarraxam as porcas não entendem o que estão fazendo. E aqueles entendem tudo. A questão é: qual deles é o maior culpado? 
"Um Malfeitor" não é apenas uma crítica ao sistema que transforma as pessoas comuns em um rebanho covarde, com o qual as autoridades que estão no poder podem fazer tudo o que quiserem. 
O autor também expressa alguns traços nacionais bem conhecidos. O mais famoso deles é o "talvez" russo: "talvez continue e dê certo". O escritor mostra que seu personagem não é tão simplório, é astuto a seu modo, simplesmente não tolera quem está no poder e não pensa muito nas consequências de seus atos, contando com "talvez". A razão para isso está tanto na mentalidade russa quanto nas condições em que as pessoas comuns têm de sobreviver. 
 
 
FUNDO HISTÓRICO

Vladimir Gilyarovsky afirmava que o protótipo para o personagem de Dênis Grigóriev era um camponês chamado Nikita Pantyukhin, "o grande mestre da captura de burbot", natural da aldeia Kraskovo, na província de Moscou. Embora Tchékhov tenha reagido negativamente à questão dos protótipos de seus heróis, já que em sua maioria são personagens idealizados.
Escreveu Gilyarovsky:
"Antón Pávlovitch estava tentando dizer a ele que não se deveria desatarraxar porcas dos trilhos da ferrovia, o que poderia causar acidente de trem, mas Nikita parecia não ser capaz de entendê-lo."
"Claro, eu sei o que é permitido, o que não é", — dizia o mujique. — "Claro, não foi em todos os lugares que as desatarraxei: uma aqui, outra ali. Não há razão para não entendermos o que está errado, o que não está!", — o mujique repetia.
Segundo ele, Tchékhov havia anotado algumas palavras e expressões usadas pelo malfeitor da vida real, tendo-as reproduzido depois em seu conto.
Cfr. V. Gilyarovsky. Moscow and Moskovites. 1959, p. 354
 
 
Uma característica do storytelling de Tchékhov, que difere da técnica praticada por Maupassant, anotei-a na minha tradução do conto de Tchékhov intitulado Um Escândalo
A crítica normalmente aponta a irresolução característica de Tchékhov na sua ficção muito curta e assinala que essa é uma marca de sua grandeza, bem distinta da que era praticada por seus contemporâneos russos no referido gênero (e também por Guy de Maupassant, vale acrescentar). Normalmente, o fim do conto, além de possuir sua irresolução, deixa ao leitor completar a história. O próprio Tchékhov costumava repetir: 
“Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que ele próprio vai acrescentar os elementos subjetivos que faltam ao conto.” 

 

Contribuição para análise do conto por um jurista brasileiro

Assim sendo, respeitando esse desejo expresso de Tchékhov, apresento a análise do professor universitário José Osterno Campos de Araújo (UniCEUB), Mestre em Ciências Criminais, por se tratar de um conto com implicações jurídicas. 

[ARAÚJO, 2013], utilizando a tradução do conto "Criminoso Intencional" (outro título consentâneo com Um Malfeitor, mais literal) feita por Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, analisa as fases de audiência de instrução e julgamento no ordenamento jurídico da época czarista na Rússia (1885), indagando finalmente se foi justa ou injusta a condenação de Denis Grigóriev, o mujique magro, "de camisa colorida e calças remendadas" e "de pés no chão", a saber: 

1) Imputação fática: “No dia 7 de julho deste ano o vigia da estrada de ferro Ivan Semiônovitch Akínfov, ao passar de manhã pela linha do trem, na versta 141, encontrou você desatarraxando uma das porcas que prendem os trilhos aos dormentes. Aqui está ela, esta porca!… Por causa desta porca ele o prendeu.” 

2) Interrogatório 

3) Imputação jurídica: “O artigo 1.081 do Código Penal diz que se há qualquer danificação à estrada de ferro executada deliberadamente e que possa pôr em risco o transporte por essa via, e se o culpado sabia que as consequências disso seriam desastrosas… Está entendendo? Se ele sabia! E você não poderia não saber a que levaria desatarraxar a porca… O culpado será sentenciado ao exílio e a trabalhos forçados”. 
Após a acusação, o autor indaga se, no conto, estão presentes os três conceitos jurídicos para a existência do crime: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a culpabilidade. A seu ver, a imputação procede, quanto à tipicidade da conduta do mujique de Klímov, seja em seu aspecto objetivo, por haver, é certo, retirado a porca do trilho, criando o aventado perigo, seja em seu aspecto subjetivo, já que quis realizar a retirada da porca (vontade – elemento volitivo do dolo) e também sabia o que, de fato, fazia (consciência – elemento intelectivo do dolo). 
É preciso ainda indagar se estava presente na conduta do mujique o terceiro elemento do conceito analítico do crime, a saber, a culpabilidade. O autor conclui pela ausência do crime em razão da impossibilidade de provar a culpabilidade nos seguintes termos: Os costumes da região, em que todos (inclusive os patrões, de quem se poderia cobrar maior conhecimento das coisas do mundo) faziam aquilo – desatarraxar porcas, para fazer chumbada -; a condição pessoal de Denis, simples e de pouca cultura e informação; a inexistência de anteriores prisões, ou mesmos processos, por condutas idênticas à de Dênis, praticadas na região; tudo isto embasa a conclusão de que Dênis Grigóriev, ao desatarraxar a malfadada porca da linha do trem, não possuía a condição de saber que seu agir era contrário ao direito, ou seja, não possuía a consciência da ilicitude de seu ato. A falta da potencial consciência da ilicitude afasta a culpabilidade. Sem culpabilidade, não há crime. 

4) Em verdade, fez-se justiça a Dênis Grigóriev? A Justiça que, ao ser sentenciado, ele invocou? De fato, ao final da instrução (e do conto), Dênis Grigóriev é preso, quando, atônito, balbucia que ao juiz compete julgar habilmente: 

“Juízes! Morreu o finado general, nosso patrão, que Deus o tenha, senão ele ia mostrar aos senhores juízes… É preciso julgar com sabedoria, e não assim, de qualquer jeito… Podem até açoitar, mas com um motivo, com justiça…”. 

Link: https://www.pauloqueiroz.net/o-criminoso-intencional-de-tchekhov-e-a-consciencia-da-ilicitude/ 

 

OBSERVAÇÕES FINAIS

Permito-me ainda acrescentar que o interrogado repele veementemente, com horror, qualquer insinuação do juiz de instrução quando alertado do perigo de sua conduta para a via férrea (retirando porcas dos trilhos para transformá-las em chumbadas de pesca) e para os tripulantes do trem, quando, assustado, retrucou: 

Deus me livre, meritíssimo! Para que matar? Será que nós somos pagãos ou uns malfeitores? Graças a Deus, meu bom senhor, em toda nossa vida não só nunca matamos ninguém, como nem nos passou pela cabeça uma ideia desse tipo... Que nos livre e guarde, Rainha do Céu! ... O que o sr. está dizendo?

Aqui cabe uma observação. Com este conto, Tchékhov procura mostrar vividamente as verdadeiras feições do povo russo na época czarista. Mostrou que a pessoa mais importante com a qual se preocupar é você mesmo(a). Acusações de que as pessoas poderiam ter morrido por negligência não são válidas para Dênis. Muito pelo contrário. Ele dá desculpas e não se considera um malfeitor, muito menos consegue entender por que foi detido. Pensando apenas na sua sobrevivência, um homem com sua mente não é capaz de compreender que algo que seja seu ganha-pão constitua perigo para as vidas humanas. Leia-se esta situação como críticas a um sistema, sob o qual as pessoas sem cerimônias se embotam, incapacitando-se para tomar decisões sensatas. Aqui está incluído o julgamento do mujique, em que uma pessoa foi ingenuamente julgada, sem se observar certo rigor para se determinar sobre a intencionalidade do crime, como vimos.

Observe que a ingenuidade do mujique é tamanha a ponto de, ao depor, incriminar-se a si mesmo, apresentando, como se vantagem fossem, provas de seus crimes e entregando, como se alcaguete fora, seus parceiros nos feitos.

Também observe que não se deve nem sonhar com a presença de um advogado de defesa que o aconselhasse, muito menos com um defensor público, por ser o réu juridicamente necessitado, que atuasse naquele caso em razão de desrespeito aos direitos do cidadão, individuais ou coletivos.

Entendo que um detalhe importante que deve ser destacado pode ser encontrado numa resposta de Dênis a respeito de Mitrofan Petrov, um parceiro do mujique no procedimento de desatarraxar porcas. Pelo que Dênis disse, trata-se de um agente que opera para os patrões (capatazes? receptadores? atravessadores? "coronéis"?), para os quais ele vende redes de pesca que fabrica. Conta que esse broker ou agente intermediário precisa de muitas porcas: 

O Mitrofan Petrov... Ainda não ouviu nada dele? Ele faz redes em nossa aldeia e as vende aos patrões. Ele tem precisão de muitas dessas porcas. Para cada rede, calculo, umas dez.

O investigador parece não se interessar pela preciosa informação do mujique, fazendo vista grossa àquela movimentação comercial na aldeia de Klímov. Ou seja, não vê interesse em fazer uma investigação a fundo para chegar à causa da ação criminosa. O que Dênis tentava dizer é que os "patrões" que compram redes de pesca com porcas furtadas também são malfeitores.

Em minha opinião fica difícil provar a consciência do sentenciado quanto ao real alcance de seus atos. Indago: Qual juiz, em sã consciência, dormiria tranquilo após sentenciar o mujique, levando em conta todo o contexto da situação indefinida e diante de todos os argumentos do réu mostrando a conivência pacífica entre patrões e a Justiça Pública, que é complacente com suas práticas delituosas? Ainda ecoa o argumento do mujique:  

Lá onde eu moro, também os nossos patrões pescam assim.

 
 

IV. BIBLIOGRAFIA



ARAÚJO, J.O.C.: O "criminoso intencional" de Tchékhov e a consciência da ilicitude, in Direito penal na literatura de Camus, Suassuna e outros iluminados, Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018, p. 87-92. 
 
GYLIAROVSKY, V.A.: Moscow and Muskovites. 1959, 512 p.

12 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Dando continuidade à minha tradução dos mais expressivos contos de TCHÉKHOV, tenho o prazer de enviar-lhe minha tradução do conto intitulado UM MALFEITOR, um trabalho de maior envergadura do autor e minha mais recente contribuição para tornar conhecida a prodigiosa produção do escritor realista russo, dotado de profundo conhecimento da alma humana, apesar de sua exígua existência (44 anos). Acompanha a tradução minha análise literária do texto acompanhada de notas explicativas.
São as seguintes as outras traduções de contos de Tchékhov já postadas no Blog do Braga até o presente:
- Uma brilhante Personalidade (Conto de um Idealista)
- Vingança de uma Mulher
- Um Escândalo
- Numa Casa de Campo
- Morte de um Funcionário
- Um Hamlet moscovita

https://bragamusician.blogspot.com/2021/06/um-malfeitor.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

PENSEI QUE ERA UM CONHECIDO BRASILEIRO...
MUITO BEM.
ABS

Prof. Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...

Obrigado.
Ainda bem, que em nosso país só há "bons feitores"
e excelentes juízes, em quase todos os níveis
do judiciário [Menos na República de Curitiba, afeitos a
lavar carros de luxo!]

Heitor

Elza Zarur (jornalista formada pela UnB e, atualmente, aposentada do Itamaraty, tendo servido nas Embaixadas de Washington e Buenos Aires, onde exerceu a função de vice-cônsul) disse...

Muito obrigada!!!
Nosso abraço.
Elza e Carlos

Anônimo disse...

Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, Escritor, Presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto, na cidade de Valença RJ; Membro Correspondente do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei; Membro Correspondente da Fundação Oscar Araripe, em Tiradentes, disse:

Caro amigo Braga
Agradecemos pelo envio deste conto que – de fato – dá ensejo a alguma apreciações tais como o ilustre amigo brilhantemente descreveu em suas análises, quanto: ao “conteúdo de idéias na obra”; aos “heróis do conto”; os comentários de “fundo histórico”; e ao finalizar, as apreciações do Professor José Osterno Campos de Araújo, do ponto de vista jurídico.
O amigo Braga, em sua reconhecida e refinada verve literária, mais uma vez brinda aos seus leitores – e seguidores – valorizando um dos pensamentos de Tchekhov: “Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que ele próprio irá acrescentar os elementos subjetivos que faltam ao conto”...
Junto aos nossos reiterados agradecimentos, aceite o abraço fraterno e saudoso,
Dos amigos Mario e Beth.

Dr. José Afrânio Vilela (desembargador, palestrante no Judiciário brasileiro, confrade e colaborador do Programa "IHG-SJDR Virtual" do Instituto Histórico e Geográfico de SJDR) disse...

Bom dia, caro confrade Francisco Braga!
Excelente o trabalho, e esse tipo de conversa com um interrogando já as tive muitas durante esses 33 anos de magistratura. Gostei. Obrigado.

Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Meu caro Francisco,

Parabéns, obrigado!

Abs. Anderson

Ronaldo Cagiano disse...

Belo conto em impecável tradução. Tchecov é um mestre, assim como nosso Graciliano, em cuja narrativa nada sobra ou falta.

Memorial de Corguinhos disse...

Meu nobre amigo Francisco José dos Santos Braga, cada postagem sua considero um presente precioso. Pax et salutis. Marco Antônio Pinto.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga
Uma vez mais uma excelente publicação, não apenas pelo conto em si, mas também pela análise literária e pelas implicações jurídicas dado o seu tema. Fica-se com a impressão de que sem justiça social, a justiça formal e sua ciência perdem as suas bases de imparcialidade e isonomia. Grato pela oportunidade da sua leitura.
Saudações.
Cupertino

Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Agradeço pelo “Malfeitor”, Francisco.

Louvo tua proficiência e tua constância no trabalho de cultura que te distingue.

Abraço

Anderson

Biblioteca da Corte Interamericana de Direitos Humanos disse...

Buenas tardes, reciba un cordial.

En relación a su correo, acusamos de recibido.
Estaremos revisando la temática de estos documentos para valorar la afinidad con la Biblioteca.

Atentamente,