terça-feira, 30 de julho de 2013

SOFRER NÃO SIGNIFICA MORRER E A GRÉCIA SEM VOZ


Por Francisco José dos Santos Braga



I.  INTRODUÇÃO


Esta matéria tem título composto de dois artigos da autoria de José-Manuel Lamarque, que ofereço abaixo em II e III.

O primeiro artigo supracitado — Sofrer Não Significa Morrer — foi traduzido por mim diretamente da língua grega em II, tendo circulado por toda a Grécia e — por que não dizer? — por todo o mundo, provocando manifestações de apoio, não só por parte de filo-helenistas ¹ e de simpatizantes da causa grega, mas também de pessoas que ignoravam a "rede de intrigas" e manipulação por parte das mídias de comunicação. Por que preferi a tradução grega ao texto original em francês? Simplesmente por apresentar certas passagens mais auto-explicativas, deixando mais claros os conceitos postos pelo autor. Este primeiro artigo intitulado "Souffrir n' est pas mourir" foi postado por Lamarque no seu blog "Help the Greek People" em 25 de maio de 2012. Em adição a esse artigo de José-Manuel Lamarque, apresento dois comentários feitos à publicação do artigo, que podem ser lidos no seu blog, representando apoio de dois leitores à mobilização proposta pelo amigo-da-Grécia em favor dos Gregos e trazendo um interessante contraponto ao debate.

Anteriormente, em 30 de março de 2012, Lamarque tinha postado no seu blog um artigo de grande repercussão intitulado "La Grèce sans Voix", onde convocava os Gregos à reação com palavras muito fortes e que ofereço abaixo no III, em minha tradução diretamente agora do francês.

José-Manuel Lamarque definiu a si mesmo como "jornalista, especializado em assuntos europeus e de geopolítica. Defrontado com a situação na Grécia, perguntou-se como podia ajudar colocando-se a serviço do povo grego. O melhor modo foi falar ao vivo aos Gregos e a todos quantos amam este país, através de um Blog (http://www.helpthegreekpeople.blogspot.com). Tal plataforma de liberdade de discurso lhe dá a possibilidade de divulgar seus pensamentos, suas ideias e seu amor pela Grécia. Acredita em todas as iniciativas a favor desse país, porque para ele é preciso impreterivelmente salvarmos e tornarmos a dar a esperança ao povo grego, com o propósito de mostrarmos que não está sozinho. Mesmo que sua contribuição seja uma gota no Mediterrâneo, acredita que a soma das gotas possa tornar-se um rio." ²

Lamarque escreveu pelo menos os seguintes livros:
Petit dictionnaire insolite du basque et des Basques (Larousse, 2013)
Balkans! Entretiens Avec José-Manuel Lamarque (co-autoria com Vesna Krstic, 2007)
Pourquoi les français sont les moins fréquentables de la planète (co-autoria com Olivier Clodong, 2005).

Conscientizar os povos de língua portuguesa das dificuldades por que passa o povo grego é o objetivo desse meu empreendimento, já que não encontrei nenhuma boa tradução dos referidos textos na Internet em português. O que aí existe é apenas alguma tradução on-line gratuita do Google, que traz muitas imperfeições.





II.  SOFRER NÃO SIGNIFICA MORRER

Por José-Manuel Lamarque


A Grécia e os Gregos sofrem em silêncio.

De quatro anos a esta parte, a Grécia se constrange diante do dedo apontado, os Gregos são insultados, o país está na berlinda, como se fora um buraco negro da Europa. Talvez isso aconteça porque a Grécia é um país mediterrâneo.

Se a Grécia se localizasse ao norte da Alemanha, entre a Suécia e a Finlândia, certamente já lhe teríamos encontrado alguma desculpa. Se se tratasse de um país protestante onde o sol brilha apenas poucas horas por ano, enquanto as pessoas se comprimem pelo frio da noite durante um grande período, então encontraríamos para a Grécia alguma desculpa séria e procuraríamos outro culpado.

Quando a Islândia se recusa a pagar a sua dívida, não dizemos nada. Não a acusamos, nem a apoiamos. Silêncio absoluto! Protestar no supracitado contexto é saudável, porque é "puro" e não faz barulho. E claro, um tal protesto é aceito por todos, porque preferimos hipocritamente a estética de um quadro em que protestam pessoas louras e "puras" congregadas  que, quando falam, ficam inexpressíveis mantendo imóveis suas mãos, não mexendo nem mesmo a sua cabeça. E, em seguida, os protestantes vão à sauna.

Os Gregos iriam, de preferência, ao "hammam" ³. E a Grécia foi ocupada pelos Turcos havia muitos anos atrás. E hoje que a Turquia tenta entrar na Europa, esta lhe mantém a porta aberta, embora no último instante é utilizado o conceito de "segurança" para a perspectiva europeia fechá-la diplomaticamente. Assim, então, o fato de ter sido conquistada pelos Turcos, ser mediterrânea e país de religião ortodoxa é algo negativo aos olhos do europeus do Norte. Não, realmente não pode a Europa confiar em "tais pessoas". A Grécia é como a Espanha. Os Espanhóis tinham sido ocupados pelos  Mouros, portanto o espanhol tem algo árabe no seu sangue, e para compreenderes isso basta simplesmente olhares para Alhambra. No que se refere à Itália, poderíamos confiar nela, embora seja ela também um país do Mediterrâneo, contudo lá há a máfia, a nangretta , a camorra e o Vaticano. Em suma, isso é suficiente para termos argumentos de forma a decidirmos não confiar nos Italianos. Por fim, há também Portugal. Cinquenta anos de ditadura fascista assombram o seu passado. Então, Portugal é um país fascista, como a Espanha de Franco e a Grécia dos coronéis. Não, não devemos confiar nos países mediterrâneos. Claro, não falamos de maneira nenhuma sobre a Alemanha e a Finlândia nazistas, e qualquer outro país que colaborou com os Nazis. Não, ali esquecemos o passado, porque esses são os célebres países do Norte e podemos confiar neles de qualquer maneira. Claro, não esquecemos que também a França e a Bélgica, bem como a Hungria, colaboraram também de algum modo com os Nazis. E finalmente este silogismo niilista termina com um fato: que o Reino Unido é a única verdadeira democracia europeia.

Quanto tempo, porém, vai durar essa tolice? Quanto tempo se tolerará que os Gregos sejam considerados tolos e ladrões? ... Que a classe política grega nunca tenha tido a ideia de modernizar o Estado grego, é um fato. Talvez o único político grego que tenha desejado desenvolver politicamente seu país seja Elefthérios Venizelos, que marcou a história da Grécia. 

Mas, quando Romano Prodi, presidente da Comissão Europeia, sugeriu a auditoria das contas públicas nacionais dos estados-membros da União Europeia em 2003, a França, a Alemanha e a Itália recusaram. Recusaram, sabendo que as contas da Grécia estavam fraudadas. Sabiam que o povo grego ignorava tudo. Além disso, alguém jamais pediu a restruturação política do Estado grego? Não, ninguém na Europa nunca o pediu. Dado que a Grécia era vista como uma destinação turística e um país de produção de óleo de oliva, considerou-se que tudo ia bem. Os Gregos ficaram, todo esse tempo, europeus de segunda categoria que contribuem para se completar o grande banquete.

Falando sobre a história da Grécia e a Antiguidade, é verdade que todos admitem que Pitágoras, Sócrates, Platão, Heródoto e muitos outros, viveram na Grécia, mas em passado distante. E hoje todos nós acusamos os Gregos e nos perguntamos se construíram algum dia aviões, centrais nucleares, automóveis. Houve durante todo esse tempo um produto "made in Greece", com exceção do queijo feta ? Não, porque a Grécia permanece durante todos esses anos o país dos camponeses pobres e dos pequenos burgueses que conversam alto e passeiam com combolóïs na mão, comem mais legumes que carne, enquanto as tortas doces lhes dão na boca o gosto de um beijo melado. E se a Grécia finalmente falir, se abandonar a eurozona ou a União Europeia, o que dirá a Europa em dez anos sobre ela? ... "Nós nada sabíamos!"... "Somos responsáveis, mas não somos culpados!"... etc. A responsabilidade retornará aos Gregos, uma vez mais.

Já estou farto de todos esses estereótipos! 

Não posso suportar mais que o fato de alguém pertencer a um povo mediterrâneo tenha se tornado sinônimo de escravidão psicológica moderna de um tipo especial. Infelizmente, no presente os Gregos se calam e não reagem energicamente. Eles estão errados. Sei que é fácil alguém escrever isso vivendo em Paris. Mas eu o escrevo porque quero, através das minhas palavras, insuflar confiança em todos os Gregos e dizer-lhes que devem confiar na sua juventude e lhe entregar as chaves do poder para modernizar o país que respeitará, ao mesmo tempo, o seu patrimônio e a sua diversidade. Tudo é possível, porque a vida verdadeira não tem preço. E mais irrisório ainda é o preço da dívida grega que, de qualquer maneira, os Gregos não têm a capacidade de quitá-la. Por um lado, a Alemanha regula o juro do seu empréstimo para o serviço da sua dívida nacional em 2% e, por outro lado, obriga a Grécia a um juro escorchante de 30%.

Basta a comédia!

Então eu escrevo e grito publicamente que os Gregos não são responsáveis por nada. Os Gregos são iguais a qualquer outro povo no planeta. Os Gregos têm o direito de viver no seu país, na sua terra, de acordo com seus costumes e tradições. Quanto a nós, devemos simplesmente ajudá-los a construirem um Estado moderno que administrará a Grécia como uma democracia real, nas bases de uma política social igualitária e de um impulso produtivo que criará desenvolvimento em benefício do próprio país.

Além disso, a destruição da Grécia terá um impacto muito ruim, sobretudo para o futuro da Europa. Sou francês, mas sinto-me grego na alma, e apóio, em toda a parte e sempre, a Grécia. Toda a Grécia.

Tradução para o grego por Lazaros Mavromatidis

Fonte: http://kostasxan.blogspot.com.br/2013/07/blog-post_129.html


Após a publicação do texto supracitado no seu blog "Help the Greek People", em 25 de maio de 2012, José-Manuel Lamarque recebeu inúmeros comentários vindos de várias partes do mundo. Vou apresentar dois deles, que mais me tocaram pelas razões já expostas na Introdução.

16 de setembro de 2012, 02:27
Obrigado por seu apoio, mas uma parte do problema é o estereótipo da imagem do seu post: os Gregos de hoje são mais modernos e trajam vestes europeias, à moda francesa e italiana. Não se vai mais ao hammam, há 200 anos; e o sol não é a única coisa que podemos oferecer. Temos uma cultura excelente, os jovens Gregos são bem educados e produzimos "délicatesses" muito bem conhecidas. E, claro, nossos monumentos antigos e as igrejas bizantinas são maravilhosas.
Viki

20 de setembro de 2012, 08:12
Somos gratos. Você é realmente um Grego como "Helenos são todos aqueles povos compartilhando a antiga espiritualidade e a sede de liberdade gregas." Helenos ao redor do mundo lhe agradecem por erguer-se contra o novo fascismo econômico. Temos sido traídos por nossos líderes políticos, mas estamos ainda de pé, lutaremos por nossa liberdade, por nossos filhos, para que eles tenham um amanhã e tenham direito ao sonho e à oportunidade de serem criativos. Lutaremos por uma Hélade livre e por uma Europa livre. Obrigado, compatriota francês-grego, Sr. José-Manuel Lamarque!
Georgios Kyriacou




III. A GRÉCIA SEM VOZ 

Por José-Manuel Lamarque


Enquanto a Europa vive uma crise sem precedente, nações como a Espanha se despertam aturdidas e vozes se fazem ouvir em favor do povo grego. Por que nenhuma voz se eleva na Grécia? Por que nenhum intelectual, nenhum artista, nenhuma figura faz ouvir o grito do desespero e o apelo à solidariedade?

Onde estão as filhas e netas de Bouboulina, Mélina Mércouri, Irène Papas?

Por que, no momento que a Grécia é um estado-membro da União Europeia e não um país isolado, por que  vem do Mar Egeu o silêncio ensurdecedor?

Quando a Grécia era uma ditadura, os Gregos do exílio, os refugiados políticos se faziam ouvir em toda a Europa. Mas hoje, nada senão um silêncio que nos surpreende e nos aturde.

Teriam os Gregos perdido seu senso da oposição, da resistência, do combate? Estão eles, à imagem dos inúmeros povos da Europa, fartos, extenuados, desesperados a ponto de se dizer que ninguém saberá escutá-los?

Então o rumor se extinguiu, lentamente, docemente, fracamente, para morrer no Mar Jônico.

Então, por que tentar compreender, esperar ajuda, desejar uma fraternidade dos povos da Europa para um povo cujas crianças e seu futuro estão em grande perigo? Por que cada hora, cada dia, cada semana alimentar a chama que quereria ser essa claridade na noite a fim de garantir aos Gregos que eles não estão mais sós?

Por que querer banir a noite e oferecer à Grécia uma aurora onde começará a aparecer o sol da esperança, quando milhares de mãos puxam, sempre e ainda, a cortina das trevas sobre seus corpos, e recusam a claridade da liberdade?

Seria isso a vã esperança de eleições que faria crer aos Helenos que um salvador, um homem providencial viria salvá-los tal a águia saltando das estrelas nas manhãs do mundo? Se eles o crêem, se eles cogitam isso, pode-se dissuadi-los, pois são seu próprio salvador.

Eu respeito vossos devaneios; não desejeis que eles me sorriam.


(postado no blog "Help the Greek People" em 30 de março de 2012)


IV.  REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS


¹  Vale a pena reproduzir aqui o que o historiador Rodrigo Elias escreveu no post intitulado "Uma cabeça, muitas coroas" com o subtítulo "Jovem e corajoso, D. Pedro serviu de esperança para homens que lutavam por independência ou fugiam do absolutismo na Europa": 

"Sob o domínio do Império Otomano desde 1453, alguns gregos passaram a cultivar um forte sentimento nacionalista a partir do final do século XVIII, principalmente por conta dos desdobramentos da Revolução Francesa. No início do século XIX, homens como o escritor Adamántios Koraís (1748-1833), que havia estudado na França, passaram a defender um retorno à “época de ouro” da Grécia, referência não só às glórias artísticas, literárias e filosóficas da Antiguidade, mas à autonomia política. No final da década de 1810, a agitação já envolvia boa parcela da população grega, desencadeando uma guerra de independência que se estendeu de 1821 a 1829.

O trono brasileiro foi o primeiro a ser negado
pelo jovem príncipe português, que negou ainda
as coroas da Grécia, da Espanha e de Portugal


Ofilo-helenismofoi um movimento que contava com homens de todas as partes que se solidarizaram com a causa grega e ganhava o crescente apoio do público europeu, mas não conseguia angariar o apoio dos Estados. A Grã-Bretanha, grande potência europeia, só apoiou a insurreição após 1823. Talvez por isso, logo no início da guerra contra o Império Otomano, uma delegação dos revolucionários chegou a Portugal com o objetivo de conseguir o apoio do país, que vivia a implantação de um regime liberal. No início de 1822, além de se encontrar em um momento de mudança política, o governo português se via às voltas com a iminente separação do Brasil. Instalado no Rio de Janeiro, o príncipe regente se recusara a retornar à Europa, contrariando a determinação da Assembleia Constitucional lusitana, em episódio que ficou conhecido como “O Fico”. 

D. Pedro I, o 'novo Constantino'

Um enviado grego, o capitão Nikolaou Kiefala, chegava com uma grande lista de autoridades e revolucionários gregos que apoiavam sua missão. Em carta datada de 16 de abril de 1822 e endereçada à “Alteza Real”, comparava D. Pedro I a Constantino, fundador de Constantinopla, capital do Império Romano, no século IV, e que agora sediava o Império Otomano: “o olhar da Grécia volta-se para a escolha de um Chefe Soberano dentre um digno e legítimo sucessor deste fundador de Constantinopla, sustentáculo da Religião Cristã”.
A carta foi enviada a Lisboa para conquistar a simpatia de D. João e de seu filho D. Miguel, e uma cópia seguiu para o Rio de Janeiro, onde só chegou após a Independência do Brasil. É possível que a estratégia dos gregos, mesmo que não conseguissem um príncipe português para liderar a luta pela sua libertação nacional – o que de fato não ocorreu –, tenha sido conquistar o apoio de uma nação próxima à Inglaterra, uma vez que a grande potência europeia não havia se manifestado a favor da causa helênica.  E nenhum país era mais próximo da Coroa britânica nessa época do que Portugal.
 
Não se conhece a resposta oficial dos príncipes portugueses, mas o fato é que Portugal e Brasil passavam por um momento crítico em 1822, e uma guerra contra um grande império islâmico no Mediterrâneo oriental não parecia algo muito atraente para D. Pedro ou para seu irmão D. Miguel. Em tom grandiloquente, Sergio Corrêa da Costa, que publicou estudo clássico sobre o tema em 1941, escreveu que D. Pedro I “resistiu à vaidade de ostentar em sua fronte o diadema da pátria de Homero e de Péricles”.

Fontehttp://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/uma-cabeca-muitas-coroas

Aqui cabem duas observações que passo a apresentar a seguir.
A primeira observação é um fato. Dom Pedro I ostentou o lema dos revoltosos gregos para a sua independência da ocupação dos Otomanos, utilizando-o para a nossa independência: "Independência ou morte" (Ελευθερία ή θάνατος, ou seja, Liberdade ou Morte). Esse é um grito conhecido, dito por vários líderes de países, indicando que seu país está a postos para lutar contra quem o coloniza. Seus casos mais famosos são Brasil e Romênia.

Outra observação é a homenagem que os Gregos e todos os filo-helenistas devem prestar a Lord Byron, o grande poeta romântico inglês, que teve importante papel na Independência da Grécia, solidarizando-se com a causa grega, apesar da hesitação da Grã-Bretanha.

²  Fonte: http://tvxs.gr/news/egrapsan-eipan/me-anthropismo-kai-allilyleggyi-toy-jose-manuel-lamarque

³   Local destinado ao banho turco.

  A grafia correta, segundo a Wikipedia, é 'Ndrangheta, em calabrês, palavra derivada do vocábulo grego  andragathia (ἀνδραγαθία), que significa coragem (ἀνδρ-) e bondade (αγαθία). É uma organização criminosa italiana, cuja zona de atuação predominante é a Calábria, apesar de não ser  tão conhecida internacionalmente como la Cosa Nostra siciliana.  ( Cf no endereço eletrônico: es.wikipedia.org/wiki/'Ndrangheta )

  Queijo coalhado típico da Grécia, feito tradicionalmente de leite de cabra e de ovelha. A partir de 2005, o feta passou a ser uma denominação de origem controlada na União Europeia, e definido como tendo pelo menos 70% do leite de ovelha, com o restante de leite de cabra. É servido como queijo de mesa, bem como em saladas, empadas, tortas e outros assados, especialmente naqueles com massas folhadas como a spanakópita (torta de espinafre) e tyrópita (torta de queijo).

⁶  O plural de combolóï, de fato, é combolóïa, por ser substantivo neutro (gr.: κομπολό[γ]ι, pl. κομπολόγια).

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sobre a letra Νι (e adicionalmente sobre a letra Sigma) e sua supressão


Por Francisco José dos Santos Braga






I.  INTRODUÇÃO


Neste ensaio apresento basicamente a tradução de um texto do Sr. Spyros Márkou ¹, onde o autor grego se entristece com a tendência de eliminar-se a letra --> --> Νι (Ν, --> ν) no final das palavras (substantivo e artigo), apoiada pelo Ministério da Educação grego, bem como com uma variante linguística difundida pelos jornalistas nos diversos meios de comunicação, os quais vêm promovendo também a supressão da letra Sigma final (Σ, ς) no final de adjetivos e substantivos. Além da tradução, enriqueço o texto do autor grego com notas explicativas.
Desta forma, estou dando continuidade a um trabalho de pesquisa, que compartilho com meus leitores, iniciado com o meu ensaio intitulado "Implicações da Reforma Ortográfica da Língua Grega em 1976", postado neste Blog do Braga em 20/03/2013.


A letra Νι e sua supressão

Por Spyros Márkou

Cada letra do alfabeto grego emite som e (possui um) símbolo.
Cada palavra foi posta com precisão, e não por acaso, pelos "Nomeadores" — legisladores diríamos hoje, — e tem relação direta entre causa e efeito, entre significante e significado.
Por outro lado, se tomamos as Ciências, os exemplos são não só intermináveis e extremamente esclarecedores, mas também didáticos para as próximas gerações.

A letra Ν antena o cérebro

Relativamente há pouco tempo (1996), na Revista Médica Medizinjournal na Alemanha, foi publicado um trabalho científico, de acordo com o qual "a articulação da letra Ν transporta oxigênio ao cérebro e que não foi fortuito o fato da localização do Ν exatamente no meio do alfabeto — no primeiro alfabeto grego com as 27 letras." Além disso, em Harvard, foi constatado por pesquisas médicas que a declamação do Poemas Épicos de Homero no original, fora outras considerações, faz bem ao coração, como exercício respiratório.

E tenho o direito de perguntar: Por que nos tornamos perseguidores do Ν? Por que queremos empobrecer o cérebro das gerações vindouras no nosso país?

Como docente batalhador e escritor de obra científica intitulada DISLEXIA (Atenas: Edições Letras Gregas, 1994, na sexta edição hoje), dou-me o direito não só de perguntar, mas também de propor por fim: A Língua Grega já adquiriu uma forma tal que não precisa de outros excessos.

Porém, pergunto-me: Será que é casual que tenhamos abolido a letra Ν no final das palavras e que nossos livros escolares grafem το--> "εμβαδό"(!) em vez de --> το εμβαδόν ² ?

(Os livros escolares de exercícios grafam "-->το εμβαδόν", isto é, neles se mantém o Ν, enquanto o Estado oficial (Ministério da Educação, Instituto Pedagógico) já o aboliu nos livros.

Por que razão esse exagero? Qual é a razão de oficialmente ensinarmos nas nossas escolas regras que foram feitas arbitrariamente? Por exemplo, χθες συνάντησα το Δήμαρχο (το φίλο, το Σύμβουλο etc. etc.). ³


A letra Ν é orgânica e quando a cortamos, dói. É como se cortássemos o nosso dedinho.

Se alguém objetar que isso é um detalhe insignificante, será preciso dizer-lhe que "o detalhe sustenta o Pártenon"!


Também vou lembrar aqui o belo, irônico texto de Odysseus Elytis, "Por uma Ótica do Som", onde conclui: "Nenhum Herodes ousaria ordenar tal genocídio, como este do Ν final, a menos que lhe faltasse a ótica do som."

Yannis Ritsos também escreveu: "Também as palavras são veias. Dentro delas corre sangue."

Infelizmente, porém, constatamos hoje que, depois do Ν, é chegada também a vez do sigma final (-->Σ, ς). Alguns jornalistas nos meios de comunicação já dizem:  -->η "μέθοδο", η "οδό", --> ηλήρη(!) ένταξη", etc.  

Cultivam assim arbitrariamente para os nossos jovens uma variedade linguística negativa, com o poder dos meios de comunicação, enquanto não só a escola é débil para reagir, mas também a sociedade se comporta passivamente ao acolher como fatalidade essa evolução.


Depois disso tudo, formulo o seguinte ponto de vista e deponho no vosso Congresso a minha própria "teoria" sobre o assunto em questão: 
Internacionalmente se estuda a singular musicalidade da Língua Grega e a sua repercussão sobre a lucidez mental do Homem.
A letra Ν estimula o cérebro positivamente e energiza o Homem a pensar corretamente.
O sigma final acalma o Homem.
A psiquiatria contemporânea admite isso.
Os Antigos Gregos sabiam de tudo isso e não é casual o fato de que apenas nós, os Gregos, dizemos: "Eu disse as coisas com o ni e o sigma" e não dizemos com outras letras (apesar do fato de que as temos também nas desinências das palavras), eis que o Ν energiza o nosso cérebro para pensarmos corretamente e o sigma tranquiliza nossa psique, ao falarmos pública ou privadamente.
A contemporânea psicolinguística admite que a Língua e o Pensamento nascem simultaneamente,  desenvolvem-se paralelamente e formam, de um momento para o outro, uma unidade inseparável.
A língua encarna o Pensamento e o Pensamento se consubstancia em Língua. É uma moeda com as suas duas faces.
Não pode existir um lado, sem o outro. Não pode existir o Pensamento Grego sem a Língua Grega.
É fato que a qualidade e a quantidade de "registros" no Pensamento determina também o nível da inteligência de cada povo.
Consequentemente também o nível da inteligência determina a capacidade da criação da civilização.
O alfabeto grego, no curso dos seus milênios, foi inicialmente ideográfico, a seguir foi inventado o iconográfico (pictórico), depois chegamos ao gramográfico (com folhas pautadas), posteriormente ao silabográfico (Linear A e B) e finalmente entrou em vigor hoje o fonográfico, que é intransponível e ao qual se deve a criação da Língua Grega e da Civilização Helênica Universal.
Temos o dever de preservar, como menina do olho, a Língua Grega e de nos opor ao seu mau tratamento.

Spyros Márkou
Diretor da 3ª Escola Primária de Lárissa - Grécia



NOTAS DO AUTOR 

¹  O artigo em questão pode ser lido na língua grega, no seguinte endereço eletrônico: http://aienaristeyein.com/2013/01/25/το-γράμμα-ν-και-η-κατάργησή-του/

²  Trad.: a área (medida de uma superfície). Aqui o autor do artigo critica o desaparecimento do Ν final nos substantivos neutros. 

³  Trad.: Ontem me encontrei com o prefeito, com o amigo, com o vereador
O que o autor do artigo denuncia aqui é o processo de crescente simplificação que está sendo promovida na língua grega, de forma arbitrária, aproximando o acusativo masculino do acusativo neutro, entre outras coisas. Ele reconhece que está em vias de desaparecimento o Ν final do artigo masculino no caso acusativo, defendendo a sua manutenção. Consequentemente:
--> χθες συνάντησα το(ν) Δήμαρχο, το(ν) φίλο, το(ν) Σύμβουλο, etc. etc.

  Essa discussão e, principalmente, todo esse texto de Odysseus Elytis em minha tradução podem ser encontrados no meu ensaio intitulado "Implicações da Reforma Ortográfica da Língua Grega em 1976", postado neste Blog do Braga em 20/03/2013, no seguinte endereço eletrônico: http://bragamusician.blogspot.com.br/2013/03/implicacoes-da-reforma-ortografica-da.html 

⁵  O correto seria dizer -->η "μέθοδος", η --> "οδός", η-->λήρης ένταξη" (trad.: o método, o caminho ou a rua, a integração plena).

  Em português, nós diríamos: "Eu disse as coisas com todas as letras", isto é, com todos os detalhes.  

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Ação social do C.A.C.-Centro Artístico e Cultural de São João del-Rei em socorro aos flagelados do Nordeste, em 1960


Por Francisco José dos Santos Braga 



I.  INTRODUÇÃO
 

O presente "post" trata de certa provocação feita à sociedade são-joanense pelo jornal "Diário do Comércio", em 27/03/1960, noticiando que o referido periódico estava abrindo uma campanha de donativos para socorro às vítimas de inundação no Nordeste brasileiro, cansado de só informar sobre as agruras que padeciam então nossos irmãos nordestinos. No dia seguinte, o presidente do C.A.C. - Centro Artístico e Cultural de São João del-Rei, Pe. Luiz Zver, trouxe ao conhecimento do jornal que a instituição que presidia também tinha decidido fazer campanha idêntica em benefício dos flagelados nordestinos. Chegou-se, portanto, à conclusão de que, nesse caso, seria necessária a unidade de comando, tendo ficado estabelecido que o C.A.C. assumiria a coordenação do empreendimento, com o apoio integral do "Diário do Comércio".

Como Pe. Luiz Zver e os "caqueanos" se desincumbiram daquela nova missão é o que veremos nas cinco matérias abaixo, escritas durante o período de um mês pelos dois interlocutores (C.A.C. e Diário do Comércio). Lembro que a ortografia foi respeitada em todos os textos.



II. MATÉRIAS DO "DIÁRIO DO COMÉRCIO"


1) O Açude de Orós, o maior do Brasil, cedendo ao pêso das águas, atingirá e destruirá cinco cidades do Ceará

Tôda a imprensa e o rádio vêm noticiando a dolorosa expectativa em que se acham as populações cearenses, com a condenação do Açude de Orós, que, segundo as últimas notícias, trará destruição à imensa região e desolação a quase 100.000 pessoas.
"Diário do Comércio" abrirá uma campanha de donativos para as vítimas dessa inundação sem precedentes, pretendendo remeter ao nosso caríssimo amigo, Dom Lustosa ¹, Bispo de Fortaleza, os resultados que a solidariedade do povo sanjoanense não deixará de propiciar aos nossos irmãos do Ceará.
Dom Lustosa, Bispo da Capital cearense, é um sanjoanense que honra o nome de São João del-Rei e que ocupa com invulgar serenidade e brilhantismo a direção da Diocese de Fortaleza.

Fonte: Diário do Comércio, Ano XXIII, 27 de março de 1960, p. 1


2) Ajudemos os nossos irmãos do Nordeste! (Apêlo do Centro Artístico e Cultural ao povo sanjoanense)

Cada vez mais aflitivas são as notícias que nos chegam do Nordeste brasileiro, flagelado por terríveis inundações.
Os jornais nos descrevem diàriamente em têrmos dramáticos a vastidão do desastre que desabou sôbre aquelas regiões, e as estações de rádio, hora após hora, lançam aos ares notícias que descrevem as indizíveis angústias de dezenas e centenas de milhares de pessoas que perderam suas terras, seus haveres, seus lares, e se encontram expostas a privações de tôda sorte.
Não é lícito acompanhar a terrível tragédia das inundações nordestinas com a mera curiosidade ou interêsse com que se acompanha o desenrolar de um drama no filme, no palco, no livro de aventuras ou os episódios de uma novela de rádio.
Os açudes que se rompem, as casas que desmoronam, as populações que são impiedosamente desalojadas e despojadas de seus pertences, não são ficção romanesca, mas terrível realidade da hora presente.
É preciso fazer qualquer cousa!
É preciso agir urgentemente!
É preciso correr em socôrro dos nossos irmãos flagelados!
O Centro Artístico e Cultural de São João del-Rei faz um apêlo caloroso à população sanjoanense: UNAMO-NOS AOS QUE DE TODO O BRASIL CORREM EM AUXÍLIO DOS IRMÃOS DO NORDESTE INUNDADO.
Façamos também nós alguma cousa!
O que dermos não nos tornará mais pobres.
Far-nos-á mais ricos — em méritos, em justas satisfações íntimas e na paz da consciência.
COMERCIANTE, renuncie ao seu lucro por um dia!
MÉDICO, ENGENHEIRO, ADVOGADO, DESTISTA, dê uma migalha de seus proventos diários!
INDUSTRIAL, abra mão de uma parcela das suas entradas de um dia!
HOMEM, renuncie a uma garrafa de cerveja ou a um gole de pinga!
MOÇO, deixe de jogar sinuca por hoje!
ESTUDANTE, deixe de ir ao cinema por uma vez!
MENINO, MENINA, não compre hoje o seu picolé!
SENHORITA, renuncie à compra de mais uma jóia, um "bâton", um perfume!
SENHORAS E MOÇAS, antes de encomendar vestidos novos e caros para a Semana Santa, pensem nas crianças sem roupa e nas mulheres do Nordeste, que tudo perderam nas águas! Será mesmo necessário um vestido novo para acompanhar Jesus esfarrapado ao Calvário?
O fruto dessas renúncias pode resultar em muitos milhares de cruzeiros, que transformaremos em roupa, alimentos, remédios, abrigos e futura construção de casas para os que tudo perderam.
Sanjoanenses, atendam com a sua proverbial generosidade ao apêlo que lhes dirige o Centro Artístico e Cultural.
Eis de que modo:
Nestes dias um grupo de senhoritas, contituído sobretudo pelas Bandeirantes, convocadas pela sua dirigente, Srta. Zoé Simões Coelho, visitará tôdas as lojas, casas de comércio, estabelecimentos industriais, bancos e residências particulares, para recolher donativos e contribuições.
Importante: a) Não há necessidade de assinaturas em listas e declarações das importâncias ofertadas. Não importa que o vizinho saiba quanto você deu: basta que Deus saiba.
b) Para evitar eventuais equívocos, as Bandeirantes irão uniformizadas e exibirão um cartão com apresentação e carimbo do C.A.C.. Sòmente assim poderão ser atendidas.
c) Os donativos poderão também ser entregues nos locais seguintes: Farmácia Guimarães, Casa Sade, Casa Assis, Casa Alves Neto, Joalheria Costa, Cantina Calabresa, Bar Social (Matosinhos), Casa Garcia (Matosinhos), Armazém Bassi & Castro (Fábricas) e finalmente na redação do "Diário do Comércio".
Perante os sofrimentos dos nossos irmãos não podemos ficar indiferentes.
Imitemos Verônica, enxugando as lágrimas no rosto de Cristo que padece nos flagelados do Nordeste brasileiro.
Diminuir a dor alheia será a melhor maneira de celebrar a Semana Santa.
Estendamos os braços, abramos os corações.
É um dever de humanidade.
É uma obrigação de patriotismo.
Mas é sobretudo uma lei do Cristianismo.
Pe. Luiz Zver — Presidente do C.A.C.

Fonte: Diário do Comércio, Ano XXIII, 30 de março de 1960, p. 1


3) REPERCUTE no Coração do Povo a Campanha em Favor das Vítimas das Inundações do Nordeste

Em comovente passeata pelos bairros, caravana do C.A.C. inicia a coleta pública, com alto-falante, banda de música e personalidades de destaque da sociedade local. A incansável e meritória colaboração das "Bandeirantes", sob o comando de Zoé Simões Coelho.

Quando a situação do Ceará, no açude de Orós, chegou a um momento dramático, "Diário do Comércio" tornou pública a sua intenção de iniciar imediatamente uma campanha em benefício das populações vitimadas. Isso foi no dia 27 de março. A 28, o presidente do C.A.C., Revmo. Padre Luiz Zver, entrava em entendimentos com êste jornal, pois o C.A.C. tinha resolvido fazer também uma campanha no mesmo sentido. Ficou então estabelecido que o C.A.C., assumindo o comando dêsse empreendimento, poderia contar com o apôio integral do "Diário do Comércio", o que vem ocorrendo sistemàticamente.
Já demos algumas notícias esparsas sôbre os primeiros movimentos voluntários, citando mesmo os primeiros donativos.
Mas foi na tarde de domingo, de acôrdo com os planos do C.A.C., que a campanha tomou o seu impulso mais vigoroso, reunindo-se os organizadores na Praça Raul Soares, com os veículos disponíveis, com banda de música, alto-falante e duas bandeiras, a Nacional e a das Bandeirantes. Êsse grupo da boa vontade sanjoanense percorreu diversos bairros da cidade, lentamente, tendo obtido o apôio da população, mesmo nas ruas mais pobres, verificando-se nêsse espetáculo de solidariedade humana que o povo sanjoanense não está ausente da grande tragédia que une ainda mais todos os brasileiros.
Com as bandeiras abertas e seguradas nas suas pontas por "fadinhas" ou Bandeirantes, o grupo esteve no bairro das Fábricas, em Matosinhos, no Tijuco e em outros locais, sendo chamadas, a todo momento, para receberem nas janelas das casas a contribuição valiosa e benemérita.
Foi um espetáculo comovente, tanto pela parte dos que atuaram diretamente no movimento, na formação da coluna precatória, como pela parte dos que acolheram com a máxima simpatia o grupo móvel do C.A.C..
No campo do Minas Futebol Clube, onde se realizava uma partida amistosa, as bandeiras receberam novos e numerosos donativos, tendo havido também uma homenagem dos clubes em jôgo, que fizeram um minuto de silêncio pelas vítimas da calamidade que enluta o Norte.
Entre os que acompanhavam a passeata do C.A.C., pudemos ver cidadãos nordestinos, definitivamente radicados em São João del-Rei, que emocionados ajudavam na campanha, prestigiando com a sua presença êsse movimento de tão grande alcance social.
A verdade é que o C.A.C., criado há tão pouco tempo, entidade que congrega valores de tôdas as colorações políticas e de tôdas as classes e profissões, está dando mais uma demonstração de quanto poderá essa organização fazer em benefício de São João del-Rei. Porque essa movimentação em favor das vítimas das inundações é uma prova da receptividade que tem o Centro Artístico e Cultural, apesar de ser ainda uma criança, fundado que foi no ano passado.
A senhorita Zoé Simões Coelho, na chefia das "Bandeirantes", auxiliada por suas colegas e subordinadas, deu a nota alta nêsse movimento de domingo, estando o povo sanjoanense na convicção de que as "Bandeirantes" constituem, sem dúvida, o símbolo vivo de muitos ideais que se materializam em boas ações.
A campanha do C.A.C. continua e há de receber do povo, do comércio, da indústria, dos funcionários públicos e dos profissionais liberais o apôio que nos merecem os brasileiros do Norte, pois a situação se agrava a cada momento, desde o Pará até Alagoas, em cêrca de oito Estados, tendo vindo oferecimentos de muitos países, até da Rússia.
É preciso considerar que neste momento as responsabilidades do Govêrno na calamidade devem ocupar um plano inferior. O auxílio é para as populações vitimadas e tôdas as considerações de outra espécie constituem um capítulo à parte.
Colaboremos, pois, com o C.A.C., para que em poucos dias possa o arcebispo de Fortaleza, o ilustre sanjoanense Dom Lustosa, ter a satisfação de receber de sua terra uma surprêsa que será motivo de alegria para Sua Excelência e de alívio para milhares de irmãos brasileiros.

Fonte: Diário do Comércio, Ano XXIII, 5 de abril de 1960, p. 1


4) Duas Cartas

Esta é a Carta — enviada pelo presidente do C.A.C. ao Bispo de Fortaleza

São João del-Rei, 8 de abril de 1960.
Excelência Reverendíssima,
Laudetur Christus.
Tenho a honra e a satisfação de comunicar a V. Excia. Revma. que seguiu hoje uma ordem telegráfica da Agência do Banco do Brasil desta cidade, pondo à Sua disposição a importância de Cr$ 100.000,00 (cem mil cruzeiros), donativo do povo da terra natal de V. Excia. para as vítimas das inundações do Nordeste brasileiro, sobretudo do Ceará.
Contribuíram para reunir essa quantia tôdas as classes sociais da cidade: operários e professoras, crianças dos Grupos Escolares, Bandeirantes, Fadinhas e alunos da Escola de Comércio, Bancários e Comerciários, as famílias mais abastadas e as mais pobres; ninguém, enfim, ficou indiferente ao apêlo e à campanha empreendida pelo Centro Artístico e Cultural de São João del-Rei.
Muito em breve esperamos remeter mais uma soma. Também alguns volumes, contendo principalmente roupa, serão nestes dias enviados a V. Excia. por intermédio da organização de socorros dirigida pelo Exmo. Sr. Dom Hélder Câmara.
Ainda que seja modesto o fruto dos nossos esforços e pequena a nossa contribuição defronte a tão graves necessidades, que afligem o Nordeste nesta hora angustiosa, fizemos questão de que tudo fôsse remetido e depositado nas mãos venerandas de V. Excia., na esperança de que sirva para aliviar um pouco os padecimentos dos Seus diocesanos como dos demais nordestinos, atingidos pelas inundações.
Quiséramos igualmente que o nosso gesto fizesse sentir a V. Excia. quanta estima e veneração Lhe dedica o povo de São João del-Rei, que se sente orgulhoso de tão ilustre, santo ² e querido concidadão.
Nas suas orações e no Santo sacrifício da Missa queira V. Excia. pedir a Deus pelo bem espiritual e temporal de todos quantos contribuíram com o seu óbulo e o seu trabalho para o êxito desta campanha e estender a Sua santa bênção também ao CENTRO ARTÍSTICO E CULTURAL DE SÃO JOÃO DEL-REI.
De V. Excia. Revma. servo humilde em Cristo nosso Senhor,
Pe. Luiz Zver SDB — Presidente do C.A.C.

RESPOSTA À CARTA DO PE. LUIZ ZVER

Presidente do C.A.C.
Fortaleza, 12-4-60
Revmo. Pe. Luiz Zver

Recebi a carta de V. Revma.
O Centro Artístico e Cultural, no seu gesto de caridade, conseguiu admirável êxito. Belo resultado da iniciativa de solidariedade cristã que muito comoveu os cearenses.
Não sei como agradecer a V. Revma. e a quantos cooperaram nessa iniciativa caridosa.
Como Presidente da Comissão Episcopal de Socôrro às vítimas das inundações, agradeço do fundo d' alma e peço a Deus larga recompensa para quantos concorreram para o movimento de socôrro aos flagelados.
As famílias desabrigadas estão voltando para suas casas — que não ruíram, — onde encontram lama e miséria. Têm o confôrto de saber que brasileiros distantes lhes estenderam a mão cristã.
Penhoradíssimo me subscrevo com amizade fraterna e gratidão, de V. Revma.
Antônio A. Lustosa
Arcebispo de Fortaleza

Nota: Além dos cem mil cruzeiros remetidos no dia 8, seguiram anteontem os sete volumes de donativos em roupas, alimentos, etc., e mais a importância em dinheiro de Cr$ 43.248,00.
Especial agradecimento ao Expresso Vera-Cruz, pelo transporte gratuito da mercadoria até o Rio de Janeiro, e à gerência do Banco do Brasil pela gentileza da remessa do dinheiro sem ônus para a campanha.
Pe. Luiz Zver

Fonte: Diário do Comércio, Ano XXIII, 20 de abril de 1960, p. 4


5) Na fase final a campanha pró-flagelados do Nordeste

A campanha empreendida pelo Centro Artístico e Cultural de São João del-Rei no mês passado em favor das vítimas das recentes inundações nordestinas está chegando ao seu fim, ultimando-se a coleta e o envio ao seu destino dos donativos que foram feitos por várias pessoas ainda nestes dias.
Anteontem, dia 9, através dos bons ofícios do Banco do Brasil, foi mais uma vez remetida para Fortaleza, nas mãos do Exmo. Sr. Dom Antônio de A. Lustosa, a importância de Cr$ 13.353,30, que somada às duas remessas anteriores, perfaz um total de Cr$ 156.601,90, fora os sete grandes volumes de roupas, alimentos, etc., que foram enviados durante as festas da Páscoa.
Para a soma desta terceira remessa em dinheiro, além de várias outras pessoas, contribuíram sobretudo o sr. Vicente Terra e a sua fábrica de pregos, a Associação de Ex-alunos de Dom Bosco, que ofereceu a renda de um espetáculo teatral realizado no Oratório de São João, e especialmente o sr. Antero Ribeiro Filho, que da vizinha Nazareno nos remeteu a bela importância de Cr$ 10.200,00, fruto do seu ânimo empreendedor e caridoso e do seu trabalho realizado entre os generosos Nazarenses.
A todos o muito-obrigado em nome do C.A.C. e dos flagelados socorridos. Que Deus lhes pague!
Pe. Luiz Zver

Fonte: Diário do Comércio, Ano XXIII, 10 de maio de 1960, p. 4



III.  NOTAS DO AUTOR

 
¹  Dom Antônio de Almeida Lustosa, Arcebispo da Arquidiocese de Fortaleza, tinha onze irmãos, dos quais Dr. Carlos de Almeida Lustosa (1881-1937) foi o primeiro ortodontista do Brasil e Dr. Paulo de Almeida Lustosa (1887-1986) se destacou como o inventor e fabricante da "Cera Dr. Lustosa", muito utilizada desde 1922 para o alívio da dor de dente. Todos três são-joanenses!

²  O professor universitário cearense Francisco Sales Cunha, utilizando crônicas e cartas pastorais, em que Dom Antônio de Almeida Lustosa procurava sensibilizar leitores para o cultivo de valores cristãos e a responsabilidade social, tem desenvolvido inúmeras produções literárias e estudos sobre esse intelectual são-joanense, pelo menos desde 2006. É da sua autoria a Breve Biografia de Dom Lustosa que transcrevo a seguir:
"(Dom Antônio) nasceu na cidade de São João del-Rei, em Minas Gerais, no dia 11 de fevereiro de 1886. De seus pais que eram cristãos exemplares, recebeu Antônio Lustosa uma boa formação humana e cristã. Menino inteligente e de boa índole, logo se revelou educado e possuidor de visíveis sinais de vocação para o sacerdócio. Ingressou na Congregação Salesiana, tornando-se religioso em 28 de janeiro de 1906. Ordenado sacerdote no dia 28 de janeiro de 1911 e, após ocupar vários cargos na Congregação, foi nomeado Bispo, sendo ordenado para a sagrada ordem do Episcopado no dia 11 de fevereiro de 1925.
Exerceu o ministério de bispo em quatro dioceses: em Uberaba, no Estado de Minas Gerais, durante quatro anos; em Corumbá, no Estado de Mato Grosso do Sul, por dois anos; em Belém, no Estado do Pará, trabalhou ao longo de dez anos; à Arquidiocese de Fortaleza, porém, como arcebispo, dedicou ele 22 preciosos anos de sua vida de pastor amigo e bispo santo, no meio do seu povo sofrido (05/11/1941 a 11/05/1963).
Plenamente identificado, viveu intensamente a sorte do povo cearense, chegando a pedir esmola em favor do povo torturado pelo flagelo da seca. Assim como o povo hebreu no deserto, dizia ele: "... também nossos pobres flagelados, ora sob a nuvem luminosa de uma esperança ilusória, ora sob a nuvem sombria de uma decepção dolorosa" (Terra Martirizada, p. 44). No intuito de ajudar os seminaristas e socorrer os pobres, escreveu numerosos livros. Homem verdadeiramente de Deus, sempre preocupado com o bem-estar das pessoas, ele foi o pai e o amigo dos pobres, testemunhando sua caridade com gestos muitos e concretos.
Terminado o tempo de Arcebispo em Fortaleza, humilde e obediente, recolheu-se na Casa Salesiana de Carpina, em Pernambuco. Aí entre os seminaristas, como confessor, viveu santamente seus últimos anos de vida, entre o trabalho, o sofrimento e a oração, vindo a falecer no dia 14 de agosto de 1974.
A Arquidiocese de Fortaleza, tendo à frente o Sr. Arcebispo, Dom José Antônio, já abriu e encerrou o processo local de beatificação e canonização, remetendo-o a Roma, onde se encontra atualmente. Resta: rezar, divulgar sua vida, sua missão e aguardar que se cumpra nele a vontade expressa de Deus: "Sede santos porque eu sou santo" (I Pe 1:16).

'Abre teus olhos à luz da fé, para saberes apoiar o dom de Deus.'
'Não é só de pão, mas é também de pão que vive o homem.'
'Na hora da provação apura-se-nos o sentimento da gratidão. E urge conosco o dever de significar aos que nos estendem a mão quanto nos penhorou o conforto quem, na hora amarga, nos dispensaram.'
Dom Antônio de Almeida Lustosa"

Além desse depoimento fiel, cabe-me reproduzir aqui trecho do livro D. Antônio de Almeida Lustosa: um discípulo do Mestre — manso e humilde, em que o autor, o saudoso Vinícius (Antonius Holanda de) Barros Leal (Baturité, 1922-Fortaleza, 2010), assim se expressou sobre a ação social de D. Antônio em Fortaleza nas pp. 128-130:
"Logo no início de seu episcopado sobressaiu a impressão do grande abandono em que jaziam milhares de homens, mulheres e crianças vítimas das calamidades, das injustiças sociais e da própria estrutura econômica da região. Uma verdadeira rotina nas instituições assistenciais detinha qualquer efeito benéfico de iniciativas governamentais ou particulares no sentido de minorar este estado de coisas. O povo, embotado pela repercussão de sua própria condição, não se animava a exigir um melhor tratamento ou a aspirar uma situação mais condigna. D. Antônio entendeu a grandeza do problema e passou a agir contra tal influência obnubilante, criando, ainda nos primeiros tempos de sua chegada ao Ceará, os Postos Arquidiocesanos de Saúde, verdadeira bênção para a pobreza desamparada. (...)
D. Antônio teve a intuição, nesse caso da assistência médica, como em outros setores de seu trabalho social, de criar associações mantenedoras para assegurar a captação de recursos públicos e particulares para a sustentação das valiosas obras. No caso específico dos Postos Médicos, fundou a Associação Protetora dos Doentes Pobres, através da qual eram reunidos fundos em dinheiro e adquiridos os bens necessários ao pronto atendimento dos necessitados.
Data de 1945 a fundação dos primeiros postos dessa instituição. No dia primeiro de agosto daquele ano foram instaladas unidades de saúde nos seguintes bairros:
1— Piedade, sob a direção das Irmãs do Colégio da Imaculada Conceição...
2— Posto São Vicente, no bairro da Pirocaia...
3— Posto de Santa Luzia, na Igreja da mesma invocação...
4— Posto de Santa Luísa, no Mucuripe...
5— Posto São João, no bairro de São João do Tauape...
6— Posto da Sagrada Família, no Bairro Vermelho...
7— Em Cajazeiras, o Posto Santa Rosa de Viterbo...
8— O Posto Nossa Senhora das Dores, sob a direção das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado...
9— Na Floresta, o Posto da Imaculada Conceição...
10— O Posto La Sallete, no bairro de Sallete...
11— A 12 de outubro de 1945 foi instalado o Posto São Francisco, na Avenida Francisco Sá...
12— Em janeiro de 1946 foi instalado o décimo segundo Posto, no bairro Arraial Moura Brasil. (...)
13— Posto Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, em Carlito Pamplona...
(...) Os serviços odontológicos ficaram a cargo de profissionais competentes que atendiam na Rua Pedro Borges, 249 e no Centro Assistencial Santa Luzia, onde quatro dentistas (...) prestavam todos os socorros odontológicos necessários a uma grande parte da população pobre de diversos bairros de Fortaleza. (...)"

No domínio da educação, ou seja, da instrução gratuita aos pobres, D. Antônio se excedeu em sua atividade de caráter social. Vou abster-me de citar todos os seus feitos nesta área, para não ultrapassar os limites deste post. Cabe, entretanto, citar que "nenhuma obra neste setor educacional foi mais duradoura e teve maior significação do que a fundação da Escola de Serviço Social, patrocinada pela Associação de Educação Familiar e Social, instituição arquiepiscopal mantenedora da entidade que mais tarde foi incorporada à Universidade Federal do Ceará, pelo Reitor Martins Filho." (LEAL, 1992, p. 133)

Também a Semana Social em setembro de 1945, idealizada por D. Antônio, foi outro grande momento da ação social desenvolvida em Fortaleza. Com essa iniciativa, D. Antônio conseguiu as adesões mais significativas das autoridades civis e militares de todos os quadrantes do Brasil. Não só o Núncio Apostólico exaltou essa iniciativa, mas o próprio Papa mandou uma bênção especial a todos os envolvidos com a realização da Semana Social (conferencistas, faculdades, colégios, associações de classe, rádio e imprensa). Segundo LEAL, 1992, p. 134, "a finalidade da Semana era, entre outros objetivos, tornar esclarecida a classe operária, diante da intensa propaganda comunista e recrutamento manhoso de novos adeptos no meio trabalhador. A agremiação esquerdista, orientada por Luiz Carlos Prestes e contando em Fortaleza com ardorosos sectários, através dos "Comitês populares" estava em ampla campanha de arregimentação, tudo fazendo para divulgar a sua doutrina materialista entre os operários."

D. Antônio acreditava que não só ao Governo competia a responsabilidade do bem-estar social. À Igreja, como mãe e mestra, à sua maneira e sem substituir o Estado, cabia a função de educadora da humanidade. Entendia que "um milenar patrimônio de valores cristãos é um lastro suficiente para fazer inspirar o estabelecimento de uma sociedade conforme Deus delegou ao homem aperfeiçoar... Diversas radiomensagens de Pio XII estão repletas desses ensinamentos e foram roteiros seguros para a pastoral social de D. Antônio. Encontrou ele, na realização da Semana Social, um meio de sensibilizar a população cearense ao melhor conhecimento das conquistas sociais, especialmente depois dos estudos mais acurados e de aplicação dos ditames das encíclicas e pronunciamentos papais, a datar de Leão XIII." (LEAL, 1992, p. 135)

Para não me estender muito mais no estudo da ação social desenvolvida por D. Antônio, acho conveniente concluir em comunhão com LEAL, 1992, p. 123: "Até ao fim de sua vida defendeu a dignidade da pessoa humana e essa sua afeição a tal esforço fê-lo merecer, justamente, a aplicação daquelas sábias palavras do filho de Deus em Ap. 2, 19: 'conheço tuas últimas obras, maiores do que as primeiras'."



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CUNHA, F.S.: Blog de Dom Antônio de Almeida Lustosa, no seguinte endereço eletrônico: http://domantonioalustosa.blogspot.com.br/

Diário do Comércio: O Açude de Orós, o maior do Brasil, cedendo ao pêso das águas, atingirá e destruirá cinco cidades do Ceará, Ano XXIII, edição de 27 de março de 1960, p. 1
        . REPERCUTE no Coração do Povo a Campanha em Favor das Vítimas das Inundações do Nordeste, Ano XXIII, edição de 5 de abril de 1960, p. 1

LEAL, V.B.: D. ANTÔNIO DE ALMEIDA LUSTOSA: UM DISCÍPULO DO MESTRE - MANSO E HUMILDE, Fortaleza: sem referência de editoração, 1992, 178 p.

ZVER, L.: Ajudemos os nossos irmãos do Nordeste! (Apêlo do Centro Artístico e Cultural ao povo sanjoanense), in Diário do Comércio, Ano XXIII, edição de 30 de março de 1960, p. 1
          . Duas Cartas, in Diário do Comércio, Ano XXIII, edição de 20 de abril de 1960, p. 4
       . Na fase final a campanha pró-flagelados do Nordeste, in Diário do Comércio, Ano XXIII, edição de 10 de maio de 1960, p. 4