quinta-feira, 29 de outubro de 2020

REFERÊNCIAS DE HERÓDOTO E APOLÔNIO DE RHODES AOS HYPERBÓREOS

Por Francisco José dos Santos Braga

O ensaio da autoria de Roger Dion, denominado “A noção dos Hyperbóreos: suas vicissitudes durante a antiguidade”, em minha tradução do francês para o Blog do Braga, apresentou importantes referências bibliográficas, o que constitui uma característica distintiva de toda exposição do notável geógrafo e historiador francês. 
Dentre elas, destacam-se três, às quais recorre o autor com muita propriedade ao longo do texto, deixando evidente a sua importância na construção do ensaio: um longo trecho da História de Heródoto sobre os Hyperbóreos (nota nº 24), além de um trecho do Canto IV (nota nº 27) e um escólio ao Canto II de As Argonáuticas de Apolônio de Rhodes (notas nº 25 e 31). 
Compreende-se perfeitamente o cuidado de Dion ao evitar extrapolar o espaço destinado ao seu ensaio e que foi exatamente o motivo por que ele evitou transcrever traduções de trechos referenciados de autores gregos e romanos e também eu não o fiz, respeitando as Notas Explicativas originais. 
Como entendo ser indispensável para a plena compreensão do texto, além de matar a curiosidade do leitor e possibilitar que ele vá direto à fonte que deu origem ao texto, estou apresentando abaixo o texto grego traduzido de que se serviu Dion para suas considerações originais de 1976. 
Aqui, mais relaxadamente, vou retomar algumas Notas Explicativas do ensaio de Roger Dion para abordar de forma mais ampla as que me pareceram muito sucintas. Isso é particularmente verdadeiro para as notas que se referem a Heródoto (História) e Apolônio de Rhodes (poema épico As Argonáuticas). 
 
1) A nota explicativa nº 24 nos informa que o historiador grego Heródoto, apud Hesíodo, menciona esses imaginários povos que viviam além dos montes Rípeos, e, para tal, o ensaísta se reporta à História de Heródoto (IV, 32 e ss.). 
O presente post pretende referenciar bem aquela minha tradução de Roger Dion, inicialmente a partir da tradução francesa de trechos da História de Heródoto. É possível encontrá-la na Internet. Eis o texto francês que utilizei: 
HERÓDOTO: História, tradutor Pierre-Henri Larcher, tomo 1, livro IV (Melpomene), 32-35, Paris: Libraire-Éditeur Charpentier, 1850, p. 329-331 
Obs: para ler todo o trecho em francês, o leitor deverá repetir o corpo do link, modificando apenas o final para 329 e 330, pois o trecho é um tanto longo, obrigando o estudioso a acessar 3 páginas do livro. 
 
Vejamos então o que Heródoto tem a nos dizer a respeito dos Hyperbóreos e assuntos correlatados:  
 
XXXII. (...) Entretanto Hesíodo faz referência a eles (os Hyperbóreos), e Homero também nos Epígonos, supondo pelo menos que ele seja o autor desse poema. 
 
XXXIII. Os habitantes de Delos falam deles (Hyperbóreos). Contam que as oferendas dos Hyperbóreos vinham a eles envolvidas na palha de trigo. Elas passavam pelos Citas: transmitidas em seguida de povo em povo, elas eram levadas o mais longe possível em direção ao ocidente, até o mar Adriático. De lá, eram enviadas para o lado do Sul. Os habitantes de Dodona eram os primeiros Gregos que as recebiam. Elas desciam de Dodona até o golfo Maliaque, donde passavam à Euboea e, de cidade em cidade, até à Caryste. Dali, sem tocar em Andros, os habitantes de Caryste levavam-nas à Tenos, e os habitantes de Tenos à Delos ¹. Se os habitantes de Delos forem confiáveis, as oferendas chegam desta maneira à sua ilha. Acrescentam que, nos primeiros tempos, os Hyperbóreos enviaram essas oferendas por duas virgens, uma das quais, segundo eles, se chamava Hyperoché e a outra, Laodicé; que, para a segurança dessas jovens, os Hyperbóreos mandaram cinco de seus compatriotas acompanhá-las, chamados Perphéres, e a quem eram prestadas grandes honras em Delos; mas que, os Hyperbóreos não os vendo retornar, e considerando uma coisa muito deplorável se lhes acontecesse nunca mais rever seus delegados, tomaram a decisão de levar além de suas fronteiras suas oferendas envolvidas em palha de trigo; remetiam-nas em seguida a seus vizinhos, pedindo-lhes instantemente acompanhá-las até uma outra nação. Passam assim, dizem os habitantes de Delos, de povo em povo, até que finalmente elas chegam à sua ilha. Reparei, entre as mulheres da Trácia e da Peônia, um hábito que se aproxima muito deste que observam os Hyperbóreos relativamente a suas oferendas. Elas nunca sacrificam à real Diana sem fazer uso da palha de trigo. 
 
XXXIV. Os jovens de Delos, de um e de outro sexo, cortam os próprios cabelos em honra dessas virgens hyperbóreas que morreram em Delos. As moças lhes dedicam esse dever antes de seu casamento. Elas tomam uma mecha de seus cabelos, enrolam-na em volta dum fuso, e o põem no monumento dessas virgens, que está situado no lugar consagrado a Ártemis, à esquerda da entrada do santuário Artemísion. Vê-se sobre o túmulo uma oliveira que ali veio parar por si mesma. Os jovens de Delos enrolam seus cabelos em volta duma certa erva, e os põem também sobre o túmulo das hyperbóreas. Tais são as honras que os habitantes de Delos prestam a essas virgens. 
 
XXXV. Os habitantes de Delos dizem também que, no mesmo século em que esses delegados vieram a Delos, duas outras virgens hyperbóreas (das quais uma se chamava Argé e a outra Opis) já tinham vindo ali antes de Hyperoché e Laodicé. Essas traziam à deusa Ilítia o tributo que elas estavam encarregadas de ofertar para o pronto e feliz parto das mulheres suas compatriotas. Mas Argé e Opis tinham chegado na companhia mesma dos dois deuses (Apolo e Ártemis). Também os habitantes de Delos lhes rendem outras honras. As mulheres destes imploram a elas, e celebram seus nomes num hino que Olen da Lícia compôs em sua honra. Os habitantes de Delos dizem ainda que eles ensinaram aos insulares e aos Jônios a celebrarem e a invocarem Opis e Argé em seus hinos, e a implorarem por elas. Aquele Olen, que tinha vindo da Lícia à Delos, compôs o resto dos hinos antigos que são cantados nesta ilha. Os mesmos habitantes de Delos acrescentam que, depois de se ter mandado queimar as coxas das vítimas sobre o altar, espalham-se as suas cinzas sobre o túmulo de Opis e de Argé, e se empregam todas elas nessa prática. Este túmulo fica atrás do templo de Ártemis, a oeste, e perto da sala onde os Ceienos fazem seus festins. 
 
XXXVI. Basta sobre os Hyperbóreos. Na verdade, não paro no que se conta de Abaris, que se dizia ser Hyperbóreo e que, sem comer, viajou por todo o mundo, carregado sobre uma flecha. Além disso, se há Hyperbóreos, deve haver também Hypernóteos. Para mim, não posso evitar de rir quando vejo algumas pessoas, que deram descrições da circunferência da terra, pretenderem, sem se deixar guiar pela razão, que a terra é redonda como se ela tivesse sido trabalhada ao redor, que o Oceano a circunda de todos os lados, e que a Ásia é igual à Europa. (...)
 

 
2) Passemos agora às referências de Roger Dion das Argonáuticas de Apolônio de Rhodes. Antes de mais nada, é possível analisar essa obra épica através de um aspecto, qual seja, a de sua relação com outros textos. Sobressai nesta relação intertextual a existente entre esse poema épico e a História de Heródoto, e os especialistas destacam essa influência no poema épico, assinalando aí o emprego de características e clichês do discurso historiográfico, estruturas narrativas, apresentação e descrição dos personagens, etiologia e padrões de explicação, retrato dos grupos étnicos, e representação da realeza e da tirania. 
[MORRISON, 2020, 1], na Introdução de seu livro, reporta-se ao fragmento 43 da edição de Rudolf Pfeiffer das Aitia (Origens) de Calímaco. Aí a musa Clio (musa grega da história) é representada descansando sua mão no ombro da sua irmã Calíope (musa grega da poesia épica) quando começa a falar pela segunda vez, em resposta a uma das questões do poeta, conforme abaixo textualmente:
ὥς ἐφάμην· Κλειὼ δὲ τὸ [δ]εύτερον ἤρχ[ετο μ]ύθ[ου 
                       χεῖρ' ἐπ' ἀδελφειῆς ὦμον ἐρεισαμένη· 
(Assim eu falei. E Clio, pela segunda vez, começou a narrativa, colocando sua mão sobre o ombro de sua irmã: [...]) 
 
Esta vinheta constitui uma dica acerca da relação íntima entre a poesia épica e a historiografia. Reconhecidamente As Argonáuticas empregam a historiografia herodoteana como um intertexto importante, porque importava a Apolônio articular a relação de sua épica com e de sua divergência da épica homérica. Não é de hoje o reconhecimento dessa proximidade: o próprio Heródoto era caracterizado como "o mais homérico" por Longino (De Subl. 13.3) e o atual conhecimento tem explorado detalhamente as afinidades homéricas da historiografia herodoteana, cujas raízes estão fincadas na poesia épica, a ponto de Heródoto ser nomeado em primeiro lugar na inscrição de Salmacis encontrada no porto da moderna Bodrum (Halicarnassus) e aí comemorado como "Homero em Prosa da História" (ca. virada do século II ao I a.C.).
 
Rota dos Argonautas
 
A outra nota que importa analisar aqui é a de nº 27, em que Roger Dion cita o canto IV, verso 284. Interessa-lhe mais especificamente o rio Danúbio (conhecido por Ister ou Istros), conforme cantado por Apolônio de Rhodes em suas Argonáuticas. Para dar uma ideia mais compreensiva do assunto, vou ampliar um pouco a passagem descrita pelo articulista, cobrindo não só o verso 284, mas todo o trecho contido pelos versos 282-293. Eis o trecho de As Argonáuticas que interessa analisar: 
“(...) ἔστι δέ τις ποταμός, ὕπατον κέρας Ὠκεανοῖο, 
εὐρύς τε προβαθής τε καὶ ὁλκάδι νηὶ περῆσαι: 
Ἴστρον μιν καλέοντες ἑκὰς διετεκμήραντο: 
ὅς δή τοι τείως μὲν ἀπείρονα τέμνετ' ἄρουραν 
εἷς οἶος: πηγαὶ γὰρ ὑπὲρ πνοιῆς βορέαο 
Ῥιπαίοις ἐν ὄρεσσιν ἀπόπροθι μορμύρουσιν. 
ἀλλ' ὁπόταν Θρῃκῶν Σκυθέων τ' ἐπιβήσεται οὔρους, 
ἔνθα διχῆ τὸ μὲν ἔνθα μετ' ἠῴην ἅλα βάλλει 
τῇδ' ὕδωρ, τὸ δ' ὄπισθε βαθὺν διὰ κόλπον ἵησιν 
σχιζόμενος πόντου Τρινακρίου εἰσανέχοντα, 
γαίῃ ὃς ὑμετέρῃ παρακέκλιται, εἰ ἐτεὸν δὴ 
ὑμετέρης γαίης Ἀχελώιος ἐξανίησιν. (...)”
Recorrendo à tradução francesa já existente para o texto grego, fiz a seguinte versão para o português: 
Há um rio, extremo braço do Oceano ², largo, muito profundo e navegável mesmo para um navio de grande calado: chamam-no Istros ³ e rastrearam seu longínquo curso. Este, numa grande distância, está absolutamente solitário ao atravessar um imenso território, pois suas nascentes, além das aragens do Bóreas, bramam ao longe nos montes Rípeos; mas, uma vez chegado às fronteiras dos Trácios e dos Citas, divide-se em dois braços: por um lado, lança-se por aqui no mar Oriental; pelo lado oposto, corre através do golfo profundo que prolonga o mar de Trinácria situado na orla do vosso país, se for verdadeiramente no vosso país que o Aquelau recebe sua nascente.” 
  
Fonte: APOLLONIOS DE RHODES: Argonautiques, tomo III, canto IV, texto estabelecido e comentado por Francis Vian e traduzido por Émile Delage, Paris: Les Belles Lettres, 1996, 284 p.
 
Bacia do rio Danúbio (outrora, Ister ou Istros)  
 
3) A outra referência de Roger Dion refere-se às Argonáuticas de Apolônio de Rhodes. As notas nº 25 e 31 do autor francês mencionam o canto II, 675, acrescentando que se trata de um escólio importante. Vejamos, pois, em minha tradução, o que o escoliasta escreveu sobre Homens hyperbóreos: “Com relação ao Apolo Hyperbóreo, vide DECHARME, Mythol., p. 107-109. O escoliasta dá informações sobre o povo mítico dos Hyperbóreos: 
“Heródoto [IV, 36] diz que realmente não há Hyperbóreos, pois, se há povos além de Bóreas, deve haver alguns além de Noto. [Sobre esta opinião de Heródoto, vide Estrabão, 51, 35.] Posidônio diz que eles existem e habitam nos arredores dos Alpes da Itália. Mnaseas diz que os Hyperbóreos agora são chamados de Délficos. Hecateu diz que até em sua época existia um povo hyperbóreo. Ele escreveu um livro com este título: Hyperbóreos. Havia três raças de Hyperbóreos: os Epizéfiros, os Epicnimídios e os Ozoles.”
Quando ele diz que os Hyperbóreos agora são chamados de Délficos, Mnaseas sem dúvida alude às tradições sobre os Hyperbóreos que se verificavam em Delfos: “Apolo teria vindo da terra dos Hyperbóreos para Delfos e, novos servos do deus, os Délficos teriam substituído os Hyperbóreos no ofício de devotos de Apolo. Os Délficos seriam, portanto, na época de Mnaseas, os sucessores dos Hyperbóreos. Diodoro de Sicília (II, 47) resume as tradições de Hecateu sobre os Hyperbóreos. — Quanto àquela divisão dos Hyperbóreos em Epizéfiros, Epicnimídios e Ozoles, divisão que não é mencionada, de nosso conhecimento, em qualquer outro lugar que não neste escólio, parece o resultado de uma confusão entre os Hyperbóreos e os Lócrios cujas diversas tribos cercam a Fócida, onde Delfos está localizado. Sabemos, de fato, que os Lócrios estão divididos em Epicnimídios, Epizéfiros, Opuntianos e Ozoles (Estrabão, 357, 25 e ss.; 215, 32 e ss.).”
 
Cf. APOLLONIOS DE RHODES: Les Argonautiques (H. de La Ville de Mirmont, tradutor e comentarista de notas críticas etc.), 1892 
 
Finalmente, ainda sobre o canto II, 675 de As Argonáuticas, alhures se comenta que “a Lícia e o país mítico dos Hyperbóreos são dois dos domínios favoritos de Apolônio. A Lícia é mencionada em I, 309; conforme IV, 614, Apolo se exilou na Hyperbórea, quando foi enxotado do céu por ter querido vingar a morte de seu filho Asclépio. Os Hyperbóreos são conhecidos desde Hesíodo (fragm. 150, 21 Merk-West) e o poema dos Epígonos; cf. ainda Alceu fragm. 307 Lobel-Page; Píndaro: Pyth., 10, 29-48; Heródoto: História 4, 32-35; Calímaco: Hinos, 4, 281-299; fragm. 186 Pfeiffer; etc.”
 
Cf. APOLLONIOS DE RHODES: Argonautiques, tomo I, canto II, texto estabelecido e comentado por Francis Vian e traduzido por Émile Delage, Paris: Les Belles Lettres, 1976, p. 275.

 

I.  NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹   Em geral, os nomes de ilhas, embora tenham terminação típica de substantivos masculinos em -ος, são do gênero feminino em grego. Ex: η Κύπρος (Chipre), η Σάμος (Samos), etc.

²  Literalmente, "extremo chifre do Oceano". Na mitologia grega, o chifre tinha o significado de grandeza, superioridade. 
 
³  Segundo Apolônio, o rio Istros (Danúbio), que tem sua nascente nos montes Rípeos, era alimentado subterraneamente pelas águas do Oceano.
 
 

II. BIBLIOGRAFIA



APOLLONIOS DE RHODES: Les Argonautiques (H. de La Ville de Mirmont, tradutor e comentarista de notas críticas etc.), 1892 
 
Link: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k373276d/

DION, Roger: "A noção dos Hyperbóreos: suas vicissitudes durante a antiguidade", traduzido por Francisco José dos Santos Braga e publicado no Blog do Braga em 14/10/2020, Bulletin de l’ Association Guillaume Budé-BAGB, nº 2, junho de 1976, p. 143-157; in TAILLANDIER, Guillaume: HYPERBOREE, Texts et Documents 

Link: https://www.academia.edu/40749656/HYPERBOREE_Textes_et_Documents_publi%C3%A9s_par_G%C3%A9r%C3%B4me_Taillandier

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2020/10/a-nocao-dos-hyperboreos-suas.html

MORRISON, A.D.: "Apollonius Rhodius, Herodotus and historiography", Cambridge: Cambridge University Press, 2020, 244 p. 


STEPHENS, Susan: Callimachus: Aetia. Carlisle, Pennsylvania: Dickinson College Commentaries, 2015.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

MEU PREFÁCIO DO LIVRO "TRIBUTO AO PROFESSOR ROQUE JOSÉ DE OLIVEIRA CAMÊLLO"


Por Francisco José dos Santos Braga



Tive a honra de conhecer Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro, autor deste livro de discursos proferidos e ensaios, nos quais se faz menção a nosso amigo fraterno e mútuo, Dr. Roque José de Oliveira Camêllo, em 17/03/2018, véspera da fundação do Instituto Roque Camêllo, em Mariana, a que compareceu na condição de presidente da Academia Itaunense de Letras e teve a honra de ser um dos ilustres oradores no evento. 

Como se vê, a escolha do autor deste livro que recaiu sobre mim, para compor este prefácio, seu amigo mais novo e não sobre alguém mais merecedor desse mimo, algum amigo da primeira hora ou do seu círculo de amizades que é imenso deve-se ao motivo óbvio de que ele espera que eu revele ao público leitor particularidades da minha convivência com seu homenageado nos discursos que pronunciou. 

Conheci Dr. Roque Camêllo quando participei, como Secretário, da Chancelaria da Comenda da Liberdade e Cidadania em 2011 capitaneada pelo Chanceler da Comenda, Dr. Eugênio Ferraz, então Superintendente do Ministério da Fazenda em Minas Gerais. Trouxe este, para o lançamento da medalha da referida Comenda no Campo das Vertentes, a experiência de ter sido Chanceler e criador da primeira edição da Comenda Ambiental Estância Hidromineral de São Lourenço, criada um ano antes, em julho de 2010. Sobre a Comenda, vale ressaltar que ela nasceu através de um decreto conjunto dos Prefeitos de 3 Municipalidades: São João del-Rei, Tiradentes e Ritápolis. 

Meu primeiro contato com Dr. Roque, durante a realização da festa de entrega das Comendas na Fazenda do Pombal, berço do Tiradentes e do seu sonho de liberdade, foi, a um só tempo, um momento de congraçamento e de percepção de sua mineiridade contagiante. Mas não podia passar despercebido a qualquer observador mais atento, e este foi o meu caso, que sua atividade política lhe trouxera, por um lado, grandes alegrias, por outro, inevitáveis desilusões, “estas tanto mais amargas na medida em que agravadas pelos erros, pelas disfunções, pelas insuficiências da máquina judiciária eleitoral”, nas sábias palavras do ex-Ministro do STF, Dr. Francisco Rezek. (“Os sinos de Mariana”, in O Roque Camêllo que conheci, livro organizado por Mário de Lima Guerra, em 2019.) 

Outro momento inesquecível foi nosso reencontro no Seminário “Meandros da Inconfidência Mineira” patrocinado pelo IHG de São João del-Rei, em 12 de novembro de 2015, quando ele, com sua presença ilustre, prestigiou os confrades são-joanenses, sobretudo a mim que estava proferindo a palestra “Baptista Caetano de Almeida e seus projetos civilizatórios”. Só com o passar dos anos de nossa convivência, pude verificar que sua razão de ser eram seus projetos culturais para Minas grande, para os quais investia todo o seu prestígio pessoal e conhecimentos adquiridos ao longo da vida. Cabe relembrar aqui que um de seus últimos compromissos assumidos foi o de presidente da Comissão de Defesa do Patrimônio Histórico da OAB/MG. No dia da instalação da referida Comissão (21/10/2013), o Informativo “OAB-Minas Gerais”, de 22/10/2013 publicou a seguinte notícia: 

“Segundo Roque Camêllo, a Comissão já foi devidamente criada e instalada, sendo que será possível a posse dos membros assim que ela for completamente formada. Ele acrescentou que pretende convidar integrantes das seguintes subseções para fazer parte da Comissão: Mariana, Ouro Preto, Poços de Caldas, Governador Valadares, Congonhas, São João del-Rei, Tiradentes, Diamantina, Sabará, Serro, Paracatu, Minas Novas, Santa Bárbara, Barbacena, Montes Claros, Juiz de Fora, Uberlândia, Sete Lagoas, dentre outras. Roque Camêllo ainda salientou que o objetivo da Comissão é valorizar as raízes históricas do povo mineiro. ‘Preservar a história é não apenas reverenciar o passado, mas construir os caminhos que constroem o futuro. O povo que sabe de onde veio sabe traçar o seu próprio destino. Minas Gerais, não sendo o mais velho Estado da Federação, no entanto, é o Estado do equilíbrio nacional e representa os anseios de todo o povo brasileiro que prima por privilegiar o sentimento libertário a exemplo dos Inconfidentes’.” (texto transcrito no Informativo AVL nº 121, Ano XI, novembro de 2013) 
Da mesma forma, relembro aqui, com saudade, as palavras proféticas que Dr. Roque inseriu na seção de Agradecimentos do seu último livro “Mariana: Assim nasceram as Minas Gerais”, de 2016, lançado em homenagem aos 305 anos da elevação de Mariana à categoria de vila: 

O tempo foi exíguo para singrar as águas de Minas que não tem mar, mas é um oceano de Cultura e um continente de patriotismo.” 

Por serem por demais conhecidos tais projetos do Dr. Roque Camêllo em prol de Mariana, Minas Gerais e o Brasil, acho que não devo me alongar apresentando a relação completa de suas benemerências. Mas devo confessar que foi tão grande a nossa identificação, minha com a do notável marianense, orador consagrado e mestre pela sua cultura literária, jurídica, religiosa, filosófica e histórica, de que deu provas suficientes por onde passava, eis que, desde 2012, Dr. Roque e sua esposa Merania participaram com sua rica presença de todos os eventos culturais que desenvolvi nas Academias, mormente defesa de meus patronos no IHG de São João del-Rei e nas Academias de Barbacena, Formiga e Divinópolis, esta última em 14 de dezembro de 2016, quando já se encontrava fisicamente debilitado. Também devo a Dr. Roque Camêllo o convite ao duo constituído por mim ao piano e minha esposa Rute Pardini, cantora lírica, para participar das comemorações dos 40 anos do Museu da Música de Mariana, ocorridas em 6 e 7 de julho de 2013, quando pudemos observar a alegria contagiante, o brilho e o esforço de todos os envolvidos nos festejos. Finalmente, cabe aqui mencionar minha gratidão por terem Dr. Roque e Merania prestigiado a apresentação do Coral Trovadores da Mantiqueira quando da segunda récita da cantata O Peregrino de Assis, da autoria do regente frei Joel Postma o.f.m. e em meu acompanhamento ao piano/órgão, em 30 de novembro de 2013. 

Entretanto, não posso me furtar a trazer ao conhecimento público que um de seus extremos atos de vontade, à véspera de seu óbito, em 17 de março de 2017, foi o de convidar-me para tomar parte do enriquecedor convívio com os Acadêmicos deste sodalício marianense, convite este que foi imediatamente aceito por mim, esperando trabalhar sob seu comando durante muitos anos vindouros. 

Quis o Criador que assim não fosse... Dr. Roque, no convite a mim endereçado, expressou o desejo de que eu tomasse posse na Cadeira nº 2, cujo patrono é Dr. Francisco de Paula Cândido, seu antepassado mais famoso, atribuindo a mim qualidades que não possuo: acreditava ele que apenas eu, pesquisador de História e Genealogia, seria capaz de fazer uma apologia à altura do grande mestre e médico do Império. 

Tenho ainda a dizer que, desde que foi informada desse desejo de Dr. Roque por intermédio dos amigos escultor Hélio Petrus e jornalista Merania de Oliveira, a nova Presidente eleita da Casa de Cultura e Academia Marianense de Letras Hebe Rôla manteve o desejo expresso de Dr. Roque de ter-me como membro desta Academia, honrando, com sua tradicional elegância e espírito acolhedor, o compromisso de Dr. Roque para comigo e, ao comunicar-me esse fato, ela informou-me que teria o prazer de dar-me posse na Academia Marianense como o último ato de sua gestão à frente desta excelsa e nobre Casa de Cultura. Que assim não seja e que possamos ser comandados por esta grande pedagoga e parceira fiel de Dr. Roque em todos os momentos. 

Portanto, à Profª Hebe, escritora, ensaísta, poetisa e folclorista, criadora e coordenadora da Academia Infanto-Juvenil de Letras de Mariana e criadora e promotora do “Cantando Alphonsus”, em parceria com o Museu casa Alphonsus de Guimaraens, sou eternamente grato pela amabilidade em me acolher em meio a esta plêiade de literatos reunidos na “Primaz de Minas”, Mariana, que acumula os títulos de primeira Vila, Cidade e Capital de Minas Gerais, tendo, além disso, sediado a primeira Diocese de Minas Gerais (ereta no dia 6 de dezembro de 1745). 

A seguir, passo a comentar todos os discursos que fazem parte deste livro. 

No seu primeiro discurso, proferido em 8 de abril de 2016, durante um jantar de confraternização oferecido no restaurante da Pousada Contos de Minas, o autor Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro ressalta as festividades que presenciou na Casa de Cultura-Academia Marianense de Letras, em homenagem aos 305 anos da criação da Vila de Mariana, representadas por dois eventos principais: o lançamento do livro “Mariana: Assim nasceram as Minas Gerais”, da autoria de Dr. Roque Camêllo, qualificando-o de “um duplo e importante registro em palavras e imagens”, e a sua participação no descerramento de placa alusiva à comemoração da referida data histórica. Neste pronunciamento, que o autor fez, considerou que o episódio que acabara de presenciar lembrou-lhe outro de igual relevância e motivo de alegria: os festejos ocorridos em Mariana em novembro de 1748, registrados no livro “Aureo Throno Episcopal” e organizados para recepcionar o primeiro Bispo de Mariana, Dom Frei Manoel Ferreira Freire da Cruz, que chegou a Mariana em outubro vindo do Maranhão, depois de exaustiva e corajosa viagem que durara quatorze meses. Essa espetaculosa aventura pelos sertões foi relatada em pormenores no seu ensaio histórico Aureo Throno Episcopal, “escrito em homenagem ao professor, historiador e escritor marianense Roque Camêllo” e integrante do livro “Hipérboles” (Itaúna: Editora Ramos, 2017, p. 199-218). Às páginas 213-4 do referido ensaio consta a seguinte citação de Dr. Roque Camêllo que transcrevo:

“Durante o longo percurso de quatro mil quilômetros, sofreu enfermidades e quase morreu em travessia de rios caudalosos. O Bispo foi recebido pelas autoridades e pela população com grandes festejos por diversos dias. Em Portugal, por iniciativa do Cônego Francisco Ribeiro da Silva, aqueles famosos acontecimentos foram registrados no livro “Aureo Throno Episcopal”, publicado em 1749. Além do relato, trazia coletânea de peças literárias alusiva aos festejos com poesias e discursos. Falava-se numa Academia cultista de Letras ou Academia do Áureo Throno, um prenúncio das futuras Academias de Letras no Brasil. Embora Dom Frei Manoel da Cruz tentasse evitar que os diocesanos se excedessem, cumpriu-se em Mariana um variado programa de comemorações públicas.” (CAMÊLLO, Roque: Mariana: Assim nasceram as Minas Gerais. Belo Horizonte: Roma Editora, 2016, p. 72) 

O segundo discurso foi proferido em 26 de novembro de 2016, no restaurante do Grande Hotel de Ouro Preto, diante dos anfitriões Dom Francisco Barroso Filho, Dr. Roque Camêllo e jornalista Merania de Oliveira, que, naquele encontro, recepcionavam comitiva integrada pelas seguintes entidades de Itaúna e Cordisburgo, numa visita festiva e cultural a Mariana e Ouro Preto: Academia Itaunense de Letras – AILE, Academia Cordisburguense de Letras – Guimarães Rosa – ACLGR, Loja Maçônica Itaúna Livre – LMIL e Confraria dos Amigos do Vinho de Itaúna – CAVI. Os representantes dessas Instituições convidadas acordaram em conceder ao autor, na qualidade de membro efetivo de todas elas, o uso da palavra para bem representá-las naquela solenidade. 

O terceiro discurso foi proferido em 27 de novembro de 2016, após uma tournée pela cidade de Mariana, que foi coroada pela visita da comitiva de Itaúna e Cordisburgo ao Museu da Música de Mariana, não só “Casa de arquivos, estudos e pesquisas”, mas também de restauração e difusão de partituras, de preservação e audição de músicas inéditas, de memória, arte e educação, por fim, local de encontros temáticos na cidade de Mariana. 

O quarto discurso foi pronunciado, a convite dos familiares de Dr. Roque Camêllo, após a Missa de sétimo dia do passamento do seu parente, na igreja de Nossa Senhora do Carmo, no dia 24 de março de 2017. Dr. Arnaldo utilizou um trecho do Sermão da Sexagésima de Pe. António Vieira pregado na Capela Real no ano de 1655, em que o grande orador sacro português lembra a seus ouvintes a diferença entre ouvir palavras e ver obras, concluindo que “a nossa alma se rende muito mais pelos olhos que pelos ouvidos”. Em seguida, mostrou como Dr. Roque, seminarista que foi em Mariana, ouviu e recordava-se sempre dos ensinamentos de Vieira que lhe calaram fundo na alma e na memória. E, finalmente, reconheceu que Dr. Roque praticava com a maior discrição a caridade que todos conheciam, não através de sua boca, mas de suas obras, como ficou evidenciado nos muitos trabalhos em prol de Minas e de Mariana, da Catedral de Mariana e da igreja de Nossa Senhora do Carmo. 

No discurso seguinte, o quinto, Mário Mafra, diretor administrativo e financeiro da Editora do Brasil S/A, aparteou Dr. Arnaldo na igreja Nossa Senhora do Carmo na mesma data de 24 de março de 2017, após ouvir as corretas palavras do orador que o precedeu, reafirmando as grandes qualidades de Dr. Roque Camêllo: a de orador e incansável trabalhador. A seu ver, como bom discípulo de Padre António Vieira, Dr. Roque Camêllo aprendeu a importância de “falar bem, para que as palavras alcancem os ouvidos e trabalhar muito, para que entrem pelos olhos e alcancem a alma.” Permitiu-se, entretanto, acrescentar outra característica no modo de agir de Roque Camêllo, fruto de sua experiência, isto é, “o profundo respeito que ele nutria pelas opiniões contrárias às suas. Em outras palavras: longe de se insurgir contra elas, Roque Camêllo reverenciava a divergência. (...)” 

O sexto discurso foi pronunciado por Dr. Arnaldo, que fez parte de um elenco de brilhantes oradores que enalteceram a fundação do Instituto Roque Camêllo, sob a presidência do Desembargador Caetano Levi Lopes, solenidade realizada no Teatro do Hotel da Providência em Mariana, ocorrida um ano após o passamento do homenageado, ou seja, no dia 18 de março de 2018, ocasião em que foi dada posse à Diretoria da entidade e nomeados os Conselheiros Honorários, tendo como elemento norteador da ação do novo Instituto o sonho que inspirou toda a vida e obra de Dr. Roque, que ele, em vida, enunciou da seguinte forma: 

As pessoas se distanciam, cada vez mais, de sua verdadeira função social e divina, que é a de doarem-se uns aos outros com aquilo que elas têm de melhor. Não é o que elas possuem, mas o que elas são. Gostaria de criar uma Instituição que tornasse isso possível, gerando o que chamaria de uma CORRENTE DO BEM. Desejo que esta entidade seja para ajudar o ser humano a SER e não a TER, além de ensinar as pessoas a preservarem o patrimônio histórico e a natureza. 
São esses os princípios norteadores do Instituto constituído com o nome do homenageado Dr. Roque Camêllo, criado pelo esforço gigantesco de sua esposa, a jornalista Merania Aparecida de Oliveira, com a finalidade de honrar a sua memória e materializar o seu credo. Encerrando seu discurso, Dr. Arnaldo declamou o poema, em homenagem a “Dr. Roque Camêllo”, do poeta divinopolitano João Carlos Ramos, o qual traduzi para as sonoras línguas inglesa e francesa, a pedido do autor deste livro. Abre o poema o verso “O vi apenas uma vez e não precisei vê-lo mais...”. Refere-se o poeta à ida do homenageado, acompanhado de sua esposa Merania de Oliveira, no dia 14 de dezembro de 2016 a Divinópolis, para prestigiar a posse deste prefaciador na Academia Divinopolitana de Letras, quando foi empossado membro efetivo ocupante da Cadeira nº 11 patroneada por Padre António Vieira. Ali o poeta divinopolitano se encontrou com o orador marianense a primeira vez, experiência marcante que não se repetiria mais. Infelizmente. 

O sétimo discurso foi proferido por Prof. Raimundo da Silva Rabello, membro do IHG-MG, da Academia Itaunense de Letras e autor do livro “O payz do Pitanguy (Séculos XVIII-XIX): ouro, rebeldia e expansão regional”, na noite do sexto dia, véspera do encerramento da Semana Guimarães Rosa, evento solene patrocinado pela Academia Itaunense de Letras - AILE (10 a 16 de setembro de 2018) em homenagem aos 110 anos de nascimento do grande escritor cordisburguense, João Guimarães Rosa (1908-2018). Em sua fala, aplaudiu, homenageou e celebrou o saudoso cultor das letras e das artes, o inolvidável professor e intelectual Dr. Roque Camêllo. 

Inicialmente, relembrou a agradável convivência deles durante o longo curso de Política e Estratégia pela doutrina da Escola Superior de Guerra (ESG), através de seu braço civil durante 1985. Ambos participaram da primeira turma de estagiários da Nova República que se intitulou “Turma Presidente Tancredo Neves” por ter escolhido para seu patrono o falecido Presidente mineiro que se destacou como um político conciliador, o que lhe valera em vida o epíteto de “linha auxiliar do governo”, quando a ESG trocou seu discurso da segurança nacional pela ênfase na conciliação política e no desenvolvimento social. 

Sobre sua convivência no IHG-MG citada no seu discurso, cabe ainda citar que Dr. Roque Camêllo tomou posse como sócio efetivo nesse sodalício em sessão solene do dia 20 de novembro de 2010, na Cadeira nº 66, patroneada pela Princesa Isabel, a Redentora. Seu discurso de posse foi uma apoteose para todos os que estavam presentes, daquela espécie que marca os anais de uma Casa de História, relembrada até hoje pela enorme comoção que provocou em todos os confrades. Aí estavam bem caracterizadas a oratória inconfundível do mestre e sua propensão a abordar os fatos à luz da História, que vão desabrochar, de forma plena e candente, na sua última obra “Mariana: Assim nasceram as Minas Gerais” (2016). A posse de Dr. Roque no IHG-MG foi lembrada pelo vice-presidente do IHG-MG, Prof. Raymundo Nonato Fernandes, em pronunciamento feito a posteriori, que a considerou a segunda grande manifestação de caloroso apoio que Dr. Roque recebeu e assim se expressou sobre a presença do novo confrade: 

“(...) Por tudo que fez, que faz e que é, o Doutor Roque José de Oliveira Camêllo, na sua terra, entre vultos históricos de grande notoriedade é hoje o maior homem vivo de Mariana. Por isto, a interrupção de seu mandato de prefeito na sua adorada Mariana causou perplexidade a toda a sociedade mineira. Numerosas foram as manifestações organizadas em sua solidariedade e apoio enquanto se aguardam as festas de seu retorno ao cumprimento do mandato interrompido, tantas eram as realizações esperadas de sua competência e brilho como grande benfeitor de sua querida terra. As duas últimas manifestações de apoio a Roque Camêllo se deram em maio e novembro deste ano. A primeira foi nos salões elegantes do Automóvel Clube de Belo Horizonte promovida pela Diretoria Regional da Associação Universitária Internacional – AUI/MG sob a direção do Meritíssimo Juiz Doutor José Adalberto Coelho (...) A outra grande manifestação de caloroso apoio se deu em 20 de novembro no centenário Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, na soleníssima sessão de sua posse como sócio efetivo da venerável Instituição. Não se tem notícia de uma solenidade tão grandiosa na memória recente desse renomado Instituto. As crianças de sua terra vieram cantando. Formavam o Coral “Tom Maior” de Mariana sob a presidência do Dr. Efraim Rocha. Presentes numerosas autoridades civis e religiosas, Bispo, Desembargadores, professores, escritores, advogados. Ouviram-se discursos de superior cultura jurídica e histórica. Foi um evento emocionante e emocionado para todos e inesquecível às crianças e inúmeros jovens estudantes da terra de Roque Camêllo que jamais esquecerão as emoções daquele dia. (...)” 
Ao concluir a exposição sobre a história de vida do homenageado, Prof. Raymundo Nonato Fernandes vale-se das palavras de Garcia Lorca para arrematar quando diz: 
“Roque José de Oliveira Camêllo, que se compõe ao lado de celebrados e ilustres filhos de Mariana, honra essa tradição de um berço nobre que representa, engrandece e nos faz lembrar aquele ser humano a que se referia Garcia Lorca ao dizer: vai demorar muito para nascer, se é que nasce, um homem como ele. ¹ 
O ensaio “Aureo Throno Episcopal”, de Dr. Arnaldo, que também consta deste livro de discursos, “escrito em 28 de agosto de 2017 em homenagem ao professor, empresário, intelectual, humanista, historiador e escritor marianense Roque Camêllo”, foi publicado no livro “Hipérboles”, organizado por Toni Ramos Gonçalves, Itaúna: Editora Ramos, 2017, p. 201-218 e descreve analisando o livro com idêntico título de 1749, onde são relatadas a suntuosa cerimônia barroca celebrada em novembro de 1748 para comemorar a criação do Bispado de Mariana e a viagem que o primeiro bispo fez do Maranhão até Mariana (que já tinha sido elevada a Cidade desde 1745) para assumir o seu posto. Depois de longa viagem iniciada em 3 de agosto de 1747, Dom Frei Manoel Ferreira Freire da Cruz chegou a Mariana a 15 de outubro de 1748, para ali iniciar seu pastoreio. Fazendo farta utilização de bibliografia historiográfica especializada, o autor revela que a opulenta festa barroca “Aureo Throno Episcopal” foi precedida por outra, “Triunfo Eucaristico”, celebrada em maio de 1733, e especula sobre as razões que levaram a Igreja e o Estado português a tomarem a decisão de transferência tão esdrúxula.

Outro ensaio interessante de Dr. Arnaldo se intitula “Bolsos cheios, barriga vazia: ouro e fome em Minas Gerais”, texto que serviu de base para proferir palestra no VII Congresso promovido pela Associazione Italiana di Storia Urbana-AISU, realizado de 2 a 5 de setembro de 2015, na Universidade de Pádua, na Itália. Foi publicado na coletânea “Olhares Múltiplos”, organizada por Toni Ramos Gonçalves, Itaúna: Gráfica Daniela, 2016, p. 61. Através de farta bibliografia sobre culinária mineira, o autor descobriu que nossos antepassados fizeram uso de seus saberes e o que a natureza podia oferecer-lhes para buscar na colheita, na caça e na pesca os ingredientes necessários à sua sobrevivência. Dessa forma, legaram um cardápio variado que materializa suas tradições e cultura. Souberam transmutar saberes em sabores que nos cabe degustar e divulgar a Minas Gerais, ao nosso País e ao mundo. 

Consta também do presente livro o pronunciamento do Prof. Raimundo da Silva Rabello, datado de 17 de dezembro de 2014, diante de luzidia plateia no distrito de Leandro Ferreira, sua terra natal, à qual compareceu para o lançamento de seu livro “O Payz do Pitanguy” coeditado pela Universidade de Itaúna-UIT. Em sua fala, Prof. Rabello esclareceu que seu livro se compunha de três partes: Pitangui, Leandro Ferreira e Conceição do Pará. 

Deu relevo aos seguintes pontos ocorridos em Pitangui: a Rebelião de Domingos Rodrigues do Prado, a Devassa da Inconfidência Mineira, Padre Belchior e D. Pedro I e, por fim, Gustavo Capanema, ministro da Educação de Getúlio Vargas e deputado e senador. En passant, tratou também de duas famigeradas “heroínas”: Joaquina de Pompéu e Maria Tangará, personagens de acirradas disputas entre admiradores e detratores, quase 100 anos depois de falecidas, o que evidencia a importância que representaram enquanto vivas. 

De sua terra natal, o autor acentua em sua fala as presenças do fundador Leandro Ferreira (de Siqueira), da Baronesa Isabel de Sam Payo e do Santo das Terras do Poente (ou Padre Libério). 

De Conceição do Pará, mereceram especial destaque do orador: o Santuário Nossa Senhora da Conceição, as trilhas de bandeirantes e estradas reais (dentre as quais mencionou a Picada de Goiás, que, passando por Pitangui, encurtou a distância Pitangui-São Paulo). 

Embora o livro “O Payz do Pitanguy” documente de forma abrangente dois séculos de história, em seu pronunciamento, em respeito às pessoas e ao tempo, o autor elegeu os pontos mais relevantes e o fez com invulgar maestria, merecendo o aplauso geral. 

Para encerrar o livro com chave de ouro, Dr. Arnaldo achou por bem transcrever um ensaio de Dr. Roque Camêllo que foi publicado originalmente na revista Justiça e Cidadania, edição 133, setembro de 2011, p. 48-50, intitulado “Inconfidente Cláudio Manoel da Costa: primeiro advogado assassinado em Minas”. ²

Começa seu artigo informando sobre a naturalidade marianense do poeta, já que nasceu em Mariana em 5 de junho de 1729. ³ Como, com a descoberta do ouro em Minas Gerais, dois séculos após o descobrimento do Brasil, houve intenso fluxo migratório, houve muitos conflitos na região mineradora, podendo essa época ser resumida como um tempo em que o direito da força se sobrepunha à força do direito. Ao constatar esse fato, citou muitas refregas como a Guerra dos Emboabas, que resultou na expulsão dos paulistas (bandeirantes) da região de conflito, ali se estabelecendo os “forasteiros”, estes representados por hordas de portugueses, nordestinos, mineradores clandestinos (sem a titularidade das jazidas descobertas) e até figuras do clero. 

Como o pai do poeta, João Gonçalves da Costa, era português, portanto emboaba, se fixou no sítio da Vargem no território da Vila do Carmo que, junto da vizinha Vila Rica, se constituía no mais significativo e importante centro urbano e aurífero da Capitania. Embora fosse de família modesta em Portugal, João Gonçalves conseguiu amealhar um razoável patrimônio, suficiente para dar aos filhos certo grau de instrução, inclusive mantendo-os em Coimbra, oportunidade de que Cláudio usufruiu. Após preparar-se no Colégio Jesuíta do Rio de Janeiro, foi admitido, em 1º de outubro de 1749, na Universidade de Coimbra, cursando Cânones, pois, pensava em ordenar-se sacerdote, desejo não realizado. 

Voltando a Minas, em 1754 é nomeado almotacé junto à Câmara de Mariana. Em 1758 toma posse como terceiro vereador da Câmara de Vila Rica. Desde 1759, o poeta manteve uma relação permanente com Francisca Arcângela de Souza, nascida escrava e alforriada quando deu à luz o primeiro filho de Cláudio, com a qual teve cinco filhos. A seguir, teve uma carreira brilhante para a época: diz Dr. Roque que 

“sua vida é um rosário de títulos e funções públicas de alta relevância, chegando a juiz das demarcações de sesmarias. O rei lhe concedeu pátria comum e o Hábito de Cristo, premiando-o pelos relevantes serviços prestados ao Reino. (...) Cláudio foi um dos profissionais do Direito mais requisitados nas Câmaras de Mariana e Vila Rica, havendo, ainda hoje, registro de sua atuação em dezenas de processos.” 
Consta ainda que 
“advogava para os contratadores. Tais funções lhe rendiam ótimos honorários. Com tanta renda, proveniente de sua profissão e da atividade mineradora, tornou-se credor de extraordinária clientela de cujo rol fazia parte o Visconde de Barbacena.” 
Como era figura respeitada e reverenciada no século XVIII, natural seria se fosse procurado para integrar o grupo discordante dos métodos abusivos na cobrança dos tributos, em um momento em que as minas se esgotavam visivelmente. Em sua companhia havia jovens bacharéis como Inácio José de Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga, que já participavam da conspiração. Sem entrar no assunto da Inconfidência Mineira, Dr. Roque, entretanto, entende que ele, o mais velho e ilustrado de todos, foi o único que morreu antes de ser sentenciado, com evidências irrefutáveis de assassinato, e o único inconfidente que não foi levado preso para o Rio de Janeiro. Os Autos de Devassa deram-lhe o fim por suicídio, mas pesquisadores sérios como Tarquínio José Barbosa de Oliveira e Ivo Porto de Menezes convergem pelo assassinato. Dr. Roque conclui que 
“há indagações que se respondem por si próprias. Por que o aprisionaram em Vila Rica e não o conduziram para o Rio de Janeiro como os demais? Barbacena o queria por perto para controlar-lhe a fala perigosa quanto a seu governo e à sua simpatia pelo movimento?” 
Não se pode esquecer que 
“o Visconde de Barbacena é o mesmo que Cláudio tinha no rol de seus devedores e que interceptara uma valiosa peça, um cacho de bananas em ouro maciço, enviado por Hipólita Jacinta Teixeira de Mello a D. Maria I, pedindo clemência a favor de si e de seu marido, o inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes.” 
Dr. Roque toma a autoridade do historiador Porto de Menezes, analisando os termos da perícia feita no cadáver de Cláudio Manoel, o qual destrói a possibilidade de suicídio com algumas arguições e a evidência, deixando clara a tese do assassinato, de ter compulsado o livro de assentos dos Irmãos da Irmandade de São Miguel e Almas, aberto em 1741, na Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Às fls. 23, consta a inscrição de Cláudio na Irmandade e, à margem do assentamento, “sufragado com 30 Missas e pago tudo à Fazenda Real ao tesoureiro Faustino Vieira de Souza”. Ora, como seria isso possível se ao suicida eram negados os sufrágios bem como a sepultura eclesiástica? Dr. Roque então conclui: 
“A celebração dos sufrágios é a prova inconteste de que Cláudio Manoel da Costa fora assassinado. Além do mais, há o reconhecimento oficial pelo poder civil quando se vê documentado que a Fazenda Real arcou com as despesas dos ditos sufrágios.” 

Deste modo, com sete discursos e quatro ensaios, de sua lavra e convidados, o Dr. Arnaldo de Souza Ribeiro sintetiza o trabalho e presta relevante tributo ao grande marianense Dr. Roque José de Oliveira Camêllo. 

Francisco José dos Santos Braga
São João del-Rei, 21 de abril de 2019, no 227º aniversário da morte do são-joanense Joaquim José da Silva Xavier, Herói Cívico da Nação Brasileira.


I.  NOTAS EXPLICATIVAS



³  É fato certo ter Cláudio Manoel da Costa sido batizado a 29 de junho de 1729, conforme consta de registro a folhas 110-verso e 111 do 2º livro de assentos dos batizados da freguezia do Ribeirão do Carmo, onde se lê: 
 
Crédito pelas imagens: genealogista José Passos de Carvalho
 
"A vinte e nove de Junho de mil e sete centos e vinte e nove, na Capella de Nossa Senhora da Conceição do Sitio da Varge do Itacolomy desta fregª de N. Snrª da Conceição, Matriz da Villa do Carmo, de licença minha bautizou o Padre Manoel da Sylva Lemos, Capellão da Capella do Morro de Matacavallos desta fregª, a Claudio, filho legítimo de João Gonçalves da Costa e de sua mulher Tereza Ribrª desta fregª. Forão padrinhos: João Francisco de Oliveyra e Anna Ribrª da Luz, mulher de Victorino de Barros, da freguesia de Guarapiranga, de que fiz este assento. (Assignados): O Vigrº Joseph Simões - Manoel da Sylva Lemos". 
Para habilitar-se mais tarde à carreira sacerdotal (projeto que abandonou), Cláudio redigiu textualmente, no requerimento inicial:  "Diz Claudio Manoel da Costa filho legitimo de João Gonçalves da Costa e de Theresa Ribeyra de Alvarenga da Vargem do Itacolomi freguezia de Sª de Marianna e do mesmo Bispado..." 
Com base nessas evidências, portanto, não há qualquer fundamento para Ouro Preto (então Vila Rica) reivindicar a glória de ter dado o berço ao seu inesquecível cantor.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

A NOÇÃO DOS HYPERBÓREOS: SUAS VICISSITUDES DURANTE A ANTIGUIDADE

Por Roger Dion
Traduzido do francês por Francisco José dos Santos Braga

Dedico este trabalho literário ao saudoso Professor Mário Celso Rios (✰ Barbacena, 1952 - ✞ Barbacena, 13/10/2020), 2º presidente da Academia Barbacenense de Letras cuja estrela brilhou durante 27 anos (1993-2020) como grande incentivador das letras na comunidade cultural de Barbacena, da Região das Vertentes e de Minas Gerais, ensinando o poder e a magia das palavras e sempre dirigindo e orientando ex cathedra e com seu espírito de luz as tertúlias e atividades literárias de forma sempre cavalheiresca que enobrece o Brasil a partir de Barbacena.


A propensão dos poderosos do mundo, condutores de povos ou chefes de exércitos, de inclinar na direção favorável a seus desígnios ou a seu prestígio as representações da geografia, teve, como era natural, seus efeitos mais sensíveis sobre as dessas representações que tinham um caráter mítico ou esquemático. 

O caso dos Hiperbóreos tem o interesse de mostrar que o próprio pensamento científico sofreu a influência do que foi dito acima, pelo menos em certas abordagens. 

O nome puramente grego de Hyperbóreos traz em si a marca duma reflexão que se praticou, bem antes da idade clássica, sobre um dos mais tocantes entre os fenômenos físicos próprios à natureza mediterrânea: este vento frio do Norte que, sob as denominações populares modernas de bora ou de mistral — os antigos Gregos o chamavam Bóreas — resvala de vez em quando para o litoral passando rente ao sol com uma tal violência que o poeta Calímaco ¹ dizia ser capaz de tombar muralhas. 

A gente se imagina que, avançando contra esse vento, na direção do interior do continente, como se subisse contra a corrente, acabaria por atingir os locais onde ele nasce, sendo possível ter uma ideia dos locais com o aspecto de montanhas comunicando à atmosfera a friagem de suas neves. Os Gregos deram a essas montanhas setentrionais imaginárias o nome de Rípeas, já presente na poesia arcaica ² e considerado pelo gramático Servius ³ como formado do termo grego ῥιπή que exprime a ação de lançar. Do alto dos montes Rípeos, Bóreas era de alguma forma lançado na direção das planícies mediterrâneas. 

Essa figura, uma das mais antigas que produziu a geografia mítica dos Gregos, foi também uma das que resistiram pelo mais longo tempo aos progressos do conhecimento objetivo. Ainda na época imperial romana, arranja-se um lugar para os montes Rípeos na descrição da Europa. Reencontramo-los no século II d.C. na Geografia de Ptolemeu (III, 5, 10), relegados é verdade às regiões muito mal conhecidas onde esse sábio situava, ao norte do Palus Meotide , a nascente do rio Tanaïs. Um geógrafo latino que precede Ptolemeu cerca de um século, Pomponius Mela, contemporâneo do imperador Cláudio, permanece fiel à ótica tradicional quando imagina esses montes Rípeos orientais lançando, na direção do litoral meridional da Europa, as águas do Tanaïs: “Tanais ex Rhipaeo monte dejectus... praeceps ruit. ” 

Mapa múndi segundo Pomponius Mela (ca. 40 d. C.)

 

Era uma representação menos afastada das realidades geográficas que a de um “outro mar”, ἡ ἑτἐρα θάλασσα — assim a designa um historiador grego contemporâneo de Heródoto — banhando ao Norte o contorno do continente europeu, e se coloca a questão de saber como tal noção tinha podido brotar no espírito dos Gregos dos tempos pré-clássicos, apesar de nada, no universo que lhes era familiar, ser de natureza a lhes fazer imaginar costas marítimas setentrionais opostas às do Mediterrâneo. 

Esse traço da configuração geral da Europa só pôde ter sido levado a seu conhecimento na ocasião dos contatos que tiveram com estrangeiros que haviam visto com seus olhos o Báltico ou o mar do Norte. 

Contatos dos Helenos com o mundo setentrional na época do comércio do âmbar 

Uma orientação útil à nossa pesquisa dá Heródoto (III, 115-116) quando ele, depois de ter rejeitado como não fundada a crença na existência dum rio Erídano “desembocando no mar setentrional donde, segundo se diz, viria o âmbar”, bem como na existência de “ilhas Cassitérides donde nos viria o estanho”, afirma como um fato incontestável que o estanho e o âmbar “provêm de uma extremidade do mundo”. 

Com efeito, o estanho era de proveniência britânica, enquanto o âmbar era recolhido da costa oeste da Jutlândia, e sobretudo na costa do mar Báltico, no sopé dos penhascos ocidentais da península do Samland (ou Sambia), próximo à foz do Vístula.

Para atingir as costas mediterrâneas, essas matérias preciosas deviam atravessar, de um lado ao outro, o continente europeu, e isso desde tempos que, pelo menos no que diz respeito ao âmbar, remontam à segunda metade do segundo milênio antes de nossa era. 

No período heládico médio (2.100-1.580 a.C.), observa M.-P. Nilsson , nenhum traço de âmbar vindo do Norte ainda não aparece na Grécia. Ao contrário, esse âmbar fica abundante a partir de heládico recente ou micênico (1.580-1.200). Três dos túmulos escavados em poços sobre a acrópole de Micenas e um dos túmulos com cúpula de Pylos de Nestor forneceram centenas de pérolas de âmbar ¹⁰. O âmbar está descrito na Odisseia ¹¹ como um objeto de adorno muito cobiçado. 

O fato de que os Helenos recebiam o âmbar recolhido das costas dos mares setentrionais não implicava necessariamente que eles conhecessem a situação das jazidas fornecedoras dessa matéria. A história do comércio oferece mais de um exemplo do caso em que os usuários e os consumidores duma coisa comprada consideraram essa coisa como originária não do país do qual ela era recolhida ou criada, mas do país onde se encontravam os mercados que a arranjavam para eles. Este foi o caso dos Gregos para o âmbar, que a lenda representava como proveniente da solidificação das lágrimas vertidas pelas Helíades, irmãs de Fáeton, o imprudente condutor da carruagem do Sol, quando elas prestavam as honras fúnebres a seu irmão fulminado por Zeus e precipitado no rio Erídano ¹² (esse nome que Heródoto assinala como designando um rio do litoral setentrional da Europa, se ligava também, na linguagem poética ¹³ , ao curso do rio Pó). Apolônio de Rhodes na parte de suas Argonáuticas (IV, 505-506 e 596-611), onde lembra essa lenda, situa, perto da litoral adriático onde desemboca o Erídano, uma fabulosa ilha Électris (ilha do âmbar) que é a figuração poética dum mercado do âmbar. O fundo do golfo adriático era de fato, na antiguidade grega, um dos principais locais de carregamento ¹⁴ do transporte de barcos por terra, pelos quais o âmbar coletado nos litorais setentrionais da Europa era encaminhado para o mundo mediterrâneo. 

Esse tráfego teria podido acontecer do mesmo modo sem que os Helenos tivessem contatos com os fornecedores ou exploradores das jazidas de âmbar. Heródoto narra (IV, 33) que, de seu tempo, as pessoas de Delos se lembravam de que oferendas, outrora enviadas desde o Norte da Europa até aquela ilha famosa, celebrada no mundo antigo como o lugar de nascimento de Apolo ¹⁵, eram sucessivamente assumidas pelos povos em cujo território elas tinham que atravessar para atingir Delos, ao final de uma série de etapas, estando uma dessas últimas situada na costa adriática. Joseph Dechélette ¹⁶ pensa que, da mesma maneira, vários povos se revezando ao longo do caminho metiam a mão sucessivamente no transporte de âmbar do Norte em direção aos países mediterrâneos. 

Mas Heródoto disse também na mesma passagem que, antes que fosse praticado esse modo de encaminhamento, os próprios remetentes setentrionais das oferendas destinadas ao santuário de Delos as tinham acompanhado até o término da viagem, e que naquela ocasião eles tinham periodicamente enviado delegações aos habitantes de Delos, às quais estes últimos davam o nome de Perphéres

Plínio o Velho, classificando de fabulosas várias das coisas estranhas que se narrava sobre os homens do Norte, achava seus envios de oferendas à Delos, como uma realidade que ele não estava autorizado a colocar em dúvida. ¹⁷

Não podemos em todo caso rejeitar a priori a ideia de que, nos tempos muito anteriores à idade clássica grega, os Helenos tenham tido relações diretas com os portadores da civilização superior, que, na idade do bronze, floresceu em Jutlândia bem como nas ilhas dinamarquesas, das quais o Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague, conserva testemunhos notáveis. ¹⁸

O fato de que objetos votivos provenientes do Norte tenham sido levados, de uma borda a outra da Europa, até Delos para aí serem apresentados como oferendas rituais prova que essas relações se desenvolveram tanto no plano das trocas de crenças e de ideias quanto no da economia. Nos tempos proto-históricos, na parte oriental da planície do Pó e principalmente em Veneza ¹⁹, nos países cujos povos detinham os principais mercados do âmbar, aparecem, reveladas pela arqueologia, representações míticas do cisne e do disco solar, cujo análogo se acha na outra borda da Europa, nos países cujos povos detinham as regiões produtoras do âmbar ²⁰. Na mitologia grega da idade clássica, a lembrança desses antigos elos cultuais está conservada pela lenda dum Apolo migrante, deixando periodicamente ²¹ a Grécia para ir permanecer entre os habitantes do mar setentrional e retornar de lá montado num cisne ou num carro aéreo rebocado por um bando de cisnes. ²²

Dos povos do Norte aos Helenos, a comunicação de certas atitudes religiosas foi junto com a transmissão de mais de uma noção geográfica. Não se saberia, sem referência a essas antigas relações, explicar o fato de que Homero ²³ tenha podido imaginar noites de verão tão breves que um pastor capaz de prescindir do sono (ἄυπνοϛ) não pararia de ali ver bastante claro para guardar, durante vinte e quatro horas sem interrupção um rebanho de bois, depois um rebanho de carneiros, e ganhar assim duplo salário. 

E sobretudo os Gregos ficaram sabendo, no contato de seus visitantes vindos do Norte, que a orla setentrional do mundo era uma costa marítima habitável. A imagem que eles formavam do universo deixava então de ser demarcada, do lado do Norte, pelos montes Rípeos. Ela se enriquecia de um novo domínio que era o espaço ocupado pelos povos de além dos montes Rípeos. 

O fato de que, na época de Pausânias (V, 7, 8), por sua referência ao poeta Olen ²⁴, nos autoriza a considerar como anteriores à história, os Gregos deram a esses povos o nome de Hyperbóreos cujo sentido era claro. Os Hyperbóreos, explica Diodoro de Sicília (II, 47), são “assim chamados porque vivem além do ponto de onde sopra Bóreas”, quer dizer, além desses imaginários montes Rípeos sobre os quais se supunha nascer Bóreas. Heródoto (IV, 36) se recusa, com reserva, a considerar esse nome de Hyperbóreos como a autêntica denominação dum povo além do helênico, que se denuncia ele próprio como uma invenção grega. Mas ele não pode deixar de utilizá-lo por falta de possuir um outro termo à sua disposição, quando ele quer (IV, 33-35) informar seu leitor das memórias que se guardavam em Delos de antigas relações que, tomando forma de remessas rituais de oferendas em relação com a comemoração do nascimento de Apolo, tinham se estabelecido outrora entre os povos do Norte e a Grécia. Era também sob o nome de Hyperbóreos que a mitologia designava os povos longínquos, junto aos quais supostamente Apolo permanecia em estadas periódicas ²⁵

Situação geográfica dos Hyperbóreos 

Criada para exprimir a ideia do extremo Norte, o nome de Hyperbóreos foi de fato, na sua acepção primeira, aplicado pelos antigos a todos esses povos europeus que eram considerados como os mais afastados tanto na direção do Norte quando nas do Noroeste ou do Nordeste. Pôde assim servir para designar povos que, na nomenclatura geográfica moderna, não seriam classificados entre os nórdicos. 

É o que mostra, entre outros exemplos, a maneira com a qual se exprimem Heródoto e Píndaro na alusão que fazem um e outro a um grande itinerário transcontinental que, sob a designação de Ister ou Istros (Danúbio), partia de onde os Celtas se estabeleceram vizinhos dos Pireneus e do Oceano para terminar, no outro extremo da Europa, à foz do verdadeiro Danúbio: “O Istros”, diz Heródoto (II, 33), “começa no país dos Celtas perto da vila Pireneu ²⁶”; enquanto que Píndaro, na sua 3ª Olímpica (25-29), situa a nascente “umbrosa“ do Ister no país dos Hyperbóreos, servidores de Apolo” (esta palavra umbrosa, sinônima de: situada no lado da noite, isto é, no poente, significa que, no pensamento de Píndaro, os Celtas encostados na vertente atlântica dos Pireneus se incorporam a uma série de povos hyperbóreos sucedendo-se de oeste em leste sobre a margem oceânica do mundo). Ésquilo situava do mesmo modo a nascente do Istros ² no país dos Hyperbóreos. A assimilação dos Celtas aos Hyperbóreos reaparece, no século IV antes de nossa era, num autor do qual Plutarco nos diz ² que atribuía a conquista de Roma pelos Gauleses, por volta de 390, a “um exército saído do país dos Hyperbóreos”. Da mesma forma, um historiador contemporâneo de Alexandre o Grande, Hecateu de Abdera cita os Hyperbóreos e descreve como adoradores de Apolo, periodicamente visitados por esse deus, os habitantes de uma ilha setentrional que só pode ser a Grã-Bretanha, pois, diz Diodoro de Sicília (II, 47), — por quem conhecemos esse fragmento de Hecateu —, ela é “não menos grande que a Sicília e situada além da Céltica, no Oceano”. O espaço marinho britânico será ainda qualificado de hyperbóreo por um poeta dos últimos tempos do Império romano ².

Por mais afastados que pudessem estar uns dos outros, supunha-se que os povos que os contemporâneos de Heródoto qualificavam de Hyperbóreos habitavam a costa de um mesmo mar, este “outro mar”, como o chamava, como visto, o historiador Damastês de Sigeion. Recobrindo aquela das faces do continente europeu oposta à face mediterrânea, este “outro mar”, mais frequentemente chamado mar Exterior, era aquele que era formado pelo conjunto da parte do Oceano hoje denominado golfo de Gasconha, os mares britânicos, o mar do Norte e o que Heródoto designa (III, 115), sem poder afirmar a realidade de sua existência, como o “mar setentrional donde se diz que nos chega o âmbar” (isto é, o atual mar Báltico). Segundo Damastês de Sigeion ³⁰, o “outro mar” se prolongava a Leste, com os Hyperbóreos por habitantes, até o Norte do espaço onde vivem os Citas, habitantes da atual planície russa. 

O testemunho desse historiador e o de Píndaro, que se completam um ao outro, nos trazem então junto a lembrança dum tempo em que os Gregos viam em imaginação, além das supostas montanhas que chamavam de Rípeas, desdobrarem-se, ao longo do mar Exterior, desde a extremidade oceânica dos Pireneus até aos confins da Ásia, uma banda hyperbórea, cujos traçado e posição em latitude não teriam podido além disso definir. 

Mapa múndi segundo Heródoto (séc. V a.C.)
 

Heródoto (III, 115 e IV, 45) nos faz medir o alcance dessas ignorâncias, que persistiram muito tempo depois dele. Numa época já muito próxima do estabelecimento da dominação romana na Gália oceânica, um sábio que só precede César no tempo de trinta anos, Posidônio, afirmava ainda, se for preciso crer num escoliasta de Apolônio de Rhodes ³¹, que os Alpes confinavam com as regiões habitadas pelos Hyperbóreos. 

Até a conquista romana, Hyperbóreos e Montes Rípeos, essas duas representações míticas inseparáveis uma da outra ³² puderam, sem concorrência, se impor aos espíritos como noções geográficas fundamentais. Lá onde, diferentemente, só teria havido vazio, essa ficção manifestava a existência duma costa habitada, marcava abaixo dessa costa uma linha de relevos, sugeria a ideia de fenômenos climáticos em relação com esses relevos, obtinha enfim o meio de designar com um nome eloquente os dos povos da Europa extra-mediterrânea dos quais não se sabia como eles próprios se nomeavam. 

Mais tarde, à medida que se ficou conhecendo os nomes autênticos desses povos, os nomes nativos, estes substituíram a designação de Hyperbóreos, cujas aplicações ficaram assim progressivamente reduzidas ³³. Vê-se em Estrabão (VII, 3, 1) que na época em que esse geógrafo escrevia, a penetração dos exércitos romanos, revelando os nomes reais das populações que se sucediam, ao longo da costa do mar Exterior, até ao estuário do Elba, deitando luz sobre os traços essenciais da configuração física dos lugares, tinham banido os Hyperbóreos desta parte do mundo ocidental, donde eram apagados os montes Rípeos. Mas daí não se seguiu, nos meios esclarecidos, uma reflexão resultando na rejeição sistemática e total da geografia mítica. Desta, historiadores e geógrafos continuaram a fazer uso para preencher os territórios ainda inexplorados que se estendiam a leste do Elba. Por volta de meados do século I de nossa era, nos escritos do geógrafo Pomponius Mela (I, 12-13 e III, 36), a gente reencontra os Hyperbóreos e os montes Rípeos relegados a norte do mar Cáspio, na Ásia setentrional. No século II enfim, na Geografia de Ptolemeu (III, 5, 5 e 10), montes Rípeos reaparecem ao norte do Palus Méotide (o atual mar de Azov) e o qualificativo de hyperbóreo se liga ainda aos confins do mundo setentrional desconhecido: montes hyperbóreos (V, 8, 7) e Sármatas Hyperbóreos (V, 8, 10) representam tudo o que a geografia física e a geografia humana podem, no norte da Ásia, perceber de mais afastado, enquanto que para a frente das costas ocidentais da Europa, está assinalado um oceano hyperbóreo (II, 2, 1) ao norte da Irlanda. 

Imagens de felicidade associadas ao nome hyperbóreo 

Ou porque eles retrataram seu país de maneira favorável, ou melhor devido à sua qualidade de habitantes de um oceano que forma o limite do mundo, Homero ³⁴ fez atribuir a eles as vantagens de que os habitantes dos Campos Elísios gozavam, igualmente situados "nos confins da terra", onde "a vida mais doce é oferecida aos humanos, sem neve, sem grande inverno...", os homens do Norte que levaram suas oferendas a Delos não eram considerados pelos Helenos como tendo que sofrer uma natureza inclemente. Qualificados de “nação santa ³⁵”, por Píndaro, os Hyperbóreos são retratados tanto por ele quanto mais tarde por Hecateu de Abdera ³⁶, sob os traços dum povo piedoso e sábio que um clima sem excesso e uma terra fértil contribuíam para tornar feliz e pacífico. Píndaro evoca as “magníficas hecatombes” que eles oferecem a Apolo, seus banquetes rituais que são, para esse deus, “a alegria mais viva” e a “via maravilhosa que leva a suas festas ³⁷”, enquanto que na tragédia de Ésquilo ³⁸ se diz que esses mesmos Hyperbóreos têm como quinhão mais ainda que a felicidade suprema. 

Sem dúvida, no espírito dos Gregos, a ideia da frialdade era inseparável do nome de Bóreas. Mas eles situavam as costas hyperbóreas além dos montes Rípeos, donde se precipitava Bóreas. Pode-se imaginar que essas montanhas frias não tinham mais efeito sobre o clima da margem marítima hyperbórea, da mesma forma que as neves do Etna não têm sobre o litoral que se desdobra sob elas. Píndaro, fazendo alusão, na sua IIIª Olímpica (31-34), a uma viagem que Hércules fez até às fontes hyperbóreas do alegórico Istro, assim se exprime: “Ele visitou até este país que está além das aragens do frio Bóreas; lá, quando ele parou, admirou as árvores ³⁹...” O poeta especifica que as oliveiras figuravam no adereço arborescente com que se adornava a paisagem hyperbórea, tal como Hércules o descobriu e atribui-se ao herói a ideia de pedir aos Hyperbóreos que lhe dessem de presente uma oliveira que planejava trazer para a Grécia para ser plantada perto do santuário de Olímpia, que assim seria dotado de uma árvore “dando sua sombra à multidão de visitantes e fornecendo coroas de flores para os atletas ”⁴⁰

Essa fábula ⁴¹, que inventaram evidentemente Mediterrâneos, incapazes de representar para si outra vegetação que a do mundo que lhe era familiar, originava-se de um erro menos grave, afinal de contas, que o de considerar a palavra “hyperbóreo” como expressão da situação de um povo sujeito aos rigores do clima polar. É fato que as costas, sob as latitudes em que se desdobram, onde se recolhia o âmbar, na orla do mar do Norte e do Báltico, gozam de um clima relativamente doce, e é possível que tenha havido um elemento de verdade na lenda atribuindo ao solo hyperbóreo uma alta fertilidade ⁴². Os habitantes da Dinamarca podem ter julgado sua terra maravilhosamente fértil, quando tiveram a ocasião de compará-la ao solo rochoso da Grécia. 

Entre os Latinos, Pomponius Mela (III, 36-37) e Plínio o Velho (História Natural IV, 89-91) tomaram por conta própria a imagem favorável que a literatura grega esboçava do caráter dos Hyperbóreos e da natureza hyperbórea. Resulta do conjunto desses testemunhos que os povos que Heródoto e outros autores nos mostram atravessando a Europa para levar a Delos as primícias de suas colheitas viviam numa terra não somente habitável mas capaz de nutrir bem sua população. 

Repentina alteração do clima atribuído pela lenda ao mundo hyperbóreo 

Neste coro de louvores, as Geórgicas fazem ouvir uma nota discordante. Ao contrário da concepção tradicional segundo a qual os Hyperbóreos eram protegidos do frio por sua situação geográfica exterior à parte do mundo donde soprava Bóreas, Virgílio coloca em seu território a origem mesma desse vento, chamado por ele Aquilão vigoroso ⁴³, e qualifica de glacial ⁴⁴ a atmosfera onde vivem. 

Sua opinião é compartilhada por um de seus contemporâneos, o geógrafo Estrabão, que exprime, sobre os Hyperbóreos, opiniões contrariando da mesma maneira as ideias comumente recebidas desde séculos. 

Estrabão (I, 3, 22) repreende Heródoto “por ter suposto que o nome de Hyperbóreos pudesse designar povos onde Bóreas não sopra”. Sustenta que Bóreas sopra desde o próprio polo, bem como, desde o equador, seu contrário o vento do sul (notos), e que esses dois limites extremos do domínio dos ventos, são também os da extensão dos povos na superfície da terra, de tal maneira que os Hyperbóreos, que ele diz serem os mais setentrionais, βορειοτἄτους, de todos os povos devem ser, caso se tome à letra, considerados como vivendo na zona glacial, nos confins do polo. 

Como pôde, sem violentar-se, aceitar propor a seu leitor tal visão das coisas, quando não contesta em nenhuma parte a tradição, relatada por Heródoto (IV, 33), e considerada por Plínio (História Natural IV, 91) como tendo valor de dado histórico, segundo a qual os Hyperbóreos mandavam levar, através da Europa, ao santuário de Delos, as primícias de suas colheitas? Estrabão nos surpreende aqui, quanto mais que professa, por outro lado, que as regiões próximas ao polo são inabitáveis devido ao frio: τα πρὸς τᾧ πόλῳ δὶα ψύχος (ἀοίκτά εστι). Admite com efeito (II, 2, 1-3) a divisão do globo terrestre em cinco zonas, tal como Posidônio havia exposto, cuja invenção atribuía a Parmênides de Elea: uma zona tórrida estendendo-se de um lado a outro do equador; duas zonas temperadas, uma no hemisfério norte, a outra no hemisfério sul; e duas zonas glaciais correspondendo às duas calotas polares e caracterizadas uma e outra pelo fato de que o frio impede o homem de aí se estabelecer de modo estável. 

Na época que Estrabão escrevia, a astronomia grega tinha também descoberto, desde vários séculos já, que o polo era sujeito à alternância de um dia contínuo de seis meses consecutivos e de uma noite contínua de mesma duração ⁴⁵

Colocar em tais condições de vida homens que a tradição apresentava como pessoas felizes recolhendo os frutos de uma terra generosa era um contra-senso. Teria valido tanto a pena eliminar o nome dos Hyperbóreos do vocabulário histórico e geográfico, como se teria feito de uma ficção pura com a qual não convinha que um homem razoável sobrecarregasse sua mente. Mas isso é o que não puderam fazer Estrabão, nem, depois dele, Pomponius Mela e Plínio, o Naturalista, tão fortemente estava estabelecido o prestígio dos antigos relatos nos quais os Hyperbóreos desempenhavam um papel que os incorporava à sociedade europeia dos tempos míticos. Não é possível, diz Plínio, questionar a existência desse povo: Nec licet dubitare de gente ea ⁴⁶, e é o que o próprio Estrabão admite implicitamente quando concorda em discutir a opinião outrora estabelecida, segundo a qual os Hyperbóreos moravam fora das áreas devastadas pela aragem do Bóreas. 

No século I de nossa era, Pomponius Mela e Plínio assim se reencontraram, em suas pesquisas sobre os Hyperbóreos, em presença de dois dados contraditórios: um consagrado por uma tradição mais de cinco vezes secular; o outro recente, mas tendo para tal a alta autoridade de Virgílio e de Estrabão. O surpreendente é que não lhes tenha parecido dever rejeitar nem um nem outro. Como não terem visto que assim agindo eles iam ao encontro de gritantes absurdos? 

Mela (III, 36), tirando a consequência da afirmação de Estrabão sobre as condições nas quais se manifesta Bóreas e sobre a posição dos “mais setentrionais” dentre os homens, situa os Hyperbóreos abaixo do ponto do céu pelo qual passa o gonzo (cardo) em volta do qual se efetua a revolução dos astros: sub ipso siderum cardine. É a definição mesma do polo tal qual o representava a astronomia grega. E para não deixar dúvida de que é o polo que ele atribui para morada dos Hyperbóreos, Mela especifica que, para eles, o ano se divide entre um dia que dura seis meses e uma noite de igual duração. Depois, sem nos dizer de que maneira a sequência de seu texto pode se conciliar com o início, ele garante que, sobre uma terra naturalmente fértil (per se fertilis) onde não faltam nem as florestas nem os bosques sagrados, esses mesmos Hyperbóreos vivem a feliz existência que lhes atribuía a antiga lenda grega. 

Em termos pouco diferentes se encontra, em Plínio (Hist. Nat. IV, 89-91), a mesma associação de dados inconciliáveis: o local dos “gonzos do universo” (cardines mundi), quer dizer no polo mesmo, lá onde o sol fica visível durante seis meses consecutivos, vive, numa atmosfera agradavelmente temperada (felici temperie), entre as florestas e os bosques sagrados, o povo feliz (gens felix) dos Hyperbóreos, que se fez conhecer ao mundo pela oferenda que fazia no santuário de Delos das primícias de suas colheitas. 

Em suma, Mela e Plínio, nas passagens em questão, teriam seguido fielmente a mitologia grega se não lhes tivesse parecido deverem recuar a morada dos Hyperbóreos até ao polo mesmo. Como esses sábios, que não ignoravam certamente a noção comumente conhecida dum polo inabitável devido ao frio, puderam julgar oportuno desfigurar assim um dado tradicional, fabuloso em mais de um ponto sem dúvida, mas contendo também elementos de verdade que se torna impossível de por em evidência quando se representa os Hyperbóreos como habitantes do polo? 

Responsabilizar Estrabão por essa inovação desastrosa só seria uma maneira de adiar a dificuldade, agravando-a aliás, pois a gente compreenderia então menos ainda a razão por que esse geógrafo, em certas de suas afirmações sobre os Hyperbóreos, sustenta o oposto das afirmações que ele próprio formula alhures sobre a distribuição dos climas na superfície da terra. Não podemos fugir à impressão de que ele não acredita, que não pode acreditar na existência dessa humanidade confinada em uma zona gelada que também evoca, na poesia de seu contemporâneo Virgílio, a expressão Hyperboreas glacies.

A única maneira que a gente percebe de tornar plausível esse reencontro do poeta e do geógrafo consiste em supor que, sobre o ponto em questão, eles obedeceram a um e outro a uma palavra de ordem. Nem Virgílio nem Estrabão não deixam ignorar que põem um sua poesia e o outro sua ciência a serviço do poder e do prestígio de Roma. Sequamur... tua, Maecenas, haud mollia iussa, diz Virgílio nas Geórgicas (III, 40-41). E Estrabão (I, 1, 16): “A geografia é essencialmente orientada para as necessidades da vida política.” 

Em que então esses autores podiam servir à política de Otávio ou de Augusto quando eles mostravam os Hyperbóreos como sujeitos aos rigores do clima polar? 

Seria preciso, para julgá-lo, saber quais ideias suscitava então em Roma, no espírito do grande público o velho mito hyperbóreo, popular e sempre bem vivo, como o prova a acolhida que lhe fazem ainda os escritores dessa época. A gente já disse como esse mito tinha servido durante séculos para designar aqueles povos da parte extra-mediterrânea do continente sobre os quais ainda se ignorava que nomes eles se davam; depois, como seu alcance reduzira à medida que o progresso dos conhecimentos geográficos tinha resultado em conhecer os nomes autênticos desses povos. A gente vê através de Estrabão (VII, 3, 1) que no século de Augusto só se servia mais do nome de Hyperbóreos para designar humanos confinados na parte do mundo setentrional que permanecia fora do orbis romanus

Ora, entre os países do Norte em que o poder romano ainda não estava estabelecido, figurava então uma importante parte do arquipélago britânico – a saber, a Irlanda –, e isso não era agradável ao orgulho dum povo a quem os deuses tinham prometido o império do mundo (entendamos não a posse do planeta inteiro, mas uma dominação estabelecida sobre a parte habitável ⁴⁷ do que se conhecia do universo).

Que, sob Augusto, a renúncia à conquista das ilhas britânicas tenha ocorrido intencionalmente, ou que se tivesse tido que renunciar a isso sob a pressão de circunstâncias contrárias , parece, não obstante, que foi solicitado a Estrabão para explicar ao público esclarecido que, se Roma não tinha feito essa conquista, é porque ela tinha boas razões para se abster disso: os Romanos, “que podiam tomar posse da Bretanha”, escreve ele (II, 5, 8), “desdenharam de fazê-lo”. César, no entanto, tinha planejado, da parte da ilha onde as suas operações militares o tinham conduzido, uma imagem que não era a de um país sem vantagens naturais. Ele notou em particular que o clima lá era "mais temperado que o da Gália, o frio sendo menos rigoroso ” (de Bello Gallico, V, 12, 6). 

Mas, desde a publicação de de Bello Gallico, as circunstâncias políticas, no Ocidente, haviam tomado uma direção que incitou Estrabão a mudar a conversa. Fiel à doutrina que ele professa (I, 1, 18), e segundo a qual a razão de ser da geografia é colocar-se a serviço dos governantes e acomodar-se às necessidades deles, defende que as terras que constituem o arquipélago britânico não merecem, nem por suas disposições naturais, nem pelo estado de civilização de seus habitantes, que Roma se dê ao trabalho de conquistá-las. Ele cita, como exemplo, o caso de Ierné (a Irlanda), cujo clima, ele diz em várias ocasiões (I, 4, 4; II, 1, 13 e 17), é “quase insuportável” por causa do frio. 

Se era inoportuno apresentar sob uma luz lisonjeira a descrição física e humana de um pedaço da Europa escapando ao império de Roma, com mais razão se deveria abster-se de atribuir aos Hyperbóreos, os quais eram eles também Europeus escapando ao domínio romano, o clima feliz, a terra generosa e os costumes exemplares com que a lenda os gratificava. Que este Éden povoado por homens piedosos e justos ficasse fora do orbis romanus, eis o que teria sido contrário à verdade primeira que Estrabão (XVII, 3, 24), na conclusão de sua monumental obra , formula nestes termos: “Os Romanos, superiores a todos os conquistadores cuja memória a história conservou, chegaram a possuir o que a terra habitada contém de mais rico e famoso...” Na Europa, da qual retêm a maior parte, o que eles deixam fora de seu império “é ou inabitável ou habitado apenas por populações miseráveis e nômades ¹”. 

Era então desejável, na época de Augusto, que, no espírito do público, o nome de Hyperbóreos deixasse de despertar ideias de natureza favorável, de humanidade virtuosa e de felicidade. É o que autores dóceis às sugestões do Mestre buscaram obter representando o mundo hyperbóreo como sujeito aos rigores do clima polar e sem outros habitantes, lá onde se achavam humanos, apenas seres enterrados na mais baixa barbárie. 

Vãs tentativas. Vimos como, no século seguinte, as imagens tradicionais ainda encontram acolhida em Pomponius Mela e Plínio o Velho, que, no entanto, se abstêem de denunciar o absurdo da passagem pelas fronteiras dos Hyperbóreos na zona glacial. Por não terem ousado posicionar-se contra essa recente e tendenciosa correção da lenda, eles aceitaram que seu trabalho deveria permanecer, neste capítulo, manchado por um absurdo que não é o menor dos delitos atribuíveis a uma geografia que Estrabão (I, i, 14) define como tendo que ser “acima de tudo política”, πολιτικωτἔραν. 

 

I.  NOTAS EXPLICATIVAS 

 

¹  Hinos, IV, 25. 
²  Sob a forma Ῥίπαια ὄρη. Primeira menção conhecida em ALCMAN, poeta que vivia em Esparta cerca de 650 a.C. (BERGK, Poetae lyrici graeci, 1882, fragm. 58, p. III)
³ Comentário sobre as Geórgicas, III, 382. Mesma opinião em ISIDORO DE SÉVILLE, Étymologies, XIV, 8, 8.
N.T.: Na antiguidade era conhecido como lago Meótis, acima do mar Negro. Modernamente é chamado de mar de Azov (ao norte) que se liga ao mar Negro (ao sul) através do estreito de Kertch, situado entre a Ucrânia (a norte), a Rússia (a leste) e a península da Crimeia (a oeste). 
⁵  De chorographia, I, 115. N.T.: “O Tanaïs desce do monte Rípeo, e corre precipitadamente…” 
  Damastês de Sigeion, fragm. 1, em Fragm. Hist. graec. MÜLLER, t. II, p. 65. 
  “Por mais que eu dê minha atenção à questão”, diz Heródoto (III, 115), “eu não posso ouvir dizer por quem quer que seja que tenha constatado com seus olhos que exista um mar nos confins da Europa” (trad. Ph.-E. Legrand). 
  Uma rota comercial frequentada na antiguidade é seguida pelo curso inferior desse rio abaixo da flexão de Bromberg. Perto dessa cidade foi feito em 1833 o notável achado de 36 moedas gregas dos séculos VI e V (K. MÜLLENHOF, Deutsche Altertumskunde, t. I, 1890, p. 213). 
  Geschichte der grieschichen Religion, I, 1941, p. 308. 
¹⁰  H. L. LORIMER, Homer and the monuments, 1950, p. 16. O teor em ácido sucínico deste âmbar revela sua origem báltica (A. GÖTZE, s. v. Bernstein, in Marx EBERT, Reallexikon der Vorgeschichte, t. I, 1924, p. 439 e 442). 
¹¹  IV, 73; XV, 460-463; XVIII, 295-296. 
¹²  Diodoro de Sicília (V, 23) dá esta versão do mito: “A queda de Fáeton aconteceu na embocadura do Pó, outrora chamado Erídano. Suas irmãs choraram amargamente a sua morte; sua dor foi tanta que elas mudaram de natureza e se metamorfosearam em álamos. Essas árvores deixam anualmente, na mesma época, escorrer lágrimas. Ora, essas lágrimas solidificadas constituem o élektron” (quer dizer, o âmbar). 
¹³  Políbio, II, 16, 6. 
¹⁴  J. DÉCHELETTE, Manuel d’archéologie préhistorique, t. II, 1ª parte: Idade do bronze, 1924, p. 19-21. J. Perret, ed. TÁCITO, La Germanie, 1949; Introdução, p. 15 
¹⁵  Estrabão (X, 4, 19) lembra que o legislador Licurgo, em busca de exemplos e de informações, visitou Delos para aí consultar Apolo. Nessa ilha de Delos, escreve ele ainda (X, 5, 4), o ajuntamento religioso anual, panegyris, “sempre teve um pouco o caráter dum grande mercado”. 
¹⁶  J. Déchelette, ibid., p. 20. 
¹⁷  Historia Naturalis, IV, p. 91. 
¹⁸  “O bronze, em nenhuma parte no mundo atlântico, produziu mais coisas, e mais belas coisas, mais punhais, espadas e jóias do que entre Hamburgo e Estocolmo. Foi lá, e não na Gália, mais longo tempo atrasada no trabalho da pedra, que floresceu ‘a força do bronze’ (C. JULIAN, Histoire de la Gaule, 6ª ed., 1926, t. I, p. 236). 
¹⁹  J. DÉCHELETTE, Manuel d' archéologie préhistorique, t. II, 1ª parte: Idade do Bronze, 1924, p. 430. 
²⁰  J. Déchelette, ibid., p. 18-19. 
²¹  P. Grimal, Dictionnaire de la mythologie grecque et romaine, 2ª ed., 1958, no verbete: Hyperboréens. 
²²  J. Déchelette, ibid., p. 422. 
²³  Odisseia, X, 82-86. É possível que os homens que comunicaram aos Helenos esta informação a tenham eles próprios recebido dum povo mais setentrional com o qual haviam tido contatos. 
²⁴  O poeta Olen, assinalado por Pausânias como o primeiro a mencionar os Hyperbóreos nos seus versos, era considerado como anterior a Orfeu. Ele reaparece numa lenda recolhida por Diodoro de Sicília (IV, 51) que, na Tessália na época de Jasão, o nome hyperbóreo era aureolado de um grande prestígio. Segundo Heródoto (IV, 32), os Hyperbóreos são mencionados em Hesíodo
²⁵ APOLÔNIO DE RHODES, Argonáuticas, II, 675. HECATEU DE ABDERA, citado por DIODORO DE SICÍLIA, II, 47.
²⁶  Este nome é na realidade o de uma montanha, diz Aristóteles, Meteor., I, 13, 19.
“A primeira ideia de conjunto que os Antigos tenham tido sobre a Gália, é que... os Pireneus iam duma costa a outra e que, entre suas extremidades marítimas, havia somente sete dias de marcha. Talvez, desde antes do século VI, caravanas carregadas de estanho, de cobre, de âmbar e de pedras verdes foram organizadas no sopé setentrional dos Pireneus entre a região de Pasajes e a de Port-Vendres.” (C. JULIAN, Histoire de la Gaule, 6ª ed., 1926, t. I, p. 188-189) 
² Prometeu liberto, tragédia perdida. O teor da passagem relativa ao Istros é conhecido por um escólio a Apolônio de Rhodes, As Argonáuticas, IV, 284. 
² Plutarco, Vidas Paralelas: A Vida de Camilo, 22, 3. O autor mencionado é Heraclides do Ponto, discípulo de Platão e de Aristóteles. 
² Claudiano, Panegírico sobre o III consulado de Honório Augusto, 55-56. 
³⁰ Fragm. Hist. Graec., MÜLLER, t. II, p. 65, fragm. I. Damastês de Sigeion é um historiador contemporâneo de Heródoto. 
³¹ As Argonáuticas. Escólio a II, 675. 
³²  Estrabão, VII, 3, 1. 
³³  J. CARCOPINO, Promenades historiques au pays de la dame de Vix, 1957, p. 59-60. 
³⁴  Odisseia, IV, 563-568. 
³⁵  ἱερᾷ γενεᾷ (Pyth. X, 43). 
³⁶  Passagem conhecida por DIODORO DE SICÍLIA, II, 47. 
³⁷ Xª Pítica, 29-35. 
³⁸ Les Choéphores, 372-374. 
³⁹ Trad. A. Puech. Paris, Éd. Les Belles Lettres, 1958. 
⁴⁰ Píndaro, Olimpíaca III, 14-20. 
⁴¹  Encontra-se também em Pausanias, V, 7, 7. 
⁴²  Hecateu de Abdera, in DIODORO DE SICÍLIA, II, 47. 
⁴³ Aquilo densus (Geórg. III, 196). 
⁴⁴ Hyperboreas glacies (Georg. IV, 517) 
⁴⁵ O fenômeno tinha sido pressentido, desde o século VI, pelo filósofo jônico Xenófanes de Cólofon, a partir de uma reflexão sobre o fato que, à medida que se afasta do equador, a diferença aumenta entre a duração do dia mais longo e a do dia mais curto (H. BERGER. Geschichte der wissenschaftlichen Erdkunde der Griechen, 1903, p. 191). 
Heródoto (IV, 25) ouviu contar que muito longe, nas regiões desconhecidas do Norte, existiam pessoas que dormiam uma metade do ano. Ele declara não acreditar em nada disso. Talvez uma alusão à noite polar se escondia sob essa fábula. 
⁴⁶ Hist. Nat., IV, 91. 
⁴⁷ Estrabão, I, 1, 16. 
É esta segunda alternativa que deve ser retida. Dion Cassius lembra (XLIX, 38, 2: LIII, 22, 5 e 25, 2) que em três vezes seguidas, em 34, em 27 e em 26, Augusto concebeu o projeto de uma descida à Ilha da Bretanha. Teve que renunciar a isso a primeira vez por causa de uma revolta dos Ilírios, a segunda devido a distúrbios na Gália, a terceira em razão de uma revolta dos Salasses e duma sublevação dos Cantábrrios e dos Astures. (E. JANSSENS, Histoire ancienne de la mer du Nord. Bruxelas, 1946, p. 40). 
de Bello Gallico, V, 12-14. 
Ele próprio a qualifica de κολοσσουργία (I, 1, 23). 
¹  Tradução A. Tardieu. 
 

Fonte: DION, Roger, «La notion d'Hyperboréens. Ses vicissicitudes au cours de l'Antiquité», Bulletin de l’ Association Guillaume Budé-BAGB, nº 2, junho de 1976, p. 143-157; in TAILLANDIER, Guillaume: HYPERBOREE, Texts et Documents 

Link: https://www.academia.edu/40749656/HYPERBOREE_Textes_et_Documents_publi%C3%A9s_par_G%C3%A9r%C3%B4me_Taillandier