sexta-feira, 3 de maio de 2013

FALA!, poema inédito do poeta turco Aziz Nesin


Por Francisco José dos Santos Braga



I. INTRODUÇÃO


A tradução — inédita em língua portuguesa — do poema Fala!, da autoria do poeta turco Aziz Nesin, deu-me ensejo à reflexão sobre o elemento surpresa, presente nessa obra de arte e, de imediato, ocorreu-me a lembrança de fazer uma releitura, — tendo como pano de fundo a surpresa, — da contribuição de Charles Baudelaire (1821-1867) para a Modernidade, tido como esteta (amante e teórico da Estética) e como o maior de todos os precursores da modernité, tendo ele próprio usado esse substantivo pela primeira vez.

A imediata notoriedade que ganhou Aziz Nesin com o seu poema, desde o seu aparecimento em 1958 até hoje, levou-me a analisar o fenômeno da aceitação dessa obra de arte pelo público, pelo que ela possui de transitório, bizarro e grotesco nos tempos modernos.

Antes mesmo de ser conhecido como poeta com a publicação em 1857 de seu único volume de poemas em verso — As Flores do Mal —, Baudelaire forjou uma reputação de crítico de arte, notadamente com a publicação dos Salões de 1845 e 1846, consagrando-se posteriormente como um dos mais importantes críticos do século XIX.

Baudelaire escreveu em 1855: "O belo é sempre bizarro. Não quero dizer que seja voluntariamente, friamente bizarro, pois neste caso seria um monstro saído dos trilhos da vida. Digo que contém sempre um pouco de bizarro, de bizarria não desejada, inconsciente, e que é essa bizarria que o faz ser particularmente o Belo." ¹

Ou ainda, em outra parte (Journaux Intimes - Fusées) escreveu sobre o Belo: "Achei a definição do Belo, do meu Belo. É algo de ardente e de triste, algo de um pouco vago, deixando livre curso à conjectura. Eu vou, se querem, aplicar minhas ideias a um objeto sensível, por exemplo, ao objeto mais interessante na sociedade: o rosto de uma mulher. Uma cabeça sedutora e bela, quero dizer, uma cabeça de mulher que faz sonhar ao mesmo tempo, — mas de uma maneira confusa, — de volúpia e de tristeza; que comporta uma ideia de melancolia, de lassidão, mesmo de saciedade, — ou uma ideia contrária, isto é, um ardor, um desejo de viver, associados com uma amargura refluente, como provinda de privação ou desesperança. O mistério, a nostalgia são também caracteres do Belo." ²

No ensaio publicado em 1869, intitulado "O pintor da vida moderna" ³, Baudelaire definiu a Modernidade como "o transitório, o efêmero, o contingente, a metade da arte, cuja contrapartida é o eterno e o imutável". Portanto, o que caracteriza a Modernidade é a fugaz e marcante experienciação do "transitório" e do "contigente".  

Capaz de perceber a beleza particular dos novos tempos, o artista deve ser capaz de transformar o negativo em algo que fascine.  O autor de As Flores do Mal, contrário à arte artificial, defendia que a Modernidade de seu tempo deveria ser assumida em toda a sua força traumática, devendo a literatura ser fiel à realidade. Com isso, a arte deveria ser chocante, no sentido daquilo que impressiona, choca ou ofende, sem dissimular ou suavizar as durezas do cotidiano.

Tratava-se para ele de uma experiência própria da modernidade, tal como podia já então ser vivida, no tumulto das grandes cidades, como Paris do século XIX. Precisamente a sua experiência de frequentador de museus, ateliês, salões e cafés, ao contato de pintores, artistas e intelectuais, e como flâneur ou dândi pelas ruas de Paris de seu tempo deve ter-lhe dado um saber que se estabeleceu na reflexão e observação.

Wolfgang Kayser, apud MANO , aponta para a importância do grotesco na Modernidade (ressalvando esta que "a modernidade constitui-se num tema amplo e controverso, sendo o próprio vocábulo semanticamente variável"), destacando a imagem do mundo sob o ângulo do grotesco, recordando a frase de Goethe: "Vista da altura da razão, toda a vida parece uma doença maligna e o mundo um manicômio". Segundo ele, o caráter da estranheza, o repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco. Uma situação repleta de tensões ameaçadoras, o pânico, o horror, a angústia de viver, tudo isso faz parte da estrutura do grotesco. Logo, a perda da identidade, a distorção das proporções naturais, o abismo e o absurdo, a falta de segurança e a desarmonia no mundo, todas esses fenômenos relacionam-se com o grotesco. KAYSER [2003, 159] conclui: "Para pertencer a ele (ao grotesco), é preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de repente, estranho e sinistro. Foi pois o nosso mundo que se transformou. O repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco." Além disso, segundo Kayser, Baudelaire adota recursos paradoxais para tratar da beleza que era, para este, sempre extravagante, enquanto que o gosto pelo verdadeiro era limitado e reprimível. Oposto ao conceito da beleza antiga, Baudelaire vê na feiúra a possibilidade de um novo mistério.

Isso, para dizer que o autor francês se inseriu perfeitamente dentro dessa tradução do grotesco, quando disse em Journaux Intimes, p. 18: "O que não é ligeiramente disforme tem um ar insensível — daí se conclui que a irregularidade, quer dizer, o inesperado, a surpresa, a admiração são uma parte essencial e a característica da beleza."

Ou em outra parte, Baudelaire disse: "Surpreender-me é a pura razão de viver; surpreeender-me é o que me faz tentar descobrir mais e mais; surpreender-me é acreditar na Originalidade, o verdadeiro símbolo da fé, já que a Origem é o ponto inicial da vida. Eis porque o belo é a surpresa. Para ela se vive, sem ela nada temos senão um constante repetir que nos leva a perder a noção de movimento, a definição da existência, o fascínio do humano. Não conheço beleza que não contenha, em si mesma, algo de surpreendente, por mais estática que possa parecer a obra, mais silencioso o autor. No silêncio pode haver surpresa desde que se saiba penetrar nele para atingir o que realmente encobre." ⁷ 

Mesmo a estética da "surpresa", tão cara a Baudelaire, está a seus olhos ultrapassada, quando disse: "Surpreender é pouca coisa, é preciso transplantar."

Na obra "O Spleen de Paris", no texto XXX intitulado "A Corda", dedicado a Édouard Manet, Baudelaire escreve: "As ilusões", dizia-me meu amigo, "são tão inumeráveis talvez quanto as relações dos homens entre si ou entre os homens e as coisas. E quando a ilusão desaparece, quer dizer, quando nós vemos o ser real ou o fato tal qual ele é, fora de nós, experimentamos um estranho e complicado sentimento, metade pesar pelo fantasma desaparecido metade surpresa agradável diante da novidade do fato real."

 

II. NOTÍCIAS SOBRE O POEMA


A minha tradução do poema ÇOK KONUŞMA (literalmente:  conversação abundante, tagarelice), constante  da coletânea NUTUK MAKINESI (lit., A máquina de discurso) pelo poeta turco Aziz Nesin, que ofereço abaixo, foi feito a partir de uma adaptação em língua grega.
 
Para o poema em grego, encontrei uma ótima narração na voz de Scarméas Pétros, que também tem a vantagem de trazer a letra do poema, disponível na Internet no seguinte vídeo do YouTube: http://youtu.be/72Iut6I8x4U 

A letra do poema na língua turca pode ser encontrado na Internet no seguinte endereço eletrônico: http://i.imgur.com/p9LLL.jpg 


III. NOTÍCIAS SOBRE AZIZ NESIN
 

Aziz Nesin (1915-1995) foi um escritor, humorista e ativista político turco que lutava por liberdade de expressão, tendo denunciado toda forma de opressão e brutalização do homem comum. Seu poema Fala! é um dos poemas mais extraordinários já compostos, especialmente quando recitado.

Satirizava a burocracia e expôs as desigualdades econômicas em estórias que efetivamente combinam cor local e verdades universais. 

Aziz Nesin foi agraciado com inúmeros prêmios na Turquia, Itália, Bulgária e a primitiva União Soviética. Seus trabalhos foram traduzidos para mais de trinta línguas.

Em 1972, ele fundou a Fundação Nesin. O objetivo dela tem sido admitir, cada ano, quatro crianças pobres e abandonadas nas instalações da Fundação Nesin e prover toda necessidade — abrigo, educação e treinamento, iniciando do grupo escolar — até que elas concluam o curso secundário, escola de comércio, ou até que adquiram uma vocação. Aziz Nesin doou à Fundação Nesin todos seus direitos autorais na sua integridade para toda a sua obra na Turquia ou em outros países, inclusive todos seus livros publicados, todas as peças teatrais representadas, todos os filmes e seus trabalhos apresentados ou utilizados no rádio ou televisão.

Dedicou seus últimos anos a combater o fundamentalismo religioso.

   
IV. FALA!,  por Aziz Nesin


Cala-te, não fales, é uma vergonha, cessa tua voz,
cala-te enfim, pois, se a fala é prata, 
o silêncio é ouro. 
As primeiras palavras que ouvi desde criança, 
quando chorava, ria, brincava, me diziam: 
"cala-te!". 

Na escola me esconderam meias verdades, 
me diziam: "O que te interessa? Cala-te!" 
Me beijou a primeira menina por quem me apaixonei e me [diziam: 
"Procura não dizer nada, pss... silêncio!" 
Cessa tua voz e não fales, mantém-te calado,
E isso perdurou até meus vinte anos. 

A fala do adulto, o silêncio da criança,
Via traços de sangue na calçada,
"O que te interessa?" me diziam,
"Vais meter-te numa enrascada, cala-te!"

Mais tarde berravam meus superiores:
"Não metas o nariz por toda a parte,
finge que não estás entendendo, cala-te!"

Casei-me, tive filhos,
e lhes ensinei a ficarem calados,
minha mulher era honrada e trabalhadeira
e sabia manter-se calada.
Tinha uma mãe prudente, que lhe dizia: "Cala-te!"

Em anos bissextos meus pais, meus vizinhos me aconselhavam:
"Não compliques, finge que não viste nada. Cala-te!"
Talvez não tenhamos tido uma relação invejada
com aqueles vizinhos, mas o "Silêncio!" nos unia.

Cala! de um, cala! de outro, cala! dos de cima, cala! dos de [baixo,
cala! de todo o prédio e de todo o quarteirão.
Cala! das ruas transversais e das ruas paralelas.
Já engolimos nossa língua... Temos boca e voz não temos.
Formamos uma associação do "Cala!"
E nos reunimos muitos, uma cidade inteira,
uma potência enorme, mas muda! 

Fomos bem sucedidos, chegamos ao topo, nos condecoraram,
tudo muito fácil, só com o "Cala!".
Grande arte esse "Cala!".

Ensina-o à tua mulher, a teu filho, à tua sogra 
e, quando sentires necessidade de falar, arranca a tua língua
e faze-a calar-se. Corta-a pela raiz. Lança-a aos cães.
O único órgão inútil desde o instante em que não o usas certo. 

Assim não terás pesadelos, remorsos e dúvidas.
Não envergonharás teus filhos e te livrarás do pesadelo de falar
sentenças do tipo "você tem razão; sou como você!"
Ah! —Ai de mim —como eu gostaria de falar!

Mas não falarás, virarás tagarela, cuspirás besteiras em vez de [voz.
Corta a tua língua, corta-a agora.
Fica mudo. É melhor teres a coragem de fazê-lo, já que não [falarás. 
Corta a tua língua.

Para seres pelo menos consistente com meus planos e sonhos,
entre soluços e acessos seguro minha língua,
porque acho que chegará o momento
que não suportarei
e explodirei
e não me intimidarei
e esperarei
e todo minuto
encherei minha garganta
com uma descarga sonora,
com um sussurro,
com uma gaguez,
com um berro
que me dirá:
FALA!   


V. NOTAS DO AUTOR 



¹ Le beau est toujours bizarre. Je ne veux pas dire qu'il soit volontairement, froidement bizarre, car dans ce cas il serait un monstre sorti des rails de la vie. Je dis qu'il contient toujours un peu de bizarrerie, de bizarrerie non voulue, inconsciente, et que c'est cette bizarrerie qui le fait être particulièrement le Beau. (1855)

²  J'ai trouvé la définition du Beau, de mon Beau.
C'est quelque chose d'ardent et de triste, quelque chose d'un peu vague, laissant carrière à la conjecture. Je vais, si l'on veut, appliquer mes idées à un objet sensible, à l'objet par exemple, le plus intéressant dans la société, à un visage de femme. Une tête séduisante et belle, une tête de femme, veux-je dire, c'est une tête qui fait rêver à la fois, — mais d'une manière confuse, — de volupté et de tristesse; qui comporte une idée de mélancolie, de lassitude, même de satiété, — soit une idée contraire, c'est-à-dire une ardeur, un désir de vivre, associés avec une amertume refluante, comme venant de privation ou de désespérance. Le mystère, le regret sont aussi des caractères du Beau.

³ Ensaio incluído no volume L' Art Romantique, coletânea de artigos de crítica de arte, publicados postumamente em 1869.
Nesse trabalho, que foi traduzido para o português com o título Sobre a Modernidade, Baudelaire refere-se permanentemente ao personagem C. G., um pintor da vida moderna. Trata-se do desenhista, aquarelista e gravador Constatin Guys (1805-1892). 
O ensaio de Baudelaire, intitulado Sobre a Modernidade, na edição brasileira, está disponível para leitura, no seguinte endereço eletrônico:  http://copyfight.tk/Acervo/livros/Charles%20Baudelaire%20-%20Sobre%20a%20modernidade%20(pdf)(rev).pdf

⁴ MANO, C.S.: A tradição da negatividade na moderna lírica brasileira, tese acadêmica, disponível na Internet.

⁵ KAYSER, W.: O grotesco: configuração na pintura e na literatura, p. 159.
 
Ce qui n'est pas légèrement difforme a l'air insensible; d'où il suit que l'irrégularité, c'est-à-dire l'inattendu, la surprise, l'étonnement sont une partie essentielle et la caractéristique de la beauté. (Terça-feira, 13 de maio de 1856)  

BAUDELAIRE, C.: op. non cit., apud  SANT'ANNA, Luiz Alca de: O belo é a surpresa, crônica de 19/8/2008 postada no seu blog no seguinte endereço eletrônico:                                     http://www.luizalca.pro.br/noticias_ver.php?not_id=292       

Surprendre est peu de chose, il faut transplanter.

Les illusions, — me disait mon ami, — sont aussi innombrables peut-être que les rapports des hommes entre eux, ou des hommes avec les choses. Et quand l'illusion disparaît, c'est-à-dire quand nous voyons l'être ou le fait tel qu'il existe en dehors de nous, nous éprouvons un bizarre sentiment, compliqué moitié de regret pour le fantôme disparu, moitié de surprise agréable devant la nouveauté, devant le fait réel.


VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



BAUDELAIRE, C.: Oeuvres Complètes, texto apresentado, estabelecido e anotado por Claude Pichois, Paris: Gallimard, 1988
Sobre a Modernidade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996
   
KAYSER, W.: O grotesco: configuração na pintura e na literatura, São Paulo: Editora Perspectiva, 1ª edição, 162 p. 

MANO, C.S.: A tradição da negatividade na moderna lírica brasileira, tese disponível no seguinte endereço eletrônico: http:/tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=616

SANT'ANNA, L.A.: O belo é a surpresa, crônica disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.luizalca.pro.br/noticias_ver.php?not_id=292