quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

NUREMBERG: Sua Lição para Hoje


Por Jean-Christophe Klotz, cujo texto foi adaptado do artigo "Cineastas para a Acusação" por Sandra Schulberg
Traduzido por Francisco José dos Santos Braga, responsável pela tradução e por três notas explicativas
 
NUREMBERG: Sua Lição para Hoje retrata o drama de tribunal mais famoso dos tempos modernos e o primeiro a fazer uso extensivo de filmes como prova. Foi também o primeiro julgamento a ser extensivamente documentado, tanto auditiva quanto visualmente. Todos os procedimentos judiciais, que duraram quase 11 meses, foram gravados. E embora o julgamento tenha sido filmado enquanto acontecia, limites estritos foram impostos aos cineastas do Signal Corps do Exército americano pelo Escritório do Conselho Criminal. No final, eles foram autorizados a filmar apenas cerca de 25 horas durante todo o julgamento. Isso se revelou um grande impedimento para o escritor/diretor Stuart Schulberg e seu editor Joseph Zigman, quando foram contratados para fazer o filme oficial sobre o julgamento, em 1946, logo após sua conclusão.
Stuart Schulberg, funcionário da OSS-Escritório de Serviços Estratégicos, examina prova em película juntamente com o fotógrafo de Hitler, Heinrich Hoffmann, que foi forçado a ceder suas 12.000 fotografias à equipe do Escritório de Serviços Estratégicos - Crédito: Arquivo da família Schulberg

 

Nossa memória coletiva do período nazi baseia-se nas provas recolhidas pelos Schulberg e apresentadas durante o primeiro julgamento de Nuremberg. As imagens apresentadas no tribunal são famosas, mas a história da busca dos Schulberg não foi contada em filme até agora. A história interna de sua extraordinária missão ganha vida através de imagens nunca antes vistas dos Schulberg e de suas cartas privadas.

Setenta e cinco anos após o Julgamento de Nuremberg, o jornalista e cineasta francês Jean-Christophe Klotz regressa às minas de sal alemãs, onde Budd Schulberg descobriu imagens de filmes ainda em chamas e recria a descoberta de esconderijos secretos descrita por ambos os irmãos. Ao entrevistar figuras-chave sobreviventes da história, ele desvenda o mistério por trás do motivo pelo qual o filme resultante sobre o julgamento  Nuremberg: Sua Lição para Hoje  foi intencionalmente enterrado pelo Departamento de Guerra dos EUA. O fascinante filme de Klotz também preenche as lacunas sobre como esses materiais inovadores foram obtidos e levanta questões ainda pertinentes e profundas sobre o processo de uso do filme para escrever história.

Cineastas para a Acusação é uma adaptação da monografia homônima de Sandra Schulberg, que documenta seus anos de pesquisa sobre o trabalho da unidade cinematográfica do Escritório de Serviços Estratégicos para o julgamento de Nuremberg. Filha de Stuart e sobrinha de Budd, produziu o filme com os parceiros franceses Celine Nusse e Paul Rozenberg. A versão europeia do filme estreou no Festival de Cinema Judaico de Nova York de 2022 como O Filme Perdido de Nuremberg. Desde então, uma nova versão americana  NUREMBERG: Sua Lição para Hoje foi produzida por Sandra Schulberg e Josh Waletzky com nova narração de Jessica DiSalvo. O filho de Budd Schulberg, Benn Schulberg, lê excertos do relato de seu pai; e o filho de Stuart Schulberg, KC Schulberg, lê trechos das cartas de seu pai. A versão americana tem mais créditos finais e maior duração, de 65 minutos.

Significado para a civilização em geral e para a comunidade judaica

O Julgamento de Nuremberg representou uma iniciativa histórica para redimir a civilização ocidental do horror e da degradação do Holocausto, ainda mais notável porque o ódio e a vingança estavam em primeiro lugar nas mentes da maioria dos sobreviventes da carnificina. Surgiu apenas porque os americanos, com a vantagem de um distanciamento ligeiramente maior do que o dos seus aliados europeus, defenderam veementemente um julgamento adequado e cuidadosamente conduzido, em oposição a execuções sumárias. Ao fazê-lo, acabaram, em última análise, por ajudar a curar as divisões devastadoras da guerra e a selar a paz. O filme documenta um exemplo extraordinário de cidadania mundial civilizada e ainda hoje tem a capacidade de nos inspirar.

Para os judeus, o julgamento teve, e ainda mantém, um significado especial. Serviu como o primeiro reconhecimento de que os judeus tinham sido as principais vítimas de Hitler.

No entanto, negadores do Holocausto ainda existem e são notícia 80 anos depois, encontrando terreno fértil. NUREMBERG: Sua Lição para Hoje recria a prova incontestável que concluiu o caso da promotoria; no entanto, praticamente ninguém jamais viu o filme. Pois embora o filme tenha sido amplamente exibido na Alemanha durante 1948 e 1949, como parte da campanha do pós-guerra para desnazificar e reeducar a sociedade alemã, os próprios funcionários do governo que pagaram pela produção do filme ficaram com medo de mostrá-lo às audiências americanas.

A Restauração Schulberg/Waletzky chega num momento oportuno, pois os “princípios de Nuremberg” estão agora a ser aplicados em todo o mundo num esforço para processar crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

O DOCUMENTÁRIO NUREMBERG: Sua Lição para Hoje
 
O maior drama de tribunal da história 
Escrito e dirigido por Stuart Schulberg 
Restaurado por Sandra Schulberg e Josh Waletzky 
80 minutos, P&B, 35 mm, Mono, Proporção de tela 1:33; 
em inglês e alemão (alguns franceses e russos) com legendas em inglês 
 
SINOPSE 
 
É o verão de 1945, no final da Segunda Guerra Mundial. A lenda do cinema, John Ford, chefe do ramo fotográfico de campo do Escritório de Serviços Estratégicos (agência de espionagem americana durante a guerra), designa os irmãos Budd e Stuart Schulberg para realizar uma missão especial. A sua tarefa é localizar imagens e fotografias alemãs das atrocidades nazistas, a fim de condenar os líderes nazis que deverão ser julgados em Nuremberg naquele outono. 
 
Os irmãos Schulberg - Stuart à esquerda, Budd à direita - trabalhavam na mesma unidade cinematográfica do Escritório de Serviços Estratégicos (OSS) ao longo da guerra e durante a preparação para o Julgamento de Nuremberg - Crédito: Arquivo da família Schulberg

 
Assim começa uma investigação de alto risco que dura quatro meses e leva os dois jovens por uma Europa devastada em busca de evidências visuais dos crimes mais hediondos da história. O irmão mais velho, Budd, já tinha causado sensação com seu primeiro romance, What Makes Sammy Run?, revelado ao grande público por Hollywood, mas isso foi anos antes de ele ganhar o Oscar por escrever On The Waterfront. Stuart, que abandonou a Universidade de Chicago, tem grandes esperanças de seguir carreira no jornalismo, mas é um humilde copiador de jornais quando sai para ingressar no Corpo de Fuzileiros Navais depois de Pearl Harbor. Isso acontecerá anos antes de ele se tornar o produtor vencedor do Emmy do David Brinkley's Journal e, em seguida, produtor de Today, trator de notícias matinais da NBC.
 
Criando o filme sobre o julgamento 
 
No inverno de 1946, Stuart Schulberg e seu editor, Joe Zigman, foram contratados por Pare Lorentz (chefe da Divisão de Cinema/Teatro/Música da Divisão de Assuntos Civis do Departamento de Guerra dos EUA) para criar um documentário sobre o julgamento. 
Schulberg e Zigman ficaram terrivelmente limitados pelas imagens disponíveis. A cobertura crucial simplesmente não existia. Por outro lado, foi feita uma gravação sonora completa do julgamento. Num artigo escrito por Stuart Schulberg em 1949, ele descreveu o processo frustrante:
 
A maior dificuldade técnica envolveu o uso de depoimentos gravados originais do próprio julgamento. Era importante, para que a autenticidade do filme fosse convincente, que Goering e seus colegas expressassem suas fracas linhas de defesa em suas próprias e conhecidas vozes (...). Tornou-se necessário proteger as gravações de cera das acusações armazenadas em Nuremberg, para regravar as palavras pertinentes em filme e depois sincronizar essa gravação sonora com os movimentos labiais dos respectivos réus. (...) Muitas semanas depois do pedido original, as gravações chegaram de Nuremberg. Os discos foram regravados em filme em meio dia, e cerca de um mês depois o meticuloso trabalho de ‘dublagem’ das vozes originais dos réus foi concluído.” (Stuart Schulberg, Nuremberg, Boletim Informativo, nº 164, 28 de junho de 1949, Gabinete do Governo Militar para a Alemanha, Berlim). 
 
Um campo minado político ¹
 
Assim como o ímpeto para o julgamento veio dos americanos, eles procuraram desde o início controlar a produção do filme sobre o julgamento. Mas, no outono de 1946, surgiram divergências sobre o roteiro e o processo de produção do filme, não apenas dentro do Grupo de Trabalho do Documentário (DFWP), de quatro potências, mas também entre o Governo Militar dos EUA para a Alemanha, em Berlim e o Departamento de Guerra em Washington. Na primavera de 1947, Pare Lorentz, Chefe da Seção de Cinema, Teatro, Música da Divisão de Assuntos Civis do Departamento de Guerra (e criador de The Plough That Broke the Plains and The River) finalmente ganhou o controle do filme, e estava enviando seu diretor-escritor designado, Stuart Schulberg, para Berlim. 
 
A estreia alemã 
 
Schulberg e o editor Joseph Zigman completaram o documentário de 78 minutos em Berlim no início de 1948 e escolheram como título final, Nuremberg: Sua Lição para Hoje. Foi exibido ao público da Alemanha Ocidental pela primeira vez em novembro de 1948, na cidade de Stuttgart. Por causa do bloqueio soviético a Berlim, a estreia naquela cidade foi adiada para maio de 1949.
 
As primeiras audiências saem do cine Kamera em Stuttgart, em novembro de 1948. Suas reações, conforme registradas pelos pesquisadores de opinião OMGUS, variavam de descrença a ódio, a vergonha.

 
Stuart Schulberg na estreia de Nuremberg em 1948. Crédito: Arquivo da família Schulberg.

 
Os três desafios da restauração 
 
A restauração envolveu dois grandes desafios, um pictórico e outro auditivo. Pelo caminho, surgiu um terceiro desafio  este musical. 
 
Primeiro: Criar um Novo Negativo 
 
Foi decidido desde o início que a primeira versão do filme de 1948 seria o padrão e que nenhum elemento da imagem seria alterado. Mas com a perda do negativo original, que material mestre poderia ser usado? Sandra Schulberg vinha consultando Les Waffen, chefe de cinema da NARA (Administração Nacional de Arquivos e Registros dos EUA), sobre essa questão há vários anos, e eles planejavam usar uma impressão de 35 mm mantida em um armazenamento refrigerado no Kansas. Olhando de perto, entretanto, a imagem estava muito degradada e o contraste muito alto. Outra impressão da NARA e dois negativos duplicados também eram candidatos inferiores; e eles variavam em comprimento, o que significava que quadros ou tomadas inteiras foram cortados. Com o tempo a escassear, o Bundesarchiv de Berlim veio em socorro e enviou a sua impressão “lavanda” de 35 mm  um master positivo de grão fino  para os EUA em empréstimo. 
Houve júbilo quando o relatório de inspeção mostrou que cada uma das oito bobinas estava em excelentes condições, com encolhimento mínimo. A imagem continha mais detalhes e o baixo contraste significava que a impressão lilás oferecia a melhor chance de criar um negativo de boa qualidade. A impressão alemã também era a mais completa que existia, e sua trilha sonora em alemão era nítida. No final de setembro de 2009, um novo negativo de filme 35mm foi criado sob a supervisão de Russ Suniewick no Colorlab, em Rockville, Maryland, uma instalação especializada em restauração e preservação de arquivos. O negativo foi então enviado para a DuArt Film & Video em Nova York, onde novas impressões de lançamento em 35 mm foram feitas sob a supervisão do presidente da DuArt, Irwin Young, e de seu associado Steve Blakely.
 
Segundo: reconstruir a trilha sonora 
 
Enquanto isso, uma complexa reconstrução sonora estava em andamento. O objetivo de Sandra Schulberg e Josh Waletzky era criar uma trilha sonora internacional que permitisse ao público moderno ouvir as vozes dos promotores de língua inglesa, francesa e russa, e as vozes das testemunhas, réus e advogados de defesa alemães. Eles também queriam que o público ouvisse o alemão original falado em O Plano Nazista, o filme probatório apresentado no julgamento que ocorre dentro e fora de Nuremberg. 
Com Lisa Hartjens duplicando as gravações do teste na NARA, Josh Waletzky começou o trabalho meticuloso de tentar combiná-las com a imagem. Aqui ele encontrou os mesmos problemas enfrentados pelos cineastas originais, Stuart Schulberg e Joe Zigman. Embora fosse desejo de Stuart Schulberg usar o máximo possível de som original do julgamento, ele era relativamente limitado. Ele e Zigman contornaram o problema usando narração e imagens extensas que não estavam sincronizadas com o som. Na versão subsequente do filme em inglês, todas as vozes  alemão, francês, russo e inglês  foram quase totalmente obscurecidas pela narração. A reconstrução sólida exigiu muita paciência  e muitos compromissos. Tornou-se óbvio que a sincronização continuaria sendo um objetivo ilusório, mesmo quando fosse possível substituir a narração pelo som ao vivo. 
Enquanto Waletzky aprimorava os problemas de sincronização do som, Sandra Schulberg se concentrava na criação de legendas para combinar com a nova narração. Graças aos documentos de Stuart Schulberg, ela teve acesso às escritas originais em alemão e inglês. Com a ajuda de Jenny Levison e Lisa Hartjens, foi transcrita uma “lista de diálogos” inglês-alemão. Começou então o fascinante trabalho de comparar a lista de diálogos com os roteiros originais, com as faixas de narração em inglês e alemão de 1948, com as palavras faladas gravadas no julgamento e com a transcrição do tribunal. Surgiram muitos problemas de tradução. 
Com que precisão a narração original traduziu o que foi dito no julgamento? Até que ponto a narração refletiu a interpretação da acusação sobre o testemunho e as provas textuais? Até que ponto a narração refletiu um ponto de vista perceptível de “reeducação” por parte do Governo Militar dos EUA? Quanta liberdade poderia ser tomada para limpar a sintaxe complicada e melhorar a tradução sem alterar o caráter do filme original? Deveríamos usar o termo inglês “Solução Final” para aquilo que Goering chamou de “Endlösung der Judenfrage”? Outro exemplo complicado foi a tradução da palavra “Weltanschauung”, que o filme original transmitia como “ideologia”. Schulberg e Waletzky (que falam alemão e iídiche respectivamente) ponderaram e debateram a escolha certa das palavras nas semanas que antecederam a sessão de gravação e novamente antes de as legendas serem gravadas na primeira impressão em 35 mm. 
22 de setembro de 2009 foi um dia emocionante. Liev Schreiber (estrela de Taking Woodstock, Defiance, The Manchurian Candidate, etc.) gravou o roteiro de narração no Sync Sound em Nova York. Para preservar o ambiente auditivo da faixa original, um microfone RCA de época foi usado, além de um Neumann de última geração. A vitalidade de Schreiber e sua facilidade com todas as pronúncias alemãs infundiram na narração uma energia fluida. 
 
Terceiro: recriar a partitura original 
 
A busca pelas faixas musicais originais começou em julho. Sem elas seria impossível extrair trechos da partitura que estavam casados com a narração. Ronny Loewy, um dos especialistas no filme de Nuremberg na Alemanha, se ofereceu para pesquisar. Embora a esperança de encontrar as faixas musicais tenha diminuído rapidamente, Loewy relatou notícias surpreendentes. O compositor foi Hans-Otto Borgmann, que, em 1933, compôs a música para um filme de propaganda nazista Hitlerjunge Quex. Uma de suas canções do filme  Unsere Fahne flattert uns voran, com letra adaptada de um texto de Baldur von Schirach  tornou-se o hino oficial da Juventude Hitlerista. 
Os aparentes laços de Borgmann com o Partido Nazista surpreenderam Schulberg e Waletzky. Como ele poderia ter sido autorizado a trabalhar em Nuremberg
A pesquisadora do Bundesarchiv, Babette Heusterberg, relatou que Borgmann havia sido membro da Nationalsozialistische Betriebszellenorganisation (NSBO), do Kampfbund für deutsche Kultur (KfdK) e do Reichsfilmkammer, mas não havia evidências de sua filiação ao Partido Nazista (NSDAP). De acordo com os registros que encontrou, Borgmann foi entrevistado pelo Gabinete do Governo Militar, Seção de Controle de Informação, em Berlim, em 20 de outubro de 1946, e proibido de todas as atividades culturais. Ele esperou alguns meses antes de solicitar novamente uma autorização de trabalho, citando uma possível oferta de emprego de Eric Pommer, chefe da OMGUS Motion Picture Branch. Os arquivos mostram que o caso de Borgmann foi reconsiderado em 5 de setembro de 1947. Até então, o Exército dos EUA não tinha objeções ao seu emprego no Setor dos EUA e o reclassificou. Ele tinha seu Persilschein
(Persil era o nome de um sabão em pó popular na Alemanha. Persilschein entrou no vocabulário do pós-guerra como uma gíria para significar um certificado de desnazificação ou autorização de trabalho emitido pelos governos ocupantes. Em termos políticos, significava um atestado de saúde limpo, mas poderia também significar uma cal.) 
As faixas musicais foram perdidas, mas Schulberg encontrou as pistas musicais manuscritas e totalmente orquestradas de Borgmann para o filme de Nuremberg nos arquivos de seu pai. Com isso como guia, o compositor John Califra sintetizou a música obscurecida pela narração original. Ele trabalhou em estreita colaboração com Waletzky, ele próprio um compositor, para combinar com precisão a música reconstruída com o resto da partitura de Borgmann. Outro enorme problema tinha sido resolvido.
 
ESTRUTURA E CONTEÚDO DO FILME 
 
NUREMBERG: Sua Lição para Hoje segue a estrutura do julgamento, usando as quatro acusações da promotoria como princípio organizador. Embora grande parte do filme se passe no tribunal, ele reconstrói o caso da promotoria e refuta as afirmações dos réus, baseando-se nos próprios filmes dos nazistas. Nuremberg, portanto, faz cortes desses filmes para trás e para a frente. 
 
A PREPARAÇÃO DE NUREMBERG: sua Lição para Hoje (1948) 
 
O primeiro julgamento de Nuremberg (formalmente conhecido como Tribunal Militar Internacional) foi convocado em 20 de novembro de 1945, em Nuremberg, Alemanha, para julgar os principais líderes nazistas. O veredito foi proferido em 1º de outubro de 1946. 
 
Foto de Robert H. Jackson, promotor-chefe dos EUA no Tribunal Militar Internacional de Nuremberg
 
O juiz Jackson queria que fosse feito um filme sobre o julgamento desde o início. O seu objetivo era ser duplo: 1) mostrar ao público alemão que a liderança nazi tinha tido um julgamento justo e tinha, essencialmente, “se condenado” e 2) criar um filme para a posteridade que oferecesse uma lição duradoura para toda a humanidade. 
 
A busca por filmagens nazistas 
 
Uma equipe especial de cinema do Escritório de Serviços Estratégicos foi formada para esse fim, sob o comando do diretor de Hollywood John Ford. Os irmãos Budd e Stuart Schulberg, filhos do ex-chefe do estúdio da Paramount, B.P. Schulberg, foram designados para esta equipe especial de busca do Escritório de Serviços Estratégicos que foi enviada para a Europa. 
 
Documentando o julgamento 
 
Foi planejado que a unidade de Ford se encarregaria das filmagens, mas eles estavam tão ocupados montando as filmagens para mostrar no Julgamento que tiveram que recusar a responsabilidade. Assim, no último minuto, a responsabilidade foi transferida para outro ramo. 
Os cineastas e fotógrafos do Signal Corps do Exército americano filmaram o julgamento, mas filmaram apenas 25 horas ao longo de 10 meses e meio. 
 
OS FILMES DENTRO DO FILME 
 
Nuremberg: Sua Lição para Hoje deriva o poder de sua cinematografia nítida em preto-e-branco, do uso que fez dos próprios filmes de propaganda nazistas, do testemunho de figuras infames como Hermann Goering e das imagens devastadoras e comoventes da crueldade humana. 
A Seção Fotográfica de Campo do Escritório de Serviços Estratégicos/Equipe de Crimes de Guerra dos Schulberg preparou uma compilação de 4 horas de material alemão totalmente autenticado, que foi exibido na sala do tribunal em 13 de dezembro de 1945, sob o título O Plano Nazista. Ele traçou a ascensão nazista ao poder, começando na década de 1920 e continuando durante a guerra. Este filme probatório foi, no final, construído em conjunto com os procuradores e tornou-se um elemento importante do caso da promotoria. 
Eles também compilaram um filme de 1 hora chamado Campos de Concentração Nazistas. Esta foi uma versão especialmente editada do Filme de Atrocidades do Army Signal Corps, filmado em campos que foram libertados pelos americanos e britânicos em maio de 1945, incluindo Bergen-Belsen, Buchenwald, Dachau, Mauthausen, Nordhausen, Ohrdruf e em Hadamar, onde médicos realizaram experimentos hediondos em pessoas. 
Outras imagens exibidas no julgamento incluíram um filme de 8 mm de 60 segundos de homens e mulheres judeus sendo arrastados (alguns deles nus) de suas casas; e dois filmes apresentados pelo promotor soviético Roman Rudenko, Atrocidades Fascistas Alemãs na URSS e A Destruição de Lídice. Durante o período de edição em Berlim, Stuart Schulberg localizou um filme histórico no apartamento de Berlim de um oficial SS nazista chamado Nebe, mostrando o gaseamento experimental de seres humanos em um pequeno prédio nos arredores de Mogilev, na Polônia. Schulberg optou por incluir essa filmagem no filme, embora não tenha sido exibida no julgamento. 
(Os documentos de Stuart Schulberg revelaram que ele adicionou o efeito sonoro do motor do carro funcionando. Essa sequência, agora com o som removido, faz parte de uma exposição especial “Medicina Mortal” no Museu do Holocausto.) 
 
O Plano Nazista 
 
O principal promotor dos EUA e a força motriz por trás da organização do Julgamento foi o juiz da Suprema Corte dos EUA, Robert H. Jackson. Durante a preparação para o julgamento, Jackson tomou a decisão ousada e histórica de usar provas cinematográficas e fotográficas para condenar os nazistas. Mas esses filmes tinham que ser encontrados. 
Uma equipe especial de filmagem do Escritório de Serviços Estratégicos  Seção Fotográfica de Campo/Equipe de Crimes  foi formada para esse fim. Os irmãos Budd e Stuart Schulberg, filhos do ex-chefe do estúdio da Paramount, B.P. Schulberg, foram designados para esta equipe especial de busca que foi enviada para a Europa. Budd era tenente da Marinha e seu irmão mais novo, Stuart, sargento do Corpo de Fuzileiros Navais. 
Stuart Schulberg e outro escritório da unidade de cinema, Daniel Fuchs (mais tarde um autor conhecido), foram enviados primeiro, em junho de 1945. Budd Schulberg, junto com os editores de cinema do Escritório de Serviços Estratégicos, Robert Parrish e Joseph Zigman, seguiram em setembro de 1945. 
A busca por filmes incriminatórios foi conduzida sob enorme pressão de tempo e eles encontraram sabotagem ao longo do caminho. Eles encontraram dois esconderijos de filmes ainda queimando, como se seus guardiões tivessem sido avisados, e começaram a suspeitar de vazamentos por parte de seus informantes alemães, dois editores de filmes da SS. 
Bem na hora do início do julgamento, encontraram provas significativas, que, em estreita colaboração com a equipe de advogados de Jackson, editaram um filme de 4 horas para o tribunal chamado O Plano Nazista
No decorrer deste trabalho, Budd Schulberg prendeu Leni Riefenstahl em sua casa de campo em Kitzbühl, na Áustria, como testemunha material, e a levou para a sala de edição de Nuremberg, para que ela pudesse ajudar Budd a identificar figuras nazistas em seus filmes e em outro material de filmes alemães que sua unidade tinha capturado. 
Stuart Schulberg tomou posse do arquivo fotográfico de Heinrich Hoffmann, fotógrafo pessoal de Hitler, e tornou-se o especialista da unidade cinematográfica em evidência fotográfica. A maioria das fotos apresentadas no julgamento traz sua declaração de autenticidade. 
O Plano Nazista foi apresentado como prova em 13 de dezembro de 1945, precedido por uma declaração de autenticidade assinada pelo comandante Ray Kellogg, superior imediato de Budd. Como O Plano Nazista consiste inteiramente em filmagens feitas por oficiais, cineastas e diretores do Reich (por exemplo, Riefenstahl), Budd Schulberg escreveu intertítulos em inglês para o filme da compilação.
 
Campos de Concentração Nazistas
 
O juiz Robert H. Jackson chocou o tribunal em 29 de novembro de 1945, quando decidiu apresentar Campos de Concentração Nazistas, uma compilação de 1 hora de material cinematográfico dos EUA e da Grã-Bretanha que foi filmada enquanto os Aliados libertavam alguns dos campos de concentração. 
Numa carta publicada em 1947, Stuart Schulberg descreveu como, no último momento, na manhã da apresentação, colou um tubo de neon sob o descanso do braço do banco dos réus, para que fosse possível ver as reações deles ao filme na sala escura do tribunal. 
Quando Stuart Schulberg e seu editor, Joseph Zigman, fizeram Nuremberg: Sua Lição para Hoje, eles entrelaçaram as cenas do tribunal com trechos de O Plano Nazista e Campos de Concentração Nazistas
Um relato completo da busca pelas fotografias e filmagens nazistas conduzida por Budd Schulberg, Stuart Schulberg e seus colegas do Escritório de Serviços Estratégicos aparece em um próximo livro chamado The Celluloid Noose.
 
SUPRESSÃO AMERICANA DE NUREMBERG
 
NUREMBERG: Sua Lição para Hoje deveria ter sidod exibido nos Estados Unidos como um exemplo emocionante da justiça americana e dos aliados, e como uma lição para a posteridade, mas o lançamento do documentário nos EUA foi aparentemente suprimido, apesar do fato de que, em abril de 1947, o secretário adjunto da Guerra Howard C. Petersen escreveu:
“A própria forma como o Julgamento foi organizado e conduzido e as provas que produziu constituem um documento histórico que deverá ser útil, não apenas nos cinemas, mas nas escolas e universidades durante muitos anos.”

(Fonte: Cópia carbono da carta do Secretário Adjunto da Guerra Howard C. Petersen ao General Lucius D. Clay, Governador Americano Militar da Alemanha, no Arquivo da Família Schulberg.) 

Substituído pelos soviéticos

Àquela altura, os soviéticos tinham decidido produzir o seu próprio filme, Sud Narodov (1947) (Julgamento das Nações,  em russo Суд народов), que lançaram não só na Alemanha, mas também em Nova Iorque. Em 21 de maio de 1947, o New York Post noticiou:

“O Stanley Theatre na Times Square exibirá o filme do Julgamento de Nuremberg. Mas esta é a versão russa. O filme completo de quatro potências está sendo feito por Pare Lorentz e estará pronto em dois meses. (…) Schulberg e Zigman estão em Berlim concluindo o filme com base na transcrição oficial e enfatizando a verdadeira filosofia dos julgamentos.”

Mas naquele mesmo mês, Pare Lorentz (nos EUA) telegrafou a Schulberg (em Berlim) informando que estava renunciando ao cargo por frustração, embora esperasse continuar envolvido com o filme.

Duas semanas depois, em 8 de junho de 1947, a Variety começou a investigar atrás dos bastidores e relatou: “O rosnado no interior do Exército dos EUA alega: Deixem que os Vermelhos vençam os ianques no filme de Nuremberg”.
 
Variety, edição de 11 de junho de 1947 - Arquivo da família Schulberg

 

Exposição do Washington Post


Em 1949, um obstinado repórter do Washington Post chamado John Norris tentou investigar por que o Departamento de Guerra não lançaria o filme nem o venderia a Pare Lorentz para que ele pudesse completar e distribuir a versão em inglês. Ninguém se manifestaria publicamente.

Norris presumiu que a ampla divulgação de um filme que acusava a Alemanha de crimes de guerra poderia impedir a aceitação política e pública do plano de reconstrução da economia alemã, um elemento vital na abordagem do Plano Marshall à recuperação europeia.

Para complicar as coisas, em meados de 1948, os soviéticos bloquearam Berlim. 
³ A nova ameaça era o expansionismo soviético. Ao tentar descobrir as razões para a censura do filme pelo governo, Norris especulou que alguns “sugeriram que há pessoas com autoridade nos Estados Unidos que acham que os americanos são tão simples que só podem odiar um inimigo de cada vez. Esqueçam os nazistas”, aconselham elas, “e concentrem-se nos Vermelhos.

Assim, a versão em inglês nunca foi devidamente finalizada e nunca foi lançada nos cinemas dos Estados Unidos.
 
 
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS (da autoria do gerente do Blog do Braga)
 
 
¹ Originalmente planejado para celebrar um evento histórico, a produção deste documentário era de fato parte da competição política e dos meios de comunicação entre o Bloco Oriental (Estados Unidos e seus aliados, Reino Unido, França, Alemanha Ocidental, Bélgica e Holanda) e o Bloco Ocidental (ex-União Soviética, Alemanha Oriental, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária e Albânia) na véspera da "Guerra Fria". 
 
² [DELAGE, 2006, 282] fez as seguintes observações na nota nº 28 referente ao capítulo 8 do seu livro: "Declaração de rosnado interno do Exército dos EUA: Deixa que os Reds derrotem os Ianques no filme de Nuremberg." (Variety, 11 de junho de 1947) Uma crítica publicada em 28 de maio de 1947 afirmou: "Julgamento de Nuremberg é uma versão sombria, embora ligeiramente desconexa, do noticiário soviético do julgamento dos principais criminosos de guerra nazistas. Os exibidores dos EUA há muito tem argumentado que os documentários devem ser de alto nível se [devem] poder servir como exibição regular na tela. Este [filme] dificilmente se compara a essa classificação. Além disso, [ele] dá aos russos muito crédito por vencer a guerra." O famoso crítico Bosley Crowther foi menos negativo: "Exceto por uma óbvia parcialidade em relação aos soviéticos entre os promotores e uma predominância de referência à vitimização dos russos durante a guerra, o filme poderia ter sido montado por competentes especialistas de qualquer um dos Aliados." 
Cf. CROWTHER, Bosley: "Goering, com Swagger Lacking, nos Julgamentos de Nuremberg em Stanley", New York Times, 26 de maio de 1947. 
 
³ Consta que apenas a tomada de Berlim custou ao Exército Vermelho aproximadamente 300.000 soldados, equivalente ao número de soldados americanos mortos nas frentes europeia e japonesa, de 1941 a 1945, conforme a nota nº 30, p. 282, op. cit.
 
 
III. BIBLIOGRAFIA (sugerida pelo gerente do Blog do Braga)
 
 
DELAGE, Christian: La Vérité par l'image: De Nuremberg au processo Milosevic, Paris: Éd. Denoël, 2006, 384 p. 
 
SUMPF, Alexandre: Le procès de Nuremberg, HPI-L'Histoire Par L'Image

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A PALAVRA “JUDEU”

Por ROSETTA LOY (1931-2012)

Tradução do francês e seis comentários por Francisco José dos Santos Braga

Esta tradução é inédita na língua portuguesa.
Dei preferência ao texto em francês (“Madame Della Seta aussi est juive”, 1998, Éditions Payot & Rivages, traduzido do italiano por Françoise Brun, 167 p.), ao invés do original em italiano (La Parola "ebreo", 1997, Giulio Einaudi editore s.p.a., Turin), por me considerar possuidor de apenas rudimentos da língua italiana e, portanto, sentir-me mais confortável no trato com a língua francesa.
 
Madame Della Seta aussi est juive (1997), por Rosetta Loy

 
Se eu voltar no tempo e pensar no jeito como a palavra “judeu” entrou na minha vida, me vejo sentada em uma cadeirinha azul no quarto das crianças. Um quarto com um papel de parede com flores de pêssego manchado em diversos pontos; a primavera resplandece e a janela alta que dá para a sacada de pedra está totalmente aberta. Posso ver o apartamento do outro lado da rua, onde as cortinas se enchem de ar entre os batentes das janelas. Nesta casa está havendo uma festa e vejo gente indo e vindo. Nesta casa nasceu recentemente um bebê e a festa é para ele. 
“Um batismo?”, eu pergunto. 
“Não”, responde a mulher sentada perto de mim em outra cadeirinha, onde seu corpo está curvado como uma bola. “Claro que não”, ela acrescenta. Esta mulher é Annemarie, minha Fräulein (governanta), que continua: “Eles são judeus”, apontando com o queixo para a janela, “eles não batizam seus bebês, eles os circuncidam”. 
Ela disse “beschneiden” com uma careta de nojo. Essa é uma palavra incompreensível, mas que contém “schneiden”, "cortar" que conheço bem. 
"O quê?", murmuro incrédula. 
“Eles lhes cortam um pedacinho de carne”, ela responde bruscamente. 
Eu sussurro: “Mit der Schere...?” (Com a tesoura...?) E posso ver o sangue, um mar de sangue banhando o berço. A explicação é vaga, mas assustadora. Annemarie sugere alguma parte do corpo que eu não entendo, enquanto ela olha severamente pela janela: 
“Vielleicht mit der Schere, ja, dass weiß ich nicht...” (Talvez com a tesoura, sim, isso eu não sei...) 
Atrás daquelas janelas vejo menininhas passando com laços de fita na cabeça semelhantes aos meus, senhoras com pérolas em volta do pescoço e envoltas em vestidos de jersey macio como os de minha mãe. 
“Sind Juden” (São judias), ela repete; e o olhar de seus lindos olhos da cor do céu se fixa severamente numa criada que circula com uma bandeja. Talvez haja, escondido entre as xícaras de chá, o pedacinho de carne que tiraram do recém-nascido. Um dedinho, um pedaço de pele. 
A sra. Della Seta também é judia. Ela mora na frente de nossa casa: é velha, em todo caso me parece. Quando estou doente ela vem me ver, estou com febre e meu corpo afunda na grande cama de casal do quarto da minha mãe. A sra. Della Seta tem cabelos grisalhos presos em uma rede. Ela me traz um presente. É um cesto revestido de cetim azul, dentro da qual há uma boneca de celulóide presa por elásticos costurados no forro; outro elástico segura uma minúscula mamadeira com bico vermelho. Acho lindo esse presente: há também, presas, uma calcinha e uma blusinha. Adoro a sra. Della Seta, mesmo que ela seja judia. 
No andar de cima moram os Levi. Eles são mais barulhentos: muitas vezes a gente pode ouvi-los tocando piano, e a mãe tem olhos escuros muito brilhantes; não são tão gentis quanto a sra. Della Seta e a gente só se encontra com eles na escada ou no elevador. Eles não me trazem presentes. 
"Eles também são judeus", Annemarie me disse. Às vezes, Giorgio Levi toca a campainha e pede ao meu irmão para ir jogar bola com ele nos jardins da Villa Borghese. Giorgio é um ano mais velho do que ele, é alto, tem cabelos negros e cacheados e a expressão alegre de quem está ansioso para descer as escadas e se juntar aos companheiros de jogo. Ao voltar, meu irmão, enquanto lava os pés no bidê, reclama que Giorgio é mandão e que, quando alguém não lhe passa a bola com bastante rapidez, lhe dá uma cotovelada nas costelas. 
No jardim de infância, "tia" Gregória nos mostra ilustrações coloridas da Bíblia. Ela tem bochechas redondas e rosadas. Ela é baixa, e também está sentada em uma cadeirinha com seu longo hábito de lã branca lançando até o chão as pregas que se alargam na parte inferior; ela está trajando um coração vermelho bordado no peito, em memória da Paixão de Cristo. Sobre a página que ela vira diante dos nossos olhos com sua mão rechonchuda, Abraão levanta sua espada para matar Isaque. Isaque é filho de Abraão; mas felizmente o anjo chega e o interrompe. Abraão e Isaque são judeus. Os sete irmãos Macabeus também são judeus e morrem queimados por não renegarem a Deus. Na ocasião Deus era insensível, mas felizmente Cristo desceu à terra, e ele, ao contrário, é muito gentil e bom. Ele tem longos cabelos castanhos e olhos azuis; todos os dias, quando chego ao jardim de infância, ele está lá me esperando, e sua mão rosada de gesso aponta para o coração descoberto em seu peito, de onde escorrem algumas gotas de sangue. O coração é onde está o amor: Cristo nos ama. 
Somos cristãos, fui batizada em São Pedro e minha madrinha é a sra. Basile. Ela é tão idosa quanto a sra. Della Seta, mas é muito mais magra, e seu pescoço comprido e sua cabeça pequena a fazem parecer uma avestruz; meu irmão, uma vez, quando ela tinha vindo nos visitar, abriu a porta da sala e disse: “A sra. Basile tem bigode!”, antes de fugir. É verdade, os pelos do seu lábio superior, longos e grisalhos, um pouco eriçados, picam minha bochecha sempre que ela se abaixa para me dar um beijo. Ela tem olhos redondos e meigos; não ficou brava nem naquela tarde em que meu irmão se zombou dela para bancar o espertalhão. Pelo meu batismo, ela me deu uma corrente de ouro com um pingente da Madonna de Pompeia, que chupo quando estou na cama, no escuro. Todos os anos, no Natal, a sra. Basile organiza uma rifa beneficente para os pobres da nossa paróquia. Pilatos era romano e os fariseus e escribas eram judeus. Herodes também era judeu e, da mesma forma, Caifás. Também Barrabás. Eram todos judeus, exceto os centuriões. 
Quando não vou ao jardim de infância, Annemarie me leva ao Valle Giulia,  numa planície isolada perto do Museu de Arte Moderna. Estou sempre agasalhada em cachecol e boina de lã, porque minha saúde não é tão boa quanto a da minha irmã Teresa. Quase não há mais ninguém em Valle Giulia, mas de qualquer forma não posso brincar com outras crianças porque eu poderia pegar suas doenças. Perto dos bancos, às vezes há outra menina, fadada, como eu, à solidão, que fica remexendo o cascalho com sua pequena pá colorida. Posso ver sua calcinha branca, a mesma da Petit Bateau que Annemarie me ajuda a enfiar todas as manhãs. Eu me agacho também e a observo. Ela é loira e seu cabelo cai em ondas ao redor de seu rosto muito pálido. Eu bem que gostaria de ter a sua pá. Em volta do pescoço ela usa uma estrela dourada. Annemarie me chama; está conversando com a governanta da menina: parece que a menina é muito rica. Talvez eu possa brincar com ela. Volto a olhá-la remexendo o cascalho; estou fascinada pela estrela que está balançando ao sol. Pergunto a ela se posso tocá-la. 
“Não”, ela responde, “você não pode”. Ela não quer que eu chegue muito perto. Enquanto Annemarie e eu voltamos para casa, conto a ela sobre a estrela. 
“É a Estrela de Davi”, me diz ela. "Tia" Gregória nos mostrou um desenho de Davi, em que joga uma pedra em Golias. “Esta garota, em vez de um colar com a Madonna ou o menino Jesus”, explica Annemarie, “usa a estrela de seis pontas”. Ela não o diz, mas não sei porquê, compreendi que aquela garota era judia. Imediatamente penso em tesouras e sangue. Pergunto se a cortaram também.
"Do que você está falando, cortar o quê?" ela pergunta em alemão. Eu também deveria falar em alemão, caso contrário ela não me responderá. Agora esta estrela está cheia de mistério. Invejo essa garota que usa a estrela em vez do meu pingente chato. Esta criança, sou eu no inverno de 1936. 
Num livro que conta as aventuras de um menino católico, assediado por incrédulos que querem fazê-lo renegar a Jesus, entre os quais há malvados maçons, o menino é levado a um barco, onde está um judeu, muito malvado ele também. Todos querem arrancar o menino de sua fé, mas ele resiste e reza à Nossa Senhora. A certa altura ele tem até mesmo os olhos vazados. Não gosto deste livro: é estúpido e cruel. 
O que eu amo é o livro sobre o João Pestana, que joga pó prateado nas pálpebras das crianças e as leva ao País dos Sonhos. Também gosto do livro em que Befana ¹ caminha com dificuldade pela neve, em plena noite, e se introduz nas casas pela chaminé. Tenho uma fé cega em Befana, mesmo que nunca neve em Roma e, além do mais, não tenhamos chaminé. 
Mas antes de voltarmos à menininha sentada na cadeirinha azul, olhando pela janela, gostaria de voltar no tempo, quando essa menina nasceu, no nono ano da era fascista, no número 21 da Via Flamínia, no quarto chamado "vermelho”, por causa do papel de parede da cor de borra de vinho. E poucos dias depois, enquanto gotas de chuva batiam nas janelas do carro, ela foi levada à Basílica de São Pedro para ser batizada. Seu irmão mais novo e duas irmãs pequenas a acompanham nos braços de amas de leite e governantas (a mais velha tem quatro anos, enquanto a mais nova tem apenas quinze meses), e na pia batismal lhe é conferido, junto com seus demais sobrenomes, o nome Pia, em honra do papa sob o qual nasceu: Pio XI. 
No mesmo ano de 1931, em novembro, uma circular do Ministério da Instrução Pública impõe aos professores universitários um juramento de lealdade ao fascismo. Dos 1.200 docentes, 1.188 prestam juramento e comprometem-se a ensinar de acordo com os princípios da doutrina fascista; apenas 12 desistem de suas cátedras. 
Igualmente em 1931, foi lançado o novo romance do estimado e famoso escritor Giovanni Papini, homem de letras florentino de grande gênio e inteligência, que nos primeiros anos do século foi considerado um “herege”. Mas em 1921, tendo se convertido publicamente ao catolicismo, ele escreveu A História do Cristo, uma biografia romanceada que retoma a lenda do “Judeu Errante” para revelar “uma verdade mais assustadora, que não é a verdade histórica”. A imortalidade de Buttadeo ², condenado a vagar indefinidamente, é, para Papini, na verdade aquela mesma dos judeus, sobre quem repousa eternamente o sangue de Cristo, que estará sempre nas mãos dos judeus: castigados com a Diáspora, isolados dos outros homens, os descendentes daqueles que mataram o filho de Deus teimam ainda em não se converter. Papini narra também como esses errantes eternos desde então “descobriram uma nova pátria no ouro”, enquanto outros, vindos dos “guetos dos países eslavos”, “sujos e gordurosos”, representam ainda hoje a “figura ainda viva do verdadeiro Buttadeo.” É um "roman à thèse" ³ que tinha suscitado muita controvérsia no lançamento, mas igualmente num ano foram vendidos 70.000 exemplares e que tinha sido traduzido para francês, inglês, alemão, polonês, espanhol, romeno, holandês, finlandês, etc.  
Seu novo livro se chama Gog, abreviação do nome de seu protagonista, se apresenta como uma série de entrevistas imaginárias realizadas por um rico e excêntrico empresário americano, que quer descobrir “as doenças secretas de que sofre a civilização atual”. Por intermédio desse personagem, Papini finge entrevistar Gandhi, Freud, Edison, Shaw e toda uma série de personalidades deste século. E acrescenta a esses um encontro com o protótipo do judeu, personificado por Benrubi, secretário particular de Gog: “um jovem baixo, de ombros ligeiramente caídos, bochechas encovadas, olhos fundos, cabelos já um pouco grisalhos, tez esverdeada como lama de pântanos ... e uma expressão de cachorro que tem medo de ser atropelado, porém sabendo que é necessário.” Instigado pelas perguntas do seu chefe sobre a covardia judaica, Benrubi se dedica a uma longa explicação sobre o fato de que “incapazes de usar o ferro, os judeus se protegeram com o pior, com o ouro... O judeu, tendo-se tornado capitalista como legítima defesa, é agora considerado como sendo, devido à decadência moral e mística da Europa, um dos mestres da terra... dominador tanto dos ricos como dos pobres... Como poderia o judeu pisoteado e cuspido vingar-se dos seus inimigos? Humilhando, rebaixando, desmascarando, aniquilando os ideais dos "goyim", ao destruir os valores que a cristandade entende estar vivendo. E, de fato, se observardes atentamente, desde o último século e até nossos dias, a inteligência judaica não cessou de minar e manchar as vossas crenças mais caras... desde que os Judeus puderam escrever livremente, todas as vossas construções espirituais estão ameaçadas de desabar." Benrubi enumera uma série de personagens como Marx, Heine ou Lombroso, destruidores dos valores da cristandade, para finalizar: “Nascidos [os judeus] no meio de povos diferentes, dedicados a pesquisas diferentes, todos eles, alemães e franceses, italianos e polacos, poetas e matemáticos, antropólogos e filósofos, têm um caráter comum, um objetivo comum: o de questionar verdades reconhecidas, de rebaixar o que é elevado, de macular o que parecia puro, de tornar instável o que parecia sólido, de apedrejar aquele que era respeitado.” (Gog será escolhido em abril de 1943 pela Rádio Vichy para uma transmissão de propaganda; e, no mesmo ano, uma escola de formação de oficiais da República de Salò adotará o texto para um curso sobre anti-semitismo.) 
Mas se Papini é um escritor muito apreciado na minha família, e se tanto A História do Cristo quanto Gog estejam enfileirados na estante do corredor em frente às biografias de Napoleão e aos romances de Bourget, essa família não é fascista, nem mesmo racista. Alguma dúvida poderia ser suscitada pela presença dos livros de aventura de Ugo Mioni, um padre cuja inspiração anti-semita é inegável, e que nos foram lidos em voz alta. Mas a preferência que lhes foi concedida foi certamente associada a motivos religiosos. 
Meu pai fez seus estudos com os barnabitas de Lodi, no Piemonte, num colégio onde ingressou aos dez anos e permaneceu até os dezoito, exceto vinte dias de férias anuais com a família. Suas histórias sobre aquela época sempre nos deixam maravilhados e um pouco angustiados. Suas palavras fazem reviver os meninos, alinhados sobre suas camas no dormitório e aguardando o mordomo que viria tirar-lhes as grandes botas pretas. O mordomo passa muito rapidamente e puxa com tanta força que os meninos caem no chão, e toda vez parece que o pé está sendo arrancado ao mesmo tempo que a bota. A água para lavar de manhã é coberta com um véu de gelo no jarro. Os alunos só podem brincar de pega-pega com a condição de não se tocarem: é uma coisa que nunca deve acontecer; podem usar um pedaço de corda que alguns dos alunos mais velhos deixam congelar na fonte do pátio para se tornar uma vara, e com a qual batem violentamente nos companheiros menores. A espera da visita materna, que vem uma vez por mês, é vibrante. Certas manhãs nubladas, o frio e a escuridão deixavam meu pai tão melancólico que ele preferia passar o dia inteiro sem comer, sozinho num leito de enfermaria. Mas, bem depressa, a criança irreverente e imprudente que faltou à escola para ir nadar no rio Pó transformou-se num aluno-modelo, que, no final do ensino secundário, obteve a “menção honrosa”, um reconhecimento que lhe valeu seu retrato pintado a óleo na galeria do colégio. Depois foi para o Instituto Politécnico de Turim, onde estudou com paixão e descobriu a política. Quase imediatamente, ele se inscreveu no Partido Popular Italiano e com seu amigo Fioravanti tornou-se seguidor entusiasta do chefe desse partido, Don Sturzo. Na eclosão da guerra de 15 a 18, ele era não-intervencionista, aposentado e, felizmente, declarado incapaz de servir devido a insuficiência respiratória. 
Ele tinha sido alérgico ao fascismo desde o início. Ele já era um engenheiro que havia se destacado na construção de casas, pontes e estradas e, em seu otimismo, tinha acreditado que o fascismo fosse um mero fogo de palha. Mesmo depois do assassinato de Matteotti pelos fascistas, ele apostara no rápido declínio de Mussolini. Em vez disso, foi exatamente o oposto que acontecera. Então, para conter no escritório a tagarelice dos entusiastas do novo regime, mandou anexar um cartão na portaria com a mensagem “Não discuta política neste escritório”. Ele se casou tarde — minha mãe é treze anos mais nova que ele. Mais tarde, ele teve, como a maioria dos italianos, que se filiar no Partido Nacional Fascista se quisesse continuar trabalhando, e usa o distintivo na lapela do paletó. Por outro lado, ele não possui o uniforme completo; nas raras ocasiões em que ele tem que vestir a camisa preta (na inauguração de um canteiro de obras, na visita de algum funcionário a uma estrada ou ponte quase terminadas), nós, crianças, desfrutamos de seus gestos de escárnio diante do espelho. Seu grande amigo, desde o tempo do Partido Popular, ainda é o engenheiro Fioravanti, que preferiu partir para trabalhar no estrangeiro em vez de pegar uma carteira, qualquer que fosse. 
Uma das melhores amigas da minha mãe casou-se com um judeu, o Barão de Castelnuovo; e a sra. Della Seta costuma sentar-se em nossa sala exatamente na mesma cadeira que a sra. Basile frequentemente ocupa. Minha mãe entra de boa vontade em lojas com nomes como Cohen e Piperno. Uma de suas favoritas é Schostal. E nosso pediatra é o professor Luzzatti, médico da Casa real. "Volljude" , como diria Hitler. 
A primeira data trágica para os judeus italianos é, de fato, a ascensão de Hitler ao poder em 1933. Algo profundamente novo penetrou nas mentes dos 40 milhões de italianos habitantes da península. Com o óleo de rícino e o cassetete do fascismo, começou a sobrepor a coreografia mortuária e sacrificial da suástica, enquanto o antijudaísmo de origem religiosa (decerto fadado a desaparecer com o tempo) se via caminhar ao lado do ódio e da fanática mistica pagã. O decreto contra os judeus de 29 de março de 1933, cerca de dois meses após a nomeação de Hitler como Chanceler do Reich, dividiu os cidadãos alemães em arianos e não-arianos (ter um avô judeu basta para ser considerado não-ariano). E mesmo que as limitações dos primeiros decretos se apliquem indistintamente aos Mischlinge (nascidos de um progenitor judeu) e aos Volljuden (cujos dois progenitores são judeus), estes últimos vão ter rapidamente um tratamento que os excluirá da vida social; depois até da vida. São os Volljuden já os visados, desde o final de 1933, objeto da noção de Judenrein, o "expurgo dos judeus". Somente mais tarde com a guerra, esse mesmo tratamento será estendido aos Mischlinge. 
No mesmo ano de 1933 é o acordo entre a Igreja e o Terceiro Reich, promovido e assinado pelo secretário de Estado do Vaticano, cardeal Eugenio Pacelli. Durante a sessão de 14 de julho do Conselho de Ministros do Reich, como se pode deduzir das atas da reunião (C.I., doc. 362), o novo Chanceler Hitler, que governa um Estado onde existem cerca de 30 milhões de católicos, expressa o seu alívio: “Este acordo entre a Igreja e o Terceiro Reich, cujos detalhes não me interessam nem um pouco, cercou-nos de uma atmosfera de confiança que é muito útil na nossa luta intransigente contra o Judaísmo”. De fato os bispos alemães acolhem com satisfação esta notícia, que os protege de uma possível retaliação nazi e permite-lhes agora simpatizar abertamente com o novo homem da nova Alemanha. O único a se diferenciar é Monsenhor Faulhaber, bispo de Munique, e, do púlpito da mesma catedral onde será sepultado muitos anos depois, não hesita em censurar as opressões a que os judeus estão sendo submetidos. Mas os seus sermões do Advento sobre “Judaísmo, Cristianismo e Germanidade”, apesar de seguidos por uma multidão de fiéis tão numerosa que foi preciso instalar alto-falantes em duas outras igrejas para que eles pudessem ser ouvidos, não despertam qualquer repercussão. Essa denúncia permanece um fenômeno isolado e a hierarquia católica alemã não sente necessidade de tomar uma decisão. (Na Itália, as homilias de Faulhaber serão publicadas em 1934 pela editora católica Morcelliana de Brescia, numa tradução de Don Giuseppe Ricciotti, que assinará igualmente um prefácio exemplar.) 
Na França, há maior atenção por parte dos católicos. Isto é perceptível através dos escritos e discursos de Jacques Maritain e de Oscar de Férenzy, ou das declarações da oradora Marie-André Dieux, que, em abril de 1933, por ocasião de uma manifestação de solidariedade aos judeus alemães, fala da necessidade de “uma reparação... pelas injustiças cometidas no passado por aqueles que tinham a mesma fé que a minha”. No entanto, não se deve ter ilusões. Mesmo na França estes manifestos permanecem isolados. O clero e fiéis, na sua maioria, só percebem uma fraca ressonância deles. 
Mas voltemos à menina sentada em frente a Annemarie, no quarto com flores de pessegueiro nas paredes. Annemarie está reproduzindo para si um álbum de ilustrações de Struwwelpeter, o livro que conta a história de João Felpudo .  Ela desenha bem e o lápis traça a silhueta do Grande São Nicolau, que mergulha crianças travessas na tinta por zombarem de um negrinho pela cor de sua pele. De sua garrafa gigantesca tornam a sair as crianças inteiramente negras, pretas do topo da cabeça até a sola dos sapatos. Até a vela que elas seguram na mão é preta, enquanto correm alegremente atrás do negrinho, que já não se distingue delas. 
À tarde, quando meu irmão terminou o dever de casa, caminhamos atrás dele ao longo da borda do tapete do hall de entrada e cantamos: "Faccetta nera, bella abissina, aspetta e spera che già l'ora s'avvicina"   (“Rostinho negro, linda abissínia, espere e verá, pois a hora se aproxima...”), vestindo, cada um, um fez de veludo roxo na cabeça, do qual pende uma bolota esfarrapada. Mas é especialmente na primavera que nosso repertório de canções pode se exibir melhor. Durante o trajeto de carro para ir a Ostia e respirar a brisa marítima, que deveria fortalecer nossos pulmões, as nossas vozes decolam em hinos deliciosamente patrióticos.  Enquanto desfilam os plátanos da via del Mare, o nosso motorista Francesco fecha a divisória de vidro para não ficar surdo, enquanto passamos da alegria de “Sol que nasce, tão livre e alegre, doma os teus cavalos nas nossas colinas...” às estrofes melancólicas de “Você nunca verá nada no mundo maior que Roma, maior que Roma...” O fim é extremamente triste, pois sugere que o Major de Roma (categoria inferior ao nosso Duce, Marechal do Império) cometeu um crime grave, fato que o leva a definhar na prisão, atrás das grades para sempre, condenado a nunca mais ver nada do mundo. Felizmente, vem sempre a seguir “Roma recupera o império, e a hora da águia soará, os toques dos trompetes saúdam o voo...”, hino que me parece de brilhante exaltação. 
Mas, da noite para o dia, não poderemos mais cantar Faccetta Nera, o fez é confiscado e enfiado debaixo dos brinquedos no baú no hall de entrada. Domenico, o porteiro, explica a Annemarie que a canção está proibida porque seu apelo à “bela abissínia” é perigoso para a raça ariana pura à qual pertencemos. Assim, agora, quando costumo ir à padaria com Itália para comprar panini all’olio, vejo com certa apreensão o negrinho de chapa metálica pintada, que tem em suas mãos uma caixinha. Se eu colocar uma moeda dentro dela – e bastam dez centavos – o negrinho balança a cabeça do alto para baixo. "Ele te agradece", diz a moça do caixa. Agora ele é "Faccetta Nera", embora a Itália insista que este é o negrinho das Missões. 
Na nossa casa as Missões eram muito importantes. São muito comentadas e às vezes são encarnadas pelos padres de longas barbas que tomam café em nossa sala. Eles vêm de muito longe e trazem de presente caixas de madeira de sândalo e crucifixos incrustados com madrepérola e rosários feitos de oliveira de Getsêmani. E peles de tigre com patas com garras e goelas abertas, e com olhos frios de vidro. Antes de partirem, abençoam-nos, a nós crianças, pondo a mão em nossa cabeça; e quando regressam à África, enviam-nos uma fotografia deles vestidos de branco, em frente à sua igreja de madeira novinha.
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS
 
¹ Velha feiticeira benfazeja que traz presentes às crianças no 6 de janeiro, dia da Epifania.
 
² Buttadeo significa "joga-Deus" ou, em francês, "jette-Dieu". Em As flores do mal aparece uma litania intitulada "Abel e Caim", na qual, é claro, o que Baudelaire pensa dos deserdados, que são, em muitos dos seus poemas, o herói moderno: 
Raça de Abel, frui, come e dorme/ Deus te sorri bondosamente,/ Raça de Caim, no lodo informe/ Roja-te e morre amargamente. /[...] Raça de Abel, eis teu fracasso:/ Do ferro o chuço ganha a guerra!/ Raça de Caim, sobe ao espaço/ E Deus enfim deita por terra./
Segundo [BAUDELAIRE, Charles. Abel e Caim. In: As flores..., op. cit., p. 418-421], a raça de Caim sobe ao céu "et sur la terre jette Dieu!" 
 
Cf. [MENEZES, 2013, 88, 90] in Baudelaire e os sujeitos da modernidade 
 
RONCARI, Luiz: O universo marginal, São Paulo: Folha de S. Paulo, edição de 04/09/1995

³ "Roman à thèse", em francês, é uma novela que é didática ou que expõe uma teoria; normalmente tal obra literária tem por objetivo defender uma ideia filosófica ou política. 

Literalmente, Volljude é a condição do descendente que possui ambos os progenitores judeus.
 
"João Felpudo" foi a tradução portuguesa do título para o livro (1845) de Heinrich Hoffmann que, através de dez histórias ilustradas pelo próprio autor e rimadas, conta as consequências desastrosas do mau comportamento de uma forma exagerada. O título da primeira história fornece o título da obra. O livro é considerado um precursor das histórias em quadrinhos. Alguns pesquisadores vêem essas histórias do livro como ilustrações de muitos transtornos mentais infantis que conhecemos hoje, por exemplo, os da criança hiperativa.
 
"Faccetta nera" é uma canção composta por Giuseppe Micheli (letra) e Mario Ruccione (música) para o exército da Itália fascista por ocasião da Segunda Guerra Ítalo-Etíope (1935-1936). Fala sobre uma escrava que será levada a Roma e como lhe será oferecida uma nova vida, livre das amarras da escravidão. O narrador da canção promete que lá, sua pele escura será "beijada" pelo sol italiano, e que ela será apresentada a uma nova legislação, novos governantes e costumes. 
 
 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

NOVA DIRETORIA NA ACADEMIA DE LETRAS DE SÃO JOÃO DEL-REI


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Terezinha de Jesus da Silva ou "Terê" Silva

 
 
Tenho o prazer de comunicar que ontem, dia 18 de fevereiro, ocorreu a posse da atual Diretoria da Academia de Letras de São João del-Rei, sob a presidência de TEREZINHA DE JESUS DA SILVA ou "TERÊ SILVA", Acadêmica, ocupante da cadeira nº 9 cuja patrona é Bárbara Eliodora Guilhermina da Silveira. Verificou-se uma farta audiência com a presença de Acadêmicos, autoridades e convidados.

Crédito: Arquivo de fotos da Câmara Municipal


O evento foi coordenado pelo então presidente EVALDO BALBINO DA SILVA (Acadêmico, ocupante da cadeira nº 1, cujo patrono é Severiano Nunes Cardoso de Resende) e ocorreu no Plenário da Câmara Municipal são-joanense com a presença ilustre do Vereador PROFESSOR LEONARDO, que foi o responsável pela cessão da melhor dependência da Casa Edílica para a cerimônia acadêmica. Este e o Ten Cel Gustavo Tiyodi Nakashima, Comandante do 11º BIMth (o glorioso Regimento Tiradentes), foram os convidados de honra chamados para ocupar a Mesa dos trabalhos. 
 
A Acadêmica Liliane Aparecida dos Santos Dutra (Acadêmica, ocupante da cadeira nº 21) desempenhou o papel de cerimonialista, exercido com muita correção e modéstia. 
 
A animação artística ficou por conta da cantora lírica e convidada especial RUTE PARDINI, que cantou, acompanhada por todos os presentes, o Hino Nacional Brasileiro, no início da cerimônia, e, com todos os Acadêmicos, o Hino da Academia de Letras de São João del-Rei, logo após a posse de Terê Silva na presidência da Academia, sob o olhar atento do compositor (28/09/2018) e autor do poema: professor ABGAR CAMPOS TIRADO (Acadêmico, ocupante da cadeira 16), que estava presente. 
 
Discursaram em nome da Diretoria que deixa, os confrades Evaldo Balbino da Silva (ex-presidente e Acadêmico) e Ana Maria de Oliveira Cintra (ex-vice-presidente, Acadêmica, ocupante da cadeira nº 12).
 
A posse de Terê Silva foi solene com entrega de diploma de posse; em seguida, Balbino passou às mãos da presidente Terê Silva uma comenda que tinha recebido em 16/02/2024 em nome de nossa Academia, quando do seu comparecimento à fundação da AMLHG-OCIM, Academia de Letras, História e Genealogia da Inconfidência Mineira (Ordem dos Cavaleiros da Inconfidência Mineira), ocasião em que se comemorou o 300º aniversário de Ouro Branco-MG (1724-2024). 
 
Sobre Terê Silva, a nova presidente da Academia, inicialmente cabe informar que é a segunda mulher que ocupa a presidência da Casa de Cultura são-joanense, tendo sido a primeira: Zélia Maria Leão Terrell (Acadêmica, ocupante da cadeira nº 38), por duas gestões consecutivas. 
 
Além disso, Terê Silva é escritora são-joanense que conta com vários livros publicados, com destaque para seu último livro "Mundo Feliz". 
 
Estudou Letras/Literatura na UFSJ e exerceu cargo importante na Superintendência Regional de Ensino. Foi secretária da Academia durante 3 gestões, antes de ser eleita presidente de nossa Arcádia para a gestão 2024-2026. 
 
Vale ainda recordar que na gestão que se encerrou ontem presidida por Evaldo Balbino da Silva, Terê Silva foi peça-chave na atividade realizada no ano de 2023, que ficou conhecido por 3ª Intervenção Poética Nacional/Transvê Poesias, cujo objetivo é fomentar a leitura de poesias, que são previamente coladas em garrafas descartáveis e distribuídas aos interessados em diversas cidades brasileiras. Neste primeiro ano de participação da nossa Academia, incentivada por Terê Silva, foram distribuídas 200 poesias de autoria de poetas de diversas localidades do Brasil. 
 
Por fim, o presidente da Mesa, Prof. Evaldo Balbino abriu a palavra a quem desejasse fazer uso, e o presidente da Academia Infanto-juvenil de Letras de São João del-Rei, sr. Gola, se apresentou para, através de poucas palavras eloquentes e emocionadas, pedir socorro à continuidade do apoio que tem recebido do presidente Evaldo Balbino, presenteando-o com um diploma de benemérito da entidade. Depois de revelar que tem trabalhado à frente da entidade por 9 anos, representando-a com a maior dedicação, pediu maiores cuidados para a criança artista que chega à entidade como um abrigo às intempéries da vida familiar.
 
Crédito: Arquivo de fotos da Câmara Municipal
 
E para finalizar, a todos os presentes, autoridades, Acadêmicos e convidados, foi oferecido um suculento café.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

A “PONTE DO DIABO” DE PORTUGAL


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Dedico este artigo a ANTÓNIO VALDEMAR, jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras (cadeira nº 3), que tem colaborado intensamente com o Blog de São João del-Rei, divulgando a cultura lusa através de artigos e ensaios amparados em fontes históricas e trazendo da Ilha Delgada sua expertise, inspiração e investigação para deleite dos leitores brasileiros.
Ponte da Misarela - Crédito: Link: https://serradogeres.com/index.php/locais-paisagisticos/ponte-do-diabo  👈

Há por toda a Europa um monte de antigas pontes denominadas "pontes do diabo". Estas pontes foram construídas sob condições tão desafiadoras que a sua conclusão bem-sucedida exigiu um esforço heróico por parte dos construtores e da comunidade, garantindo seu status legendário. 
É fato público e notório que as lendas constituem um vasto e fascinante espólio cultural de Portugal. O Norte português é especialmente rico no que diz respeito a lendas, numa dança macabra de fantasmas e almas penadas, duendes e princesas cativas, lobisomens e potes de ouro escondidos. 
No Barroso, são muitas as lendas narradas de geração em geração, mas a mais conhecida de todas é a da Ponte da Misarela, em que, como em tantos outros casos acontece, o protagonista é o diabo. Localizada na aldeia de Sidrós, na freguesia de Ruivães, concelho de Vieira do Minho, distrito de Braga, o cenário do episódio é a velha ponte em arco com 13 metros de vão, sobre o rio Rabagão, que serve de fronteira entre os distritos de Braga e Vila Real, e cujas margens abundantes em penhascos parecem belas a uns e assustadoras a outros, conforme a imaginação e o estado de espírito do observador. 
 
 
Para descrever a Ponte do Diabo de Portugal, socorro-me de um romance histórico intitulado O mutilado de Ruivães - Das invasões francesas às lutas civis, de Mário Moutinho e A. Sousa e Silva (1980):
 
É uma ponte de arquitectura extravagante, louca, de um só arco, com mais de treze metros de vão, lançada com arrojo sobre dois rochedos, onde as águas do Rabagão se estreitam e despedaçam com fragor e saltam a grande altura, transformando-se em vaporosa chuva. O pavimento, abaulado, mede 27 metros de comprimento. Fica no fundo de um desfiladeiro alcantilado, a um quilómetro da confluência do Rabagão com o Cávado. Tão medonho e agreste é o sítio e tão severo o aspecto da ponte, que a vivíssima imaginação do povo não tardou a tecer-lhe lendas. 
Diz-se que um padre, querendo fazer uma pirraça ao Diabo, se disfarçou em salteador perseguido pelas justiças de Montalegre, e foi certo dia, à meia-noite, àquele lugar para passar o rio. Como o não pudesse passar, por meio de esconjuros, invocou o auxílio do Inimigo. Ouve-se um rumor subterrâneo e eis que aparece, afável e chamejante, o anjo rebelde: 
'Que queres de mim?'  perguntou ele. 
'Passa-me para o outro lado e dar-te-ei a minha alma.' 
Satanás, que antegozava já a perdição do sacerdote, estendeu-lhe um pedaço de pergaminho garatujado e uma pena molhada em saliva negra, dizendo: 
'Assina!'. 
O padre assinou. O Demónio fez um gesto cabalístico e uma ponte saiu do seio horrendo das trevas. 
O clérigo passa e, enquanto o diabo esfrega um olho, saca da caldeirinha da água benta, que escondera debaixo da capa de burel, e asparge com ela a infernal alvenaria, fazendo o sinal da cruz e pronunciando bem vincadas as palavras do exorcismo. 
Lúcifer, logrado, deu um berro bestial e desapareceu num boqueirão aberto na rocha, por onde saíram línguas de fogo, estrondos vulcânicos e fumos pestilenciais. 
 
O vulgo das redondezas, na sua ignorância e ingenuidade, e não sabemos a origem, aproveita-se da ponte para ali exercer um rito singular. 
Quando uma mulher, decorridos que sejam dezoito meses após o seu enlace matrimonial, não houver concebido, ou, quando pejada, se prevê um parto difícil ou perigoso, não tem mais que ir à Misarela, à noite, para obter um feliz sucesso. Ali, com o marido e outros familiares, espera que passe o primeiro viandante. Este é então convidado para proceder à cerimónia, a qual consiste no baptismo in ventris do novo ou futuro ser. Para isso, o caminhante colhe, por meio de uma comprida corda com um vaso adaptado a uma das extremidades, um pouco de água do rio e com a mão em concha deita-a no ventre da paciente por um pequeno rasgão aberto no vestuário para este efeito, acompanhando a oração com a seguinte ladainha: 
 
Eu te baptizo 
criatura de Deus, 
Pelo poder de Deus, 
e da Virgem Maria. 
Se for rapaz, será Gervaz; 
se for rapariga, será Senhorinha. 
Pelo poder de Deus e da Virgem Maria, 
um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.
 
O barulhar iracundo da cachoeira no abismo imprime a estas cenas um cunho de tétrica magia. 
Segue-se depois uma lauta ceia, assistindo, geralmente, o improvisado padrinho. E o êxito é completo: um neófito virá alegrar a família. 
Claro que, se na primeira noite não passar o viandante desejado, a viagem à Misarela repetir-se-á até o cerimonial se realizar nas condições devidas. 
De um dos lados ergue-se um enorme rochedo que o povo denominou 'Púlpito do Diabo', por crer que o Demo vai ali pregar à meia-noite, quando as bruxas das redondezas se reúnem em magno concílio...
 
Ouçamos também um estudioso local da estrutura da lenda, [FRADE, 2017], que analisa quais elementos entraram na sua constituição que, a seu ver, explicam o porquê da lenda em si e do rito que se firmou (em sua opinião, a lenda dos baptismos nocturnos), transformando a ponte num portento para a população local que começou a ver naquelas águas uma cura para gravidezes difíceis. Segundo ele, 
Ambas as lendas contam com um elemento de transição. Numa, o destaque vai para a ponte, e uma ponte é sempre um sítio de transgressão, de passagem para o outro lado, que é conotado como uma acção de provação. Noutra, sobressai a água, adicionando-lhe outro elemento de passagem, a meia-noite, que no fundo é uma nova ponte, neste caso entre um dia que acaba e outro que começa. A água, enquanto elemento fundador, é objecto de adoração pelo homem, que lhe foi entregando deuses de toda a espécie, conforme esteja ela em forma de mar, ou de rio, ou de fonte, ou de qualquer outra. 
Parece haver uma confluência de ritos misteriosos e de origem pagã que a igreja, por não obedecerem ao dogma estabelecido, certamente desaprovou ou tentou integrá-los numa nova ordem. É sabido que o simbolismo das pontes foi assimilado por ela  bastará lembrar a palavra pontífice, que significa construtor de pontes, e atribuída ao Papa como sumo pontífice. O mesmo para a água, introduzida na igreja enquanto via para o baptismo. 
Na realidade, o que aqui vemos são antiquíssimos cultos à água modernizados por olhar católico. Poderá a imposição do Diabo a esta obra ter sido uma invenção bispal para afastar o povo de ritos hereges? Pode, claro. Mas, como aconteceu em variadíssimos exemplos, não teve o resultado esperado.
 
 
II. AGRADECIMENTO

 
O gerente do Blog do Braga agradece à sua amada esposa Rute Pardini Braga a formatação e edição das fotos utilizadas neste artigo.
 
 
 
III. BIBLIOGRAFIA 
 
 
BASTOS, Jorge: Ponte da Misarela - Lendas, histórias e como ir, site Portugalthings.com
 
BOTELHO, Fernanda: O Mutilado de Ruivães - Recensão (elaborada em 1986 para a Fundação Calouste Golbenkian), 27 de janeiro de 2013
 
FRADE, Ricardo Braz: Ponte da Misarela,  site www.portugalnummapa.com, 16 de janeiro de 2017.

GERES - Serra do Geres: Ponte do Diabo, site serradogeres.com
 
MOUTINHO, Mário & SOUSA E SILVA, A.: "O mutilado de Ruivães - Das invasões francesas às lutas civis", Braga, 1980, 362 p.
 
SILVA, Fernando: Sobre "O Mutilado de Ruivães", site www.vilaruivaes.com, 16 de junho de 2006