terça-feira, 23 de junho de 2020

A BARBA DO FILÓSOFO, por John Sellars







Traduzido do inglês por Francisco José dos Santos Braga



I. INTRODUÇÃO



Este é o 1º capítulo da tese A Arte de Viver: Ideias Estóicas relativas à Natureza e Função da Filosofia, apresentada por John Sellars ao Departamento de Filosofia da Universidade de Warwick para a obtenção do grau de Doutor em Filosofia em julho de 2001. O capítulo, chamado “A Barba do Filósofo” (p. 20-28), abre a tese e consta da 1ª Parte intitulada Vida (βίος) e Arte (τέχνη), esta composta de 4 capítulos; a 2ª Parte compõe-se de Domínio de princípios (λόγος) e Treinamento prático em filosofia (ἄσκησις), conforme recomendava Sócrates no diálogo Górgias, de Platão.



II. A BARBA DO FILÓSOFO, por John Sellars




Em 176 d.C. o Imperador Romano e filósofo estóico Marco Aurélio criou quatro Cadeiras de filosofia em Atenas, uma para cada das mais importantes escolas. ¹ Quando, alguns anos mais tarde, o ocupante da cadeira peripatética morreu, dois filósofos igualmente bem qualificados candidataram-se ao cargo. ² Um dos candidatos, Diocles, já era de idade avançada, de modo que parecia que seu rival, Bagoas, certamente ocuparia a cadeira. Contudo, alguém do comitê de seleção opôs-se a Bagoas com base no argumento de que ele não usava barba, dizendo que, sobretudo, um filósofo devia sempre ter uma longa barba de modo a inspirar confiança nos seus discípulos. ³ Bagoas reagiu dizendo que, se filósofos devem ser julgados apenas pelo comprimento de suas barbas, então talvez a Cadeira da escola peripatética deveria ser dada a um bode. O assunto foi considerado ser de tão grave importância que foi narrado às mais altas autoridades em Roma, presumivelmente ao próprio Imperador.

Dessa história indubitavelmente apócrifa a gente pode dizer que na Antiguidade, e em particular na greco-romana, a barba passou a ser vista como “a” característica que definia o filósofo; filósofos tinham que ter barbas, e se supunha que qualquer um com barba fosse filósofo. Por que é que a barba se tornou tão intimamente associada na imaginação popular com a figura do filósofo? O que dizer sobre a natureza da filosofia como foi concebida na Antiguidade? Antes de responder a essas perguntas, poderia ser conveniente considerar com um pouco de detalhe a origem e o status do fenômeno que passou a ser chamado de “a barba do filósofo”.

O fenômeno cultural da barba do filósofo tem uma história um tanto complexa. Embora, ao pensar nos filósofos antigos barbudos, a gente poderia primeiro voltar-se para os exemplos de Sócrates e Platão, cujas barbas não eram “barbas de filósofos”. Nos séculos V e IV a.C., em Atenas o ato de barbear-se não era uma prática generalizada e, como regra, todo grego adulto usava barba. A introdução de barbear-se é geralmente creditada a Alexandre Magno no segundo meado do século IV a.C. e parece ter-se tornado uma prática muito popular. Porém, no período imediatamente após Alexandre, os filósofos tenderam a continuar a ostentar barbas em contraste com a moda emergente. Mas essas barbas as de Zenão e Epicuro não eram ainda as plenamente desenvolvidas.

No século III a.C. o foco da atividade filosófica começou a mudar-se de Atenas para Roma. De acordo com a tradição, os Romanos primitivos deixavam crescer suas barbas. Contudo, barbeiros foram primeiro introduzidos em Roma oriundos da Sicília por volta de 300 a.C., trazendo consigo o hábito de barbear. Um dos primeiros a adotar o hábito de barbear-se diariamente foi Cipião Africano, no segundo meado do século III a.C. Se o hábito de fazer a barba era comum na Grécia helenística, ficou quase obrigatório em Roma. Todos os Romanos respeitáveis eram barbeados, daquele ponto em diante.

Tendo fornecido as informações necessárias, agora é possível voltar para a questão relativa à origem da “barba do filósofo”. Em 155 a.C. uma embaixada de três filósofos gregos * visitou Roma numa missão diplomática. Os três filósofos eram representantes das três mais importantes escolas filosóficas da época: Carneades, o então presidente da Academia platônica; Critolaus, do Liceu aristotélico; e Diógenes da Babilônia, o então presidente dos Estóicos. ¹⁰ Em contraste com sua audiência italiana bem barbeada, todos esses três intelectuais ostentavam barbas espetaculares. Na mente dos Romanos, parecia haver alguma forma de conexão entre o fato de Carneades, Critolaus e Diógenes serem filósofos e o fato de todos eles terem barbas. Neste momento, então, formou-se o conceito especificamente romano da “barba do filósofo”. Após a conquista de Atenas em 87 a.C., Roma usurpou Atenas como centro de atividade filosófica no mundo antigo. ¹¹ Foi dentro da urbe de Roma barbeada, então, que a barba ficou ligada à figura do filósofo.

A fim de examinar a significância filosófica deste fenômeno cultural, será necessário considerar duas diferentes atitudes quanto a barbas. Cícero, o orador e estadista romano do século I a.C., foi também filósofo arguto e produziu inúmeras obras filosóficas. Como cidadão romano respeitável, Cícero era barbeado. Parece que ele deliberadamente escolheu não ostentar uma “barba de filósofo” e não é difícil compreender por quê. Se Cícero tivesse deixado crescer sua barba, teria parecido a seus contemporâneos um típico filósofo grego e exatamente como os três filósofos que visitaram Roma um século antes. Porém os únicos filósofos gregos presentes em Roma naquela época teriam sido ou escravos ou servos trabalhando como funcionários domésticos da aristocracia como bibliotecários e tutores, ou Cínicos sujos mendigando na esquina de rua e gritando insulto aos transeuntes. ¹² Em qualquer caso, a figura do filósofo barbudo não era o que Cícero politicamente ambicioso gostaria de aspirar. Isso sugere que Cícero estava mais preocupado com sua reputação social e sua carreira política do que estava com sua busca da filosofia. Sua preocupação era mais com o que ele poderia aprender dos filósofos e aplicá-lo em sua oratória e na sua carreira política do que com dedicar sua vida toda à filosofia mesma. ¹³  Consequentemente, Cícero nunca adotou a barba de filósofo.

Em agudo contraste com Cícero, o filósofo estóico Epicteto, que viveu no final do século I e início do II d.C., afirmava ser a barba do filósofo algo quase sagrado. Isso pode ser considerado como expressão da ideia de que a filosofia não é mero hobby intelectual, mas, antes, um modo de vida que, por definição, transforma todo aspecto do comportamento de alguém, incluindo os seus hábitos de barbear-se. Se alguém continua a barbear-se de modo a aparentar-se bem sucedido como cidadão romano respeitável, é claro que tal pessoa ainda não abraçou a filosofia concebida como um modo de vida e ainda não se libertou dos costumes da maioria. Na linguagem dos Sofistas, barbear-se é seguir o costume (κατά νόμον), enquanto ostentar uma barba é seguir a natureza (κατά φύσιν). ¹ Para Epicteto, o verdadeiro filósofo apenas agirá de acordo com a razão ou de acordo com a natureza, rejeitando as convenções arbitrárias que guiam o comportamento de todos os outros. Cícero apesar do valor e importância de seus trabalhos filosóficos escritos não era um filósofo de acordo com a definição muito específica do termo.

À luz disso, Epicteto estava intensamente orgulhoso de sua própria barba, descrevendo-a como nobre, séria e “mais majestática do que a juba de um leão”. ¹ Assim, a seguinte discussão hipotética indica o valor que ele dava à sua barba: 

“Venha, Epicteto, barbear-se”.
Se eu for filósofo, respondo: Não vou barbear-me.
“Então eu vou mandar decapitá-lo.”
Se isso lhe fizer bem, decapite-me.¹

Para Epicteto, barbear-se seria comprometer seu ideal filosófico de viver de acordo com a natureza e seria submeter-se à injustificada autoridade de outrem. Confrontado com aquela perspectiva, ele preferiria como Sócrates morrer. Se isso parece extremo, devemos lembrar que isso era uma questão política naquela época: Filóstrato conta que o Imperador Domiciano ordenou que fossem cortados o cabelo e a barba ao filósofo Apolônio como punição por atividades antiestatais. ¹Para não matá-lo que o faria um mártir como Sócrates essa foi a mais severa punição que o Imperador poderia infligir ao filósofo. Essa terrível possibilidade devia estar gravada na mente de Epicteto, pois ele estava em Roma na época em que Domiciano baniu todos os filósofos da Itália, e Epicteto literalmente fugiu para salvar sua vida. ¹

Pode-se agora notar como a barba passou a ser associada com a filosofia, ou mais precisamente, como passou a representar certa concepção de filosofia. De acordo com inúmeras fontes antigas, a barba do filósofo veio numa variedade de formas e tamanhos. Escrevendo no século II d.C., Alciphron descreve um grupo de filósofos de diferentes escolas presentes numa festa de aniversário: 
Esteve presente, entre os mais importantes, nosso amigo Eteocles, o estóico, o idoso, com uma barba sem aparar, o tipo sujo, com a cabeça descuidada, o velho garanhão, sua testa mais enrugada do que sua bolsa de couro. Também esteve presente Themistágoras da escola peripatética, um homem a cuja aparência não faltava charme e que se orgulhava de seus bigodes anelados.¹

O que essa passagem sugere é que filósofos de diferentes escolas usavam suas barbas de formas diferentes. Além disso, essas barbas diferentes foram pensadas para refletir as diferentes doutrinas filosóficas das várias escolas. ² Por exemplo, os Cínicos, que pregavam estrita indiferença a todos os bens externos e costumes sociais, ostentavam as barbas mais compridas e sujas. Os Estóicos, que argumentavam que é aceitável preferir certos bens externos desde que eles nunca sejam avaliados acima da virtude, também ostentavam longas barbas, mas se ocupavam ocasionalmente em lavá-las e apará-las por considerações puramente práticas. ²¹ Os Peripatéticos, que, seguindo Aristóteles, acreditavam que bens externos e status social eram necessários para a boa vida juntamente com virtude, ²² cuidavam bem de suas barbas, aparando-as cuidadosamente como era apropriado para um membro da tradicional aristocracia grega.

Desses poucos exemplos a gente pode observar quão diferentes tipos de barba podiam não só indicar visualmente a qual escola um indivíduo pertencia, mas realmente expressar as posições filosóficas adotadas por aquela escola. ²³ Não é que seja preciso de uma barba para ser filósofo, nem que uma barba em si seja de qualquer importância filosófica. Antes, o que é de importância filosófica é o que uma barba pode expressar, podendo ser uma certa concepção de filosofia como tal (como nas diferentes atitudes de Cícero e Epicteto), ou uma específica doutrina filosófica (como no relato do aniversário de Alciphron). Se, como Epicteto, a gente conceber a filosofia não como meramente um hobby intelectual, mas, antes, como um modo de vida, então a filosofia será expressa na forma como a gente age, e não simplesmente no que a gente possa dizer. Como tal, o ato de barbear-se ou o ato de deixar crescer uma barba pode ser tão filosófico quanto outro ato qualquer. Como Michael Frede notou, 
“A vida humana é um assunto de coisas banais (...). Se há algo não banal sobre ela, é a sabedoria com a qual essas coisas banais são feitas, a compreensão e o espírito com que são feitas.”  ²
O que faz uma barba ser uma “barba de filósofo”, então será o modo de vida filosófico que ela expressa. Claro, haverá muitas barbas não filosóficas, e muitos filósofos barbeados. Porém, na Antiguidade greco-romana, o filósofo sério tinha uma barba e aparentemente dava mais valor a ela do que à sua vida.

Talvez a gente agora possa entender porque, na narrativa de Luciano, os Atenienses se recusaram a nomear o barbeado Bagoas para a cadeira da filosofia peripatética. Para eles, uma barba de filósofo não era mero ornamento ou acessório. Antes, era a expressão de um modo verdadeiramente filosófico de vida e, como tal, essencial.



III. NOTAS EXPLICATIVAS



¹  Vide Dion Cassius 72.31.3, Filóstrato: Vitae Sophistarum 2.2 (566), Luciano: Eunuchus 3, com Birley: Marcus Aurelius, p. 195.

²  A seguinte estória é proveniente de Eunuchus de Luciano e é geralmente tida como fictícia.

³  Vide Luciano: Eunuchus 8: "Um (dos juízes) disse que a presença e uma veste fina deviam estar entre os atributos de um filósofo, e que, sobre tudo mais, ele deveria ter uma barba comprida que inspirasse confiança naqueles que o visitassem e procurassem para tornarem-se seus discípulos." (trad. Harmon).

  Vide Luciano: Eunuchus 9.

  Vide Luciano: Eunuchus 12.

⁶  Vide por ex. Luciano: Demonax 13; observe também Luciano: Cynicus l.


  Vide Cícero: Pro Caelio 33.


  Vide Varrão: De Re Rustica 2.11.10.


⁹  Vide Plínio: Naturalis Historia 7.21l.

* Para esta embaixada e a introdução da filosofia grega em Roma, vide Griffin: "Philosophy, Politics, and Politicians at Rome", especialmente p. 2-5. 


¹⁰  Para antigas narrativas da viagem vide Aulus Gellius 6.14.8-10 (= SVF 3 Diog. 8). Cícero: Tusculanae Disputationes 4.5 (= SVF 3. Diog. 10), e outros recolhidos in SVF 3 Diog. 6-10.


¹¹  Vide Frede in CHHP, p. 790.


¹²  Vide Zanker: The Mask of Socrates, pp. 198-200.


¹³  Vide por ex. a análise de Clarke: The Roman Mind, p. 54: "Para a maior parte de sua vida, a filosofia não estava na linha de frente dos interesses de Cícero. Ele acreditava numa união da retórica com a filosofia e do estadismo com a filosofia, e apreciava pensar em si como um orador filosófico e um estadista filosófico, porém oratória e estadismo vinham primeiro.” Vide também Zanker: The Mask of Socrates, p. 199.


¹ A distinção entre o que está de acordo com o costume ou convenção (κατά νόμον) e o que está de acordo com a natureza (κατά φύσιν) originado no Iluminismo sofista do século V a.C. retomado mais tarde tano pelos Cínicos quanto pelos Estóicos. Para um sofista como Antíphon, a distinção é entre o que é arbitrariamente convencionado e o que é necessário (vide Antíphon: De Veritate (POxy 1364 = fr. 44 DK) II. 23-34). Para os Cínicos, viver de acordo com a natureza significa remover tudo desnecessário e era assim, até certo ponto, compreendido negativamente (vide Dudley: A History of Cynicism, pp. 31-32; Hicks: Stoic and Epicurean, p. 10), embora, de acordo com Antíphon, φύσις era entendida em termos do que é necessário. Para os Estóicos, é dado a φύσις um conteúdo positivo e viver de acordo com a natureza torna-se identificado com viver de acordo com a razão (vide p. ex. Epicteto: Dissertationes 3.1.25). Para discussão adicional vide Kerferd: The Sophistic Movement, pp. 111-30; Guthrie: History, vol. 3, pp. 55-134.


¹ Epicteto: Dissertationes 1.16.13.


¹ Epicteto: Dissertationes 1.2.29 (trad. Hard).


¹ Vide Filóstrato: Vita Apollonii 7.34; Zanker: The Mask of Socrates, p. 260.


¹ Para o banimento dos filósofos por Domiciano, incluindo Epicteto (c. AD 88-89), vide Aulus Gellius 15.11.3-5 com Starr: Epictetus and the Tyrant.


¹ Alciphron: Epistulae 3.19.2-3 (trad. Benner & Fobes) com comentário in Anderson: Alciphron's Miniatures, esp. p. 2194; Zanker: The Mask of Socrates, p. 110.


² Vide Zanker: The Mask of Socrates, p. 111.


²¹  Vide Musonius Rufus fr. 21 (115.4-8 Hense = 128.10-13 Lutz = SVF 1.243): "A observação de Zenão foi bem feita: que é bastante natural cortar o cabelo da mesma forma que é deixá-lo crescer longo, de modo a não sobrecarregar-se demais com ele nem embaraçar-se com ele para qualquer atividade" (trad. Lutz). Vide também Frede: Euphrates of Tyre, p. 10: "Houve a insistência estóica na naturalidade do cabelo, mas também na necessidade de mantê-lo num estado funcional. E estaria no espírito do Estoicismo discutir tais detalhes aparentemente banais da vida comum”. Luciano refere-se aos cortes de cabelo raspado funcionais de muitos Estóicos e nomeia Crísipo em particular (vide Luciano: Hermotimus 18, Vitarium Auctio 20-21: observe também Juvenal: Saturae 2.15). Isso pode bem voltar a Diógenes, o cínico (vide Diógenes Laertius 6.31). Para discussão adicional vide Geytenbeek: Musonius Rufus and Greek Diatribe, pp. 119-23.


²²   Aulus Gellius 18.1.1-14 (parte in SVF 3.56) registra um típico debate entre um peripatético e um estóico sobre essa questão.


²³  A ideia de que posição ou caráter filosófico pode ser discernido a partir de atributos externos tal como uma barba pode parecer partilhar algo em comum com fisionomia (φυσιογνωμία). A antiga fisionomia foi definida como a tentativa de revelar o caráter de um indivíduo por meio de movimentos corporais ou características físicas (vide esp. Pseudo-AristóteIes: Physiognomonica 806a22-b3). Contudo ela tende a focalizar atributos físicos fora do controle do indivíduo interessado (por ex. ibid. 811a28: "um nariz espesso na ponta significa preguiça"), enquanto que a preocupação primária aqui é com o comportamento. Para antigas fontes para fisionomia, vide R. Förster: Scriptores Physiognomici, 2 vol. (BT) e para a moderna discussão, vide Barton: Power and Knowledge, pp. 95-131.


² Frede: Euphrates of Tyre, p. 6.

sábado, 20 de junho de 2020

NUMA CASA DE CAMPO


Por Antón Pávlovitch Tchékhov

Tchekhov e sua esposa Olga Knipper
Conto traduzido do russo por Francisco José dos Santos Braga 





“Eu o amo. O sr. é minha vida, minha felicidade — tudo para mim! Desculpe pela confissão, mas não tenho forças para sofrer e ficar calada. Não peço amor recíproco, mas simpatia. Esteja às oito da noite no velho caramanchão. Considero desnecessário assinar meu nome, mas não se assuste com a autora anônima. Eu sou jovem, bem-parecida... O que mais o Sr. quer?”
Tendo lido essa carta, o veranista Pável Iványtch Vykhodtsev, pai de família, sério, encolheu os ombros e coçou a testa em perplexidade.
“Que diabos é isso? — pensou. — Sou uma pessoa casada, e de repente essa carta estranha... estúpida! Quem a escreveu?”
Pável Iványtch virou a carta diante de seus olhos, leu novamente e cuspiu.
“Eu o amo”... — arremedou. — “Que garoto ela achou! Então eu vou pegar e correr para você no caramanchão!... Eu, minha mãe, há muito tempo já me desacostumei desses romances e fleurs-d’amour... Hum! Ela deve ser alguma criatura tonta, leviana... Bem, essas mulheres são uma gente estranha! Que sirigaita ela precisa ser — Deus nos perdoe! — para escrever uma carta como esta a um desconhecido, e ainda por cima a um homem casado! Uma verdadeira desmoralização!”
Durante todos os oito anos de sua vida casada, Pável Iványtch desacostumou-se de sentimentos delicados e não tinha recebido quaisquer cartas, exceto de congratulações, e, por isso, embora ele procurasse fazer-se de rogado, a supracitada carta fortemente o desconcertou e excitou.
Uma hora após o seu recebimento, ele estava deitado no divã e pensava:
“Claro que não sou um garoto e não vou por-me a correr para este estúpido rendez-vous, mas, apesar de tudo, seria interessante saber quem a escreveu. Hum... A caligrafia é evidentemente feminina... A carta está escrita sinceramente, com alma, e por isso duvido que seja uma brincadeira... Provavelmente seja alguma psicopata ou viúva... Viúvas geralmente são frívolas e excêntricas. Hum... Quem poderia ser?”
Foi ainda mais difícil resolver essa questão, porque, entre os veranistas conhecidos de Pável Iványtch, não conhecia nenhuma mulher no povoado inteiro, exceto sua esposa.
“Estranho... — estava perplexo. — “Eu o amo”. Quando então conseguiu se apaixonar? Mulher admirável! Ela se apaixonou, do nada, sem sequer conhecer e sem saber que tipo de pessoa eu sou ... Deve ser ainda jovem demais e romântica, se ela é capaz de se apaixonar por dois ou três olhares ... Mas... quem é ela?”
De repente, Pável Iványtch se lembrou de que, na véspera e na antevéspera, quando passeava no cinturão do povoado, havia cruzado algumas vezes com uma jovem loura num vestido azul-claro e com um narizinho empinado. A loura olhava para ele de vez em quando e, quando ele se sentou no banco, ela se pôs a seu lado...
“Ela? — refletiu Vykhodtsev. — Não pode ser! Será que uma criatura delicada e transitória pode apaixonar-se por tal enguia velha, desgastada, como eu? Não, é impossível!”
Durante o almoço, Pável Iványtch olhou estupidamente para a esposa e refletiu:
“Ela escreve que é jovem e bem-parecida... Quer dizer, não é mulher velha... Hum... Para ser franco, com toda a sinceridade, ainda não sou tão velho e ruim que seja impossível alguém enamorar-se de mim. Afinal, minha mulher me ama! E além do mais, o amor é cego...”.
— Em que você pensou? — perguntou sua esposa.
— Oh!... minha cabeça está doendo um pouco... — Pável Iványtch pregou uma mentira.
Ele tinha decidido que era estúpido prestar atenção a tal insignificância, como uma carta de amor, riu-se dela e de sua autora, mas — infelizmente! — o inimigo do homem é forte.
Depois do almoço, Pável Iványtch estava deitado em sua cama e, em vez de dormir, pensava:
“E, com efeito, ela espera que eu vá. Que tola! E imagino como ela vai ficar nervosa e perder seu "jogo de cintura", quando não me encontrar no caramanchão!... E eu não irei... Bem, lamento irritá-la!”
Mas, repito, o inimigo do homem é forte.
“Por outro lado, não seria o caso de ir por curiosidade?...” — pensava o veranista depois de meia hora. — “Ir e olhar de longe que troço é este... Deve ser interessante olhar! É só para rir! Realmente, por que não dar umas boas risadas, se um caso oportuno se apresentou?”
Pável Iványtch levantou-se da cama e começou a vestir-se.
— “Aonde você pretende ir vestido assim?” — indagou-lhe a esposa, ao notar que ele vestia uma camisa limpa e gravata da moda.
— “Então ... quero dar uma volta... Minha cabeça está doendo um pouco...”
Pável Iványtch se vestiu e, esperando as oito horas, saiu de casa. Seu coração pôs-se a bater, quando, diante de seus olhos, contra o fundo verde-vivo, banhado pela luz do sol poente, apareceram figuras de veranistas descontraídos de ambos os sexos.
“Qual delas?...”, pensava ele, olhando tímida e obliquamente para os rostos das veranistas. — Mas não se vê uma loura... Hum... Se ela escreveu, então significa que já se acha no caramanchão...”
Vykhodtsev ingressou na alameda, ao fim da qual, por causa da folhagem nova de tílias altas, assomou o "velho caramanchão"... Ele caminhou silenciosamente até ele...
“Vou ver de longe... — pensava, avançando indecisamente. — Bem, com o que eu me intimido? Afinal, não vou a um encontro. Tamanho idiota! Cria coragem: vai! E daí, se eu for ao caramanchão? Bem, bem... não adianta!”
O coração de Pável Iványtch bate ainda mais violentamente... Involuntariamente, sem querer, de repente ele imaginou a penumbra do caramanchão... Em sua imaginação, uma loura esbelta em um vestido azul-claro e um nariz arrebitado... Ele imaginou como ela, envergonhada do seu amor e tremendo todo o corpo, acanhadamente se aproxima dele, respira fogosamente e... de repente o aperta nos braços.
“Se eu não fosse casado, não seria nada... — pensava, tirando da cabeça pensamentos pecaminosos. — No entanto... uma vez na vida, não seria mau para alguém experimentá-lo, caso contrário, você morrerá sem saber que negócio é este... E minha esposa, o que ela tem a ver com isso? Graças a Deus, por oito anos eu nunca arredei o pé para longe dela... Oito anos de dever irreprovável! Chega dela... É até chato... Vou pegar; por desaforo, também vou trair.”
Tremendo o corpo todo e retendo sua respiração, Pável Iványtch foi ao caramanchão, comprimido pela hera e videira agreste, e olhou dentro dele... Exalava umidade e o fedor de mofo veio até ele...
“Parece que não há ninguém...” — pensou, quando entrou no caramanchão, e então viu uma silhueta humana no canto...
A silhueta pertencia a um homem... Olhando para ele, Pável Iványtch o reconheceu como o irmão de sua esposa, o estudante Mitya, com quem morava em sua casa de campo.
— Ah, é você?... — ele murmurou com uma voz desgostosa, tirando o chapéu e sentando-se.
— Sim, eu... — respondeu Mitya.
Uns dois minutos se passaram em silêncio.
— Desculpe-me, Pável Iványtch, — começou Mitya — mas eu poderia pedir ao sr. que me deixasse só?... estou refletindo sobre a tese de um candidato e... e a presença de quem quer que seja me incomoda...
— Mas vá você a algum lugar em uma alameda escura... — Pável Iványtch observou docilmente. — Ao ar livre, é mais fácil pensar, e além disso... oh! eu gostaria de tirar uma soneca aqui neste banco... Não está tão quente aqui...
— O sr. quer dormir, mas eu quero refletir sobre a minha tese... — resmungou Mitya. — A tese é mais importante...
O silêncio voltou a se fazer presente... Pável Iványtch, que tinha dado asas à sua imaginação e a cada momento ouvia passos, subitamente ergueu-se de um salto e disse com uma voz chorosa:
— Bem, eu lhe peço, Mitya! Você é mais jovem do que eu e é obrigado a respeitar... Estou doente e... quero dormir... Vá embora!
— Isso é egoísmo... Por que é necessário que o sr. esteja aqui, e eu não? Eu não sairei por uma questão de princípio...
— Vamos, eu peço! Ainda que eu seja egoísta, déspota e tolo... mas eu lhe peço! Uma vez na vida eu peço! Mostre alguma consideração!
Mitya girou a cabeça...
“Que besta!... — pensou Pável Iványtch. — Afinal, na presença dele o encontro não acontecerá! Diante dele é impossível!”
— Ouça, Mitya, — disse — eu lhe peço pela última vez... Mostre que você é uma pessoa inteligente, humana e educada!
— Não compreendo o que importuna o sr. — encolheu Mitya os ombros.— Eu disse que não vou sair, e não vou mesmo. Vou ficar aqui por princípio.
Neste momento, subitamente, espiou dentro do caramanchão um rosto feminino com um nariz arrebitado...
Avistando Mitya e Pável Iványtch, ela franziu a testa e sumiu...
“Foi embora! — pensou Pável Iványtch, olhando para Mitya com rancor. — Ela viu este patife e foi embora! Tudo está perdido!”
Tendo esperado ainda um pouco, Vykhodtsev levantou-se, pôs o chapéu e disse:
— Você é uma besta, um patife e um canalha! Sim! Uma besta! Você agiu vil e... e estupidamente. Entre nós está tudo acabado!
— Com muito prazer! — murmurou Mitya, também levantando-se e pondo seu chapéu. — Saiba que o sr. agora, com sua presença, me fez tamanha sujeira que não lhe perdoarei, até mesmo na hora da morte.
Pável Iványtch saiu do caramanchão e, não se lembrando da raiva, rapidamente se pôs em marcha para sua casa de campo... Não o tranquilizou a vista da mesa, servida para o jantar.
“Uma vez na vida se apresentava uma oportunidade, — ele se preocupava — e então foi impedida! Agora ela está ofendida... morta!”
Durante o jantar, Pável Iványtch e Mitya olhavam para seus pratos e permaneciam calados... Eles estavam odiando um ao outro do fundo dos seus corações.
— De que tu estás sorrindo — criticou Pável Iványtch sua esposa. — Apenas alguns tolos riem sem motivo!
A esposa olhou para o rosto zangado do marido e soltou uma gargalhada.
— Que tipo de carta tu recebeste hoje de manhã? — perguntou ela.
— Eu?... Eu não recebi nenhuma... — confundiu-se Pável Iványtch. — Tu estás inventando... imaginação.
— Vamos, conta! Reconhece: recebeste! Bem, eu te enviei esta carta! Palavra de honra, eu! Ha-ha-ha!
Pável Iványtch ficou corado e inclinou-se para o prato.
— Brincadeiras estúpidas, — ele resmungou.
— Mas o que fazer! Julga por ti mesmo... Precisávamos lavar o chão hoje, mas como expulsar vocês de casa? Só dessa forma serem expulsos... Mas não fica com raiva, bobo... Para que não ficasses entediado no caramanchão, eu enviei a mesma carta também para Mitya! Mitya, tu estiveste no caramanchão?
Mitya sorriu e parou de olhar com ódio para seu rival.

Fonte: http://feb-web.ru/feb/chekhov/texts/sp0/sp5/sp5-153-.htm




II.  ELUCUBRAÇÕES ACERCA DO CONTO "NUMA CASA DE CAMPO"


Por Francisco José dos Santos Braga


1. O conto “Numa casa de campo” apareceu pela primeira vez no número 20 da revista O Despertador, edição de 25 de maio de 1886, assinado por A. Chekhonté, um dos pseudônimos de Tchekhov, e foi reproduzido na edição do 25º aniversário da revista, com a nota “Publicado em virtude de acordo com o proprietário das obras de A. Tchekhov, A. F. Marx”.
Ainda se conserva o recorte da publicação original com a seguinte anotação de Tchekhov: “N.B. Não incluir nas obras completas. Ant. Tchekhov”.
Durante a vida de Tchekhov foi traduzido para o finlandês e o tcheco.

2. Prof. Mark Gamsa é palestrante sênior na Universidade de Tel Aviv, com principais interesses de pesquisa na história tardia imperial e moderna russa e chinesa, bem como na história cultural, intelectual e comparativa, historiografia e a história da tradução.

Seu artigo “Tradução e suposta situação de plágio da literatura russa na China Republicana”,  em  [GAMSA, 2011, 151-71], examina as angústias sobre autoria e acusações de plágio na cultura literária chinesa durante o período republicano (1911-1949). Nesse artigo, concentrando-se em duas histórias dos escritores Shi Zhecun ("Perseguição", 1928) e Ling Shuhua ("O Templo das Flores", 1925), analisa suas conexões com obras da literatura soviética e pré-revolucionária russa retraduzida para o chinês do inglês apenas meses antes que essas obras chinesas aparecessem: respectivamente, duas histórias de Ivan Kasatkin ("Flying Osip", 1921) e Anton Chekhov ("At a Summer Villa" — ou "Numa Casa de Campo" em minha tradução, 1886).

Interessa-nos aqui examinar apenas o raciocínio do articulista, focalizando apenas na história “O Templo das Flores” escrita pela escritora chinesa Ling Shuhua, que é considerada uma apropriação indevida do conto “Numa Casa de Campo” de Tchekhov, conforme minha tradução para o português. Segundo o estudioso israelita, especificamente a respeito da escritora Ling Shuhua, escreve:  
“O conto de Tchekhov, breve e leve ‘Numa Casa de Campo’, abre com uma carta anônima recebida por Pável Vykhodtsev, um homem casado de meia idade, agora em férias de verão com sua esposa. Essa carta curta é uma declaração de amor feita por uma desconhecida mulher bonita, que marca com ele um encontro no ‘velho caramanchão’ na mesma noite. Vykhodtsev inicialmente está zangado, em seguida curioso e finalmente lascivo, ao mesmo tempo que imagina que a autora da carta pudesse ter sido uma jovem loura que ele tinha percebido outro dia. Mas, ao entrar no caramanchão à noite, a única pessoa que ali vê é seu cunhado, o estudante Mitya. Vykhodtsev tenta convencer o estudante a sair, mas inutilmente. Enquanto eles estão discutindo, uma mulher espia dentro do caramanchão e, notando a presença dos dois homens, desaparece. Os rivais dirigem-se à casa, zangados um com o outro, mas então, ao jantar, a esposa de Vykhodtsev solta uma gargalhada, ao mesmo tempo que revela que ela própria tinha enviado as cartas (uma idêntica tinha sido remetida a seu marido e a seu irmão) apenas porque ela queria vê-los longe de casa, enquanto estivesse lavando o piso da casa.
Em ‘O Templo das Flores’ da escritora Ling Shuhua, o casal não está numa casa de campo, mas em casa. O marido, chamado Youquan, é um poeta; o nome de sua esposa é Yanqian. A história é obviamente modelada no conto de Tchekhov, mas há muito mais diferenças. A carta anônima que Youquan recebe é muito mais longa e mais elaborada do que a mensagem de amor no começo do conto de Tchekhov; contrário ao leitor de Tchekhov, que duvida desde o início que uma “jovem e bela” mulher tenha se apaixonado pelos charmes de Pável Vykhodtsev, o leitor de Ling recebe uma explicação: a autora da carta é uma admiradora da poesia de Youquan. Ela marcou com ele um encontro “sob o pessegueiro de cor esmeralda”  e — mais uma antecipação angustiante — é, claro, sua própria esposa que vê chegar ao templo. Contrário ao modelo russo, a descoberta da brincadeira não está no fim da história: Yanqian não só tem nome (diferentemente da esposa anônima de Vykhodtsev), como também é mais de uma personalidade, pois de suas próprias palavras e comportamento podemos suspeitar que, ao escrever sua carta altamente literária e então ao vir pessoalmente ao local do encontro, ela queria não tanto testar seu marido quanto apimentar seu casamento.
A história por Ling Shuhua é mais uma variante do conto de Tchekhov do que uma tentativa de ‘furtar’ dele. O que interessa não é simplesmente os bocados da vida e tradição chinesas que a autora introduz: um templo budista em vez de um caramanchão num refúgio de veranistas russos; as várias citações diretas da literatura clássica chinesa e possíveis alusões a outras obras canônicas. Remodelando seus personagens, Ling realizou uma recontação da história de Tchekhov: a melhor forma para descrever o que aconteceu para o conto de Tchekhov nas mãos dela pode ser falar da circulação internacional e transformação do texto russo. (...) a atração do modelo russo do século XIX para Ling Shuhua provavelmente consistia de sua tomada humorística porém perceptiva sobre as relações entre marido e esposa. O interesse particular de Ling na psicologia conjugal pode tê-la levado a desenvolver além a figura da “esposa engenhosa” numa história posterior. (De acordo com Dooling, “Ling Shuhua”, p. 99, isso se refere à peça-título da segunda coleção de Ling, Nüren.)”
3. Ainda sobre a referida autora chinesa, em [LEE, 2011, 351-4], no verbete "Ling Shuhua", lê-se:
“Outra controvérsia surgiu depois da morte de Ling Shuhua (1990) a respeito de uma novela escrita por uma mulher chamada Hong Ying, que era implicitamente baseada num suposto “caso” entre Ling Shuhua e Julian Bell, sobrinho de Virginia Woolf. Julian Bell ensinava na Universidade de Wuhan durante a década de 1930 e fez alusão à relação deles em cartas publicadas em 1937. O incidente recebeu ampla exposição nos meios de comunicação quando Chen Xiaoying, filha de Ling Shuhua, ameaçou levar Hong Ying ao tribunal.” 

III. BIBLIOGRAFIA



GAMSA, Mark: Translation and Alleged Plagiarism of Russian Literature in Republican China, Chinese Literature: essays, articles, reviews (CLEAR), vol. 33 (December 2011), p. 151-71. JSTOR, www.jstor.org/stable/41412924. Accessed em 19 Jun 2020.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

UM ESCÂNDALO


Por Antón Pávlovitch Tchékhov

Tchekhov e sua esposa Olga Knipper
Conto traduzido do russo por Francisco José dos Santos Braga 

Máshenka Pavlétskaya, uma jovem que acabara de concluir seus estudos no colégio interno, após um passeio com as crianças e de volta à casa dos Kúshkin, onde ganhava a vida como governanta, encontrou uma agitação incomum. O porteiro Mikháil, abrindo-lhe a porta, estava perturbado e vermelho como um caranguejo.
Do andar de cima chegou até ela um ruído de vozes.
— A patroa teve um ataque... — pensou Máshenka — ou brigou com o marido...
Na ante-sala e no corredor cruzou com criados. Uma criada chorava. Em seguida, Máshenka viu quando o próprio patrão Nikoláy Serguéitch saía pela porta do quarto dela. Era uma pessoa baixa, ainda jovem, tinha um rosto flácido e ostentava uma grande calva. Estava corado. Contorcia-se... Sem perceber a governanta, ele passou por ela e, levantando os braços, exclamou:
— Que horrível! Que falta de delicadeza! Que tolo, selvagem! Que detestável!

Máshenka entrou no seu quarto e ali pela primeira vez na vida teve que experimentar em toda a sua nitidez um sentimento que é tão familiar às pessoas dependentes, caladas, que vivem do pão dos ricos e nobres. No quarto dela fizeram uma busca. A patroa, Fedócia Vassílievna, — uma senhora gorda, de ombros largos, com sobrancelhas negras espessas, pouco cabelo na cabeça angulosa, um leve bigode e mãos vermelhas, com rosto e maneiras de uma cozinheira, — ficou parada junto da mesa dela e colocou de volta na sacola novelos de lã, retalhos, pedaços de papel... Evidentemente o aparecimento da governanta foi inesperado para ela, porque, ao virar a cabeça e ao perceber a sua presença, seu rosto pálido e assombrado perturbou-se ligeiramente. E balbuciou:
Pardon! Eu... eu esparramei por descuido... esbarrei com a manga...

Madame Kúshkina, tendo dito algo mais, produziu um fru-fru com a cauda do vestido e saiu. Máshenka olhou ao redor do seu quarto com olhos surpresos e, sem entender nada, sem saber o que pensar, encolheu os ombros, ficou gelada de medo... O que Fedócia Vassílievna procurava em sua sacola? Se, de fato, como ela diz, esbarrou com a manga e esparramou, então por que Nikoláy Serguéitch pulou fora do quarto tão corado e agitado? Por que abriram ligeiramente uma gaveta na mesa? O cofrinho, no qual a governanta tinha escondido as moedas e os selos antigos, fora destrancado. Abriram-no, mas não souberam trancá-lo, embora também tivessem arranhado a fechadura inteira. Uma estante com livros, a superfície da mesa, a roupa branca — tudo trazia em si os mesmos traços recentes de busca. E no cesto de roupa branca também. A roupa estava bem dobrada, mas não na ordem em que Máshenka a deixara, quando saiu de casa. Pelo visto, a busca tinha sido real, a mais real, mas por que isso, por quê? O que se passou? Máshenka se lembrou da agitação do porteiro, da balbúrdia que ainda se prolongava, da empregada chorosa; tudo isso não estava ligado à busca que a patroa acabara de fazer? Não estaria envolvida em algum negócio horrível? Máshenka ficou pálida e toda fria deixou-se cair no cesto de roupa branca.
Uma empregada entrou no quarto.
— Liza, sabe por que motivo me revistaram? — perguntou-lhe a governanta.
— Desapareceu um broche da senhora no valor de dois mil... — disse Liza.
— Mas..., por que me revistarem? — a governanta continuou a ficar perplexa.
— Furtaram, eu digo, um broche... A senhora revistou tudo com as suas próprias mãos. Revistaram até o porteiro Mikháil. É uma vergonha! Nikoláy Serguéitch só olha e cacareja como uma galinha. E você, jovem, em vão está tremendo. No seu quarto não encontraram nada! Se você não pegou o broche, então você não tem nada a temer.
— Mas, com efeito, isso é baixo... insultante! — disse Máshenka, engasgada de indignação. — Pois isso é humilhante, ofensivo! Que direito tinha ela de suspeitar de mim e vasculhar minhas coisas?
— Você mora em casa de estranhos, jovem, — suspirou Liza. — Embora seja uma senhorita, apesar de tudo... é tida como se fosse uma criada. Não é o mesmo que viver em casa do pai e da mãe...

Máshenka deixou-se cair na cama e amargamente prorrompeu em soluços. Nunca tinham cometido tantas violências sobre ela, nunca a tinham ofendido tão profundamente quanto agora. Logo dela, uma menina educada e sensível, filha de um professor, suspeitaram de furto, tinham-na revistado como uma vagabunda! Acima de tal ofensa parece impossível inventar outra coisa. E um forte temor juntou-se a esse ressentimento: o que vai acontecer agora. Na cabeça dela passaram todos os tipos de absurdo. Será que podiam suspeitar que ela fosse ladra, isto é, então agora podem prendê-la, despi-la e revistá-la, depois levá-la sob escolta pela rua, encarcerá-la numa cela escura e fria com ratos e piolhos, exatamente a mesma em que ficou a princesa Tarakanova? ¹ Quem a defenderá? Seus pais viviam longe na província; eles não têm dinheiro para virem visitá-la. Na capital ela está sozinha, como num campo deserto, sem parentes e conhecidos. O que quiserem, então podem fazer com ela.

"A Princesa Tarakánova na Prisão", quadro de Konstantin Flavitsky (1830-1866) na Galeria Tretyakov em Moscou

"Recorrerei a todos os juízes e advogados... — pensou Máshenka, trêmula. Explicarei para eles, juro... Eles vão acreditar que eu não posso ser uma ladra!"

Masha lembrou-se de que guardava doces no seu cesto debaixo da roupa branca, que, segundo o velho hábito do colégio interno, ela escondia no bolso durante o jantar e levava para o seu quarto. A ideia de que esse pequeno segredo dela já era conhecido pelos patrões, deixou-a febril, ficou com vergonha e, por tudo isso — por medo, vergonha e ressentimento, iniciou-se um forte batimento cardíaco, que se refletiu nas têmporas, nas mãos e no fundo da barriga.
— A comida está servida! — convidavam Máshenka.
"Ir ou não ir?"
Máshenka ajeitou o penteado, limpou-se com uma toalha molhada e dirigiu-se para a sala de jantar. Ali já tinham começado a refeição. Numa ponta da mesa sentava Fedócia Vassílievna, grave, com um rosto inexpressivo e sério; na outra ponta — Nikoláy Serguéitch. Nos lados da mesa, sentavam-se convidados e crianças. Serviam a refeição dois criados, de fraques e luvas brancas. Todos sabiam que tinha havido um alvoroço na casa, que a patroa estava desolada, e ficaram em silêncio. Ouviam-se apenas a mastigação e o som de colheres nos pratos.
O silêncio foi interrompido pela própria patroa.
— O que temos para o terceiro prato? — perguntou ao lacaio com uma voz lânguida, dorida.
Esturgeon à la russe! — respondeu o lacaio.
— Fui eu que pedi, Fenya — apressou-se Nikoláy Sergueitch. — Me deu vontade de comer peixe. Se não te agrada, ma chère, que assim seja: digo que não o sirvam. Quero dizer... a propósito...
Fedócia Vassílievna não gostava dos pratos que ela própria não mandasse vir, e agora seus olhos se encheram de lágrimas.
— Vamos lá, pare de alarmar-se! — lhe disse Mamikov com voz doce, seu médico de família, com leve toque em sua mão e também com um doce sorriso. — Já estamos bastante nervosos. Esqueça o broche. Saúde vale mais do que dois mil rublos...
— Eu não lamento os dois mil rublos! — respondeu a patroa, e uma grande lágrima escorreu por sua bochecha. — É o fato mesmo que me revolta! Não tolerarei ladrões em minha casa. Não lamento, não lamento nada, mas roubar de mim — que ingratidão! Assim me pagam por minha bondade...
Todos olhavam para os seus pratos, porém à Máshenka lhe pareceu que, depois das palavras da patroa, todos olharam para ela. De repente, um nó subiu à sua garganta, ela começou a chorar e pressionou um lenço contra o rosto.
Pardon, — murmurou. — Não posso mais. Estou com dor de cabeça. Vou retirar-me.
E ela levantou-se da mesa, fazendo ruído com a cadeira desajeitadamente e ainda mais embaraçando-se, e saiu rapidamente.
— Passou dos limites! — murmurou Nikoláy Sergueitch, fazendo careta. — Foi preciso fazer uma revista no quarto dela! Como tal, verdadeiramente... um absurdo.
— Eu não afirmo que ela tenha pegado o broche, — disse Fedócia Vassílievna — mas será que podes por a tua mão no fogo por ela? Confesso que essas pessoas pobres instruídas me inspiram pouca confiança.
— Verdadeiramente, Fenya, um absurdo... Desculpa, Fenya, mas por lei tu não tens o direito de fazer revistas.
— Eu não conheço tuas leis. Só sei que o meu broche está perdido, eis tudo. E eu vou encontrar este broche! — ela bateu no prato com um garfo e seus olhos brilharam furiosamente. — E tu, come e não interfiras nos meus assuntos!
Nikoláy Sergeitch baixou os olhos humildemente e suspirou.

Enquanto isso, Máshenka, tendo chegado ao seu quarto, caiu na cama. Ela não estava mais com medo nem vergonha, mas atormentada por seu forte desejo de ir esbofetear essa mulher insensível, arrogante, estúpida e felizarda.
Estando deitada, ela ofegou no travesseiro e sonhou quão bom seria agora comprar o broche mais caro e atirá-lo na cara dessa tirana. Se Deus quisesse, Fedócia Vassílievna faliria, daria a volta ao mundo e compreenderia o horror da pobreza e da servidão forçada, e se a ultrajada Máshenka desse esmolas a ela! Ah, se conseguisse uma grande herança, comprasse uma carruagem e passasse com estardalhaço diante das janelas dela, para que ela invejasse!
Mas tudo aquilo eram sonhos, na realidade havia apenas um — sair imediatamente, não ficar aqui nem uma hora. É verdade que é assustador perder um emprego, mais uma vez ir para os pais que não possuem nada, mas o que fazer? Máshenka não podia mais ver nem os patrões nem seu próprio quartinho; aqui ela estava abafada, horrorizada. Desdenhava Fedócia Vassílievna, obcecada por doenças e por sua aristocracia imaginária, — a ponto de parecer que tudo no mundo se tornava rude e desagradável porque essa mulher vive. Máshenka pulou da cama e pôs-se a aprontar as malas.
— Posso entrar? — perguntou Nikoláy Sergueitch atrás da porta; ele foi até a porta de maneira inaudível e falou em voz baixa e suave. — Posso?
— Entra.
Ele entrou e parou no limiar da porta. Os olhos dele estavam baços e seu nariz vermelho brilhava. Depois do almoço ele bebeu cerveja, e isso foi visível por seu passo, por mãos fracas e flácidas.
— Isso, o que é? — ele perguntou, apontando para o cesto.
— Estou me preparando para partir. Desculpe, Nikoláy Sergueitch, mas não posso ficar mais tempo em sua casa. Essa revista (em meu quarto) me ofendeu profundamente!
— Eu compreendo (sua indignação)... só que não vale a pena levar as coisas tão a sério... Para quê? Revistaram... E daí? Você tem algo a ver com isso? Você não sairá diminuída dessa situação.
Máshenka calou-se e continuou a empacotar. Nikoláy Sergueitch beliscou o bigode, como se estivesse inventando o que dizer ainda, e prosseguiu com voz cativante:
— Claro que eu entendo, mas você tem que ser indulgente. Você sabe, minha esposa é nervosa, estabanada, não se pode julgar rigorosamente ...
Máshenka continuou calada.
— Se você está tão ofendida, — continuou Nikoláy Sergueitch, — então estou disposto a pedir-lhe perdão. Perdão!
Máshenka nada respondeu, e apenas se inclinou para sua mala. Este homem minguado e irresoluto era exatamente um zero à esquerda na casa. Ele desempenhava um papel miserável e de pessoa supérflua até junto dos serviçais; logo sua escusa não valia nada.
— Hum... Não responde? Não lhe basta eu pedir perdão? Neste caso, eu me desculpo por minha mulher. Em nome de minha mulher peço-lhe perdão... Como cavalheiro, reconheço que ela agiu sem tato...
Nikoláy Sergueitch deu uns passos pelo quarto, suspirou e prosseguiu:
— Pois você precisa ainda que me esgravatem aqui, debaixo do coração? Você precisa que minha consciência me atormente?
— Eu sei, Nikoláy Sergueitch, que a culpa não é sua, — disse Máshenka, olhando-o no rosto com seus grandes olhos marejados de lágrimas. — Por que você se atormenta?
— Claro... Mas você, apesar de tudo... não vai embora... eu lhe imploro.
Máshenka abanou negativamente a cabeça. Nikoláy Sergueitch se deteve à janela e pôs-se a tamborilar no vidro.
— Para mim, semelhantes mal-entendidos são pura tortura, — disse ele. — O que quer de mim? Que eu me ajoelhe diante de você, será? Você foi ofendida em seu orgulho, e agora está chorando, está se preparando para ir embora, mas eu também tenho orgulho, e você não o poupa. Ou quer que eu lhe diga o que não direi nem em confissão? Quer? Escute: você quer que eu lhe diga uma coisa que eu nem ao confessor diria na hora de minha morte?
Máshenka ficou calada.
— Eu peguei o broche da minha esposa! — disse rapidamente Nikoláy Sergueitch. — Você está satisfeita agora? Está contente? Sim, eu... peguei... Só que, é claro, espero por sua discrição... Pelo amor de Deus, nem uma palavra para ninguém, nem a menor alusão!

Máshenka, surpresa e assustada, continuou a preparar-se para ir embora; ela pegou suas coisas, amassou-as e colocou desordenadamente em uma mala e no cesto. Agora, após a franca confissão feita por Nikoláy Sergueitch, ela não podia ficar nem um minuto e já não entendia como conseguira viver anteriormente nessa casa.
— Não é o caso de assombrar-se... — prosseguiu Nikoláy Sergueitch, após curto silêncio. — Uma história comum! Eu preciso de dinheiro, mas ela... não me dá. Com efeito, esta casa e tudo o que meu pai acumulou, Maria ² Andréievna! Realmente tudo é meu, e o broche pertenceu à minha mãe, e... tudo é meu! E ela apropriou-se, apoderou-se de tudo... Não vou entrar com um processo contra ela nos tribunais, convenha... Peço-lhe encarecidamente perdoar-me e... e fique. Tout comprendre, tout pardonner. Você fica?
— Não! — disse Máshenka resolutamente, começando a tremer. — Deixe-me em paz, eu lhe imploro.
— Então, Deus te abençoe — suspirou Nikoláy Sergueitch, sentando-se em um banco perto da mala. — Admito que amo aqueles que ainda sabem ficar ofendidos, sentir desprezo, etc. Durante um século sentaria e olharia para seu rosto indignado... Então, portanto, você não fica? Entendo... Não pode ser de outra forma... Sim, é claro... É bom para você, mas assim-assim para mim — ah! ah! Eu não posso dar um passo fora deste porão. Eu sairia para uma de nossas propriedades, mas em todas elas há alguns capatazes de minha esposa... guardiões, administradores, todos malditos! Eles hipotecam e tiram a hipoteca... Não se pode pegar peixe, pisar na grama e cortar as árvores.
— Nikoláy Sergueitch! — a voz de sua esposa vinha da sala de estar. — Agnia, chama teu patrão!
— Então, você não ficará? — perguntou Nikoláy Sergueitch, levantando-se rapidamente e indo em direção à porta. — Bem que você poderia ficar, realmente. Nas tardes eu poderia vir e conversar com você. Hein? Fique! Se você for, não haverá uma cara humana deixada na casa. É horrível!
A cara pálida, exausta de Nikoláy Sergueitch imploraram a ela, mas Máshenka abanou a cabeça em sinal negativo, e com um aceno de sua mão saiu.
Meia hora mais tarde ela estava a caminho.

Fonte: http://feb-web.ru/feb/chekhov/texts/sp0/sp4/sp4-331-.htm



II. ANÁLISE LITERÁRIA DO CONTO "UM ESCÂNDALO"

Por Francisco José dos Santos Braga

O período coberto por 1885-6 representa o auge de Tchekhov como "ficcionista-miniaturista", autor de contos, principalmente humorísticos. Naquele período, conforme seu próprio reconhecimento, ele escrevia um conto por dia. Os contemporâneos pensavam que ele continuaria nesse gênero, mas na primavera de 1886 Tchekhov recebeu uma carta do famoso escritor russo Dmítri Grigoróvitch, na qual o criticava por gastar seu talento em "miudezas". Escreveu Grigoróvitch:
É melhor passares fome, como no nosso tempo o fizemos, cuida de tuas impressões para um trabalho bem ponderado (...) Um de tais trabalhos será mais valorizado cem vezes mais do que centenas de histórias maravilhosas espalhadas em momentos diferentes nos jornais”. 
Posteriormente adeririam ao conselho de Grigoróvitch: Alekséy Suvórin, Viktor Bilíbin e Alekséy Plescheiev.
Mas [ULIÁNOVA, 2000, 100-1] entende que esse sentimento não era unânime entre os contemporâneos de Tchekhov:
Entre a obra dramática e a prosa de Tchekhov não se sente uma fronteira brusca, semelhante à que divide essas esferas na obra de outros autores. Para nós, consideramos Turguenev e León Tolstói, antes de tudo, grandes prosadores, novelistas, contudo não dramaturgos. Por outro lado, Tchekhov, até a criação em prosa, se sentia um dramaturgo que vive nas imagens de suas personagens: "Eu devo constantemente falar e pensar na sua tonalidade e sentir de acordo com seu ânimo, porque, caso contrário, se lhe agrego um pouco de subjetividade, as imagens disparam (se espargem) e o conto não resulta compacto...".
Os contemporâneos não eram unânimes na percepção da obra tchekhoviana: sentiam que suas peças renovavam o cenário e talvez abrissem uma nova página na história do teatro, porém, em todos os sentidos, a maioria supunha que Tchekhov era em primeiro lugar um narrador e que suas peças ganhariam mais se ele as transformasse em novelas curtas. Inclusive León Tolstói pensava assim: "Não compreendo as peças de Tchekhov, que aprecio muito como literato... Para que necessita apresentar o cenário de como três senhoritas se entediam?... Porém da mesma coisa resultaria uma linda novela curta e, seguramente, lhe sairia muito bem.
Por mais racional e convincente que tenha sido o conselho de Grigoróvitch, a verdade é que Tchekhov o seguiu em parte, porque estava consciente que tinha trilhado um caminho exitoso até ali. Mas parece que o conselho calou fundo em Tchekhov, especialmente porque, paralelamente à sua atividade de contista da vida real, deixa para trás a forma do conto curto e de teor humorístico e vai se dedicar muito em breve ao estudo sociológico do sistema prisional russo em visita à temível colônia penitenciária do regime czarista com os ensaios Ilha de Sacalina (1895) e Caderno de Notas, à dramaturgia [Ivanov (1887), Tio Vânia (1899-1900), A Gaivota (1896), As Três Irmãs (1901) e O Jardim das Cerejeiras (1904)] e à produção de novelas, como Minha Vida (1896) e O Duelo (1891), ao lado  de contos mais profundos, tais como O Estudante (1894), Estepe (1888), A Senhora com o cachorrinho (1899), Os Mujiques (1897), etc.
Desde 1879, quando, aos 19 anos, foi a Moscou tentar o vestibular de medicina, levara consigo uma pilha de contos humorísticos e um texto dramático. Enquanto cursava a faculdade de medicina, publicou "montanhas inteiras de contos". Desde o início do seu trabalho literário, distinguia-se um traço muito peculiar na escrita tchekhoviana: uma total economia de meios artísticos, ou seja, a parcimônia verbal que obriga o autor a cortar cada palavra supérflua, cada frase dispensável para atingir um alto grau de condensação formal. Em 1887, publicou seu segundo livro de contos selecionados, intitulado "Ao Anoitecer". Em 1888 recebeu, por esse livro, o Prêmio Pushkin, maior láurea concedida pela Academia de Ciências da Rússia. A resolução correspondente da Comissão Acadêmica afirmou que
os contos de Tchekhov, embora não preencham completamente os requisitos das mais altas críticas artísticas, são, no entanto, um fenômeno marcante em nossa ficção contemporânea.”
Os contos de Tchekhov podem ser lidos como fatias retiradas de um folhetim popular de novelas ou história do gênero aventura publicada em série, com o preâmbulo e a continuação deixados para o leitor. O crítico russo [CHUDAKOV, 2000, 9] observou:
Os esboços cômicos sempre tomam algum fragmento da vida, com nenhum começo nem fim, e simplesmente o oferecem para inspeção.
E continua a respeito das obras da maturidade do escritor:
(...) seguem o mesmo padrão, começando "no meio" e concluindo "com nada".
Afinal o próprio Tchekhov uma vez observou:
Eu penso que, quando alguém acabou de escrever um conto, deveria eliminar o início e o fim.
Neste sentido, Tchekhov ignora os princípios aristotélicos [ARISTÓTELES: Poética, 1973] na maior parte de seus contos. De fato, [ARISTÓTELES I, VII, v. 24-34, 1973, p. 10], a respeito do mythos ou enredo (que deve representar uma única ação completa de grandeza apropriada), estabeleceu algumas normas, a saber:
(...) Estabelecemos que a tragédia (no caso, o conto) é a representação de uma ação completa, i.é., inteira, que tem alguma grandeza (pois pode haver um todo com nenhuma grandeza). Um todo é aquilo que tem um começo, um meio e uma conclusão. (...) Enredos bem construídos, então, não devem começar nem terminar ao acaso, mas devem usar os elementos que mencionamos aqui [i.é., o começo, meio e conclusão].
Antes, na Poética, Aristóteles já tinha afirmado que a tragédia (no caso, o conto) possui seis partes, sendo "a mais importante o enredo", que ele entende por "construção ou trama dos acontecimentos". 
[FREDERICK, 2012, 9-11], utilizando a versão de Poética (1983) traduzida por Richard Janko, na Introdução do seu livro Narrativas Desestabilizadas, ao tratar da tenacidade do enredo afirma que
a história da narrativa e das teorias de narrativa têm sido uma história da dominância do enredo (ou trama).
Depois continua:
Essa compreensão do enredo como uma estrutura unificada pode-se remontar à definição normativa aristotélica de mythos, que, como N. J. Lowe enfatiza, repousa bem no centro do sistema teórico a partir do qual começa a narratologia.
Ocasionalmente traduzido como "história", tipicamente, porém, como "enredo" ou mesmo "estrutura do enredo", mythos é o princípio dominante da concepção aristotélica narrativa, um princípio que determina a forma e função narrativas em termos da necessidade, propósito e unidade teleológica. (Desta forma ele corresponde à concepção aristotélica de natureza.) Na Poética, Aristóteles define mythos como "a construção [synthesis] dos incidentes" que forma a unitária "representação [mimesis] da ação." Essa construção é, como a palavra grega indica, o resultado da síntese, o processo de reunir o que está separado e distinto, para formar um todo, um sistema. O enredo consequentemente reduz a multiplicidade a uma unidade controlável, ao Uno. Ao incluir apenas aquelas "partes" que são tanto prováveis quanto necessárias, e ao determinar essas partes em relação a um fim — "o fim [telos] é o mais importante de tudo" — a concepção aristotélica da narrativa não deixa nenhum espaço para o alheio ou incidental.

De fato, na sua discussão sobre a épica de Homero, [ARISTÓTELES I, VIII, v. 24-34 1973, p. 11-12] aborda o problema do excesso narrativo apelando ao mythos (enredo) e sua busca pela unidade:
(...) Ao compor a Odisseia, ele (Homero) não colocou em seu poema tudo o que acontecera a Odisseu, por exemplo, que ele foi ferido no Parnaso e fingiu-se de louco para não alistar-se; pelo fato de ter acontecido uma dessas coisas não torna necessário ou provável que a outra aconteria. Mas ele construiu [synistasthai] a Odisseia ao redor de uma única ação da espécie que estamos discutindo, e a Ilíada igualmente. Por isso, exatamente como nas outras artes representacionais, uma única representação [mimesis] de uma só (coisa), assim também o enredo [mythos], por ser uma representação de uma ação, deveria representar uma única ação, e, além disso, uma completa [ação]; e suas partes [os incidentes] deveriam ser assim construídos [synistasthai] de modo que, quando alguma parte for transposta ou removida, o todo é desfeito e desestabilizado. (...)
Por outro lado, parece também que se aplica aos contos e novelas de Chekhov a teoria do iceberg de Hemingway (MANGUM, 1982, 1621-28), já que seu significado real está oculto. Segundo Ernst Hemingway,
Se um escritor sabe o suficiente sobre o que está escrevendo, ele pode omitir coisas que conhece. E se o escritor está escrevendo de forma verdadeira, o leitor poderá sentir essas coisas de forma intensa, como se o escritor as tivesse declarado. A beleza do movimento de um iceberg é devido a apenas um oitavo do que está acima da água.
Hemingway percebeu o dilema do storytelling, recomendando ao escritor que vá direto ao ponto, opte por poucas palavras e evite apresentar explicações demais, presunção e estatísticas, pois, dessa forma, não conseguirão vender sua marca. É preferível deixar coisas por dizer; é sempre possível dizer mais com menos.
Os temas simples de incidentes e fatos comuns revelam como Tchekhov compunha seus contos curtos aproximarem-se da vida real. Ele subvertia os antigos padrões do conto, ao mesmo tempo que mantinha os elos com os aspectos literários. Conforme [GOTLIB, 2002, 46-7],
Tchekhov escreve contos frequentemente e, pelo menos na aparência, sem grandes ações, rompendo, assim, com uma antiga tradição. E abre as "brechas" para toda uma linha de conto moderno, em que às vezes nada parece acontecer... Também no conto, é prejudicada a tal unidade tradicional, calcada na obediência ao início, meio e fim. Alguns contos seus não crescem em direção a um clímax. Ao contrário, mantêm um tom menor, às vezes por igual no decorrer de toda a narrativa.
A crítica normalmente aponta a irresolução característica de Tchekhov na sua ficção muito curta e assinala que essa é uma marca de sua grandeza, bem distinta da que era praticada por seus contemporâneos russos no referido gênero. Normalmente, o fim do conto, além de possuir sua irresolução, deixa ao leitor completar a história.
O próprio Tchekhov costumava repetir:
Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que ele próprio vai acrescentar os elementos subjetivos que faltam ao conto.
Segundo [MASON, 2012, 1-4], que abre sua tese com o capítulo "Arma de Tchekhov e a Economia Narrativa", dá a palavra ao escritor Anton Tchekhov que, numa conversa com I. Ya. Gurlyand em 1889, teria dito: "Se você pendurou uma arma na parede no primeiro ato, no último, ela deve disparar. Caso contrário, não a pendure." ³  (From I. Ya. Gurlyand's Reminiscences of A. P. Chekhov, in Teatr i искусство, 11 July 1904, nr. 28, p. 521)
A ideologia por trás da Arma de Tchekhov não se refere simplesmente a armamento, mas à economia narrativa: o princípio de que todos os elementos de uma narrativa devem ser essenciais. Apesar da popularidade da "Arma de Tchekhov" como um tropo, a mesma ideologia foi também expressa por Aristóteles, como foi visto acima. Assim, seria igualmente adequado chamar esse tropo de "Arma de Aristóteles".
Com base no exposto, nenhuma parte de um texto deve estar alheio ao princípio enunciado. Se o autor mencionar que o protagonista foi coagido a comprar um conjunto de facas de um vendedor ambulante, podemos esperar um esfaqueamento ou, pelo menos, o corte de vegetais. Dentro do mesmo sistema de contação de histórias, não precisa ser mencionada a cor dos olhos de um dado personagem, a não ser que seja tão peculiar que mais tarde leve alguém encontrar seu gêmeo idêntico.

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Tchekhov escreveu o conto "Um Escândalo" e publicou-o na Peterburgskaya Gazeta, 1886, nº 33, 3 de fevereiro, p. 3, com o pseudônimo Antosha Tchekhontê. Esse conto tinha como tema central a dignidade humana.
Entendo que a dignidade humana é um conceito amplo que não é facilmente definido por palavras e generalidades. Ao tomar contato com "Um Escândalo", o leitor pode ter uma ideia do significado da dignidade humana como especificamente revelado através de Masha (ou Máshenka), a protagonista de Tchekhov, uma governanta que mostra auto-respeito e leva a vida de uma forma verdadeira de acordo com seu código de ética, independente das circunstâncias com as quais ela tenha que se confrontar.
Uma boa definição de dignidade humana é algo frio, mal articulado:
“A dignidade humana é um conceito evolutivo, dinâmico, abrangente. Os princípios que lhe estão associados: o da não-discriminação; o direito à vida; a proibição de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; o respeito pela vida pessoal e familiar e o direito à saúde, à educação, à moradia.”

Observe que o narrador não se preocupa em revelar os traços fisionômicos de sua protagonista Máshenka; interessa-lhe informar sobre a condição social e econômica dela para mostrar como os pobres explorados eram submissos e mais passíveis de compaixão por causa de sua indigência. Por outro lado, caracteriza bem claramente os patrões burgueses, mais fáceis de caricaturar por seus excessos, satirizando seus traços físicos, característicos de uma classe social abastada.
No conto "Um Escândalo", o autor mostra como Máshenka teria menos dificuldades financeiras, caso se dispusesse a ficar na casa de seus patrões depois da injustificada revista do seu quarto por Madame Kúshkina à procura de sua jóia roubada, do que voltar a seus pais que não possuíam recursos. Contudo, a permanência dela na residência dos Kushkin significava que teria que pagar um alto preço psicológico e emocional, resultante da ruína do seu senso de auto-respeito, principalmente porque sobre ela pendia a acusação da patroa de ser a autora do furto (crime patrimonial) e o rótulo de ladra.
Depois de encontrar-se com Madame Kúshkina em seu quarto no ato de uma busca nos seus pertences, Máshenka teve que engolir as palavras que ela própria desejava dizer. A revista no seu quarto é a principal afronta à dignidade humana de Máshenka, e não ser capaz de deixar falar sua mente é como uma cobertura podre num bolo amargo que ela é obrigada a engolir. De acordo com o narrador Tchekhov, ela experimentou pela primeira vez na sua vida "o sentimento que é tão familiar a pessoas em posições dependentes, que comem o pão dos ricos e poderosos", e não podem deixar falar suas mentes. Em seguida, durante o almoço, ocorreu a ofensa cometida pela patroa tornando público o desaparecimento da jóia, o que configurou uma acusação tácita contra Máshenka, constrangendo-a e tornando o clima insuportável para a governanta que se retira para seu quarto. Tal passagem justifica o título do conto, "Um Escândalo".
Para a Harvard Business Review, "um escândalo ocorre quando um evento ou ação percebidos negativamente ganha notoriedade junto a um público relevante."
Tchekhov caracteriza Máshenka como uma garota educada que sabe como comportar-se adequadamente, mas que se indigna quando se vê acuada e confrontada por sua empregadora e fica horrorizada que ela possa estar "envolvida em algo horrível". Contudo, a acusação de ser uma ladra é uma afronta demasiada à sua dignidade, difícil de tolerar, e sua decisão de deixar a residência dos Kushkin demonstra que auto-respeito para Máshenka é de importância suprema.


Há uma passagem do conto, já se encaminhando para seu final, na qual Nikoláy procura Máshenka em seu quarto, abre-lhe seu coração, faz uma longa inconfidência e pede a ela para ficar e não deixá-lo à mercê de sua esposa Fedócia, ao que Máshenka mantém sua decisão de voltar à casa de seus pais. Tchekhov lista a longa série de monólogos de Nikoláy num crescendo, (durante os quais Máshenka respondia com um silêncio constrangedor), para finalmente apresentar a franca confissão de Nikoláy de ter ele próprio roubado a jóia.
Observe que o silêncio é uma técnica utilizada por Tchekhov com grande eficácia no presente conto. Para ele, o silêncio — ou aquilo que não é enunciado — é exatamente tão importante quanto o que é explicitamente declarado.
O objetivo do contista é revelar um importante aspecto do caráter de Máshenka (cujo nome completo — Maria Andréievna — só ficamos sabendo ao final do conto), que é o de definitivamente deixar a residência dos seus atuais patrões, com palavras contundentes e decididas. Foi quebrando seu silêncio, que Máshenka finalmente confrontou todos os argumentos de Nikoláy Sergueitch com as seguintes palavras firmes:
Eu não posso ficar na sua casa nem um minuto, e já não entendo como consegui viver anteriormente nessa casa.
Temos a tendência de ver no conto em questão os ingredientes para partidarizá-lo como propaganda comunista, mas de fato o conto é de 1886 e a Revolução Bolchevique é de 1917. Antes, acho que o conto retrata o que Tchekhov via na Rússia arcaica da virada do século XIX e como se resolviam conflitos entre as pessoas pela lei do mais forte, a denominada autotutela. Pode-se afirmar que não fazia parte da pretensão de Tchekhov ir além do seu papel de ficcionista, e invadir o campo do crítico.

Conforme disse Elena Vássina:
A técnica da narrativa e a visão artística de Tchekhov, o escritor menos engajado da época, eram muito inovadoras no contexto da literatura russa, que sempre tinha certa inclinação para as pregações morais.
E ela continua: Segundo Tchekhov,
“só as pessoas impassíveis são capazes de enxergar as coisas com clareza, isso diz respeito apenas às pessoas inteligentes e dignas; os egoístas e as pessoas vazias já são indiferentes mesmo sem isso.
O escritor Tchekhov, ao contrário do doutor Tchekhov, não receitava, apenas constatava graves doenças da alma humana mostrando, com toda a objetividade (“A subjetividade é uma coisa terrível”, frequentemente repetiu o escritor), que a principal culpa estava dentro da própria natureza humana e não nas condições sociais injustas do mundo.
O escritor Tchékhov em 1901. Sua foto foi submetida a trabalho de colorização feita em estúdio. Crédito: Prof. Cupertino Santos.






III. NOTAS EXPLICATIVAS



¹   A princesa Tarakánova se fazia passar por filha da imperatriz Isabel Petrovna e tinha ambições ao trono; em 1775, Catarina II ordenou que a encarcerassem na Fortaleza Pedro e Paulo, em São Petersburgo, onde morreu nesse mesmo ano. O quadro que fala disso é obra do pintor K. D. Flavitsky (1830-1866), no qual se representa a princesa em uma cela durante uma inundação, que levou os ratos da prisão a buscarem refúgio junto dela.

²  De acordo com “Петровский Н. А.: Словарь русских личных имен”, há muitas formas coloquiais em russo, derivadas do nome Maria (Марья), a saber: Марийка, Мариша, Маря, Мара, Марюня, Маруня, Маруля, Муля, Маруся, Муся, Мася, Масята, Марюта, Марюха, Маруха, Марюша, Маруша, Муша, Маня, Манюня, Манюра, Манюся, Манюта, Манюха, Манюша, Манятка, Мака, Маняша, Маша (donde, Мáшенька, nossa protagonista), Машаня, Машоня, Машука, Машуня, Муня, Машура, Мура, Шура, Машара, Машута, Мута, Машуха, Моря, Марьюшка e Марьяша.

³  «Если вы в первом акте повесили на стену пистолет, то в последнем он должен выстрелить. Иначе — не вешайте его.» (dito que teria dado origem à teoria da Arma de Tchekhov)

 

IV. BIBLIOGRAFIA



ARISTÓTELES: Poetics, traduzida por Richard Janko, Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1987, 261 p.

FREDERICK, Samuel: Narratives Unsettled: Digression in Robert Walser, Thomas Bernhard, and Adalbert Stifter, Evanston: Northwestern University Press, 2012, 224 p.

GOTLIB, N. B.: Teoria do Conto, São Paulo: Editora Ática, 2002, 20ª edição.

MANGUM, Bryant: "Ernst Hemingway", in Critical Survey of Short Fiction, ed. Salem Press, 1982, p. 1621-28

MASON, Bryant: Paratextuality and Contemporary Narrative: The Physical Object as a Storytelling Device, tese de mestrado apresentada à Graduate Faculty in Liberal Studies para preenchimento das exigências para o título de Master in Arts, The City University of New York, 2016, 59 p. A tese abre com a seção denominada "Chekhov's Gun and Narrative Economy" (p. 1-3).

Revista "Театр и Искусство": Из воспоминнаний об А. П. Чехове, 1904, № 28, 11 июля, стр. 521 (Ref.: "Чеховское ружьё" ou A Arma de Tchekhov)

TYBOUT, A.M. & ROEHM, M.: Let the Response Fit the Scandal, Harvard Business Review, 2009

ULIÁNOVA, Olga: Un Chéjov desconocido: Platonov, o, La pieza sin nombre, Santiago de Chile: RiL-Red Internacional del Libro Ltda., 2000, 315 p.

VÁSSINA, Elena: Anton Pavlovitch Tchekhov, Revista Cult, s/d