sábado, 20 de janeiro de 2018

CONSIDERAÇÕES SOBRE O OFÍCIO E A ARTE DE TRADUZIR


Por Francisco José dos Santos Braga



[THEODOR, 1976, 88-9] divide seu livro "Tradução: Ofício e Arte" em duas partes, que deixa entrever já no título da obra:
• na primeira parte, sob o título Tradução como Ofício, discute, em capítulos distintos, a formação do tradutor, a constatação da existência de desvios léxicos, a especialização profissional e a tradução eletrônica, neste último antevendo a tradução computacional na figura do "Google Translator" ou Google Tradutor, serviço gratuito do Google que traduz instantaneamente palavras, frases e páginas da Web entre o inglês e mais de 100 outros idiomas, ainda em gestação na época do lançamento do livro (1976). Nesse capítulo (dedicado à tradução eletrônica) somos informados que  
"há vários decênios escreve-se e fala-se a respeito das chamadas 'máquinas de traduzir', dos computadores, programados de tal maneira que seriam capazes de traduzir inclusive textos complicados. Já na década de 30 surgiram na URSS os projetos de Trojanski e nos anos 40, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, os de Booth e Weaver, abrindo a publicidade em torno dessas 'máquinas do futuro'. Já se chegou a falar da desnecessidade do tradutor e da sua 'substituição parcial', afirmações que são, para dizer o mínimo, exagero patente. Desde 1954 (Nova York) e 1955 (Londres e Moscou) conhecem-se máquinas experimentais a resolverem parte do trabalho, dentro de uma conceituação nova", 
reconhecendo entretanto que tais computadores, além de serem extremamente caros, não poderiam alcançar todas as intricadas soluções técnicas que lhes fossem demandadas.
• Na segunda parte do livro, referindo-se à Tradução como Arte, faz distinção entre tradução, versão e recriação. Vejamos o que o Prof. Theodor entende por esses distintos termos: 
"(...) É corrente, provavelmente devido ao uso consagrado nas escolas, o engano segundo o qual a passagem de um texto estrangeiro para o português deve ser chamado de tradução, sendo versão - consoante aquele costume - a transferência do texto vernáculo para outro idioma qualquer. Manuseando entretanto dicionários de sinônimos, encontramos versão como correspondente a tradução, translação, traslação, traslado e variante e realmente não se reveste aquele hábito, adquirido na escola secundária (ensino de segundo grau), de nenhuma razão de existência. ¹ Adotaremos aqui uma outra distinção, aproximada daquela frequentemente apontada em obras europeias e norte-americanas:
Tradução: trabalho consciente e exato de transposição de um idioma para outro, entretanto desprovido de cunho artístico
Versão: trabalho de transposição, exato e artístico
Recriação: trabalho de passagem de um texto para outro idioma, artístico, mas pouco exato.
O ponto de referência para estabelecermos o que seja exato, consciente é, evidentemente, a obra original. Considerada assim, a tradução é um trabalho, baseado na correspondência natural ou relativa das palavras. A versão tem, ao mesmo tempo, de conservar a harmonia do todo, transportado para o outro idioma, assim como as suas qualidades estéticas e, em se tratando de poesia, procurará aproximar-se, inclusive em métrica e rima, do original. É aquela tradução que se espera em observar a fidelidade semântica, a situação contextual e as propriedades estilísticas, sem atentar contra as boas normas do idioma II. A recriação tenta combinar a expressão original com a maior liberdade possível no idioma que utiliza. Exemplo significativo é o Fausto de Goethe na recriação de Antônio Feliciano de Castilho, que deve menos a Goethe do que ao próprio gênio do autor português. (...)"  
Entre os exemplos de versão literária - assunto para o qual dedica um capítulo inteiro -, cita duas estrofes da Canção do Exílio de Gonçalves Dias ² com a seguinte tradução alemã:

Minha terra tem palmeiras,
onde canta o Sabiá;
as aves, que aqui gorgeiam,
não gorgeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
nossas várzeas têm mais flores,
nossos bosques têm mais vida,
nossa vida mais amores.

Meine Heimat rauscht von Palmen
und dort singt die Nachtigall,
hör ich hier die Vögel singen,
wie so anders ist ihr Schall.

Sterne stehn dort mehr am Himmel
und die Au trägt grün're Triebe,
in den Wäldern pulst mehr Leben
und im Leben echt're Liebe.
(in GROSSMANN, Rudolf: Geschichte und Probleme der Lateinamerikanischen Literatur, München, 1969)

Minha retroversão literal:
Minha pátria sussurra de palmeiras
e lá canta o rouxinol,
ouço aqui os pássaros cantar,
quão diferente é seu som.

Lá no céu há mais estrelas
na várzea mais verdes brotos,
nos bosques mais vida pulsa
e na vida mais puro amor.

Sobre a tradução do português para o alemão [THEODOR, 1976, 103] tece os seguintes comentários: 
"A rima conserva o esquema de segundo e quarto versos, sendo também aproximadamente semelhante o ritmo e o número de sílabas. Entretanto surge já no segundo verso uma diversificação de consequências. O sabiá, embora possua um parente entre os pássaros mais conhecidos da Europa central (Drossel ³, em alemão), não é notório pelas mesmas qualidades (canoras e de beleza) que lhe são atribuídas entre nós. Assim, o tradutor recorreu a outro pássaro, o rouxinol (die Nachtigall), sem pensar na evidente impropriedade, uma vez que não se trata de pássaro que habite palmeiras no Maranhão, e nem no Brasil, como tal. Também "germanizou" a expressão do poeta, segundo a qual "nossa vida (tem) mais amores", transformando-a para um "amor mais verdadeiro", "mais puro" (echt're Liebe), com o que conferiu um toque de seriedade, ausente da segunda estrofe original. No primeiro caso trata-se de recurso legítimo, da recorrência a outro conceito, mais conhecido daqueles que deverão ler a versão, embora a verossimilhança fosse descartada, como pouco decisiva. No segundo exemplo, contudo, trata-se sem dúvida de uma falta decorrente da análise imperfeita do original." 
Além dessas importantes observações do Prof. Theodor, devo acrescentar que as transformações por que o poema passou foram substanciais, a ponto mesmo de torná-lo quase irreconhecível, conforme se vê do cotejo do poema no original e em sua apregoada tradução alemã (em minha tradução literal). Embora a tradução do Prof. Grossmann seja esmeradíssima, conceitualmente mais fundamentada do que o original, vou mostrar como, por essa razão, ocorre efetivamente o afastamento entre as duas peças, dando azo a uma recriação por parte do tradutor alemão:
Na primeira estrofe
•  A palavra "pátria" da versão alemã suscita conotações diferentes de "terra" usada por G. Dias, embora esteja subentendido que este falava da saudade da pátria no exílio "forçado" em Coimbra, a que estava submetido em razão de seus estudos superiores.
• A tradução alemã exagera na utilização de vocábulos que lembram a audição dos vários sons da Natureza. ("Lá" as palmeiras sussurram, o rouxinol canta, enquanto "aqui" ele ouve os pássaros cantar e percebe como seu som é diferente.)
• No poema original o eu lírico se manifesta com o possessivo na abertura da estrofe (Minha) e na personificação do pássaro canoro, o sabiá (com letra maiúscula, desta forma representando o próprio poeta). Observe que G. Dias é muito sutil e, ao mesmo tempo, simples e direto na expressão de suas ideias.
Na segunda estrofe
•  G. Dias abusa no uso do possessivo (nosso/nossas/nossos/nossa abrindo cada verso). Observe que, através desse procedimento, ele convida o leitor (ou o povo brasileiro, por seu ufanismo) a sentir como ele e a se identificar com ele, ou seja, a ter empatia por sua saudade. A tradução alemã definitivamente evita esse envolvimento coletivo (eliminando qualquer possessivo), em razão de considerá-lo talvez de mau gosto ou quiçá muito apelativo.
•  Também, a tradução alemã provavelmente considere conveniente a alteração de tantos "mais" em todos os quatro versos para algo mais contido, de bom tom. Assim sendo, usa mehr (mais) no primeiro e terceiro versos e prefere introduzir o grau comparativo de superioridade de dois adjetivos (observe que G. Dias não utiliza nenhum adjetivo em todo o seu poema!), o que dispensa o emprego de mehr no segundo e quarto versos.
•  Observe que esse procedimento adultera inevitavelmente a estrutura que G. Dias havia planejado para o seu poema. 

Cabe aqui a reprodução de trecho de [BANDEIRA, 1959, 19], tratando de Gonçalves Dias e da dificuldade da tradução de "Canção do Exílio" em qualquer idioma: 
"A Canção do Exílio é que foi o seu primeiro grande momento de inspiração, o passaporte da sua imortalidade. Ainda que não tivesse escrito mais nada, ficaria, por ela, o seu nome para sempre gravado na memória de sua gente. Haverá brasileiro que não a saiba de cor? Tão grande foi a popularidade alcançada por esses versos, que os dois primeiros vieram a ser aproveitados como tema de uma cantiga de roda alagoana. É uma poesia, cujo encanto verbal desaparece quando traduzida para outra língua. Desaparece mesmo quando dita com a pronúncia portuguesa. Poesia profundamente brasileira, não porque fale no sabiá, mas por qualquer outra coisa de inefável no sentimento e na expressão. (...)" 




NOTAS EXPLICATIVAS


¹  Dicionário de Sinónimos, Tertúlia Edípica, Lisboa.

²  Pouca gente sabe que a "Canção do Exílio" foi inspirada num poema de Goethe, "Canção de Mignon", cujo trecho da primeira estrofe serviu de epígrafe ao poema de Gonçalves Dias, abaixo traduzido por Manuel Bandeira (1952). A Canção de Mignon foi retirada do romance de formação "Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister", de Goethe. Deve-se a popularidade da personagem Mignon à canção que Goethe coloca em sua boca, exprimindo com extraordinária e penetrante melancolia a saudade da pátria perdida. Cabe indagar: quais razões levaram Gonçalves Dias a se utilizar da epígrafe goethiana para seu poema?

[CYNTRÃO, 1988, 28-32] comenta a respeito, na seção intitulada Epígrafe Goethiana, que
"a epígrage usada pelo poeta é uma adaptação da 'Canção de Mignon' do autor alemão Johann Wofgang von Goethe (1749-1832), à época no auge de sua fama internacional. Tudo indica que Gonçalves Dias tivesse recolhido esse recorte goethiano em sua permanência no meio acadêmico de Coimbra. Não é uma citação integral e continuada do texto, mas uma citação acomodada pelo poeta. Da primeira estrofe de 'Mignon', Gonçalves Dias retirou a parte que melhor traduzia sua nostalgia da pátria:
Kennst du das Land, wo die Zitronen blühn,
Im dunkeln Laub die Goldorangen glühn,
(…)
Kennst du es wohl? - Dahin! Dahin!
Möcht ich… ziehn.

Conheces o país onde florescem as laranjeiras?
Ardem na escura fronde os frutos de ouro,
(...)
Conhecê-lo? Para lá, para lá
Quisera eu ir.

Outro fator externo que ajuda a explicar o clima psicológico e cultural do poeta são as suas relações com a etnografia e a paisagem brasileira. Temos, então, tanto um homem de Ciências quanto um homem de Letras na pessoa de Gonçalves Dias. Neste sentido, estaria explicada a utilização da epígrafe goethiana na pré-abertura da 'Canção do Exílio': seria menos uma exibição de alta erudição e mais uma consequência de sua aproximação com o poeta alemão, este também homem de Letras e de Ciências." 
No poema "Canção do Exílio", Gonçalves Dias faz uso voluntário da intertextualidade através do diálogo estabelecido entre dois textos, o seu e o de Goethe, colocando-se claramente como epígono do grande mestre germânico das Letras e das Ciências. Neste caso, podemos considerar que o poema do nosso patrício é uma paráfrase do poema goethiano, recriando com outras palavras o que Goethe já tinha estabelecido na geração anterior. Está como que a dizer que é o herdeiro do legado de Goethe, disposto a recriar com outras palavras o seu poema, mantendo contudo sua essência, seu conteúdo que permanecem inalterados.

Em Estrutura formal, CYNTRÃO informa que 
"a versificação do poema em questão é regular, em períodos rítmicos iguais, do primeiro ao último verso. Os versos utilizados são os heptassílabos ou redondilha maior. O movimento rítmico baseia-se na alternância da sílaba forte e fraca, com acentuação na primeira, terceira, quinta e sétima sílabas. Quanto às rimas, são soantes (sabiá/, flores/amores), com correspondência completa de sons. E alternam-se as ricas (sabiá/) com as pobres (/). Quanto à estrofação, o poema foi agrupado em quadras - as três primeiras estrofes - e sextilhas - as duas últimas estrofes. Entre os dois blocos de estrofes há uma complementação que se expressa através de um estribilho: "Minha terra tem palmeiras"/"onde canta o Sabiá".
O poeta intercala o eu individual e coletivo, numa distribuição de equilíbrio lírico-emotivo.
Os dois primeiros versos, que funcionam como refrão, contêm os elementos básicos: "eu", "palmeiras", "Sabiá", para que se compreenda a relação poeta/terra natal.
"Palmeiras" e "Sabiá" traduzem dados da realidade da terra Brasil, mas, por outro lado, traduzem a versão que o poeta tem dessa realidade: vemos aí a matéria-prima de que se serve Gonçalves Dias como fonte de inspiração; no entanto, é interessante observar que a combinação palmeira-sabiá não é uma verdade ecológica, mas uma invenção poética.
A aproximação de sabiá e palmeira confere aos dois elementos novos significados. Sabiá aparece grafado com maiúscula, personificado. Isto nos leva a estabelecer uma analogia com o poeta, que seria o "cantor" de uma tristeza, assim como o pássaro (sabiá) tem um canto triste.
Quanto à palmeira, é um símbolo de todo o Brasil. Os índios chamavam de Pindorama - terra das palmeiras - o Maranhão, lugar onde nasceu Gonçalves Dias.
O "eu lírico" está exilado, longe de sua terra natal. Os advérbios e são os elementos formais que polarizam essa comparação. O poeta não está satisfeito no , onde se encontra, e deixa-se levar pelo sonho ou imaginação, "Em cismar sozinho, à noite/ Mais prazer eu encontro lá", idealizando o lugar em que gostaria de estar - o .
Como recurso estilístico para exaltar esse lugar longe e idealizado, Gonçalves Dias se vale da hipérbole, em todos os versos da 2ª estrofe ("mais..., mais..., mais... mais), através do advérbio mais e não. Todo o processo comparativo se desenvolve paralelisticamente: "Minha terra/nosso céu/nossas várzeas/nossos bosques/nossa vida/minha terra tem palmeiras/estrelas/flores/vida/amores/primores; gorjeiam/não gorjeiam como; tem/tem mais; flores/mais flores; vida/mais vida; amores/mais amores; prazer/mais prazer; aqui/lá; cá/lá.
Ainda como recursos formais para garantir o conteúdo, além do refrão que confere ao poema ritmo de canção, podemos observar a sonoridade clara provocada pelas diversas palavras grafadas com a vogal "a": palmeira, sabiá, lá, estrela, vida, várzeas, cá, canta, terra, tais, cismar, prazer, morra, permita, 'inda, aviste.
Sendo um poeta lírico, Gonçalves Dias se utiliza de alguns termos catalizadores que lhe condicionam ou expressam a emoção poética, criando o clima para a explosão sentimental.
São substantivos, verbos e advérbios repetidos como prismas, que refletem imagens, pensamentos e emoções. Em época de "exagero", o poeta não se utilizou de um único adjetivo em sua "Canção do Exílio". Optou pela concentração e explicitação de seus sentimentos, nas ideias passadas pelos substantivos. Conseguiu, por isso, maior força de expressão, sendo absolutamente original. São os vocábulos que indicam a paisagem, os elementos condicionantes e estruturadores da emoção e da expressão linguística. Daí decorre a sensação visual do mundo físico que toma forma com todas as luzes e cores que o poeta nos leva a imaginar: o céu mais cheio de estrelas, que é o mais lindo; várzeas com flores - imaginamos tantas...; bosques selvagens, verdes, pulsando vida... Palmeiras, aves diversas e... um Sabiá com seu canto (cantaria em realidade tão bem esta ave, como o grande poeta nos leva a crer?)...).
Lendo a "Canção do Exílio", percebemos o quanto de sentimentos telúricos Gonçalves Dias faz brotar em nós - valores culturais, psicológicos, sociológicos e literários saltam-nos, num tom emotivo-lírico, na configuração, em versos, do nacionalismo ufanista, fervente a partir de 1824; do culto da natureza; da expressão de solidão e saudosismo de um homem; na predominância do sentimento sobre a razão. (...)" 
³    Em português, tordo (ornitologia) está para Drossel, em alemão.
É recomendável usar sempre com cautela o Google Tradutor, pois é útil apenas para se ter um significado aproximado de um texto. Já não é tão útil principalmente quando se busca a tradução de apenas uma palavra, fora do contexto de uma sentença. Assim, por exemplo, ao entrar com a palavra Drossel, o Google Tradutor oferece a tradução portuguesa de "regulador de pressão". Para obter um termo semanticamente coerente (no nosso caso, um pássaro), é necessário acrescentar algum verbo, por exemplo, que possibilite ao Google Tradutor oferecer, diante de um contexto mais abrangente, uma tradução mais coerente. Suponhamos que se entre com a expressão Drossel singt para o alemão, obtendo-se, como resultado, uma tradução mais próxima do desejado para o português: "thrush canta", no caso, sendo o song thrush a tradução inglesa para o pássaro canoro tordo, parente de nosso sabiá nos países europeus, segundo o Prof. Theodor. O thrush em latim se chama turdus, que em Portugal, na Itália e na Espanha se transformou em tordo, na Grécia τσίχλα, na França grive, na Catalunha griva, na Holanda lijster, na Polônia drozd, na Rússia дрозд.
O tordo é um pequeno pássaro marron com pequenas marcas no seu peito; o macho possui um alto e melodioso gorgeio com assovios flautados, repetidos de três a seis vezes e usados para marcar seu território, atrair uma parceira e manter o elo do casal.




BIBLIOGRAFIA



BANDEIRA, Manuel: GONÇALVES DIAS. Poesia Completa e Prosa Escolhida, Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.

CYNTRÃO, Sylvia Helena: "A ideologia nas Canções de Exílio: Ufanismo e Crítica", 1988, dissertação apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira, 120 p.

THEODOR, Erwin: TRADUÇÃO: OFÍCIO E ARTE, São Paulo: Editora Cultrix Ltda., 1976, 150 p.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

STEFAN ZWEIG E SUAS VIAGENS AO BRASIL


Por Ingrid Schwamborn ¹



“(...) O navio real que trouxe Stefan Zweig para o Brasil, apesar de ser inglês, foi batizado com o nome português Alcântara. E, quando Zweig, saído da fria, inóspita e “incolor” Inglaterra, entrou na baía da Guanabara, avistando o Rio de Janeiro em 21 de agosto de 1936, deve ter-se sentido como aquele médico banido, sujeito a humilhações e frustrações, diante de uma possível salvação: foi um verdadeiro coup de foudre, um amor à primeira vista, pela beleza, harmonia e calor, tropical e humano. ²

Sabemos desse impacto através da leitura do diário e das cartas que escreveu para a então esposa, Friderike. Desde cedo, Stefan Zweig se acostumara a anotar eventos e impressões num diário, hábito que depois, em idade madura, só continuou em ocasiões que considerava especiais, como essa viagem a Buenos Aires, feita a convite do PEN-Clube Internacional. Sua estada de doze dias no Brasil foi organizada por Abrahão Koogan, que conseguiu um convite oficial junto ao ministro das Relações Exteriores, Macedo Soares, grande e fiel admirador da obra de Zweig, o único, aliás, a enviar-lhe mais tarde um telegrama de cumprimentos, no dia do seu sexagésimo aniversário, em 28 de novembro de 1941, já em Petrópolis. O telegrama encontra-se hoje no acervo de Stefan Zweig, que A. Koogan doou à Biblioteca Nacional em novembro de 1992.

Em seu diário, Zweig registrou, além de cada dia, algumas noites, como aquela dos passeios na hoje extinta zona de prostituição do Mangue, junto com A. Koogan, que desde logo ele define como sehr nett (“muito simpático), mas que hoje não se lembra bem desses detalhes, como diz. Como Zweig conseguiu viver esses dias no Rio de Janeiro e em São Paulo tão intensamente e, ao mesmo tempo, escrever tanto, ficará como um dos seus segredos artísticos.

Uma coisa Zweig não contou ao diário, mas está registrada na correspondência que trocou com Koogan: no Rio, comprou três anéis. Para quem? Não sabemos. Provavelmente, um para si, um para a esposa, Friderike, que já não morava mais com ele, e um para sua jovem secretária, escolhida pela própria Friderike: Elisabeth Charlotte Altmann, a Fräulein Lotte, que batia suas obras a máquina desde 1934 em Londres. Ao todo, foram US$431.00, e Zweig pediu que A. Koogan os descontasse dos seus direitos autorais na Editora Guanabara.

Obviamente, o escritor estava numa espécie de limbo de sentimentos entre as duas mulheres, quando foi tomado por uma paixão ardente e inesperada por uma cidade, o Rio de Janeiro, e um país inteiro, o Brasil. Ele ainda tinha nacionalidade austríaca em 1936, mas já morava em Londres. Seus livros haviam sido queimados pelos nacional-socialistas na Alemanha em 1933, e as editoras, sobretudo a Insel, que crescera junto com ele, não mais o publicavam.

Isso não impediu o enorme sucesso das traduções de seus trabalhos para o português, publicadas no Brasil e em Portugal. Nada menos que 28 títulos de sua autoria estavam nas livrarias quando de sua chegada ao Rio. Era o autor mais lido no Brasil. Em sua recepção, por isso, o entusiasmo foi geral – e mútuo. Como mostrou Alberto Dines [Morte no paraíso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981], Zweig parece ter sido também o autor mais fotografado nos anos 30 e até seu último instante.

As belezas naturais da cidade, a cultura brasileira (a popular e a mais sofisticada), o caráter amável e pacífico do povo e a ausência aparente de barreiras raciais deixaram Stefan Zweig apaixonado, transmitindo-lhe um sentimento de felicidade que lhe proporcionou, como disse mais tarde, “eine Seelenkur” (uma “cura de alma”). Ele anotou todos os detalhes no seu diário, para depois aproveitá-lo na redação de um relatório mais extenso, Kleine Reise nach Brasilien (“Pequena viagem ao Brasil”), de 1937.

Zweig também usou o diário como uma espécie de parceiro de conversa. Celebridade do momento, detestava ser “o centro das atenções”; aceitava tudo com certa vaidade, mas também cansaço, humildade e ironia (escreveu a Friderike, dizendo que era tratado com uma Marlene Dietrich ou um Charlie Chaplin).

Desse primeiro encontro com o Brasil, surgiu a ideia de fazer um livro inteiro sobre este país encantador, o que viria a ser feito durante a segunda estada de Zweig, em 1940. Surgiu então o famoso e polêmico Brasil, país do futuro, publicado pela Editora Guanabara em 1941. ³

Mas o tema que ocupou Zweig nessa primeira passagem foram as viagens de descobrimento, especialmente aquela realizada pelo navegante português Fernão de Magalhães , que mereceu a última biografia terminada por Zweig (Magellan, o homem e o feito, 1938). No segundo dia de viagem para o Brasil (9 de agosto), a bordo do navio, Zweig já lia sobre esse português que se colocou a serviço dos espanhóis, demonstrando em dias seguintes (14, 15 e 16 de agosto) admiração pela coragem dos descobridores.

No fragmento do diário aqui publicado , o escritor menciona algumas pessoas que encontrara durante a viagem, em geral de pouco interesse para ele e para os leitores, com uma exceção: um certo Mr. Montague (“sr. Segunda-Feira”), de Nova York, certamente o protótipo do “Mr. McConnors”, de sua novela Xadrez, o engenheiro barulhento, rico e exigente, que provoca o campeão mundial de xadrez, pagando US$ 250.00 por partida, uma fortuna para a época. É o homem bem-sucedido que não sabe perder.

Dois outros fatos mencionados chamam a atenção neste fragmento do diário: logo no primeiro dia de sua estada no Rio, ou no dia seguinte, Zweig anotou um detalhe surpreendente da vida dos brasileiros, o “jogo do bicho”, ao qual se refere como “vício nacional”. Sua curiosidade pelo assunto indica que ele mesmo deve ter sido fascinado por todo tipo de jogo, de sorte e azar (“Vinte e quatro horas na vida de uma mulher”), de apostas (“Noite fantástica”) e também de xadrez. No seu livro sobre o Brasil, Zweig fala mais detalhadamente sobre os brasileiros como “jogadores de loteria”, além de tentar explicar o funcionamento do jogo do bicho aos estrangeiros.

Zweig também registra que, na visita a São Paulo, impressionou-se no Instituto Butantã ao ver o veneno de 80 mil cobras concentrado num vidro que poderia matar uma cidade em segundos, como diz. Desde então, o veneno parece ser uma obsessão para ele, que poria fim à própria vida, anos depois, ingerindo o conteúdo de um vidro, presumivelmente o sonífero Veronal, o mesmo que o médico desesperado toma em “Amok” para encontrar sono e sossego.

Outro episódio curioso: no domingo, depois do almoço de gala oferecido pelo ministro das Relações Exteriores no Jockey Club (lugar de apostas), Zweig visitou uma casa na Floresta da Tijuca, pertencente ao “almirante inglês Cochrani”, como ele escreve, erroneamente. Tratava-se da casa de Thomas Cochrane, primo do almirante, homeopata e homem de negócios, que viria a ser o sogro de José de Alencar. Ele adquirira a casa em 1855. Ali, Alencar conheceu Georgiana Augusta, de dezoito anos, e, recém-casado, também ali – fato pouco conhecido – escreveu Iracema em 1865. Zweig ficou encantado com o ambiente e a “paisagem de sonho” e, talvez captando o espírito do lugar, depois dessa viagem sua veia artística renovou-se quase milagrosamente. A casa, situada na Gávea Pequena, é hoje a residência oficial do prefeito do Rio de Janeiro.

Na terça-feira, 25 de agosto, Zweig foi homenageado pela Academia Brasileira de Letras. Ao discurso de elogio de um dos membros, Múcio Leão, ele respondeu com palavras que viria a publicar mais tarde com o título Dank an Brasilien (“Agradecimento ao Brasil). Nesse discurso ele se diz envergonhado, pois todos aqui conheciam sua obra e ele quase nada conhecia sobre eles como escritores; diz ainda que não fez, ou alcançou, o que realmente desejava produzir; promete fazer alguma coisa para retribuir a simpática acolhida e afirma que, com certeza, voltaria em breve.

A essas anotações de diário, Zweig deu o título de Reise nach Brasilien und Argentinien (“Viagem ao Brasil e à Argentina”), expondo suas intenções. Mas o texto termina em 1º de setembro, justamente quando ele deixa a terra firme do Brasil pelo porto de Santos e encontra Emil Ludwig e Duhamel a bordo de outro navio, a caminho do congresso do PEN-Clube em Buenos Aires. Nenhuma palavra sobre a Argentina, nem no diário, nem na obra – uma grande decepção para seus admiradores portenhos até hoje. Em uma carta de Buenos Aires para Friderike, Zweig disse, fazendo um trocadilho com o nome da cidade: “O ar aqui não é tão bom como no Rio.”

Na segunda viagem ao Brasil, Zweig veio no navio Argentina, dessa vez com a jovem esposa, saindo de Nova York em 9 de agosto de 1940 e chegando ao Rio em 21 de agosto, a mesma data da primeira vez. O casal voltou para os Estados Unidos em janeiro de 1941, de avião. Zweig, no entanto, conseguira no dia 5 de novembro de 1940, no Consulado Geral do Brasil em Buenos Aires, durante uma viagem de conferências, o carimbo mais precioso naquele tempo de guerra e de fugas: o visto permanente para residir no Brasil. Voltou então ao país de navio, o SS Uruguay, saindo com a mulher de Nova York em 15 de agosto e chegando no Rio doze dias depois – exatamente como na viagem de “Xadrez”.

Antes de ir para a “solidão” em Petrópolis – que lembra a Zweig uma pequena cidade nas montanhas da Áustria –, comprou no antiquário Le Connaisseur, do sr. Wolfgang Apfel, na rua Sete de Setembro, no Rio de Janeiro, edições usadas de “bons autores” – Homero, Shakespeare, Goethe –, como informa Victor Wittkowski em Ewige Erinnerung (Roma, 1960). Também deve ter adquirido ali um livro de xadrez publicado em 1925, Die hypermoderne Schachpartie, de Savielly G. Tartakower, descoberto por Alberto Dines em seu espólio, deixado para a Biblioteca Municipal de Petrópolis.
Casa Stefan Zweig situada na rua Gonçalves Dias, 34, em Petrópolis

Em 19 de setembro, dois dias depois da mudança para a casa alugada na rua Gonçalves Dias nº 34, Zweig escreveu ao seu amigo Richard Friedenthal: “Estou no momento tentando escrever uma muito curiosa (estranha) ‘Schachnovelle’.” Talvez este título fosse provisório, mas dez dias depois ele o repetiu, com mais explicações, para Friderike, numa carta de 29 de setembro, em que falava de outros trabalhos também: “Aqui eu corrijo muito a autobiografia [quase terminada nos meses que passara nos Estados Unidos] e esbocei uma pequena novela de xadrez, inspirado no fato de ter comprado, para o isolamento, um livro de xadrez; estou jogando diariamente as partidas dos grandes mestres.” O subtítulo desse livro é relevante: Ein Schachlehr – und Lesebuch. Zugleich eine Sammlung von 150 schönsten Meisterpartien aus den Jahren 1914-1925 (“Um livro de aprendizagem – e leitura. Também uma coletânea das mais bonitas partidas de mestres dos anos 1914-1925”).

Nessas semanas, a atenção desse homme de lettres permaneceu concentrada no livro de Tartakower, sua única “fonte”. Brincando, chega a recomendar a Richard Friedenthal que pare de estudar e viva como ele, quase sem livros ou possibilidades de documentar-se em uma biblioteca, pois “das regt an, zu erfinden und kühn zu sein”. (“É um estímulo à invenção e à audácia”). Ao mesmo tempo, em 19 de setembro de 1941, lamenta não ter mais o costumeiro público. Teme um certo relaxamento de linguagem, pois, como diz, estava escrevendo apenas para o tradutor.

Apesar desse duplo exílio, o da pátria e o da linguagem, Stefan Zweig continua escrevendo apenas na única língua literária possível para ele, o alemão, segundo os termos de suas cartas a Friderike e aos amigos em outros países. Nessas cartas, Zweig sempre diz que estava preparando uma pequena novela, “estranha”, “curiosa”, “diferente”, mas nunca revela do que se trata. A única pessoa que viu o manuscrito em vida do autor foi Ernst Feder, ex-redator-chefe do Berliner Tageblatt, também refugiado em Petrópolis desde 1º de dezembro de 1941, a quem Zweig pediu em meados de janeiro de 1942, poucas semanas antes de morrer, uma revisão do manuscrito, “ainda longe de estar terminado”. Feder, para Zweig, era um especialista nas duas artes, a literatura e o xadrez (“höchst dankbar, wenn Sie als doppelter Fachmann der beiden Künste, der schachlichen und literarischen, mir Ihre Einwände rückhaltlos sagen wollten”).

Foi o casal Feder que Lotte convidou para passar a noite do sábado, dia 21 de fevereiro, junto com eles. Assim, Ernst Feder e sua esposa foram as últimas pessoas a verem os Zweig com vida. Feder conta em “Últimos dias de Zweig” (“Zweigs letzte Tage”, in Der grosse Europäer Stefan Zweig, Frankfurt, Ed. Hanns Arens, 1981) que Lotte olhou longamente para Stefan quando este aceitou o convite para jogar uma partida de xadrez. Jogaram, nessa noite, duas partidas. Feder não sabia que horas antes Zweig havia despachado os três exemplares de “Schachnovelle”, fato confirmado pelos recibos do correio que hoje se encontram no acervo de Wittkowski no Deutsches Litteraturarchiv, em Marbach, Alemanha.

Horas antes de morrer, o destino dos seus escritos era o que mais preocupava Stefan Zweig. Na sua carta de despedida a Koogan, pede ao amigo que cuida de seus manuscritos, inacabados (com exceção da pequena “Schachnovelle”), e autoriza Wittkowski a fazer uma revisão, ou supervisão, para a edição em língua alemã. Na carta de despedida para Wittkowski, escrita provavelmente nesse mesmo dia 21, Zweig diz que todo aquele material inacabado não tinha grande valor – tratava-se apenas de uma espécie de “instinto de conservação” –, pedindo para que todo o supérfluo fosse destruído. Sinceridade ou coquetterie com a posteridade? (...)

“Schachnovelle” era tão importante para Zweig, que ele só suicidou depois de tê-la despachado. É sua obra mais enigmática. Já o título é tão vago que os tradutores tiveram grande dificuldade em interpretá-lo. Não se joga aí exatamente uma, nem “a” partida de xadrez, título usado na primeira edição brasileira. No nível “real”, jogam-se pelo menos meia dúzia de partidas, e no nível imaginário, um número infinito. Tampouco há apenas um único jogador, como sugere a tradução francesa Le joueur d’échecs. Mas as duas versões estão certas no que sugerem, pois xadrez – em português – traz a conotação de "prisão", e échec – em francês – significa também "fracasso". Sem dúvida, Zweig tinha consciência dessas significações. Pode-se imaginar que a ideia do isolamento de uma pessoa em um "xadrez" jogando xadrez tenha tido origem no duplo sentido que a palavra adquire na língua portuguesa, e que optamos por preservar nesta tradução. Completamente fora das intenções do autor deve ser a tradução inglesa, The Royal Game.

Quais eram as intenções de Zweig? Ao amigo Berthold Viertel ele comunicou no dia 30 de janeiro de 1942: “Dann habe ich eine aktuelle längere Erzählung geschrieben...” (“Depois, eu escrevi um conto bastante longo e atual...”). De fato, essa novela , terminada e publicada em 1942, é, junto com Mephisto, de Klaus Mann (de 1936), o primeiro reflexo, na literatura, da atualidade política alemã. Ao contrário das novelas anteriores de Zweig, aqui a distância entre o tempo do narrador fictício e o tempo real do autor é a menor possível. Por outro lado, também a distância em relação aos seus próprios sentimentos é muito menor do que em suas obras anteriores, incluindo-se aí sua autobiografia, Die Welt von Gestern (“O mundo que eu vi”). Feder já observou que o personagem principal de “Schchnovelle”, o Dr. B., um advogado de Viena, vítima da Gestapo, desenvolve muitos pensamentos que torturavam Zweig nas últimas semanas de vida, em Petrópolis.

Com seu fim em aberto e seus dois diferentes níveis – o jogo “real” a bordo do navio e o jogo imaginário que se desenrola na prisão – essa novela convida a interpretações diversas e fundamentadas. Para uns, Zweig queria mostrar o efeito nocivo da nova técnica de tortura do brainwashing (Daviau/Dunkle) ¹⁰; para outros, queria realçar a luta da sensibilidade e intelectualidade contra a brutalidade e a barbárie (Knut Beck). Alguns (A. Baner) especulam que, em um navio de Nova York para o Rio de Janeiro, Zweig encontrou uma pessoa parecida com o Dr. B., que teria contado para ele a sua extraordinária história de ex-prisioneiro da Gestapo no luxuoso Hotel Metrópole, em Viena, depois do dia 13 de março (de 1938, data do Anschluss, ou anexação da Áustria pela Alemanha), resistindo a todas as pressões durante meses, só com a ajuda de um livro de xadrez encontrado por acaso, aprendendo as regras e jogando cada vez mais febrilmente, até a loucura. Outras pessoas, sobretudo jogadores de xadrez, supõem que Zweig pode ter realmente conhecido em suas viagens um campeão desse jogo, como o excêntrico Miguel Najdorf, que viajou com a equipe polonesa para um campeonato em Buenos Aires em 1939 e se naturalizou argentino. Em 1947, Najdorf foi levado à beira da loucura ao jogar em São Paulo uma partida simultânea e “cega” com 45 adversários, parecendo viver algumas cenas de “Schachnovelle”.

Vesely e outros também se perguntaram qual a importância do xadrez nessa novela. O próprio Stefan Zweig era um amador, que só jogava para se distrair, assim como ocorre com o narrador, que se classifica como um “jogador de terceira categoria”. Feder conta como tinha que se esforçar para deixar Zweig ganhar uma partida de vez em quando. Mas Zweig deve ter ficado fascinado pela figura de um profissional que joga para ganhar dinheiro, e não faz outra coisa na vida. Nas suas novelas, os narradores sempre sentem curiosidade, ou mesmo paixão de analista, diante de gênios ou maníacos. (...)

Dessa perspectiva, “Schachnovelle”, ou “Xadrez”, mostra-se a obra mais íntima de Zweig, o retrato do artista confinado num espaço mínimo, sem comunicação com o mundo exterior, no xadrez, ou prisão, jogando com palavras um jogo de criação que no começo da carreira era divertido e mais tarde transformou-se em paixão. A partir de certo ponto – o exílio –, a criação literária tornou-se um jogo obsessivo, destrutivo, uma luta de resistência contra poderes maiores, levando-o – como o Dr. B. – aos limites da razão humana, ou “ao fundo do oceano” de depressões.

Eis aí a “atualidade” verdadeira da novela, à qual Zweig fizera referência em carta ao amigo Viertel. Depois de ter terminado uma autobiografia surpreendentemente impessoal, retratando a vida de uma geração ¹¹, ele revela em “Schachnovelle” seu próprio estado de espírito: “Não podia mais concentrar-me”, escreve no texto da novela e repete na última carta a Friderike, “e a solidão que no começo tinha efeito tão calmante, começou a ser opressiva.” Aos sessenta anos, sente-se cansado, esgotado, sem esperança de poder viver mais com seu “fígado negro”, a melancolia, as depressões, que se agravavam nos últimos meses. Tudo o que estava fazendo nessa época, como um livro sobre Montaigne, fazia “sem garra”: “Só trabalho para não me tornar melancólico ou louco.”

“Schachnovelle” era tão importante para Zweig, que ele a melhorou estilisticamente até o último momento, mesmo acreditando que ela interessaria apenas ao círculo restrito dos amadores de xadrez. Nos anos de guerra, o texto efetivamente ficou quase despercebido. Mas, com o correr dos anos, seu valor literário se impôs cada vez mais, e ela terminou traduzida para mais de trinta línguas, sendo hoje considerada uma obra-prima. Como Kleist, Nietzsche e Hölderlin, na mais profunda solidão e depressão, perto do sempre imaginado fim – o suicídio é uma constante em suas novelas e em seu único romance –, Stefan Zweig deu o melhor de si.

Coincidência ou não, “Schachnovelle” é a única obra que escreveu do começo ao fim no Brasil, na modesta casa de veraneio em Petrópolis. E, ironicamente, é uma das poucas obras suas na qual nenhum personagem pensa em suicidar-se. A vez, agora, era do próprio autor. Xeque-mate no paraíso.”

Fonte: ZWEIG, Stefan: Amok e Xadrez, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1993, 183 p.



NOTAS EXPLICATIVAS, por Francisco José dos Santos Braga



¹   Sob o título Apresentação: Três Navios, Ingrid Schwamborn, doutora em Letras Românicas pela Universidade de Bonn, é a autora do prefácio do livro que engloba duas novelas, Amok (em alemão, Der Amokläufer, literalmente “O Corredor com Amok”, escrita em 1922) e Xadrez (em alemão, Schachnovelle, literalmente “Novela de Xadrez”, última obra publicada em 1942), em tradução de Marcos Branda Lacerda e Odilon Calloti, respectivamente, e lançado em 1993 pela Editora Record para o público de língua portuguesa. Esta edição é dedicada a Abrahão Koogan, primeiro editor de Stefan Zweig (⭐︎Viena, 1881 - ✞Petrópolis, 1942) no Brasil e grande amigo do escritor austríaco.

²  Vejamos o depoimento do próprio Zweig:
“Chegamos ao Rio: foi uma das impressões mais poderosas que eu experimentei em toda a minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, estremeci. Pois não apenas me defrontei com uma das paisagens mais belas do mundo, esta combinação ímpar de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas ainda com um tipo completamente diferente de civilização. Contrariando todas as minhas expectativas, o quadro era de ordem e limpeza na arquitetura e na paisagem urbanas, com ousadia e grandiosidade em todas as coisas novas e, ao mesmo tempo, uma cultura espiritual antiga, conservada de forma especialmente feliz por causa da distância. Havia cor e movimento. O olhar excitado não se cansava de ver e, para onde olhasse, era recompensado. Fiquei possuído por um torpor de beleza e de felicidade que excitava os sentidos, crispava os nervos, dilatava o coração, ocupava o espírito, e quanto mais eu via, nunca era o bastante. Nos últimos dias, viajei para o interior – quer dizer, imaginei estar viajando para o interior. Viajei doze, quatorze horas até São Paulo, até Campinas, acreditando estar me aproximando do coração do país. Mas quando, ao voltar, olhei para o mapa, descobri que mesmo depois dessas doze ou quatorze horas de trem mal havia passado da epiderme do país. Pela primeira vez, comecei a perceber a grandeza inconcebível daquele país (Brasil) que não deveria ser chamado de país e sim de continente, um mundo com espaço para trezentos, quatrocentos, quinhentos milhões de habitantes e uma riqueza incomensurável, da qual nem a milésima parte foi explorada ainda sob o solo farto e intacto. Um país em rápido desenvolvimento e que apenas começa a se desenvolver, apesar de todas as atividades de trabalho, construção, criação e organização. Um país cuja importância para as próximas gerações é inimaginável até fazendo as combinações mais ousadas. E, com uma rapidez surpreendente, derreteu-se a arrogância europeia que eu levara como bagagem inútil nessa viagem. Percebi que tinha lança um olhar para o futuro do nosso mundo. (Cf. in ZWEIG: Brasil, um país do futuro, Porto Alegre: L&PM, 2006, Introdução, p. 14-5)

³  Em continuação ao trecho transcrito na nota de rodapé anterior, Zweig anotou também na Introdução de seu livro Brasil, um país do futuro:
“Quando o navio zarpou – era uma noite estrelada, e, apesar disso, aquela cidade única brilhava com seus colares de pérolas de luz elétrica mais bela e mais misteriosa do que as faíscas do firmamento – tive a certeza de que não estava vendo aquela cidade e aquele país pela última vez. Tive a clareza de que, na verdade, não havia visto nada, ou pelo menos não o suficiente. Planejei voltar logo no ano seguinte, mais bem preparado, para ficar mais tempo e para experimentar outra vez e mais intensamente aquela sensação de viver dentro do porvir, do futuro, desfrutando mais conscientemente da segurança da paz e do bom ambiente acolhedor. Mas não pude cumprir a minha promessa. No ano seguinte eclodiu a guerra na Espanha, e todos se diziam: esperemos por tempos mais calmos. Em 1938 caiu a Áustria, e novamente foi o caso de esperar por um momento mais tranquilo. Depois, em 1939, veio a Tchecoslováquia, e depois a guerra na Polônia, e depois a guerra de todos contra todos na nossa Europa suicida. Cada vez mais ardente se tornou o meu desejo de me afastar por algum tempo de um mundo que se destrói para um mundo que se constrói pacífica e criativamente. (Cf. in ZWEIG: idem, p. 15)
Sobre o projetado livro sobre o Brasil, Alberto Dines, no prefácio da citada edição de 2006, relata: “(...) Em Nova York, onde se encontrava de passagem, acertou com os seus editores internacionais um lançamento simultâneo. No auge do primeiro conflito globalizado, conseguiu a proeza de lançar em agosto-setembro de 1941 a edição brasileira, a norte-americana e, no fim do mesmo ano, as edições alemã, sueca (ambas impressas em Estocolmo, já que na Europa ocupada por Hitler as obras de um autor judeu estavam condenadas) e também a portuguesa. No início de 1942, saíram as edições francesa (nos EUA, pelo mesmo motivo) e espanhola (na Argentina).” (Cf. in ZWEIG: idem, p.8)

  Knut Beck, editor da obra de Stefan Zweig em alemão (Frankfurt: Editora Fischer), supõe que se trata de Ferdinand Magellan, de Edward Frederik Benson, publicado em Nova York.

O fragmento do diário publicado de Zweig está estampado nas páginas 161 a 183 do livro apresentado por Ingrid Schwamborn.

Emil Ludwig (1881-1948), pseudônimo de Emil Cohn, foi escritor e biógrafo alemão de origem judia, historiador e publicista nacionalizado suíço, em cujas mãos a biografia é convertida de uma mera recompilação de dados da vida de algum personagem, em uma forma de arte. Como novelista histórico, inventou cenas entre grandes personagens que são tidos por históricos, que é o que acontece na obra Am Mittelmeer, de 1923, publicado no Brasil pela Editora José Olympio com o título “O Mediterrâneo, Destino de um Oceano”, com tradução de Almir de Andrade.

Georges Duhamel (1884-1966) foi um escritor francês, autor de histórias, romances, relatos de viagens e ensaios, poeta, crítico literário e autor de peças teatrais. Em 1935, foi eleito membro da Academia Francesa. De 1939 em diante, colaborava regularmente com críticas musicais para o jornal Figaro. Sua obra mais famosa é a Crônica dos Pasquier, um ciclo romanesco escrito entre 1933 e 1945 e composto de 10 romances distintos, publicados pelo Mercure de France, descrevendo a epopeia familiar dos Pasquier na virada do século XX.

  Zweig começou a escrever “Die Welt von Gestern”, seu livro de memória sobre o Império Habsburgo, em 1934, quando, antecipando a Anexação (Anschluss) e a perseguição nazista, ele se erradicou da Áustria para a Inglaterra e, mais tarde, para o Brasil. Postou nos Correios o manuscrito, datilografado por Lotte, para o editor no dia anterior ao que ambos cometeram suicídio em fevereiro de 1942. O livro foi primeiro publicado em Estocolmo (1942), como “Die Welt von Gestern”. Saiu em inglês pela Viking Press em abril de 1943. Em português, a Editora Guanabara lançou-o em 1942 como “O Mundo que eu Vi (minhas memórias)”, em tradução de Odilon Gallotti, com 392 páginas e capa dura.

  Schwamborn está tratando de “Schachnovelle” (Xadrez).

¹⁰  Brainwashing ou lavagem cerebral. Trata-se de uma doutrinação forçada para induzir alguém a desistir de suas crenças e atitudes políticas, sociais ou religiosas e para aceitar ideias contrastantes regimentadas.

¹¹  Agora Schwamborn está tratando de “O Mundo que eu Vi (minhas memórias)”.








terça-feira, 9 de janeiro de 2018

BELAS SÃO FLORZINHAS DE JARDIM NA PRIMAVERA


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Compositor soviético russo Boris Andreyevich Mokrousov


I. Б.А.Мокроусов: Хороши весной в саду цветочки

Музыка Б.А.Мокроусова       Слова С.Алымова

Хороши весной в саду цветочки,
Ещё лучше девушки весной.
Встретишь вечерочком
Милую в садочке –
Сразу жизнь становится иной.
Встретишь вечерочком
Милую в садочке –
Сразу жизнь становится иной.

Моё счастье где-то недалечко,
Подойду да постучу в окно:
Выйди на крылечко
Ты, моё сердечко,
Без тебя тоскую я давно.
Выйди на крылечко
Ты, моё сердечко,
Без тебя тоскую я давно.

В нашей жизни всякое бывает
Набегает с тучами гроза.
Туча уплывает,
Ветер утихает,
И опять синеют небеса,
Туча уплывает,
Ветер утихает,
И опять синеют небеса.

Хороши весной в саду цветочки,
Ещё лучше девушки весной.
Встретишь вечерочком
Милую в садочке –
Сразу жизнь становится иной.
Встретишь вечерочком
Милую в садочке –
Сразу жизнь становится иной.

Minha tradução:
Boris Andreyevich Mokrousov: Belas são florzinhas de jardim na primavera

Belas são florzinhas de jardim na primavera,
Ainda mais belas na primavera são as moças.
Tu vais encontrar-te de noitinha
Com tua querida no jardinzinho –
Logo a vida se torna diferente. (bis)

Minha felicidade em algum lugar não está distante,
Vou achegar-me e bater na janela:
Vou entrar na varandinha,
Meu amorzinho,
Sem ti por muito tempo sentirei saudade. (bis)

Em nossa vida tudo acontece,
Tempestade com nuvens aparece,
A nuvem passa,
O vento cessa,
E novamente os céus ficam azuis. (bis)

Belas são florzinhas de jardim na primavera,
Ainda mais belas na primavera são as moças.
Tu vais encontrar-te de noitinha
Com tua querida no jardinzinho –
Logo a vida se torna diferente. (bis)





















INTERPRETAÇÕES CLÁSSICAS

Preliminarmente, observe-se que Mokrousov era compositor, e não cantor.

Na voz de Yuri Khochinsky - disco de 1946:
Consta que, um ano depois (1947), Yuri se enforcou num camarim em Tbilisi com a idade de 23 anos.

Na voz de Ivan Skobchov - disco de 1946 (YouTube):

Na voz de Georgy Vinogradov - disco de 1948 (YouTube):

Na voz de Georgy Abramov - disco de 1950 (YouTube):

Vídeo do YouTube na voz de Eduard Khil:
https://youtu.be/rWagLyxv5UQ (mais recentemente)

OUTRAS INTERPRETAÇÕES QUE SE TORNARAM POPULARES

https://youtu.be/VfIok_ekc28 (Trio vocal Meridian)

https://youtu.be/cL9RwMH6DhE (Trio vocal Meridian)

https://youtu.be/VrTwJF4tb7w (Orq. Virtuoses de Samara/regente Ivan Melnikov/solista e artista performático laureado em competições russas e internacionais: Sergei Kanygin)

https://youtu.be/c74eBCS5MdU (Uma curiosidade: como tocar a  canção no acordeon)



II. BREVE BIOGRAFIA DO COMPOSITOR BORIS MOKROUSOV
AUTOR: S.V.  DUZHIN
Texto traduzido por Francisco José dos Santos Braga



BORIS ANDREYEVICH MOKROUSOV, compositor soviético russo, famoso por suas canções, nasceu em 1909 em Nizhny Novgorod. Em 1936, graduou-se pelo Conservatório de Moscou na classe de composição ministrada pelo Prof. N. Ya. Miaskovsky. Em 1948 foi vencedor da segunda edição do Prêmio Stalin pelas canções “Pedra querida”, “Acordeon solitário”, “Canção da terra natal” e “Belas são florzinhas de jardim na primavera” e, em 1962, recebeu o título de Artista Honorário da República de Chuvash. 

S. V. Duzhin, autor desta biografia traduzida por mim, conta que, certa feita, na primavera de 1998, seus amigos e ele estavam andando de trenzinho a vapor, comumente chamado de “cuco”, da floresta para casa. 
"Estávamos com um humor eufórico. Tirei da caixa minha acordeon de acampamento “Yunost” produzida pela fábrica Shuya e começamos a soltar falsetes para as canções “Quando a primavera chegar”, “Vologda” e “Marcha dos defensores de Moscou”, que foi composta em homenagem à fileira de blindados de guerra em defesa da capital russa (1941). A audiência composta, na maioria, por avós das vilas próximas ouviram benevolentemente nossa apresentação. Alguns começaram a participar do canto.
– Pessoal, vocês podem cantar “Perto da Cidade de Gorky”? E “Incêndios do acampamento estão queimando ao longe”? E “Uma acordeon solitária”?
– Claro que podemos. Cantemos!
A música de todas as supracitadas canções foi composta por Boris Andreyevich Mokrousov. No período compreendido entre 1940 e 1960, suas canções eram conhecidas por todos na Rússia. As canções eram bem conhecidas e amadas. E eu diria que elas mereciam isso. Suas melodias e harmonias, por toda sua aparente simplicidade, sempre têm algo inesperado, um tesouro desimportante, que por algum milagre transporta a atmosfera do tempo e os sentimentos humanos envolvidos em notas musicais.
As pessoas amavam Mokrousov não apenas por sua música notável, mas também pelo fato de ser ele alguém que correspondia no extremo ao arquétipo tradicional russo. Tome-se, por exemplo, o famoso incidente de 1948, quando ele, tendo sido agraciado com o Prêmio Stalin, não compraria para si dois dos carros de luxo “ZIM” (hoje, seria de Mercedes 600), mas colocou o dinheiro no seu bolso e dirigiu até a Casa da Obra Criativa para Compositores perto da cidadezinha de Ruza. Lá foi direto para a taverna local e começou a dar drinques para todo o mundo presente. A notícia disso voou pela vizinhança. As pessoas das aldeias vizinhas foram chegando em manadas: alguns a pé, e outros em trator. A festa nacional para celebrar um prêmio concedido ao amado compositor continuou até que seu dinheiro se dissipou e todas as suas canções foram cantadas repetidamente acompanhadas por um acordeon."

Além das inúmeras canções, da pena de Mokrousov vieram a ópera “Chapayev”, composições para orquestra sinfônica, obras de música de câmara e instrumental, de música incidental a peças teatrais e filmes (“Stalingrado”, “25 anos de Exército Vermelho de Trabalhadores e Camponeses”, “Poddubenskiye tchastushki”, “Primavera na rua Zarechnaya”, “Nossos vizinhos”, “Casamento com Dowry”, “Localização desconhecida”, “Vingadores evasivos” e outros).

No link abaixo, você encontrará um quadro feito por S.V. Duzhin que oferece acesso aos textos, notação e música como arquivos de MIDI para 48 canções selecionadas do grande compositor. Na coluna intitulada “Poet”, você encontrará os poetas que fizeram as letras de suas canções. No caso da canção sob análise (intitulada “Beautiful are garden flowers in spring”, em inglês), a letra do poema russo é de Sergei Alymov.

Duzhin ainda fez um catálogo de 168 canções compostas por Mokrousov com base em publicações editadas, na esperança de que ele será corrigido e suplementado.

O site original do compositor soviético russo Boris Mokrousov (http://mokrousov.samnet.ru/phono/pesni.htm), de propriedade de seu sobrinho B. G. Onusaitis, registra as quatro primeiras versões clássicas supracitadas para a canção composta por seu tio Boris Mokrousov (com letra de Alymov), na opção “Música – Canções de Boris Mokrousov”), com base em compilação do site “Fonoteca Retrô Virtual”.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

CANÇÃO SOBRE MOZART


Por Francisco José dos Santos Braga



I.  Булат Окуджава: Песенка о Моцарте

Моцарт на старенькой скрипке играет
Моцарт играет, а скрипка поет,
Моцарт отечества не выбирает –
Просто играет всю жизнь напролет.

Ах, ничего, что всегда, как известно,
Наша судьба - то гульба, то пальба...
Не оставляйте стараний, маэстро,
Не убирайте ладони со лба.

Где-нибудь на остановке конечной
Скажем спасибо и этой судьбе.
Но из грехов своей родины вечной
Не сотворить бы кумира себе.

Ах, ничего, что всегда, как известно,
Наша судьба - то гульба, то пальба,
Не расставайтесь с надеждой, маэстро,
Не убирайте ладони со лба.

Коротки наши лета молодые,
Миг - и развеются, как на кострах,
Красный камзол, башмаки золотые,
Белый парик, рукава в кружевах.

Ах, ничего, что всегда, как известно,
Наша судьба - то гульба, то пальба...
Не обращайте вниманья, маэстро,
Не убирайте ладони со лба.

Minha tradução:
Bulat Okudzhava: CANÇÃO SOBRE MOZART

COPLA:
Mozart num velho violino toca
Mozart toca e o violino canta.
Ele não escolhe sua pátria ¹.
Simplesmente passa a vida inteira a tocar.

REFRÃO:
Oh, assim é sempre, como sabido,
Nosso destino – festa ou guerra,
Não poupes esforços, maestro,
Não retires tuas mãos da fronte ². (bis)

COPLA:
Em algum lugar na última estação
Digamos “obrigado!” mesmo a esse destino.
Mas os pecados de nossa pátria eterna
Não transformarias em ídolos.

REFRÃO:
Oh, assim é sempre, como sabido,
Nosso destino – festa ou guerra,
Não desistas da esperança, maestro,
Não retires tuas mãos da fronte. (bis)

COPLA:
Curtos são nossos anos juvenis,
E, num instante, dissipam-se como nas fogueiras
Camisola escarlate, sapatos dourados,
Peruca branca, mangas rendadas.

REFRÃO:
Oh, assim é sempre, como sabido,
Nosso destino – festa ou guerra,
Não ligues (para os que te assediam), maestro,
Não retires tuas mãos da fronte. (bis)

Vídeo na voz do autor:

Vídeo na voz de Oleg Pogudin: 
https://youtu.be/Io5QZ0i95lQ


NOTAS  EXPLICATIVAS

¹   O gênio é universal.

²  Mantém tua atitude reflexiva, indiferente a tudo o que está à tua volta.

 

II. BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR BULAT OKUDZHAVA



Bulat Shalvovich Okudzhava ou Okudjava (Moscou, URSS, 9/5/1924-Paris, 12/6/1997) nasceu numa família de comunistas que tinham vindo de Tbilisi, capital da Geórgia. Okudzhava era um poeta, escritor, músico, novelista e bardo soviético de descendência georgiano-armênia. O pai do nosso homenageado, Shalva Okudzhava, era georgiano e a sua mãe, Ashkhen Nalbandyan, armênia, vieram para Moscou para Shalva estudar e trabalhar como membro de alta patente na direção do Partido Comunista. Shalva foi preso em 1937 durante o Grande Expurgo sob a ditadura de Stalin, acusado de trotskismo e catástrofe e executado logo depois, em companhia de seus dois irmãos. A mãe de Okudzhava também foi presa em 1939 por “feitos anti-Sovietes” e enviada para o campo de trabalho forçado de Gulag. Liberta em 1946, foi presa novamente em 1949, permanecendo mais 5 anos em campo de trabalho forçado. Liberta de novo em 1954, finalmente ela e seu marido foram reabilitados em 1956. Quanto a Akudzhava, quando jovem foi criado pela avó em Tbilisi; em 1941 alistou-se como infante voluntário do Exército Vermelho e como tal participou na guerra contra a Alemanha Nazista. Após dar baixa no serviço em 1944, retornou a Tbilisi, onde passou nos exames e matriculou-se na Universidade Estatal de Tbilisi, graduando-se em 1950. Trabalhou então como professor numa escola rural num distrito de Kaluga e, em seguida, na própria cidade de Kaluga. Em 1956, Okudzhava retornou a Moscou onde trabalhou como chefe de uma editora e, mais tarde, como chefe da divisão de poesia do nacionalmente mais importante periódico semanal da USSR. Foi quando começou, nos meados de 1950, a compor canções e apresentá-las, fazendo-se acompanhar por uma guitarra russa.

Bardo significa alguém que escreve um poema e o canta. Na União Soviética a presença de bardos foi um importante fenômeno cultural, iniciado na década de 60 do século passado. Os bardos compunham suas canções, tanto a música quanto a letra, apresentando um fino contraste com as mentiras cotidianas da propaganda oficial. Okudzhava foi um dos fundadores do gênero soviético chamado “canção de autor”. As canções dele misturam as tradições russas poética e folclórica e o estilo trovadorístico francês representado por Georges Brassens e outros seus contemporâneos. Os bardos cantavam suas canções para pequenos grupos de pessoas em apartamentos privados, geralmente acompanhados de uma guitarra. As canções eram gravadas em fitas cassete e então regravadas muitas vezes, de um gravador para o seguinte e, em seguida, disseminadas pela USSR e Polônia. A melhor nata de bardos – aqui incluídos, Bulat Okudzhava, Alexander Galich, Vladimir Vysotsky e outros – eram o orgulho e honra da nação. As pessoas encontravam refúgio do absurdo existencial no regime comunista, em suas canções – versando sobre vida e amor, honestidade e integridade. A distribuição de tais fitas cassete era formalmente considerada criminosa como propaganda anti-soviética. Alexander Galich foi obrigado ao exílio, onde faleceu logo depois sob circunstâncias suspeitas. Embora as canções de Okudzhava não fossem abertamente políticas (diferentemente das de alguns seus colegas bardos soviéticos), a frescura e independência da voz artística de Okudzhava apresentava um sutil desafio às autoridades culturais soviéticas, que assim relutaram por muitos anos a darem reconhecimento oficial ao artista. Em 1969, suas letras apareceram no filme clássico soviético chamado Sol Branco do Deserto. Durante a década de 80, também publicou muita prosa (sua novela autobiográfica O Espetáculo Acabou conquistou um Prêmio do Livreiro Russo em 1994). Nos anos 80, muitas canções dele foram oficialmente liberadas na USSR e muitos volumes de poesia foram publicados. Em 1991, ele foi agraciado com o Prêmio Estatal da USSR. Ele apoiou o movimento de reforma na USSR e, em outubro de 1993, assinou a Carta dos 42. Faleceu em 1997 em Paris e está sepultado no Cemitério Vagankovo em Moscou. Um monumento marca o edifício na rua Arbat 43 onde ele morou. 
Monumento homenageando o poeta Bulat Okudzhava instalado em 2002 no centro de Moscou (no Velho Arbat)

Um planeta descoberto por um astrônomo tcheco foi nomeado 3149 Okudzhava em sua homenagem, em 1981. Suas canções ficaram muito populares e são frequentemente apresentadas. Elas são também usadas para o ensino da língua russa.


Steve Shelokhonov, prolífico escritor de minibiografias, diz a respeito de Okudzhava que ele
criou um novo tom de voz no folclore urbano moscovita: catártico, melancólico e esclarecedor. Algumas de suas canções foram uma sátira política espirituosa sobre o regime soviético. Suas performances gravadas eram amplamente disseminadas por toda a USSR durante as décadas de 50, 60 e 70, quando as audiências eram receptivas a suas canções empáticas e nostálgicas. Embora não possuísse uma voz forte, Okudzhava era amado por sua maneira de cantar aconchegante e sincera, ou vocalizando seus versos melífluos. Suas performances gravadas tinham enorme apelo sobre audiências principalmente intelectuais e eram admiradas por milhões de ouvintes que falavam russo na USSR e por todo o mundo. (...) 


Texto e cifras para guitarra da “Canção sobre Mozart”: