quarta-feira, 20 de março de 2019

RECUPERE SEU LATIM > > PARTE 4


Por Francisco José dos Santos Braga
 

Em 1967, o tradutor Belchior Cornélio da Silva (seu nome original) fez a tradução do ensaio Revelação e Tradição (Offenbarung und Überlieferung, publicado por Verlag Herder, Freiburg, 1965), da dupla de teólogos alemães Karl Rahner e Joseph Ratzinger. Este último seria eleito Papa com o nome de Bento XVI, na sucessão de João Paulo II.

Em 1982, o mesmo tradutor com o nome de Silva Bélkior, surpreendeu com outra publicação, desta vez do português para o latim, com Carmina Drummondiana - a tradução de 52 poemas de seu conterrâneo de Minas Gerais, o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Sinto inveja de Silva Bélkior por sua capacidade de verter do português para o latim poemas seletos de autores. Embora eu contrarie São Tomás de Aquino, que na Quaestio 36 (1-91) da Segunda Suma Teológica trata da inveja, considerando que a inveja sob nenhuma hipótese seja virtuosa e boa, esta inveja o é. Até S. Tomás, no seu texto, considera que a inveja não seja um vício capital, um pecado capital, a não ser no caso que leve o insensato ou o tolo à morte (Job, 5.2: Vere stultum interficit iracundia et parvulum occidit invidia). Neste caso particular em que a inveja mata alguém, é que S. Tomás é taxativo: "Nihil autem occidit spiritualiter nisi peccatum mortale. Ergo invidia est peccatum mortale." (Porém nada mata espiritualmente a não ser o pecado mortal. Por isso, a inveja é pecado mortal.) Não estou falando daquela inveja que procura destruir a virtude e o mérito alheio (Gloriae et virtutis invidia est comes), mas desta vontade de poder igualmente contribuir para alguns amigos poetas que gostariam de ver seus poemas traduzidos para o latim e poder atendê-los da mesma forma que Silva Bélkior o fez em relação aos versos de Drummond, que foram excelentemente traduzidos, como se verá.

Diante desses poemas traduzidos para o latim, poderá alguém do contra questionar: Qual é a utilidade de traduzir esses poemas modernistas para o latim? Por que não adotar, na tradução, a métrica do latim clássico, baseada na quantidade silábica?

“Latim clássico” ou “literário” é a norma literária, altamente estilizada, que compreende o período que vai de 81 a. C. a 14 d.C., momento de seu maior esplendor e fruto de prolongado amadurecimento e elaboração. Mas nenhum dos autores que o utilizaram na sua escrita, falavam-no em casa ou entre amigos. O latim literário era  uma estilização do sermo urbanus, latim falado ou língua coloquial das classes cultas, com o qual convivia. No nosso caso, a tradução dos versos de Drummond para o latim pode ser considerada uma utilização desse sermo urbanus pelo tradutor.

As línguas românicas (incluindo o português) são, diacronicamente, o latim de hoje. Provenientes do latim falado, o que elas conseguem exprimir pode, em princípio e sem prejuízo para essas línguas oriundas do latim, ser trasladado para a língua-mãe que, como se sabe, ainda sobrevive entre as filhas: "Non enim ita exhausta est mater, ut quod possunt filiae, ipsa non possit", cuja tradução pode ser "De fato não está assim exaurida a mãe, de modo que o que podem as filhas, ela própria não possa." (SPRINGHETTI, Aemilius. Lexicon linguisticae et philologiae. Roma, Univ. Gregoriana, 1962, p. VIII)

Permito-me reproduzir aqui o Apêndice nº 10 do "Carmina Drummondiana" na p. 141 do livro:

VOLTA AO ESTUDO DO LATIM

Enaltecendo a educação utilitária, pode Bertrand Russell ter proclamado que o mundo novo se construirá sem latim e sem grego, sem Dante, sem Shakespeare, sem Bach e sem Mozart. Preferimos aquecer-lhe o frio pensamento filosófico com a voz e a sensibilidade dos poetas:
"É singularmente adequado (o Latim pós-clássico) para exprimir a paixão tal como a compreende e sente o mundo poético moderno" (CHARLES BAUDELAIRE. Les fleurs du mal. Paris, Crès, 1917, p. 370).
"Arduíno Bolívar, o teu latim / não foi, não foi perdido para mim" (CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE. Poesia completa e prosa. Rio, Aguilar, 1973, p. 409).
E, num mundo empobrecido de sonhos, ressoe este apelo de pedagogos portugueses e brasileiros que não descreem das vantagens do restabelecimento do estudo do latim nos currículos escolares: 
"Os pedagogistas com razão concordam em que o exercício das letras latinas aviva o engenho do estudante, o que resulta da natureza da língua, essencialmente lógica, e de terem de se revestir de trajo moderno pensamentos que concernem a modos de existir muito diferentes dos atuais. Tudo isto obriga a refletir e a raciocinar: ora, reflexão e raciocínio são ginástica do espírito, o qual com ela se aperfeiçoa" (LEITE DE VASCONCELOS. Da importância do Latim. Lisboa, Clássica Edit., 1947, p. XII).
"A ação dos que entre nós sacrificaram e relegaram o ensino da língua latina no curso secundário não produziu os resultados por eles pretendidos, porque nenhuma melhoria foi obtida na formação cultural da nossa juventude. O nível de aproveitamento demonstrado pelos candidatos aos exames vestibulares baixou sensivelmente" (VANDICK L. DA NÓBREGA, Língua latina: imagem de Roma na América do Sul. Rio, 1967, p. 46).
"Como a obrigatoriedade do ensino profissionalizante no ensino do 2º grau está à beira da morte, que tal se as horas ociosas fossem preenchidas com aulas de Latim? Desta forma, os alunos teriam a oportunidade de praticar a tão necessária ginástica mental, já que a estrutura da língua latina obriga o aluno a pensar, a desenvolver o raciocínio lógico, atributos esses tão pouco desenvolvidos nos dias atuais" (SÉRGIO PONTES, in: JORNAL DO BRASIL, 22/03/1982).

Deixemos por ora as divagações e vamos ao que interessa. Eis alguns dos mais conhecidos poemas do itabirano trasladados para o latim de Silva Bélkior:

MEDIA IN VIA

Media in via erat lapis
erat lapis media in via
erat lapis
media in via erat lapis.

Non ero unquam immemor illius eventus
pervivi tam mihi in retinis defatigatis.
Non ero unquam immemor quod media in via
erat lapis
erat lapis media in via
media in via erat lapis.

NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


IOSEPH

Et quid nunc, Ioseph?
Festum est finitum,
lumen est exstinctum,
cuncta evanuit turba,
nox est frigefacta,
et quid nunc, Ioseph?
et quid nunc, et tu?
qui nomen non habes,
qui alios derides,
qui versus componis,
qui amas, reclamas?
et quid nunc, Ioseph?

Femina non tibi,
verbum neque tibi,
nec blanditiae tibi,
bibere non vales,
fumum nec spirare,
nec sputare quidem,
nox est frigefacta,
dies tuus non venit,
currus tuus non venit,
risus tuus non venit,
utopia non venit,
omnia et sunt finita,
omnia et vanuere,
omnia et mucuere,
et quid nunc, Ioseph?

Et quid nunc, Ioseph?
tuus sermo dulcis,
tuae febris hora,
tua gula et ieiunium,
tua bibliotheca,
tua auri fodina,
tua vestis vitrea,
tua contradictio,
tuum odium - et quid nunc?

Clavi manu arrepta,
vis ut pateat ianua,
non est tamen ianua;
vis in mari mori,
mare est tamen siccum;
vis in Minas ire,
Minas non est amplius.
Ioseph, et quid nunc?

Tu si vocitares,
tu si gemeres,
tu si personares
Vindobonae melos,
tu si obdormires,
tu si fessus fieres,
tu si mortem obires...
Sed non moreris,
tu es durus, Ioseph!

Solus in caligine
velut bellua in silva,
sine theogonia,
nudo sine muro,
tete cui fulcires,
sine equo nigro
qui quam citior fugiat,
tu incedis, Ioseph!
Ioseph, quonam gentium?

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


BIS GEMINA CHOREA

Iohannes ardebat Theresiam quae ardebat Raymundum
qui ardebat Mariam quae ardebat Ioachim qui ardebat Lilim
quae ardebat neminem.
Iohannes ad Status Foederatos fecit iter, Theresia ad claustrum,
Raymundus fatali obiit casu, Maria vitam vixit virgo,
Ioachim propria se interfecit manu atque Lilim sibi iunxit J. Pinto
                                                                            ⎡Fernandes
qui fabellam non ingressus fuerat.


QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.


CANTIO AMICA

Ipse cantionem paro
mea in qua se mater videat,
sese matres videant omnes,
duo ut oculi et quae loquatur.

Quamdam gradior per viam
plures percurrentem patrias.
Etsi me non videant, video
salutoque diu amicos.

Arcanum distribuo
ut qui amat vel subridet.
Modo quam aptissimo
bina sese iungunt oscula.

Vita mea, vitae nostrae
unum condunt adamanta.
Verba didici pernova
pulchriora et alia reddidi.

Ipse cantionem paro
homines quae expergefaciat
puerosque captet somno.

CANÇÃO AMIGA

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.


DICTA ARCANO AB ITABIRANO

Itabirae vixi annos aliquot.
Itabirae praesertim natus sum.
Propterea tristis sum, superbus: ferreus.
Centesimae nonaginta partes ferri in viis.
Centesimae octaginta partes ferri in animis.
Et oblivio haec cuiuscumque in vita est porositatis
                                                          ⎡communicationisve.

Amandi voluntas, qua a labore impedior,
Itabira venit, vacuis e suis noctibus, sine feminis, sine finibus.

Patiendi et assuetudo, qua tantopere delector,
dulcis est itabirana hereditas.

Attuli Itabira tibi nunc daturus munera diversa:
sanctum istum Benedictum opus veteris statuarii Alfredo Duval;
pellem illam tigridis, super spondam stratam in exedrio;
hanc superbiam, caput hoc demissum...

Aurum habui, habui armenta, ruri fundos habui.
Hodie officialis sum civilis.
Itabira est vix imago photographica ad parietem.
Dolor tamen quantus!

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizonte.

E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança italiana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Fonte: BÉLKIOR, Silva & DRUMMOND, Carlos de Andrade: CARMINA DRUMMONDIANA, edição comemorativa dos 80 anos do poeta, Ed. Universidade de Brasília/Salamandra consultoria Editorial S/A, 1982, 143 p.

quinta-feira, 14 de março de 2019

O #GoogleDoodle DE 14/03/2019 HOMENAGEIA A ESCRITORA CAROLINA MARIA DE JESUS


Por Francisco José dos Santos Braga


 
"DEPOIMENTO 
O que vou fixar aqui não é uma autobiografia, o que daria assunto a um alentado volume, mas apenas alguns aspectos das minhas atividades de modesto homem de letras, jornalista e ex-amador de artes plásticas. E o faço tão sòmente animado pela justa afirmação do meu eminente coestaduano Daniel de Carvalho, em seus "Capítulos de Memórias", de que "Por mais obscura que seja uma vida, contém ela uma região de interêsse para os seus semelhantes." A prova temo-la aí em "Quarto de Despejo", de humilde mulher de côr, egressa de uma favela paulista, do qual já se tiraram mais de 80 mil exemplares e que constitui, sem dúvida, um dos maiores "best sellers" da atualidade.
A vida de um varredor de rua ou de um limpador de esgotos — cada qual dentro de sua esfera de ação — é tão digna de curiosidade como a de qualquer famoso escritor. Pena é que aquêle não saiba exteriorizar suas idéias e emoções, embora de forma primária, como essa Carolina Maria de Jesus, que, até há pouco, já havia recebido mais de um milhão de cruzeiros de direitos autorais de seu livro, o qual já tem contrato para ser editado em doze línguas."
Lincoln de Souza, na Introdução do seu livro Vida Literária (1961)


Se estivesse viva, Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras e mais importantes escritoras brasileiras, completaria 105 anos nesta quinta-feira, 14 de março de 2019. Por isso, o Google, através de um Doodle (logomarca comemorativa), dedicou essa data à sua memória. Moradora da favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, por boa parte de sua vida Carolina teve fama, mas morreu em relativo esquecimento em 1977. O seu primeiro livro "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada" (1960), traduzido em treze línguas e para quarenta e dois países, chegou à Europa, Japão e Estados Unidos. Ainda hoje, a vida dela inspira escritores, jornalistas e até ilustradores.

Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada
Życie na śmietniku ("Vida na lata de lixo", título em polonês), Czytelnik, 1963.
1ª página de Życie na śmietniku (em polonês)

No ano passado, o jornalista Tom Farias lançou o livro "Carolina: uma Biografia", editado pela Malê, com o objetivo de humanizar a figura de Carolina Maria de Jesus, tentando desvinculá-la do mito. Para ele, a escritora, ao contrário do que se pensa, não nasceu intelectualmente em 1960, com a publicação de seu livro. A biografia revela textos e matérias de jornais em que Carolina Maria de Jesus já aparecia em 1940. “Ela fazia uma ronda pelas redações e rádios, apresentava-se como 'Carolina Maria, a poetisa negra', e ia oferecendo seus textos para publicação. Muitas vezes, era olhada de forma enviesada, tratada com desdém, mas teve alguns sucessos", conta. Também desaponta o leitor com a verdade sobre sua biografada: "Carolina se sentia superior aos seus vizinhos, sobretudo na favela, e essa postura a perseguiu por toda a vida", na entrevista que Tom Farias concedeu à revista Cult em 17 de maio de 2017.  ¹

Em Carolina: uma biografia (2018), o jornalista Tom Farias apresenta a complexa trajetória da escritora Carolina Maria de Jesus. Da infância pobre, na cidade de Sacramento, em Minas Gerais, passando pelas cidades em que peregrinou na juventude em busca de trabalho e de diagnóstico e cura para uma doença nas pernas, até sua chegada a São Paulo onde se instalou na favela do Canindé. A biografia detalha não somente sua relação com os filhos e o momento de ascensão, devido ao sucesso editorial do livro Quarto de despejo, mas também, o declínio em razão do desinteresse do mercado editorial e dos leitores em relação às suas publicações posteriores, o que, acrescido da sua personalidade forte e das barreiras sociais e discriminatórias brasileiras, levou a escritora a retornar à mesma condição de pobreza em que viveu boa parte da sua vida.


Também em 2018, a vida da autora virou uma biografia em quadrinhos produzida por João Pinheiro e Sirlene Barbosa e publicada pela editora Veneta. O livro, que narra a infância pobre de Carolina Maria de Jesus em Minas Gerais, sua vida sofrida em São Paulo, a fama, as ilusões, as decepções e o esquecimento. "Passado o lançamento de Quarto de despejo, os livros de Carolina foram esquecidos ou jogados no lixo, logo o local de onde ela retirava os cadernos velhos para reescrever a sua melhor história de vida", segundo Tom Farias.

O relato literário ("Quarto de despejo") recebeu críticas e comentários de escritores e intelectuais como Lincoln de Souza, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira. No exterior, Carolina foi acolhida com entusiasmo por Pablo Neruda e Octavio Paz. "Quarto de despejo" suscitou, no meio intelectual, posturas distintas em relação ao seu valor e significado. Enquanto muitos partiam do princípio de que o livro não poderia ser considerado uma obra literária, outros – como Sérgio Milliet e Helena Silveira, – efetivamente perceberam o valor e o ineditismo do livro.

O cotidiano da vida no Canindé – o verdadeiro quarto de despejo do título do livro – narrado por Carolina Maria de Jesus é esquálido, violento, permeado por doenças, alcoolismo e fome, esta definida como a escravidão dos tempos modernos.

"Quarto de despejo", escrito sob forma de diário, não era o único nem, do ponto de vista da escritora, o principal livro escrito por Carolina Maria de Jesus. Em matéria publicada na revista O Cruzeiro, em novembro de 1960, Audálio Dantas descreve esse aspecto: “Levei os cadernos, sob forte desconfiança de Carolina, que já não acreditava em promessa de ninguém. Quando eu lhe disse que publicaria seu “diário” em livro, ela não disse nada; limitou-se a um sorriso entre amarga e irônica. Na verdade, ela não escrevia o “diário” pensando em publicá-lo. Preferia publicar um livro de poesias, contos, provérbios. Ou um romance (ela tem vários escritos) cujos personagens são imaginários condes, marqueses, costureiras, jogadores – gente burguesa, quase sempre, de fora da favela. Uma maneira de evadir-se, talvez, da própria miséria de seu meio.

O jornalista da revista O Cruzeiro, Audálio Dantas, acidentalmente tomou conhecimento de que Carolina Maria de Jesus mantinha um diário no qual descrevia a favela do Canindé, sobre a qual havia ido fazer uma reportagem. Percebendo o ineditismo da obra, Audálio Dantas manteve contato com Carolina Maria de Jesus, com os editores de O Cruzeiro e, mais tarde, com a Livraria Francisco Alves, que publicaria a primeira edição de Quarto de despejo. Não fosse por um acidente – a descoberta de Carolina Maria de Jesus pelo então repórter Audálio Dantas –, "Quarto de despejo" jamais teria sido publicado ou conhecido.
 
Carolina, no lançamento do livro “Quarto de Despejo”
 
Na sequência de Quarto de despejo, todos os livros escritos por Carolina Maria de Jesus venderam pouquíssimos exemplares: Casa de alvenaria, publicado em 1961, Provérbios e Pedaços da fome, de 1963 e Diário de Bitita, edição francesa póstuma de 1982 (o livro só viria a ser publicado no Brasil alguns anos depois).

[RIBEIRO, 2010, 57-72] arremata sua longa exposição sobre a obra de Carolina Maria de Jesus ² : "Uma última questão se refere ao curioso fato de a obra de Carolina Maria de Jesus ter sido melhor aceita no exterior do que no Brasil. Algumas edições, como Diário de Bitita, foram publicadas lá, antes mesmo que no Brasil. É possível que diferenças importantes entre os dois contextos expliquem o contínuo interesse por seus livros no exterior. Lá, ao contrário do que ocorreu no Brasil, não parece haver existido os impedimentos políticos e o estranhamento de classe já mencionados; diferente do que ocorreu aqui, não havia uma classe média que pudesse se incomodar com a estética e a descrição de um mundo que, desagradavelmente, sugeria a responsabilidade dos que permitiram a produção de quadros de tamanha desigualdade e abandono."


A ATUALIDADE DO MUNDO DE CAROLINA: prefácio em "Quarto de Despejo: Edição Popular" (1963) ³

Por Audálio Dantas


Para os leitores desta edição de Quarto de despejo, é preciso que eu me apresente. Entrei na história deste livro como jornalista, verde ainda, com a emoção e a certeza de quem acreditava poder mudar o mundo. Ou, pelo menos, a favela do Canindé e outras favelas espalhadas pelo Brasil. Repórter, fui encarregado de escrever uma matéria sobre uma favela que se expandia na beira do rio Tietê, no bairro do Canindé. Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E tinha! Tanto que, na hora, desisti de escrever a reportagem.

A história da favela que eu buscava estava escrita em uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela.

Da reportagem – reprodução de trechos do diário – publicada na Folha da Noite, em 1958, e mais tarde (1959) na revista O Cruzeiro, chegou-se ao livro, em 1960. Fui o responsável pelo que se chama edição de texto. Li todos aqueles vinte cadernos que continham o dia-a-dia de Carolina e de seus companheiros de triste viagem.

A repetição da rotina favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos.

A fome aparece no texto com uma freqüência irritante. Personagem trágica, inarredável. Tão grande e tão marcante que adquire cor na narrativa tragicamente poética de Carolina.

Em sua rotineira busca da sobrevivência no lixo da cidade, ela descobriu que as coisas todas do mundo – o céu, as árvores, as pessoas, os bichos – ficavam amarelas quando a fome atingia o limite do suportável.

Carolina viu a cor da fome – a Amarela.

No tratamento que dei ao original, muitas vezes, por excessiva presença, a Amarela saiu de cena, mas não de modo a diminuir a sua importância na tragédia favelada. Mexi, também, na pontuação, assim como em algumas palavras cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura. E foi só, até a última linha.

O tempo operou profundas mudanças na vida de Carolina, a partir do momento em que os seus escritos – registros do dia-a-dia angustiante da miséria favelada – foram impressos em letra de fôrma, num livro que correu mundo, lido, discutido e admirado em treze idiomas.

Um livro assim, forte e original, só podia gerar muita polêmica. Para começar, ele rompeu a rotina das magras edições de dois, três mil exemplares, no Brasil. Em poucos meses, a partir de agosto de 1960, quando foi lançado, sucessivas medições atingiram, em conjunto, as alturas dos 100 mil exemplares.

Os jornais, as revistas, o rádio e a televisão, primeiro aqui e depois no mundo inteiro, abriram espaço para o livro e para a história de sua autora.

O sucesso do livro – uma tosca, acabrunhante e até lírica narrativa do sofrimento do homem relegado à condição mais desesperada e humilhante de vida – foi também o sucesso pessoal de sua autora, transformada de um dia para outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade.

Carolina, querendo ou não, transformou-se em artigo de consumo e, em certo sentido, num bicho estranho que se exibia "como uma excitante curiosidade", conforme registrou o escritor Luís Martins.

Mas, acima da excitação dos consumidores fascinados pela novidade, pelo inusitado feito daquela negra semi-analfabeta que alcançara o estrelato e, mais do que isto, ganhara dinheiro, pairava a força do livro, sua importância como depoimento, sua autenticidade e sua paradoxal beleza.

Sobre ele escreveram alguns dos melhores escritores brasileiros: Rachel de Queiroz, Sérgio Milliet, Helena Silveira, Manuel Bandeira, entre outros. O que não impediu que alguns torcessem o nariz para o livro e até lançassem dúvidas sobre a autenticidade do texto de Carolina. Aquilo, diziam, só podia ser obra de um espertalhão, um golpe publicitário.

O poeta Manuel Bandeira, em lúcido artigo, colocou as coisas no devido lugar: ninguém poderia inventar aquela linguagem, aquele dizer as coisas com extraordinária força criativa mas típico de quem ficou a meio caminho da instrução primária. Exatamente o caso de Carolina, que só pôde chegar até o segundo ano de uma escola primária de Sacramento, Minas Gerais.

O impacto causado por "Quarto de despejo" foi além das discussões sobre o texto. O problema da favela, na época de dimensões ainda reduzidas em São Paulo, foi discutido por técnicos e políticos. Um grupo de estudantes fundou o Movimento Universitário de Desfavelamento, cuja sigla – MUD – revelava, no mínimo, uma intenção generosa. Ou um sonho. E Carolina era alçada à condição de cidadã, com título oficial conferido pela Câmara Municipal de São Paulo.

O cenário em que foi escrito o diário já não é o mesmo. Parte dele deu lugar ao asfalto de uma nova avenida, por coincidência chamada Marginal. A Marginal do Tietê, que passa por ali onde até meados dos anos 60 se erguia o caos semi-urbano e subumano da favela do Canindé, em São Paulo. O resto foi ocupado por construções sólidas, ordenadas, limpas, aprumadas no lugar dos barracos cujos ocupantes foram para outros cantos da cidade, para outros quartos de despejo.

Mais de trinta anos decorridos desde o aparecimento de "Quarto de despejo", a cidade tem outra cara, esparramada para muito além da avenida Marginal. E a favela do Canindé, onde viveu Carolina Maria de Jesus, na rua A, barraco nº 9, multiplicou-se em dezenas, centenas de outras.

Assim, "Quarto de despejo" não é um livro de ontem, é de hoje. Sua contundente atualidade é dramaticamente demonstrada pelos arrastões que invadiram em 92 as praias da zona sul do Rio de Janeiro. Os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando.



NOTAS  EXPLICATIVAS



 
²  RIBEIRO, Fábio Viana: Um outro inexistente: Quarto de despejo e a trajetória de Carolina Maria de Jesus, revista Antares, nº 4, jul/dez 2010, p. 57-72

³  Cf  https://www.passeidireto.com/arquivo/40859847/quarto-de-despejo---carolina-maria-de-jesus


AGRADECIMENTO


A Rute Pardini Braga pelas fotos que tirou e editou para os fins desta matéria.

segunda-feira, 11 de março de 2019

AOS 90 ANOS DE FREI JOEL POSTMA O.F.M.


Por Francisco José dos Santos Braga
 

No dia 8 de março de 2019, na mesma data que se comemora o Dia Internacional da Mulher, participamos minha esposa Rute Pardini e eu de uma homenagem aos 90 anos de frei Joel Postma o.f.m., no Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont. O homenageado, dotado de uma enorme modéstia, não fez qualquer convite, evitando dar destaque a um fato que considera normal na vida. Soubemos da celebração eucarística, às 19 horas, através da coralista Maria Cristina Faria que com alegria nos comunicou o horário da Missa, convidando-nos para irmos de surpresa. Fizemos questão de homenagear o aniversariante com a nossa presença. No caminho de São João del-Rei a Santos Dumont, meditei sobre um sonho que teve o rei Salomão em que ele pede a Deus, na parte final da sua prece, "um coração sábio, capaz de julgar o vosso povo e discernir entre o bem e o mal". Ao que Deus lhe responde, ainda no sonho: "Pois que me fizeste este pedido, e não pediste nem longa vida, nem riqueza, nem a morte de teus inimigos, mas sim inteligência para praticar a justiça, vou satisfazer o teu desejo: (...), finalizando com o preceito: "E, se andares em meus caminhos e observares os meus preceitos e mandamento como o fez Davi, teu pai, eu prolongarei a tua vida". (1 Reis, 3:5-14) Essas considerações eu fazia, enquanto me dirigia a Santos Dumont, grato a Deus pela longevidade de frei Joel, meu querido mestre e amigo.


Assim sendo, fizemos a nossa aparição sem qualquer cerimônia e apenas demonstrando a nossa grande afeição pelo professor (de latim, inglês e piano/órgão para os 12 atuais seminaristas), organista e compositor. Chegamos às 18h 15min e já a esta altura a capela se encontrava toda iluminada e um seminarista e uma coralista recepcionavam a comunidade. Sentamo-nos comodamente num dos bancos vazios em companhia de frei Joaquim Fonseca o.f.m., que frei Joel considerava seu aluno mais brilhante, aplicado e apto a substituí-lo em várias atividades como ser regente do Coral Trovadores da Mantiqueira, quando de sua ausência de Santos Dumont por 13 anos, e ser Coordenador nacional de Música Litúrgica na CNBB, da qual frei Joel se desligou em fins de 1997, fazendo questão de indicá-lo em sua substituição. Por oportuno, lembro que frei Joaquim tem excelente cabedal: bacharel em Música pela UFRJ e mestre em Teologia Dogmática com concentração em Liturgia, professor do ISTA-Instituto Santo Tomás de Aquino e da FAJE-Faculdade Jesuítica de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, além de autor de inúmeros livros sobre liturgia pela Editora Paulus.





Pontualmente às 19 horas, estando a capela lotada, deram entrada o celebrante frei Hilton Farias de Souza, ministro provincial da Província Santa Cruz, e dois concelebrantes: frei Kélisson Geraldo Machado o.f.m. e padre Cássio Barbosa, representando Dom Gil Antônio Moreira, arcebispo metropolitano de Juiz de Fora.



A Missa em ação de graças pelos 90 anos de frei Joel contou com a participação do Coral Trovadores da Mantiqueira, sob a sua regência, acompanhado pelo organista Otávio Tavares de Assis (atual regente do Coral Vozes do Carmo, de Betim). As partes dessa missa festiva podem ser assim resumidas:
1) ABERTURA da Missa Solene Vespertina do Pe. Ney Brasil
2) ATO PENITENCIAL: Kyrie (liturgia ortodoxa)
3) Salmo Responsorial para a Quaresma no Hinário Litúrgico: Ó Senhor, não desprezeis um coração arrependido. (Sl 50: 19)
4) ACLAMAÇÃO AO EVANGELHO: Caminhamos pela luz de Deus (hino africano)
5) OFERENDAS: Na simplicidade, de Pe. Ney Brasil
6) COMUNHÃO I: cf. João 6 (comunidade ecumênica cristã em TAIZÉ, França)
Comam do pão, bebam do cálice,
Quem a mim vem, não terá fome.
Comam do pão, bebam do cálice,
Quem em mim crê, não terá sede.
7) COMUNHÃO II: cf. Isaías 55 (letra e música de Reginaldo Veloso): Reconciliai-vos com Deus!
8) TE DEUM em ação de graças (adaptado do gregoriano por frei Joel)
A vós, ó Deus, louvamos,
a vós, Senhor, cantamos.
A vós, Eterno Pai,
adora toda a terra. (...)


Ao término da Missa, frei Joel dirigiu-se ao púlpito para agradecer a toda a assembleia pelo comparecimento. Abordando sua biografia, frei Joel falou inicialmente sobre sua família, ambiente familiar católico, propício para o despertar da vocação religiosa de 3 filhos (Jan, Otto Johannes e ele próprio). Jan foi ordenado padre diocesano na Diocese de Nelson, próxima a Vancouver, Canadá. Otto Johannes, seguiu os seus passos, ingressando na vida franciscana e tornando-se missionário no Paquistão. Comentou sobre as agruras vividas durante a Grande Guerra, quando o que havia para tomar era uma sopa doce de beterraba e bulbos de tulipas. Frei Joel foi ordenado em 1956 e durante três anos (1957 a 1959) estudou no afamado Instituto Holandês para Música Sacra, em Utrecht, onde teve como professores Albert de Klerk (professor de órgão), Herman Strategier (professor de harmonia) e Job Wilderbeek (professor de piano). Em outubro de 1959, frei Joel e outros cinco frades embarcaram de navio para o Brasil. 

Chegando ao Brasil, foi destacado para seguir para Divinópolis com a missão de substituir frei Paulino na função de mestre de canto dos frades estudantes de Teologia, dos quais alguns eram holandeses. Também assumiu a regência do Coral dos Meninos Cantores da Cruz de São Damião, que atuava no Santuário Santo Antônio e fora criado por frei Paulino. Em Divinópolis, permaneceu desde fins de 1959 até abril de 1964. Logo, tomou conhecimento de que o cônego Amaro Cavalcanti de Albuquerque, da Arquidiocese do Rio de Janeiro e Presidente da Comissão Nacional de Música Sacra havia publicado uma seleção das composições do Pe. Gelineau (1920-2008), com a letra dos salmos e dos cânticos traduzidos e metrificados. Esse trabalho pioneiro possibilitou que frei Joel fizesse os arranjos e os gravasse com a participação dos três corais à sua disposição: Coral dos Meninos Cantores da Cruz de São Damião, Coral do Santuário Santo Antônio e Coro dos Frades Franciscanos. Com a gravação em mãos, frei Joel foi ao Rio apresentá-la ao cônego Amaro Cavalcanti, que se entusiasmou com o resultado do trabalho e autorizou a divulgação da gravação em forma de dois LPs. A partir dessa gravação de salmos e cânticos, teve o reconhecimento pelo trabalho e passou a ser convidado pelo cônego Amaro Cavalcanti para assessorar os Cursos de Canto Pastoral, que ocorriam nas diferentes regiões brasileiras. Em 1963, frei Davi Ruigt, que era professor de música no Seminário Seráfico, em Santos Dumont, foi transferido para Belo Horizonte. Frei Joel se candidatou a substituí-lo nessa nova função e sua transferência foi autorizada e publicada em 8 de abril de 1964. 

O Seminário Seráfico (seminário menor) contava, naquela altura, com cerca de 120 meninos, contingente que podia dispor sem precisar recorrer a pessoas de fora. No fim de 1964, o coral do Seminário, que ficou conhecido por Trovadores da Mantiqueira, fez um tour de apresentações em cidades vizinhas, cantando exclusivamente músicas religiosas compostas pelo Pe. Jocy Rodrigues. É desse período, em Santos Dumont, a primeira e, talvez, a mais significativa composição de frei Joel: a Cantata O Peregrino de Assis, sobre texto do teatrólogo francês Léon Chancerel, traduzido por frei Urbano Plentz. O motivo da sua composição foi a comemoração dos 25 anos do Seminário Seráfico, celebrados em 1966. Depois da sua apresentação inaugural em 1966, após repetidas apresentações pelo Coral Trovadores da Mantiqueira e, depois de a partitura ter sido transcrita para o formato eletrônico, em 1996, por frei Joaquim Fonseca o.f.m., a Cantata O Peregrino de Assis foi gravada em CD, em 1997, pelo Coro de Câmara Pró-Arte, sob a regência do maestro Carlos Alberto Figueiredo e publicada pelas Edições Paulinas (COMEP). A coroação dessa cantata foi em outubro de 2008, quando O Peregrino de Assis ganhou um arranjo orquestral pelas mãos do maestro Sérgio Di Sabbato. Para fins de sua apresentação no Teatro Nacional de Brasília Cláudio Santoro, foi feito um projeto pela Profª Beatriz Salles, do Departamento de Música da UnB. Participaram da execução instrumental a Orquestra de Cordas da UnB, sob a coordenação de Glêsse Collet, e o coral Cantus Firmus, da regente titular Isabella Sekeff, todos sob a regência do maestro Emílio de César. O texto declamado ficou a cargo do cantor Francisco Frias (1957-2018). Assim, o Teatro Nacional de Brasília Cláudio Santoro foi o palco dessa execução memorável. 

Um ano depois da primeira cantata, em 1967 brotou uma segunda Cantata Francisco, Jogral de Deus, composta em parceria com frei Urbano Plentz, autor do texto. Recentemente, essa cantata teve duas apresentações: uma, em 23/11/2014, em homenagem à visita do Ministro Provincial da Província dos Mártires Gorcomienses, com sede na Holanda, frei Roberto Hoogenboom o.f.m.; a outra, seis dias depois, em 29/11/2014. Frei Joel continuou compondo no Seminário até 1984, quando assumiu tarefa importante na Igreja do Brasil: a de assessorar o Setor de Música Litúrgica da Comissão para a Liturgia da CNBB. 

Na paróquia Santo Antônio, na Quadra 911 Sul, onde residia, deu continuidade ao coral fundado por frei Beraldo José Hanlon o.f.m. Além de cantar semanalmente na missa dominical da paróquia, o Coral Trovadores do Planalto atuava frequentemente na Catedral de Brasília, no tempo do Arcebispo Cardeal José Freire Falcão. Frei Joel permaneceu na função de Assessor para a Liturgia da CNBB de 1984 a 1997, quando regressou a Santos Dumont. Quando de sua despedida do Planalto Central, frei Joel levou O Peregrino de Assis a dois coros no teatro da Escola Paroquial Santo Antônio: Coral Trovadores da Mantiqueira, que na ocasião era regido por frei Joaquim Fonseca o.f.m., e Coral Trovadores do Planalto, ambos acompanhados ao piano pelo autor desta crônica. 

Seminário Seráfico Santo Antônio, de Santos Dumont

De volta a suas origens, frei Joel reassumiu suas funções de professor e responsável pela música litúrgica do Seminário e logo se empenhou em fundar o Encontro de Corais de Santos Dumont, do qual participa anualmente com o seu Coral Trovadores da Mantiqueira. Em 2002, compôs, em parceria com o autor do texto, frei Óton da Silva Araújo Júnior, a cantata Os Louvores do Irmão Francisco, apresentando-a em 08/11/2002 no Colégio Santo Antônio de BH. Em novembro de 2005, frei Joel levou seu Coral às cidades de Belo-Horizonte, Juiz de Fora, Divinópolis e Santos Dumont, para apresentar a referida cantata, com especial destaque para Dama Pobreza, interpretada também por minha esposa Rute Pardini, com muito sucesso pelas cidades por onde passou. Em dezembro de 2004, participou com seu Coral das festividades de 100 anos da Presença Franciscana em São João del-Rei, apresentando sua Cantata (ou opereta) A Legenda de Santa Clara no Teatro Municipal de São João del-Rei, com especial destaque para Hortulana, mãe de Santa Clara, interpretada por minha esposa Rute Pardini. Releva ainda citar que a letra dessa opereta foi criação do poeta pernambucano Padre Reginaldo Veloso, que muito se notabilizou como autor de poemas sacros e ativista da antiga Ação Católica Operária e cuja obra poética tem suas raízes na cultura popular, na inculturação religiosa e na literatura de cordel. 

Por fim, na fala de frei Joel, mereceu destaque o trecho em que se referiu aos 800 anos do encontro de São Francisco de Assis com o Sultão, comemorado neste ano de 2019. Nesta busca de conciliação, São Francisco tomou conhecimento de 99 nomes de Deus, pronunciados como mantra pelos mouros durante suas orações. Frei Joel comentou que São Francisco, no diálogo com o Sultão, observou que faltavam dois nomes de Deus, a seu ver, e acrescentou-os, além dos 99 nomes já conhecidos nos livros sagrados muçulmanos:
Deus é paciência ou longanimidade, e Deus é humildade.

Depois da celebração eucarística, todos fomos surpreendidos com um lauto banquete organizado pela comunidade em colaboração com o Seminário. Deve ser destacado que o extremo asseio e bom gosto que todos presenciamos e a qualidade da refeição que todos degustamos se devem especialmente à coordenação e supervisão de frei Gabriel José de Lima Neto, o guardião da fraternidade e reitor do Seminário.


Logo após o jantar, cantamos "Parabéns a você", mas o momento de maior surpresa e admiração geral foi o apagar da vela do bolo e, acima de tudo, o canto dos freis em uníssono à capella do IO VIVAT! (como Parabéns a você, em latim) em homenagem ao aniversariante. Aos já mencionados frades presentes juntaram-se também os freis Irwin Couto Silva, Arlaton Luiz Soares de Oliveira, João Ricardo e Paulo Afonso para cantarem numa demonstração eloquente de carinho a frei Joel:

Io vivat! Io vivat
nostrorum sanitas!
Hoc est amoris poculum,
doloris est antidotum.
Io vivat! Io vivat
nostrorum sanitas!

Io vivat! Io vivat
nostrorum sanitas!
Dum nihil est in poculo,
iam repleatur denuo.
Io vivat! Io vivat
nostrorum sanitas!

Io vivat! Io vivat
nostrorum sanitas!
Nos iungit amicitia
et vinum praebet gaudia.
Io vivat! Io vivat
nostrorum sanitas!
(...)

Nunca vamos esquecer essa linda comemoração dos 90 anos de existência de nosso querido frei Joel que estava alegre e feliz rodeado por nós e por toda a comunidade que ele escolheu para se doar durante cerca de 60 anos até hoje.

Crédito pela foto: Maria Cristina Faria

Frei Joel está muito feliz com as perspectivas para este ano de 2019. O Seminário recebeu 10 novos seminaristas que vieram do postulantado em São João del-Rei, com os quais pode contar para reforço do Coral Trovadores da Mantiqueira. Também, frei Joel recebeu a encomenda para compor uma cantata celebrando os 800 anos do encontro de São Francisco com o Sultão, com letra de frei Óton da Silva Araújo Júnior. Indagado sobre a composição dessa obra, respondeu-me que originalmente tinha planejado a cantata para 3 vozes, devido à carência de baixos, mas que, depois do reforço de baixos que recebeu com a chegada de 10 novos seminaristas, já pensa em 4 vozes.

Frei Joel também falou com muito entusiasmo sobre mais uma encomenda: uma cantata sobre O Cântico dos Cânticos, com letra do poeta sacro Padre Reginaldo Veloso. A música, conforme mencionado, será de autoria de frei Joel Postma, que em 2019 vai comemorar 63 anos de vida religiosa, com intensa atividade na área da música litúrgica, como vemos. Mas certamente essa cantata não ficará pronta antes de 2020.

No ano passado, mais exatamente em 11 de outubro, por ocasião do Capítulo Provincial realizado no Seminário Seráfico de Santos Dumont, foi lançada parte das "Opera omnia" musicais de frei Joel, fruto de um trabalho gráfico e artístico realmente invejável. A coletânea FREI JOEL POSTMA: composições e arranjos compõe-se de 15 volumes ao todo:

 

1) Apresentação do trabalho por frei Hilton Farias de Souza o.f.m., Ministro Provincial; biografia "Frei Joel Postma: uma vida sinfônica", da lavra de frei Fabiano Aguilar Satler o.f.m.; álbum de fotografias e um texto de frei Joel, intitulado "Modalidade" gregoriana, nas páginas 39-51; por fim, vem a aplicação do texto de frei Joel a suas obras com um capítulo dedicado à "Modalidade" nas composições de frei Joel Postma (páginas 53-77).
2) Cantata "O Peregrino de Assis"
3) Cantata "Francisco, jogral de Deus"
4) Cantata "Legenda de Santa Clara"
5) Cantata "Os louvores do Irmão Francisco"
6) Missa "João XXIII"
7) Missa em honra de São Francisco
8) Missa do Matrimônio
9) Missa do Coração de Jesus
10) Missa da Ressurreição (Exéquias)
11) Missa da Páscoa (Ressurreição do Senhor)
12) Cantos Quaresmais
13) Cantos para a Semana Santa
14) Missa de Pentecostes I
15) Missa de Pentecostes II


Expediente desse trabalho monumental:
Digitalização das partituras: Lucas Bonetti
Diagramação: Frei Fabiano Aguilar Satler
Arte da capa: Míriam Carla Alves
Revisão ortográfica: Luana Moreira Galvão
Coordenação gráfica: Denilson Fonseca de Souza
Impressão: Gráfica do Colégio Santo Antônio, BH/MG
Acabamento: Gráfica do Colégio Santo Antônio e Hot Book Acabamentos Gráficos Ltda.
Direitos autorais: Província Santa Cruz-Rua Sabinópolis, 50A-Carlos Prates-30710-570 Belo Horizonte, MG.


Fiquei muito emocionado com o presente de um exemplar da coletânea, encimado pela seguinte dedicatória: "Aos Amigos Francisco José dos Santos Braga e Rute Pardini, fiéis acompanhantes do Coral 'Trovadores da Mantiqueira', dedico, com profunda gratidão, estas minhas 'opera omnia', editadas pela Província Franciscana 'Santa Cruz'.
Santos Dumont, 08 de março de 2019
Frei Joel Postma o.f.m."

Gostaria, finalmente, de reproduzir aqui o que está expresso na Apresentação de Frei Hilton Farias de Souza o.f.m., Ministro Provincial, no vol. 1 da coletânea FREI JOEL POSTMA: composições e arranjos:
Ao fazermos esta publicação, registrando, assim, para a posteridade, uma parte significativa da Obra de Frei Joel Postma, queremos elevar ao 'Altíssimo, Onipotente e Bom Senhor' o nosso grande Te Deum, pelos longos anos passados aos pés da Serra da Mantiqueira. Ali, ele se preocupou em formar gerações de frades no espírito da música litúrgica e contribuiu para criar na nossa Província Santa Cruz, principalmente nas casas de formação, um legado musical consolidado.


AGRADECIMENTO


A Rute Pardini Braga pelas fotos que tirou e editou para os fins desta matéria.