quinta-feira, 14 de março de 2019

O #GoogleDoodle DE 14/03/2019 HOMENAGEIA A ESCRITORA CAROLINA MARIA DE JESUS


Por Francisco José dos Santos Braga


 
"DEPOIMENTO 
O que vou fixar aqui não é uma autobiografia, o que daria assunto a um alentado volume, mas apenas alguns aspectos das minhas atividades de modesto homem de letras, jornalista e ex-amador de artes plásticas. E o faço tão sòmente animado pela justa afirmação do meu eminente coestaduano Daniel de Carvalho, em seus "Capítulos de Memórias", de que "Por mais obscura que seja uma vida, contém ela uma região de interêsse para os seus semelhantes." A prova temo-la aí em "Quarto de Despejo", de humilde mulher de côr, egressa de uma favela paulista, do qual já se tiraram mais de 80 mil exemplares e que constitui, sem dúvida, um dos maiores "best sellers" da atualidade.
A vida de um varredor de rua ou de um limpador de esgotos — cada qual dentro de sua esfera de ação — é tão digna de curiosidade como a de qualquer famoso escritor. Pena é que aquêle não saiba exteriorizar suas idéias e emoções, embora de forma primária, como essa Carolina Maria de Jesus, que, até há pouco, já havia recebido mais de um milhão de cruzeiros de direitos autorais de seu livro, o qual já tem contrato para ser editado em doze línguas."
Lincoln de Souza, na Introdução do seu livro Vida Literária (1961)


Se estivesse viva, Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras e mais importantes escritoras brasileiras, completaria 105 anos nesta quinta-feira, 14 de março de 2019. Por isso, o Google, através de um Doodle (logomarca comemorativa), dedicou essa data à sua memória. Moradora da favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, por boa parte de sua vida Carolina teve fama, mas morreu em relativo esquecimento em 1977. O seu primeiro livro "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada" (1960), traduzido em treze línguas e para quarenta e dois países, chegou à Europa, Japão e Estados Unidos. Ainda hoje, a vida dela inspira escritores, jornalistas e até ilustradores.

Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada
Życie na śmietniku ("Vida na lata de lixo", título em polonês), Czytelnik, 1963.
1ª página de Życie na śmietniku (em polonês)

No ano passado, o jornalista Tom Farias lançou o livro "Carolina: uma Biografia", editado pela Malê, com o objetivo de humanizar a figura de Carolina Maria de Jesus, tentando desvinculá-la do mito. Para ele, a escritora, ao contrário do que se pensa, não nasceu intelectualmente em 1960, com a publicação de seu livro. A biografia revela textos e matérias de jornais em que Carolina Maria de Jesus já aparecia em 1940. “Ela fazia uma ronda pelas redações e rádios, apresentava-se como 'Carolina Maria, a poetisa negra', e ia oferecendo seus textos para publicação. Muitas vezes, era olhada de forma enviesada, tratada com desdém, mas teve alguns sucessos", conta. Também desaponta o leitor com a verdade sobre sua biografada: "Carolina se sentia superior aos seus vizinhos, sobretudo na favela, e essa postura a perseguiu por toda a vida", na entrevista que Tom Farias concedeu à revista Cult em 17 de maio de 2017.  ¹

Em Carolina: uma biografia (2018), o jornalista Tom Farias apresenta a complexa trajetória da escritora Carolina Maria de Jesus. Da infância pobre, na cidade de Sacramento, em Minas Gerais, passando pelas cidades em que peregrinou na juventude em busca de trabalho e de diagnóstico e cura para uma doença nas pernas, até sua chegada a São Paulo onde se instalou na favela do Canindé. A biografia detalha não somente sua relação com os filhos e o momento de ascensão, devido ao sucesso editorial do livro Quarto de despejo, mas também, o declínio em razão do desinteresse do mercado editorial e dos leitores em relação às suas publicações posteriores, o que, acrescido da sua personalidade forte e das barreiras sociais e discriminatórias brasileiras, levou a escritora a retornar à mesma condição de pobreza em que viveu boa parte da sua vida.


Também em 2018, a vida da autora virou uma biografia em quadrinhos produzida por João Pinheiro e Sirlene Barbosa e publicada pela editora Veneta. O livro, que narra a infância pobre de Carolina Maria de Jesus em Minas Gerais, sua vida sofrida em São Paulo, a fama, as ilusões, as decepções e o esquecimento. "Passado o lançamento de Quarto de despejo, os livros de Carolina foram esquecidos ou jogados no lixo, logo o local de onde ela retirava os cadernos velhos para reescrever a sua melhor história de vida", segundo Tom Farias.

O relato literário ("Quarto de despejo") recebeu críticas e comentários de escritores e intelectuais como Lincoln de Souza, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira. No exterior, Carolina foi acolhida com entusiasmo por Pablo Neruda e Octavio Paz. "Quarto de despejo" suscitou, no meio intelectual, posturas distintas em relação ao seu valor e significado. Enquanto muitos partiam do princípio de que o livro não poderia ser considerado uma obra literária, outros – como Sérgio Milliet e Helena Silveira, – efetivamente perceberam o valor e o ineditismo do livro.

O cotidiano da vida no Canindé – o verdadeiro quarto de despejo do título do livro – narrado por Carolina Maria de Jesus é esquálido, violento, permeado por doenças, alcoolismo e fome, esta definida como a escravidão dos tempos modernos.

"Quarto de despejo", escrito sob forma de diário, não era o único nem, do ponto de vista da escritora, o principal livro escrito por Carolina Maria de Jesus. Em matéria publicada na revista O Cruzeiro, em novembro de 1960, Audálio Dantas descreve esse aspecto: “Levei os cadernos, sob forte desconfiança de Carolina, que já não acreditava em promessa de ninguém. Quando eu lhe disse que publicaria seu “diário” em livro, ela não disse nada; limitou-se a um sorriso entre amarga e irônica. Na verdade, ela não escrevia o “diário” pensando em publicá-lo. Preferia publicar um livro de poesias, contos, provérbios. Ou um romance (ela tem vários escritos) cujos personagens são imaginários condes, marqueses, costureiras, jogadores – gente burguesa, quase sempre, de fora da favela. Uma maneira de evadir-se, talvez, da própria miséria de seu meio.

O jornalista da revista O Cruzeiro, Audálio Dantas, acidentalmente tomou conhecimento de que Carolina Maria de Jesus mantinha um diário no qual descrevia a favela do Canindé, sobre a qual havia ido fazer uma reportagem. Percebendo o ineditismo da obra, Audálio Dantas manteve contato com Carolina Maria de Jesus, com os editores de O Cruzeiro e, mais tarde, com a Livraria Francisco Alves, que publicaria a primeira edição de Quarto de despejo. Não fosse por um acidente – a descoberta de Carolina Maria de Jesus pelo então repórter Audálio Dantas –, "Quarto de despejo" jamais teria sido publicado ou conhecido.
 
Carolina, no lançamento do livro “Quarto de Despejo”
 
Na sequência de Quarto de despejo, todos os livros escritos por Carolina Maria de Jesus venderam pouquíssimos exemplares: Casa de alvenaria, publicado em 1961, Provérbios e Pedaços da fome, de 1963 e Diário de Bitita, edição francesa póstuma de 1982 (o livro só viria a ser publicado no Brasil alguns anos depois).

[RIBEIRO, 2010, 57-72] arremata sua longa exposição sobre a obra de Carolina Maria de Jesus ² : "Uma última questão se refere ao curioso fato de a obra de Carolina Maria de Jesus ter sido melhor aceita no exterior do que no Brasil. Algumas edições, como Diário de Bitita, foram publicadas lá, antes mesmo que no Brasil. É possível que diferenças importantes entre os dois contextos expliquem o contínuo interesse por seus livros no exterior. Lá, ao contrário do que ocorreu no Brasil, não parece haver existido os impedimentos políticos e o estranhamento de classe já mencionados; diferente do que ocorreu aqui, não havia uma classe média que pudesse se incomodar com a estética e a descrição de um mundo que, desagradavelmente, sugeria a responsabilidade dos que permitiram a produção de quadros de tamanha desigualdade e abandono."


A ATUALIDADE DO MUNDO DE CAROLINA: prefácio em "Quarto de Despejo: Edição Popular" (1963) ³

Por Audálio Dantas


Para os leitores desta edição de Quarto de despejo, é preciso que eu me apresente. Entrei na história deste livro como jornalista, verde ainda, com a emoção e a certeza de quem acreditava poder mudar o mundo. Ou, pelo menos, a favela do Canindé e outras favelas espalhadas pelo Brasil. Repórter, fui encarregado de escrever uma matéria sobre uma favela que se expandia na beira do rio Tietê, no bairro do Canindé. Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra Carolina, que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E tinha! Tanto que, na hora, desisti de escrever a reportagem.

A história da favela que eu buscava estava escrita em uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela.

Da reportagem – reprodução de trechos do diário – publicada na Folha da Noite, em 1958, e mais tarde (1959) na revista O Cruzeiro, chegou-se ao livro, em 1960. Fui o responsável pelo que se chama edição de texto. Li todos aqueles vinte cadernos que continham o dia-a-dia de Carolina e de seus companheiros de triste viagem.

A repetição da rotina favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos.

A fome aparece no texto com uma freqüência irritante. Personagem trágica, inarredável. Tão grande e tão marcante que adquire cor na narrativa tragicamente poética de Carolina.

Em sua rotineira busca da sobrevivência no lixo da cidade, ela descobriu que as coisas todas do mundo – o céu, as árvores, as pessoas, os bichos – ficavam amarelas quando a fome atingia o limite do suportável.

Carolina viu a cor da fome – a Amarela.

No tratamento que dei ao original, muitas vezes, por excessiva presença, a Amarela saiu de cena, mas não de modo a diminuir a sua importância na tragédia favelada. Mexi, também, na pontuação, assim como em algumas palavras cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura. E foi só, até a última linha.

O tempo operou profundas mudanças na vida de Carolina, a partir do momento em que os seus escritos – registros do dia-a-dia angustiante da miséria favelada – foram impressos em letra de fôrma, num livro que correu mundo, lido, discutido e admirado em treze idiomas.

Um livro assim, forte e original, só podia gerar muita polêmica. Para começar, ele rompeu a rotina das magras edições de dois, três mil exemplares, no Brasil. Em poucos meses, a partir de agosto de 1960, quando foi lançado, sucessivas medições atingiram, em conjunto, as alturas dos 100 mil exemplares.

Os jornais, as revistas, o rádio e a televisão, primeiro aqui e depois no mundo inteiro, abriram espaço para o livro e para a história de sua autora.

O sucesso do livro – uma tosca, acabrunhante e até lírica narrativa do sofrimento do homem relegado à condição mais desesperada e humilhante de vida – foi também o sucesso pessoal de sua autora, transformada de um dia para outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade.

Carolina, querendo ou não, transformou-se em artigo de consumo e, em certo sentido, num bicho estranho que se exibia "como uma excitante curiosidade", conforme registrou o escritor Luís Martins.

Mas, acima da excitação dos consumidores fascinados pela novidade, pelo inusitado feito daquela negra semi-analfabeta que alcançara o estrelato e, mais do que isto, ganhara dinheiro, pairava a força do livro, sua importância como depoimento, sua autenticidade e sua paradoxal beleza.

Sobre ele escreveram alguns dos melhores escritores brasileiros: Rachel de Queiroz, Sérgio Milliet, Helena Silveira, Manuel Bandeira, entre outros. O que não impediu que alguns torcessem o nariz para o livro e até lançassem dúvidas sobre a autenticidade do texto de Carolina. Aquilo, diziam, só podia ser obra de um espertalhão, um golpe publicitário.

O poeta Manuel Bandeira, em lúcido artigo, colocou as coisas no devido lugar: ninguém poderia inventar aquela linguagem, aquele dizer as coisas com extraordinária força criativa mas típico de quem ficou a meio caminho da instrução primária. Exatamente o caso de Carolina, que só pôde chegar até o segundo ano de uma escola primária de Sacramento, Minas Gerais.

O impacto causado por "Quarto de despejo" foi além das discussões sobre o texto. O problema da favela, na época de dimensões ainda reduzidas em São Paulo, foi discutido por técnicos e políticos. Um grupo de estudantes fundou o Movimento Universitário de Desfavelamento, cuja sigla – MUD – revelava, no mínimo, uma intenção generosa. Ou um sonho. E Carolina era alçada à condição de cidadã, com título oficial conferido pela Câmara Municipal de São Paulo.

O cenário em que foi escrito o diário já não é o mesmo. Parte dele deu lugar ao asfalto de uma nova avenida, por coincidência chamada Marginal. A Marginal do Tietê, que passa por ali onde até meados dos anos 60 se erguia o caos semi-urbano e subumano da favela do Canindé, em São Paulo. O resto foi ocupado por construções sólidas, ordenadas, limpas, aprumadas no lugar dos barracos cujos ocupantes foram para outros cantos da cidade, para outros quartos de despejo.

Mais de trinta anos decorridos desde o aparecimento de "Quarto de despejo", a cidade tem outra cara, esparramada para muito além da avenida Marginal. E a favela do Canindé, onde viveu Carolina Maria de Jesus, na rua A, barraco nº 9, multiplicou-se em dezenas, centenas de outras.

Assim, "Quarto de despejo" não é um livro de ontem, é de hoje. Sua contundente atualidade é dramaticamente demonstrada pelos arrastões que invadiram em 92 as praias da zona sul do Rio de Janeiro. Os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando.



NOTAS  EXPLICATIVAS



 
²  RIBEIRO, Fábio Viana: Um outro inexistente: Quarto de despejo e a trajetória de Carolina Maria de Jesus, revista Antares, nº 4, jul/dez 2010, p. 57-72

³  Cf  https://www.passeidireto.com/arquivo/40859847/quarto-de-despejo---carolina-maria-de-jesus


AGRADECIMENTO


A Rute Pardini Braga pelas fotos que tirou e editou para os fins desta matéria.

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Se estivesse viva, Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras e mais importantes escritoras brasileiras, completaria 105 anos nesta quinta-feira, 14 de março de 2019. Moradora da favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, por boa parte de sua vida Carolina teve fama, mas morreu em relativo esquecimento em 1977. O seu primeiro livro "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada" (1960), traduzido em treze línguas e para quarenta e dois países, chegou à Europa, Japão e Estados Unidos. Ainda hoje, a vida dela inspira escritores, jornalistas e até ilustradores.

Afirma o mineiro Daniel de Carvalho, em seus "Capítulos de Memórias", de que "Por mais obscura que seja uma vida, contém ela uma região de interêsse para os seus semelhantes." A prova temo-la aí em "Quarto de Despejo", de humilde mulher de côr, egressa de uma favela paulista, do qual já se tiraram mais de 80 mil exemplares e que constitui, sem dúvida, um dos maiores "best sellers" da atualidade", afirmou Lincoln de Souza no seu Depoimento, na Introdução de seu livro "Vida Literária" (1961).

Esta é uma homenagem que presto a Carolina Maria de Jesus, não tanto por sua fama meteórica, mas principalmente por seu diário ter chamado a atenção de tanta gente estudiosa e suscitado tanto debate até hoje, no mundo todo.

https://bragamusician.blogspot.com/2019/03/o-googledoodle-de-14032019-homenageia.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Parabéns, confrade, pela bela homenagem a esse ser humano fantástico que foi Carolina de Jesus. Ontem fiquei curioso com uma ilustração do Google e ao clicar sobre ela, surgiu a informação do por que: era homenagem a ela. Gostei.
Bom dia.
Paulo Sousa Lima

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador do TJMG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

NÃO DEIXA A ESQUERDA SABER.
VÃO DIZER QUE FOI PRECURSORA DA "HEROÍNA" MARIELLE...

ABS.

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras, onde é Presidente) disse...

Grato pelo envio, caro Braga. Abraço para você e Rute. Fernando Teixeira

Anizabel Nunes Rodrigues de Lucas (flautista, professora de música e regente são-joanense) disse...

Merecida homenagem.

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Agradecemos pelo envio.

Abraços, de Mario e Beth