terça-feira, 16 de março de 2021

MAIAKÓVSKI EM PORTUGUÊS: ROTEIRO DE UMA TRADUÇÃO


Por Haroldo de Campos
Digitado por Francisco José dos Santos Braga

 
Bailarina americana Isadora Duncan e poeta russo Sierguéi Iessiênin

Quando me dispus a traduzir um poema de Maiakóvski, após pouco mais de três meses de estudo do idioma russo, conhecia minhas limitações, mas tinha também presente o problema específico da tradução de poesia, que, a meu ver, é modalidade que se inclui na categoria da criação. Traduzir poesia há de ser criar, sob pena de esterilização e petrificação, o que é pior do que a alternativa de trair. 
Mas não me propus uma tarefa absurda. Ezra Pound traduziu “nôs” japoneses, numa época em que não se tinha ainda iniciado no estudo do ideograma, ou em que estaria numa fase rudimentaríssima desse estudo, servindo-se do texto (versão) intermediário do orientalista Fenollosa, iluminado por sua prodigiosa intuição. E o resultado, como poesia, excede sem comparação ao do competente sinólogo e niponista Arthur Waley, e acabou, inclusive, por instigar o teatro criativo de Yeats (At the Hawk’s Well, 1916) ¹. Sem que se tenha a imodéstia de pretender repetir, no campo da tradução da poesia, as façanhas poundianas, não há dúvida de que dêste caso-paradigma decorre toda uma didática. 
Evidentemente, num poeta como Maiakóvski, o respeito ao conteúdo do texto seria fundamental, e para tanto, além do meu russo engatinhante, mas animado de um beneditino escrutínio, palavra por palavra, dicionário e gramática à mão, do texto original, vali-me de duas versões intermediárias: uma, em espanhol, de Lila Guerrero (Antologia de Maiacovski, Editorial Claridad, Buenos Aires, 1943); outra, em alemão, de Karl Dedecius (W. W. Mayakowskij - Gedichte, Russisch-Deutsch, Langewiesche-Brandt, Munique, 1959). A primeira é uma mera transposição em prosa, com apenas um aspecto exterior de verso-livre, utilíssima para se apanhar o sentido do original; a segunda é uma competente tentativa de reproduzir, em alemão, as virtualidades rítmicas e rímicas do original russo. 
Escolhi para esta primeira investida o poema Sierguéiu Iessiêninu (A Sierguéi Iessiênin), não só pelo fato prático de que tenha sido também selecionado pelos dois tradutores em questão, mas ainda e principalmente pela razão estética de se tratar, a meu ver e até onde posso imaginar, de uma das mais importantes realizações de Maiakóvski, de sua última fase (1925-30, o poema é de 1926), de maturidade criativa. Tão importante que o poeta o elegeu para demonstrar sua arte de compor, no admirável estudo "Como se fazem versos", traduzido incompletamente por Elsa Triolet (Maiakovski - Vers et Proses de 1913 à 1930, Les Éditeurs Français Réunis, Paris, 1952) e de maneira integral, sem saltos dos excertos mais "técnicos", por Lila Guerrero (obr. cit.). 
 
SITUAÇÃO DE MAIAKÓVSKI 
 
Primeiro, algumas observações de caráter geral. 
Maiakóvski é um dos poetas mais significativos do mundo contemporâneo. Procedendo das experiências futuristas ² e ligado, na revista "LEF" (sigla de "Frente Esquerda"), de que foi um dos editôres, aos críticos formalistas russos (Óssip Brik e outros) posteriormente proscritos, para êle "sem forma revolucionária não há arte revolucionária" ³. Sua participação ao nível ideológico não era inconciliável com as exigências de uma criação artística de vanguarda, e sempre se insurgiu em poemas, peças teatrais e artigos críticos contra os burocratas em geral e, em especial, contra os burocratas da sensibilidade, zoilos e criticastros bafejados pelo favor oficial, aos quais definia como "intermediários de gôsto bastante intermédio, interpostos entre o produtor e o consumidor de poesia" (basta ler um poema como "Mássam nieponiátno" / "Incompreensível para as massas", de 1927, na coletânea de Karl Dedecius, ou o artigo sôbre o mesmo tema: "Os operários e os camponeses não vos compreendem", de 1928, republicado recentemente em tradução francesa na revista "Recherches Soviétiques", Éditions de la Nouvelle Critique, Paris, 1957, n. 7). Sua morte, em 14 de abril de 1930 (suicídio), ocorreu antes que se implantasse, como dogma estatal, a doutrina do "realismo socialista" em arte , que levou de roldão, em prol de um academismo crescente, as reivindicações estèticamente revolucionárias dos artistas de vanguarda, inclusive daqueles como Maiakóvski e seu grupo da revista "LEF" alistados no ideário da Revolução de Outubro. 
Felizmente, de 1955 para cá, com a desestalinização, indícios de desburocratização artística começam a apontar na União Soviética e em alguns países socialistas. Um crítico como Georges Lukacs, que nunca rezou de boa índole pela cartilha ortodoxa dessa doutrina estética oficial, já apresenta uma posição consideràvelmente mais aberta no seu La Signification Présente du Réalisme Critique (Gallimard, Paris, 1960, tradução do alemão), embora ainda eivada de restrições mentais e esquematizações quanto ao verdadeiro significado da obra de um James Joyce, por exemplo . Na Polônia, repetem-se os festivais de música contemporânea (o já famoso "Outono de Varsóvia"), nos quais se incluem a música concreta e a eletrônica e composições instrumentais de vanguarda, existindo mesmo, junto à Rádio-Televisão polonesa, um Estúdio de Música Experimental dirigido por Josef Patkowski . Os jovens informalistas poloneses estiveram presentes na 5ª Bienal de São Paulo (1959), muito lucidamente apresentados no catálogo pelo crítico Mieczuslaw Porebski . A nova arquitetura principia a readquirir prestígio na União Soviética, reclamando uma reconsideração das idéias construtivistas  e Ilyá Ehrenburg já se permite reivindicar a franquia dos museus soviéticos aos próprios pintores supremacistas e construtivistas de ao redor dos anos 20 (Maliévitch, Tátlin, Popóva, Rosánova, etc.), cujas obras sofrem ainda a longa hibernação do veto oficial . Liberta da interdição, é exibida em 1958 na Exposição Internacional de Bruxelas e, no ano seguinte, em Paris, no Pagode, a segunda parte de Ivan, o Terrível, de Eisenstein, êsse extraordinário cineasta que tratou a montagem cinematográfica em têrmos de ideograma e que, em 1945, fôra tachado de "formalista" e "desviacionista" pelos censores stalinistas. Um filme como Quando voam as cegonhas (1957), premiado com a palma de ouro no festival de Cannes de 1958, indica que uma lufada de oxigênio bafeja de novo a cinematografia russa. Os inéditos de Maiakóvski são editados pela Academia Soviética, e segundo o depoimento de Etiemble, professor de Literatura Comparada da Sorbonne, que visitou Moscou em outubro de 1958, essa edição-bomba, - coligindo cartas e textos diversos do poeta, nos quais êle se bate por uma idéia de vanguarda em arte e por escritores e artistas posteriormente incluídos no índex do regime, - era àquela altura o tema predileto das conversas dos estudantes universitários moscovitas ¹. As peças de teatro do poeta, após um longo eclipse, são reexibidas com sucesso, inclusive Os Banhos, sátira contundente contra os burocratas ¹¹. Mas tudo isto são apenas augúrios, presságios de um renascimento que só o tempo poderá confirmar, pois o paternalismo do interregno Khruschóv ainda envolve uma forma autoritária de dirigismo artístico, se bem que sob um facies mais benevolente ¹². Ainda agora, na 6ª Bienal de São Paulo, vemos a parada antediluviana que é a secção soviética de artes plásticas, a contrastar com a representação tcheco-eslovaca de teatro, onde pontifica um cenógrafo de vanguarda do porte de Joseph Svoboda ¹³. A edição das obras completas de Maiakóvski, trabalho monumental organizado pela Academia de Ciências da U.R.S.S., surge provida de pífias contraditas "acacianas" às idéias estéticas do poeta (felizmente sob a forma de notas marginais, sem interferência no texto), e, o que é pior, expurgada puritanamente de palavras e mesmo frases consideradas obscenas!... Estas revelações foram feitas, em artigo recente, por Boris Schnaiderman, o mais autorizado expositor e crítico da literatura russa entre nós ¹⁴. Aquêles que querem ressuscitar a "Vênus" acadêmica em todos os domínios da arte estão atentos para tudo congelar de novo na sua reação obscurantista e paralisante, como se nesta esfera nenhuma revolução tivesse acontecido ¹⁵. Mas quando um escritor como Iúri Oliécha, em artigo intitulado "Evocação do Mestre", pode afirmar com tôdas as letras que Maiakóvski, se vivo, teria julgado com severidade a estátua que lhe erigiram em Moscou ¹ monumento que certamente consultou (e consulta ainda) ao gôsto oficial dominante , é porque a estrutura monolítica e fetichizada da "arte dirigida" já exibe uma fissura inocultável, cujo alastramento não se conseguirá mais conter, tanto mais que há toda uma tradição de arte russa de vanguarda a recuperar em poesia, em teatro, em música, em artes plásticas, em cinema, em crítica literária inclusive coincidindo com os primeiros anos da Revolução, até à parálise stalinista (1932, aproximadamente). É neste quadro complexo e contraditório, mas fermentado de sugestões, que se põe a idéia de uma reconsideração crítica da arte de Maiakóvski, a partir de um poema dado, com enfoque na sua contribuição criativa fundamental para a vanguarda poética de nosso tempo. 
 
ARQUITETURA ESPACIAL DO POEMA 
 
Sierguéiu Iessiêninu (S.I.) é um poema bàsicamente estruturado sôbre um módulo de quartetos (segmentos de 4 versos), de rimas cruzadas. São 19 módulos ao todo, sendo que o 14º foge à regra geral, consistindo num sexteto rimando aabcbc
Para que se compreenda a imperfeição com que êste esquema descreve a estrutura de S.I., é preciso ter presente que Maiakóvski rompia as leis da poética tradicional e considerava cada poema como um jôgo de xadrez, onde, embora haja algumas regras gerais para começar, não pode mais haver repetições de lances, por geniais que sejam, e o movimento inesperado é que desarma o inimigo. Assim, para início de conversa, digo que Maiakóvski é um poeta espacial, no sentido de que concebe seu poema como uma partitura de leitura, em que os ictos da emoção estão escondidos gràficamente no branco do papel, pois "a pontuação conhecida, com pontos, vírgulas, sinais de interrogação e exclamação é insuficiente, pobre e pouco expressiva em relação aos matizes da emoção de uma obra poética" ("Como se fazem versos"). Com razão Lila Guerrero colocou-o na linhagem mallarmaica, escrevendo: "Filho preferido de Walt Whitman, irmão maior de Arthur Rimbaud, tomou de Stéphane Mallarmé, e especialmente de O Lance de Dados, o verso escalonado que o grande poeta francês iniciou para fixar sua estranha sensibilidade numa estrofe nervosa, curta, vibrante. Estrofe para a melhor confissão escalonada do espírito, que serviu a Maiakóvski para conversar com as grandes multidões, desenvolvendo como ninguém a poesia tribunícia" ¹⁷. Nessa vertente, pode-se dizer que Maiakóvski fêz com a dialética espacial de Mallarmé, instrumento para a pura especulação abstrata, o que Marx fizera com a dialética hegeliana: colocou-a de pés sôbre a terra, reverteu-a em técnica de marcação evocatória, apta à linguagem do comício e da agitação. Sua poesia tem mais a ver com o mundo dos cartazes de propaganda (atividade a que o poeta dedicou muito de seu empenho, no período de 1919-1922, na agência soviética "Rósta", e de 1923 a 1925, a serviço do comércio do Estado) do que com a idéia tradicional de lírica ¹⁸. Evidentemente, esta fragmentação da estrofe tem propósitos rítmicos definidos (e Maiakóvski tinha do ritmo uma noção de extrema atualidade: "O ritmo é a fôrça principal, a energia fundamental do verso. É impossível de momento explicá-lo. Dêle só se pode falar como se fala do magnetismo ou da eletricidade") ¹. Eisenstein descreve o "corte" da estrofe em Maiakóvski em têrmos de montagem cinematográfica, assinalando que o poeta não escrevia em "linhas", mas em shots (dá como exemplo a estrofe inicial de S.I.); Hugh Kenner equaciona esta observação do grande criador do cinema russo com a idéia da estrutura poemática ideogrâmica, preconizada por Ezra Pound ²
Por outro lado, Maiakóvski é categórico quanto à noção acadêmica de métrica (algo que entre nós se confunde com uma persistente nostalgia "parnasiana"): "No que se refere à métrica, não conheço nenhuma de suas leis", e acrescenta que variava os versos em curtos e longos, segundo a emoção a transmitir: alegre (satírica) ou heróica e solene. "Para dizer a verdade, não conheço nem iambos nem troqueus, jamais os reconheci e não os pretendo reconhecer. Naturalmente, não porque seja uma coisa difícil, mas porque em meu trabalho poético não me fazem falta essas bugigangas" ²¹. Assim, na tradução, optei com tôda a naturalidade pelo verso livre e pela estrofação condicionada ao tonus do segmento considerado, no que respeita a versos de medida mais curta ou mais longa. 
Quanto à rima, é uma pedra de toque da arte de Maiakóvski. Não apenas a rima comum, consonante, mas a assonância e todo um feixe sutil de coincidências, respostas e contrastes sonoros. "A consonância do final é uma das infinitas possibilidades de enlaçar as estrofes, na realidade a mais simples e a mais grosseira" ("Como se fazem versos"). Maiakóvski costuma colocar a palavra mais característica no fim da estrofe e em seguida vinculá-la sonoramente ao material anterior tomando os sons mais típicos da palavra a rimar. Neste rimário imprevisto e heterodoxo, resulta muitas vêzes que o poeta (que também não deixa, quando calha, de usar a consonância) se apóie em recônditas afinidades fonéticas das últimas sílabas das palavras, como repara Karl Dedecius. Outras vêzes, faz verdadeiros retrógrados ou caranguejos fônicos, rimando ao arrepio da seqüência de fonemas, rimando às avessas por assim dizer, dentro de regiões sonoras que constrói no segmento do poema. Trata-se de uma rejeição até programática da "simetria gramatical" e da "congruência fonética", em prol da "assimetria morfológica", obtida através de "rimas difíceis", colhidas em "esferas semânticas díspares" ²². Êstes recursos de "orquestração verbal" poderiam encontrar uma tradição secular na poesia humorística russa, embora a sua utilização moderna nem sempre responda a motivações satíricas ²³. Óssip Brik, amigo da primeira hora e crítico de Maiakóvski, estudou mesmo as "figuras aliterativas", as "repetições sonoras" (de "grupos consonantais") na poesia dos futuristas russos, que recusavam o ideal simbolista da "melifluência" em favor da dissonância, ou seja, de "combinações sonoras difíceis", consideradas "não manipuláveis". Nesse sentido, Maiakóvski insistia que havia ainda "boas letras" no alfabeto russo deixadas à margem pelos poetas, tais como "er", "cha", "shcha"... ²⁴. Para recriar em português a resultante disto que Maiakóvski chamou de "trabalho fonético", vali-me de todos os recursos possíveis e à minha disposição: aliterações, coliterações, assonâncias, consonâncias, e, ainda, procurei estabelecer, dentro dos módulos estruturais do poema (quartetos bàsicamente), regiões de contágio, contraponto ou contraste fônico. Nem sempre adotei o esquema geral de rimas cruzadas do original; usei, conforme me impunha a elaboração do contexto, rimas emparelhadas ou mesmo apoios rítmicos extrapolados do fim de uma linha (ou mais exatamente, de um shot ou icto) para o meio (shot ou icto intermediário) de outra, etc., seguindo, ainda neste passo, a lição do poeta, quando adverte: "Pode-se rimar o comêço das linhas. Pode-se rimar o final da primeira e o da segunda simultâneamente com a última palavra da terceira ou da quarta linha. E assim uma infinita quantidade de variações". 
Uma consideração final, antes de entrar no exame do contexto do poema e na análise e justificação pormenorizada da tradução: a economia, para Maiakóvski, é a lei fundamental de tôda produção estética. Daí que a sua discursividade, num poema como S.I., seja constantemente contida nos diques da condensação e do despojamento, que as ligaduras lógicas sejam substituídas por uma técnica mais direta, "presentativa", ou como ficou dito acima de montagem do tipo ideogrâmico-analógico, própria aliás do que Max Bense chamou de "Plakatwelt" (mundo do cartaz de propaganda, da publicidade e do jornalismo). Sua retórica, sempre cortada cerce, se detém no Slogan-stil (expressão de Karl Dedecius). 
 
CONTEXTO DO POEMA 
 
No nível semântico se põe aquilo que, para Maiakóvski, é o encargo social do trabalho poético (considerado por êle como uma forma de produção: dificílima, complexíssima, porém "produção"). Essa participação, essa visada ideológica, para o grande poeta, como se viu, deve informar isomòrficamente uma forma nova, pois, são ainda suas palavras, "a novidade, a novidade do material e dos meios é indispensável para tôda obra poética" ²⁵
Sierguéi Iessiênin, poeta nascido em 1895, representa a variante russa do imagismo da literatura de língua inglêsa. Não certamente do imagismo à Pound, que é no fundo um exercício de despojamento e linguagem direta para uma dicção mais ambiciosa; mas do imagismo dos cromos líricos, do círculo daqueles poetas de pendência paisagística e bucólica ligados ao movimento por uma aparente solidariedade em tôrno do problema da imagem visual ². Iessiênin, o cantor nostálgico do ambiente rural, o "guitarrista gitano", é assim uma espécie de pólo oposto de Maiakóvski, o poeta-propagandista, vertiginosamente integrado no ritmo do futuro. Em seu último poema, Vo Viés Gólos (A Plenos Pulmões, - 1930), concebido como introdução a uma peça mais longa, de exaltação ao plano qüinquenal, que não chegou a ser escrita, Maiakóvski deixa patente êsse antagonismo: refere-se crìticamente às "serenatas iessieninianas proto-primevas" ou "arqui-arcaicas" ²⁷, identificando-as com uma idéia de poesia sentimental e mandolinante, ao passo em que se autodescreve como um "agitador", um "caudilho vociferante". De fato, para Maiakóvski, interessado em inserir a poesia na era industrial e para quem o trabalho formal do artista era uma "engenharia necessária à configuração de tôda a vida prática" ²⁸, Iessiênin surgia no outro extremo, como o poeta de concepção tradicional, alienante, disposto a erigir "a vaca em símbolo para enfrentar a locomotiva". 
Numa fase mais madura, todavia, Iessiênin parece ter sentido o chamado ideológico, procurando aproximar-se dos escritores engajados na Revolução, inclusive do grupo da revista "LEF". Continuou, porém, fiel a seu espírito boêmio, entregando-se à bebida com o dinheiro fácil que lhe advinha do sucesso de sua poesia e acabando por suicidar-se, numa crise de niilismo, no mais puro estilo romântico: num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado, cortou os pulsos, escreveu com sangue um poema de despedida, que concluía "Nesta vida morrer não é coisa nova/Viver, porém, tampouco é novidade" , e enforcou-se, pendurando-se do conduto de calefação. Seu fim (1925) provocou em Maiakóvski, que nos últimos tempos tivera mais contacto com êle, um sincero sentimento de pena, humano e simples (assim se expressa a respeito), embora o desfecho também lhe parecesse, de certa maneira, "natural e lógico". Logo, porém, o suicídio de Iessiênin se transformou num "acontecimento literário": de um lado, eram os críticos dogmáticos e burocratizados, os "fetichistas" da cultura oficial, a reprovar no suicida, de maneira esquemática e primária, a boêmia, a bebida, a ausência de sentimento de classe, a rebeldia ao dirigismo artístico, como se tudo fôsse uma simples mecânica de causa e efeito; de outro, a legião dos epígonos, a criar um suspeito culto iessieniniano, com a mística da autodestruição e do escapismo pela frente. 
Maiakóvski se propôs, como "objetivo conceitual" de seu poema, paralisar a ação dos últimos versos de Iessiênin, responder à negatividade de sua mensagem com uma afirmação construtiva e otimista, de confiança na sociedade futura e no fazer humano, quaisquer que fôssem as dificuldades do presente. E, paralelamente, defender a dignidade do poeta dessa esfera do fazer humano que é a criação artística, e que Iessiênin, apesar de tudo que o afastava de Maiakóvski, representava, pelas "dezenas de momentos de inovação poética que há em sua obra", como seu próprio antagonista lealmente reconhecia contra todos aquêles que a profanaram no episódio, tanto os que tentaram "enterrá-lo poeticamente pelo simples fato de se ter suicidado", como os que converteram o seu fim trágico e humanamente doloroso num pretexto para o lacrimatório desvirilizado e o falso sentimentalismo. 
 
ANÁLISE PORMENORIZADA E JUSTIFICAÇÃO DA TRADUÇÃO ²
 
1) A primeira estrofe é exemplar. Sôbre ela M. se detém longamente em seu "Como se fazem versos", onde relata sua paulatina elaboração. "Não se compreende o fenômeno do suicídio arrancado da complexa situação social e psicológica que o motivou. Negá-lo sem argumentos deprime por sua falsidade", escreve. E, no pórtico do poema, faz já a abordagem do tema em dois níveis: um solene, que corresponde ao sentimento do trágico no episódio; outro mais leve e conversacional, através do qual se afasta a idéia do "soluçar sem sentido" e o poeta se faz o interlocutor de Iessiênin, como num simples e direto diálogo de amigos. Contrastam, assim, versos longos e curtos no quarteto, o que reproduzi na tradução, mantendo, onde necessário, o modo coloquial e a frase cotidiana. Tratava-se também de despir o tema de um patetismo excessivo e de qualquer resíduo animista, de tipo religioso, que não correspondessem à cosmovisão do autor: assim, ao invés de usar uma fórmula correntia como "Você se foi... desta para a melhor", que implicaria um conceito hierárquico de "vida melhor" no sentido teológico, segui o original e as recomendações do poeta, empregando uma frase também usual, porém não impregnada de qualquer nuance mística de "vida extraterrena"; o outro mundo seria aí, após a finitude da vida física, o mundo das imagens e da cultura, a história enfim, onde Iessiênin projetou a legenda de si mesmo, onde, ao nível da hombridade, se converteu em metáfora de si próprio ("Man be my metaphor", Dylan Thomas); é como M. o vê, "entremeado às estrelas". 
Importante recurso do autor neste trecho é o uso substantivo e funcional da disposição gráfico-espacial. Quando margina e isola a palavra Pustotá (lê-se Pustatá, - Vácuo), tem um propósito deliberado: "Vácuo figura à parte, pois é a única palavra que caracteriza a paisagem, o céu". Eisenstein serve-se justamente desta segunda linha do quarteto para exemplificar o processo de construção fílmica em M.: "Vácuo se tivéssemos que filmar êste shot, apanharíamos as estrêlas de maneira a como que enfatizar o vazio; todavia, simultâneamente, tornaríamos sensível a presença delas". 
Neste quarteto e no fim desta 2ª linha (ou seqüência de shots) inscreve-se uma típica rima maiakovskiana: buscar o poeta, fônicamente, estabelecer afinidades entre o gerúndio reflexivo vriézivaias (que traduzi pelo particípio passado "entremeado", mas que poderia ser também vertido por "incrustando-se", não foram as exigências do meu esquema rítmico) e o substantivo Triézvost (Sobriedade), da quarta linha-membro. Ou seja, entre as séries consonantais vrzv e trzv. Para completar a faixa sonora desejada, apanha o st final da segunda palavra e o equaciona com o st e o t de Pustotá e - como salienta, para brindar o choque de tt - faz intervir a palavra Lietítie (Você voa), onde duas dentais (l, t) são seguidas do som dito "mole" ie. Citando os formalistas russos, repara V. Erlich: "É onde a rima inexata coloca um gerúndio em contraste com um substantivo... que a violência organizada cometida pelo verso sôbre a linguagem ordinária fica agudamente sublinhada". 
Já vê o leitor que os problemas para uma tradução não literal, meramente, mas com vontade criativa eram muitos. Mantive as rimas terminais (sem as quais, segundo M., "o verso desmorona") usando de consonâncias (mundo/fundo) e assonâncias (estrêlas/moedas). Estabeleci, além disso, "harmonizações" verticais ou regiões de correspondência e contraste fônico: assim os vv aliterando em Você/Vácuo/Você/Vôo e coliterando com o f de fundo; o aproveitamento geral das sibilantes, marcado principalmente em sobe/Sóbrio; o contraponto de consoantes e vogais em entremeado às estrêlas; finalmente a rima interna, irregular e acidentada, entre Vácuo/álcool (uma quase-toante...). Conservei a montagem original dos shots, o tonus ora solene, ora coloquial. Creio ter mantido o sentido literal: a ascensão de Iessiênin, desvinculado das contingências da bebida (álcool) e do dinheiro (moedas; literalmente: avánsa, genitivo de aváns empréstimo, adiantamento), numa sobriedade de pureza final e de identificação com a sua "metáfora" de poeta, muito acima dos criticastros medíocres que o invectivavam pòstumamente. Substituí Você voa por Você sobe por razões auditivas (excesso de aliterações em v e necessidade de responder sonoramente a sóbrio, minha solução para o Triézvost do original). Acrescentei liberdade que, penso, o esquema me autoriza o shot Vôo sem fundo, para completar o quadro de rimas terminais e não perder a idéia de vôo nessa subida de Iessiênin (portanto, puxei semânticamente a palavra do Lietítie original): o sem fundo extraí da própria idéia de profundidade que há em Pustotá (soa Pustatá) e que, para minha sensibilidade, Vácuo não traduz completamente: trata-se não só da profundidade do céu estrelado, onde Iessiênin se acrescenta como nova estrêla; mas do vazio que sua morte deixou entre seus amigos e, ainda, do vôo solitário do próprio suicida, desligado finalmente de seus hábitos (ou vícios) humanos e elevado à sobriedade exemplar da lenda; mais uma vez se afasta do contexto qualquer resquício animista, contrário às intenções do autor, pois o sem fundo exclui a visão de uma "abertura" transcendente, paradisíaca ou não. Mesmo na adição, forçada pela elaboração sonora, procurei ficar estritamente dentro da área semântica do poema e, mais precisamente, desta 1ª estrofe. 
 
 2) Neste 2º quarteto, uso, nas 3 primeiras linhas, de assonâncias muito próximas troça/mofa/frouxas) e deixo a palavra terminal do 4º verso ossos (de resto, não muito distante da região sonora dessas outras citadas) rimar com o segundo shot do primeiro verso (posso), além dos apoios fônicos que recebe de olho e invólucro. As correspondências (assonantais ou toantes) entre bôca/mofa e lasca/amarga tentam replicar ao jôgo coliterativo "v rlie/rie mon"(literalmente: "na garganta/uma bola de dor"): bôca, lasca e amarga ainda coliteram (kg), enquanto górlie/górie rimam toantemente. 
 
3) No 3º, rimas finais em assonância (senso/talento; rosto/poucos). A rima interna, em eco cal/mortal procura responder ao jôgo sonoro smiertiélnii miel (giz mortal) do texto russo. Impossível/hábil (contraponto de vogais e consoantes a partir da tônica) correspondem ao par zalivál (passado em função subjuntiva, do verbo zalivát: - inundar; na tradução, cobrir)/zaguibát (verbo no infinitivo: dobrar, encurvar, popularmente quebrar a dificuldade). No laconismo da estrofe, há uma alusão à arte poética do suicida: Iessiênin, nesse campo, era capaz de fazer o que para outros seria impossível. Ou seja, um aceno à capacidade factiva e ao talento artístico de Iessiênin, em contraste com o niilismo de seu gesto final. Creio que respeitei êsse nível semântico. 
 
4) Esta foi uma das estrofes mais difíceis de solucionar, na experiência da tradução do poema. A reduplicação interrogativa, exigida pelo original, e o desenvolvimento da idéia poderiam, na versão, abaixar a tensão do texto russo, que está colorido inclusive de uma ironia aguda. Optei, finalmente, por uma dicção "coloquial-irônica" à Laforgue-Corbière, que de resto me parece a mais apta a responder, ponto por ponto, ao diapasão de M. neste quarteto. Tese/corolário traduzem econômicamente o par: a glávnoie (principalmente, em primeiro lugar)/v riezultátie (donde resulta, como resultado). Refratário à sociedade: no original, pouco sociável ou pouco amigo de contactos (tchtô smítchki málo). Sátira à visão congelante e petrificada dos zoilos-burocratas frente ao suicídio de Iessiênin. Esquema de rimas finais em consonância (no original também: smiálo/málo; viná/viná); para mantê-lo traduzi bormótchut (murmuram, os comentários malevolentes da crítica) por esbraveja, conservando, porém, o espírito da estrofe. 
 
5) Prossegue a sátira e já se transforma em interpelação direta, contra o "farisaísmo" ou "pseudomoralismo" dos detratores de Iessiênin. Aqui mantive rimas terminais apenas na 3ª e 4ª linhas (norte/xarope, assonância). Para o final da 1ª, estabeleci uma rima interna consoante (trocasse/classe) e para a última, abstêmia, busquei um apoio também consoante, perfeitamente nítido pela fôrça da homologia a partir da tônica, embora no sentido vertical (boêmia, sendo shot da 1ª linha). No esquema trocasse/classe se engasta, por assimilação, acaso (2º shot, 3ª linha). E lhe daria um norte é a minha transposição, dentro do esquema sonoro, para a idéia original: i buílo b nie do drák ("e não haveria mais disposição para briga"). Kvás, que traduzi por xarope, é uma bebida fermentada, muito popular na Rússia (espécie de cidra). Literalmente: "Pois sim! E a classe mata a sêde com kvás? A classe não é tôla (durák): ela também bebe". 
 
6) Continua a interpelação. Introduzi esta estância e a anterior com a partícula afirmativa Sim por se tratar da resposta de M. a um interlocutor imaginário; no original, ambos os segmentos se abrem com a fórmula coloquial Diéskat (dizem, diz-se). "Pôsto": revista literária, órgão da "Associação Russa dos Escritores Proletários", com a qual M. e a revista "LEF" polemizavam. No original, napostóv, há uma criação vocabular de M.: "dos posteiros" (ou dos homens do "Pôsto"), com uma conotação de "vigias", pois na postú significa "de guarda", "de sentinela". Dorônin era um poeta do grupo "Jovem Guarda" da RAPP, autor do poema "O Tratorista". M. justifica a comparação empregada neste trecho (recurso imagético que reputa "primitivo") dizendo: "Por que como Dorônin, e não como a distância à lua, por exemplo? Primeiro, porque a comparação é colhida na vida literária, uma vez que o tem inteiro é literário; segundo, porque "O Tratorista" (creio que se chama assim) é mais longo do que o caminho à lua, que não parece real, enquanto o poema em questão, infelizmente, existe na realidade. E mais: o caminho à lua haveria de parecer mais curto por sua novidade, enquanto os 4.000 versos de Dorônin são estupidificantes pela monotonia da paisagem de palavras e rimas já vistas 16.000 vêzes". Comente-se que, nesta sua elucidação ("Como se fazem versos"), M. não tomou em conta a previsão dos êxitos astronáuticos da ciência soviética, que lhe dariam infinitamente razão, se comparados à mediocridade artística de certas "obras-primas" oficiais e, por exemplo, a certo "monumental" arquitetônico tipo "bôlo de noiva", que não se compadecem com o prospecto fascinante do mundo da técnica e ficam, diante dele, como um carro de bois perante uma cosmonave... De outro lado, o singelo depoimento jornalístico de um Gagárin, reportando sua experiência da viagem pioneira ao cosmos, é muito mais rico em informação do que os longos hinários dos Dorônin de sempre... ³
Rimo no Pôsto e como Dorônin, numa assonância imperfeita, facultada pela reiteração de oo, e me louvando ainda, para apoio do nin átono, na terminação de patrono e na partícula no, palavras que precedem "Pôsto": uma rima regressiva portanto, envolvendo fonemas de várias palavras. M. dá o exemplo, rimando napostóv com po stó ("em número de cem"). Rima ainda imperfeitamente, Dorônin/odariônniei (mais talentoso, mais dotado). Ganharia/um conteúdo/bem diverso é a minha fórmula para: "Tornar-se-ia muitíssimo mais dotado em conteúdo" ou "Ganharia muitíssimo mais em conteúdo" (stáli b/sodierjániem/ priemnógo odariônniei). Longos e lerdos reproduz, aliterativamente, o utomítielno i dlínno ("de maneira fatigante e longa") do original. 
 
7) Uma das estrofes mais admiráveis do poema, onde a ironia e mesmo o furor lúcido de M. contra os detratores de Iessiênin se apara em lâmina afiada. À miragem empedernida dos burocratas, que supunham resolver tudo na idéia mecânica de um engajamento à "literatura oficial", como se se tratasse da simples troca do conteúdo de dois vasos, a esse delírio ou despautério (a palavra briéd tem ambos os sentidos) daqueles que Sartre tacharia de "marxistas idealistas", M. opôe o gume cortante de seu escárnio, dimensionando através dêle não como justificativa, mas como ensaio de compreensão mais funda o gesto desesperado de Iessiênin. Rimo, em assonância, despautério/tédio e corda/vodca, harmonizando verticalmente remédio (palavra que introduzi) com as duas primeiras. No original, as primeiras linhas são assim: "Mas a meu ver/se sucedesse/um tal despautério, mais cedo ainda/você se teria suicidado". Nas duas outras, a tradução é literal. 
 
8) Aqui, depois do impacto máximo da emoção na estrofe anterior o sentimento do trágico despertado pelo ato de Iessiênin começa o trabalho dialético de neutralização dos efeitos negativos do suicídio do poeta. O ritual suicida, com sua aura romântica (algo démodée), é contrastado com a imagem trivial da "falta de tinta no hotel Inglaterra" e, assim, esvaziado de conseqüências patéticas. Rimas: impulso/pulsos; aberta/"Inglaterra"; êste último par, em assonância, responde ao russo potiéri (de potiéria = perda)/Anglietiérie. Procurei uma aliteração em nn (nem o nó/nem a navalha) para replicar ao zoneamento sonoro que M. obtém na estrofe: percebo nitidamente, p. ex., analogias fonéticas entre nójik (faquinha, canivete), mójet (talvez, pode ser), okajís ("se se encontrasse", imperativo em função condicional, forma reflexiva, do verbo okazát). 
 
 9) Ironização dos epígonos, dos imitadores, que repetem desarrazoadamente o exemplo do suicídio. O gesto, já vazio de significado, é equacionado, não sem uma ponta de "humor negro", com a lembrança factiva de uma tarefa útil: "aumentar a produção de tinta", para que não se tenha necessidade de escrever poemas com o sangue das próprias veias... Parece-me que, neste passo, Lila Guerrero não traduziu com exatidão: "Contra él/casi un pelotón entero/parecia haver realizado el atentado". Aqui não se trata dos desafetos, que gostariam de ver Iessiênin morrer muitas vêzes, mas, ao contrário, de "discípulos", de prosélitos sugestionados e prontos a se auto-executarem, arremedando o ato do ídolo. ("Cêrca de um pelotão se autojustiçou", seria a tradução literal). O tom de burla é propositado e põe a nu a falsidade dessa atitude de empréstimo. Rimo apenas as terminações das duas últimas linhas (em assonância): suicidas/tinta. Nas duas primeiras, valho-me de rimas internas, em eco: felizes/bis (reproduzindo o efeito do original, obrádovalis = alegraram-se/bis) e pelotão/execução. Harmonizo êste segundo par com produção, na vertical, última linha-membro, pois M. acrescenta ao primeiro par uma nova rima, samoubíistv (de samoubíistvo = suicídio). 
 
10) Rimas: cerrada/algazarra, enigmas/línguas, tôdas em assonância, com aproveitamento, ainda, de coincidências consonantais. O poeta se recusa às intermináveis especulações abstratas sôbre o suicídio, pois considera "difícil e inoportuno forjar mistérios" ("tiajeló i nieumiéstno razvodít mistiérii). Prefere falar na perda do povo, o inventa-línguas ("iazikotvórtza"), que ficou privado, para sempre, de seu companheiro canoro: o povo cria línguas, e o poeta "é a antena da raça" (Pound) ou aquêle que "dá um sentido mais puro às palavras da tribo" (Mallarmé). Só que, para M., o povo é o primeiro criador, o mestre; o poeta é o contra-mestre ou aprendiz ("podmastiérie"), excluída assim a nota "aristocrática" que há nas colocações tanto de Ezra Pound como de Mallarmé. 
 
11) Começa agora a descrição que tomará 5 estrofes dos "ritos" fúnebres em torno do poeta-suicida. Aqui intervém o sentimento de profanação, despido de sacralidade, mas ao nível mais densamente humano do respeito à obra e à dignidade de Iessiênin em particular e do poeta-criador em geral. "Devo conquistar o sentimento do auditório contra aquêles que profanaram a obra de Iessiênin, e ademais porque são os mesmos que profanam tôda obra, como os Kógan, os Sóbinov, etc." ("Como se fazem versos"). Rimas: velório/despojos, exéquias/poeta, tôdas em assonância. Harmonizo na vertical sucata/gastas e uso de processos aliterantes na iteração de vv (1ª linha-membro) e na repetição do ex ("extintas exéquias"). Isto visa a reproduzir a reiteração de fonemas como po e kho e a aliteração em rr que incidem nesta estância, no original. Todo êste esquema sonoro empresta ao texto uma andadura em ladainha, como que parodiando o ritual. Há aqui uma reminiscência burlesca das cerimônias mortuárias da Rússia tradicional, nas quais se faziam libações à alma do defunto e se entoavam versos elegíacos. Realmente, M. explica que recorre à metáfora nesta estrofe para transportar certas particularidades de coisas conhecidas à situação que procura configurar (chama de "imagens tendenciosas" às resultantes dêste procedimento, que aproveita as sugestões do ambiente e do cotidiano dentro do projeto do poema). Assim a "sucata", os "versos velhos" ("sucata de versos"/"stikhóv lom") seriam as dessoradas elegias, de tantos enterros anteriores, que os profanadores-carpideiras teriam trazido ao velório de Iessiênin, sem mesmo se dar ao trabalho de polir as rimas gastas. Dentro da linha contextual regida pela idéia de profanação, permiti-me um giro ainda mais dramático que o do original: onde se diz "v khólm/tupíie rífmi/zagoniát kolóm" ("no túmulo cravam rimas obtusas como estacas"), introduzi a imagem da empalação dos despojos inermes pelas rimas gastas, com tôda a conotação medieval de suplício. Lila Guerrero omite êste verso tão importante. 
 
12) Rimas: monumento/excremento (consonantes) e granito/jazigo (assonantes). O principal efeito técnico aqui é a aliteração, na 2ª linha-membro. M. tinha uma idéia muito precisa sôbre a "dosagem das aliterações" e seu uso cuidadoso, a fim de evitar a dulcificação, os exageros da noção simbolista de musicalidade. Nesta estrofe, o processo aliterativo apontado por M. como exemplo de sua concepção serve à enfatização da idéia, esculpindo sonoramente a estátua ausente de Iessiênin. Era primacial, portanto, conservar na tradução o paralelismo auditivo: 
"gdié on,  / brónzi zvón / íli graníta gran?
"onde /o som do bronze/ou o grave granito?
Vali-me do adjetivo "grave", fugindo ao sentido literal de gran (aresta, facêta), para manter-me dentro do esquema aliterante, mas não creio, com isto, ter infringido o tonus do original. No nível semântico, K. Dedecius aponta uma reminiscência do Revisor de Gógol (Ato I, cena 5), onde o Chefe de Polícia exclama: "Que cidade mais asquerosa esta! Não se pode erguer em parte alguma um monumento ou até uma cêrca, e já começam a amontoar no local tôda espécie de excremento, o diabo sabe de onde!". Antes mesmo de se fundir um monumento ao poeta, já se acumulavam nas "grades memoriais" ("k riechótkam pámiati") ou no jazigo, como traduzi tôda sorte de lembrancinhas e dedicatórias: - imundície ("drián"), incluindo as manifestações dos epígonos de um lado e dos zoilos de outro. Neste e no quarteto seguinte, pode-se observar que mudei voluntàriamente o tratamento de "você" (3ª pessoa), para a 2ª pessoa ("te", "teu"). Sigo neste passo a inclinação do nosso coloquial. O sentido conversacional da arte de M. ("a maioria de meus poemas estão construídos na base da entonação das conversações"), que exige, inclusive, uma marcação na base da entonação das conversações"), que exige, inclusive, uma marcação visual de leitura, autoriza meu procedimento. Em russo, embora não se trate de idêntico procedimento idiomático, noto, já na 1ª estrofe, a alternância entre "Vui" (2ª pess. plural, pronome de tratamento que se pode traduzir por "Você" ou "o Sr.") e "tibiê" (2ª pess. sing. dativo, forma equivalente a "a ti" ou "para ti"). 
 
13) Rimas: muco/soluço, babuja/murchas, em assonância. Além disto, harmonizo Sóbinov com voz e sob, e faço quérula responder, como rima interna toante, a bétulas. A escansão difícil "Sóbinov... sob bétulas", com o choque de bb, prepara o gaguejamento final: "nem so-ô-luço" (ni vzdó-o-o-kha), arremêdo do trêmulo de voz. Em russo, há sibilação (ss) e coliteração (vb): "Váche slóvo / sliuniávit Sóbinov, / i vivódit...". Como se vê, os procedimentos sonoros de M. sugeriram-me as soluções adotadas, pois aqui se trata de parodiar ao cantor de ópera Leonid V. Sóbinov, que cantou numa soirée dedicada à memória de Iessiênin a romança "Nem uma palavra, meu amigo", de Tchaikóvski. 
 
 14) Dentro da arquitetura do poema, intervém agora um sexteto, que faz desabar sôbre os "profanadores" a irreverência contundente de M. Nesta estrofe e na seguinte, com as quais se fecha o cerimonial fúnebre, a sátira atinge o seu acúmen, preparando o desfecho do projeto ou do "objetivo conceitual" da peça, que demandará mais quatro estâncias. 
No original, êste sexteto tem o seguinte esquema de rimas terminais: aabcbc, que foi por mim mantido: fim/Lohengrin; estridente/gente; voz/avós, tôdas rimas em consonância. A representação de Lohengrin era, segundo nota de K. Dedecius, um dos sucessos de Sóbinov, que M. chama de "filho de Lohengrin" ("Lohengrinóide", como traduz L. Guerrero). No original está: "Ah, que eu falaria de outra maneira com êsse Leonid filho de Lohengrin!". "Ao diabo, etc." visa a reproduzir o tom blasfemo-burlesco da explosão de M., que inclui referências a "avó", "deus", "alma" e "mãe". O assobio, no texto do poeta, é um dêsses assobios moleques, puxados a três dedos... 
 
15) Continua a punição dos "profanadores". Kógan que significativamente rima com pógan (imundície, porcaria), uma das primeiras associações sonoras que acudiram a M. na fase de estocagem de material para a composição do poema... é o nome do Presidente (até 1929) da Academia de Belas-Artes do Estado, com o qual M. esteve em constante polêmica. Dêle diz o poeta: "Kógan, sempre me pareceu, estudou o marxismo não em Marx, mas tentando deduzi-lo por sua própria conta desta máxima de Luká" (personagem da peça de Górki "No fundo", que L. Guerrero compara a "Perogrullo, ou seja, "figura imaginária a quem se atribuem verdades cediças": Tôdas as pulgas são más, pequeninas, negras e falsas, e considerando esta verdade como da mais alta objetividade científica... Kógan foi um dos mais encarniçados e obtusos adversários da crítica formalista russa, e se jactava mesmo de nunca ter tido "tempo para o estudo da forma literária"; preocupações com a técnica eram para êle "um fenômeno patológico, um sintoma de detestável gulodice estética" (cf. V. Erlich, obr. cit., págs. 78, 83). M. tinha mais de uma razão para colocá-lo no Inferno dêste poema... Traduzo por "corja" a idéia original que L. Guerrero verte por "mediocridade de porqueria", algo como "monturo de grandíssimos incapazes" ("biezdárnieichaia pógan"). A imagem das abas dos capotes infladas como velas negras foi transposta mediante o verbo inflar ligado a escuros redingotes. Escolhi a última palavra por seu rebuscamento bufo e pela rima toante com bigodes (L. Guerrero omite a passagem). Completo o esquema rímico com explodisse/fugisse em consonância, inserindo ainda na estrofe harmonizações em an (Kógan, inflando, espetando). Os bigodes de Kógan em fuga são hiperbòlicamente convertidos em pontas de lanças que espetam os transeuntes. L. Guerrero não me parece exata quando traduz "vstriétchiennikh/uviétcha/píkami ussóv" por "(Kógan), clavado, com lanzas más agudas que sus bigotes dobles". Confira-se o comentário de M. em "Como se fazem versos": "a seu (de Kógan) redor, caem os corpos lanceados por seus bigodes". 
 
16) Depois de ter contraditado os adversários esquemáticos e apanhado os "coveiros", as falsas carpideiras, na insinceridade burlesca de seus atos de "devoção", desmascarando-os na tentativa de se locupletarem com as pompas fúnebres do poeta morto, M. tendo conquistado o auditório por sua posição ética passa à parte programática do poema, refutando o testamento pessimista do suicida. Nesta estrofe que rimo emparelhadamente, em consonância principia a afirmação da missão factiva do poeta, numa quadra difícil, em que havia escória em abundância, e o tempo era pouco para o muito que havia por fazer. O "mãos à obra" na tradução, se não é literal (o poeta diz: "tarefas há muitas / falta tempo"), está dentro do espírito do original, de convite à ação. Pois a conquista de uma nova poesia proclama M. viria em seguida à transformação da vida e da sociedade. No rimário original desta estrofe são obtidas coincidências quase de homofonia ("poriediéla"/"pieriediélat"; "pospievát"/"vospievát"), o que contribui para fixar o nível semântico, funcionando à maneira de refrões ou "batidas" ("Faustschläge", "sôcos", na expressão de K. Dedecius) dentro da especial retórica maiakovskiana. Foi o que tentei reproduzir com a marcação rítmica aqui mais martelada. 
 
17) Rima: artista/batida (assonância); anões/ocasião (aproveitamento das similitudes fônicas de ditongos nasais). No original, M. usa de uma metonímia, ou seja: pieró (no genitivo - pierá - regido pela preposição dliá, "para"), "pena", em lugar de "artista da pena", ou "escritor", o que traduzi simplesmente por "artista", usando de uma construção bem coloquial com base na expressão "duros". Anêmicos e anões, harmonizando respectivamente com tempos e onde, é a minha fórmula para "kaliéki i kaliékchi" (literalmente: "aleijados e aleijadas"). Tratava-se de ficar dentro do esquema sonoro e, além disso, de obter em português uma aliteração mais enérgica: no plano semântico, há uma evidente alusão aos poetastros tímidos e convencionalizantes ("verkrüppelte Poeten", "poetas aleijados", como traduz K. Dedecius). Grande e onde, que se respondem sonoramente, replicam à aliteração (dd) e coliteração (kg) presentes em "gdiê" (onde), "kogdá" (quando) e "kakói" (qual). Escolheram/estrada carreiam nova aliteração, em contraparte a outra zona fônica do original: "vielíkii vibirál" = (qual) "dos grandes escolheu". M. enfatiza a originalidade e o poder criativo dos grandes, que sempre se recusaram a trilhar estradas batidas e fáceis. 
 
18) Êste é um dos mais belos quartetos do poema, em que o poeta afirma sua confiança no poder militante da palavra, na palavra útil, voltada para as tarefas do presente. A missão construtiva do poeta, na edificação de uma nova sociedade, é visualizada por M. através de uma imagem em flash back, ou, mais exatamente, uma imagem onde o tempo é visto como um filme que se projetasse em sentido contrário ao do seu desenrolamento normal: enquanto avança no presente e para o futuro o regimento dos versos, comandado pela palavra, o tempo fica para trás, cuspindo balas, e o vento, nessa marcha à ré do passado, só consegue agitar um maço de cabelos desfeitos. Ou serão os próprios cabelos de quem corre que o vento puxa para trás, como que numa última tentativa de retenção no passado. Rimas: verbo/cabelos (assonância); trás/desfaça, rima imperfeita, que se corrobora também nas palavras passado e mo. Harmonizo na vertical tempo/vento e colitero cuspa/balas (pb). Nas duas primeiras linhas há ainda uma repetição aliterante de rr. Tudo isto responde, sempre que possível, à riqueza da trama sonora da estância original, onde predominam as sibilações (ss) e as aliterações em v e r e repontam correspondências como "tchtób vriémia"/"tchtób viétrom" ("que o tempo"/"que pelo vento").  
 
19) É o lance final do poema e a última etapa da arquitetura projetada. Aqui M. responde à mensagem niilista e desesperada de Iessiênin, tomando-a em seus próprios têrmos e revertendo-lhe dialèticamente o sentido, através de uma perífrase. Trata-se de levantar, "ao invés da fácil beleza da morte, outra beleza" e, assim, de esvaziar de interesse o gesto suicida. É a beleza da construção, do fazer propositado e confiante, cuja visada é a edificação da nova sociedade, apesar de tôdas as dificuldades do momento: a beleza do ofício humano, solidário ao invés de solitário
Armei um esquema de rimas emparelhadas, duas em consonância perfeita ("imaturo"/"futuro") e duas imperfeitas ("difícil"/"ofício"). Creio que respeitei integralmente o aspecto semântico, a contramensagem em que se fulcra o "objetivo conceitual" dêste poema, traduzindo "sdiélat jízn (fazer vida, literalmente) por "a vida e seu ofício", onde a palavra ofício está valorizada a partir de sua raiz etimológica que envolve a idéia de fazer. Procurei retirar do texto traduzido qualquer caráter de frouxidão sentenciosa, aparando a eloqüência na medida exata do necessário para que o efeito conciso e condenso do original não se perdesse. M. é o primeiro a advertir: "Um dos momentos mais sérios do poema, principalmente quando se trata de versos tendenciosos, em sua declamação, é o final. Para o fim tem-se que deixar comumente as estrofes mais bem sucedidas. Por vêzes tem-se que modificar todo o poema para melhor justificar o final" (...) "Em todo o transcurso de meu trabalho, enquanto escrevia êste poema, tinha presente esta estrofe e, elaborando outras, volvia consciente ou inconscientemente para ela" ("Como se fazem versos"). A observação revela, inclusive, o trabalho do poeta num sentido de projeto, de conquista metódica vetoriada por um propósito, que não se confunde com o mero intuitivismo acrítico dos "seresteiros". Se recordarmos o que M. dizia a respeito do primeiro quarteto, que aquela estrofe "determinava o conteúdo posterior do poema" ou o seu "plano arquitetônico", veremos que se fecha assim, coerentemente, o circuito de sua teoria da composição, de cuja prática esta peça é um exemplo admirável. 
No plano existencial e biográfico, não se poderá deixar de equacionar o suicídio de Iessiênin com o do próprio M., que se verificou alguns anos depois (14 de abril de 1930). M. foi o primeiro a afastar as especulações sôbre seu ato, inscrevendo logo de início, no seu bilhete-poema de despedida ("Vciém"/"A todos"), o pedido: "Por favor, nada de mexericos. O morto tinha horror disso". Inevitável, porém, que se cogite do assunto, pois, como observa K. Dedecius: "A fórmula do suicídio, no caso de Iessiênin, era fácil de encontrar: indiferença, tédio, bebida. No caso de M., o otimista cidadão do futuro, não. A posteridade fica restrita às suas últimas palavras, talvez as mais discretas e lacônicas que jamais escreveu". L. Guerrero acena com um mal físico ³¹ e Elsa Triolet deixa entrever uma insatisfação amorosa  ³². Acima de tudo, porém, não se pode esquecer a luta de M. por sua idéia de uma arte ao mesmo tempo participante e formalmente revolucionária, que se ia cada vez mais chocando com a maré montante do stalinismo e seu corolário, o dogmatismo estético, que acabaria por congelar a arte soviética na carta estatutária de um dirigismo acadêmico e convencionalizante ³³; isto não obstante o fato de que o próprio Stalin se tivesse inclinado perante a grandeza do poeta e os burocratas da crítica, na era stalinista, se tivessem empenhado em aliciar a memória do poeta à sua causa, apresentando-o em "versão oficial", convenientemente expurgada de agressividades heterodoxas, como um modêlo daquele mesmo "realismo socialista" de tipo regressivo que o poeta até o fim combatera. Sem alongar estas considerações no que se respeita o desejo do poeta , a verdade é que o suicídio de M. ainda assim apresenta um sentido bem diverso do de Iessiênin, visto à luz do próprio bilhete-testamento do poeta. Não se trata aqui da repetição do mesmo gesto de desespêro e de niilismo que M. refutara no seu poema sôbre o amigo morto. O suicídio de M. é um suicídio lúcido, a frio, de quem se declara "quites com a vida", e se recusa mesmo a fazer um balanço de "males e mágoas" ("biéd i obíd"). De quem considera cumprida a sua missão, comentando apenas "o caso está encerrado, e, silenciando, passa a outro (ou outros) o seu bastão, a ser retomado, possivelmente, em outras circunstâncias históricas (as atuais, quem sabe, com seus saudáveis prenúncios de degelo artístico, serão talvez um clima propício para o repensamento da estética maiakovskiana). Um suicídio que poderia ser um gesto de cansaço ou um gesto de protesto, viris ambos, mas que não infirma por si só a vocação do poeta-construtor, em cuja vidência estava a imagem utópica? de uma "Comuna" ideal, livre da reuma burocrática: 
"Kommúna - 
                     éto miésto, 
                                        gdié istchiéznut tchinóvniki 
i gdié búdiet 
                     mnógo 
                                        stikhóv i piéssien" 
("Comuna - 
                     lugar 
                                        sem burocratas 
onde florescerão 
                     poemas 
                                        e canções") 
 
 (do "Bilhete ao Poeta Proletário, de 1926)
 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O CONSUMO DA POESIA 
 
Até aqui vim examinando as idéias de M. sôbre a poesia como forma de produção. Para que se complete o processo comunicação estética, é mister se considerem agora seus pontos de vista sôbre o consumo da poesia. 
Um poema como "A Sierguéi Iessiênin", com todo o seu trabalho técnico extremamente avançado, com tôda a sua vanguarda formal, seria consumido pela massa? Êste problema do consumidor, como não podia deixar de ser, foi dos que mais preocuparam o poeta, que o abordou em várias oportunidades, escrevendo mesmo, a respeito, um poema Mássam nieponiátno ("Incompreensível para as massas", 1927) e um trabalho teórico Os operários e os camponeses não vos compreendem (1928), onde refuta a pecha de inacessibilidade constantemente lançada contra sua poesia ³⁴
No artigo citado, M. se propõe a desmascarar "a demagogia e a especulação" que se fazia por conta da propalada "incompreensibilidade". Frisa de início: "Nunca vi ninguém se vangloriar desta maneira: "Como sou inteligente: não compreendo a aritmética, não compreendo o francês, não compreendo a gramática!" - Mas a exclamação alegre: "Não compreendo os futuristas" ressoou durante quinze anos, se extinguiu, para em seguida crescer novamente, mais excitada e mais jubilosa do que nunca. A partir desta exclamação, houve quem fizesse carreira, obtivesse fortuna, se tornasse líder de verdadeiras correntes literárias". Mostra M. que a "boa acolhida da massa" não se produz "por virtude de alguma camisa mágica na qual nascessem envoltos os livros felizes de certos gênios literários", mas é o resultado da luta do próprio poeta. Donde a necessidade de se "organizar a compreensão de um livro", pois "quanto melhor é um livro, mais êle ultrapassa os acontecimentos". Distingue as faixas de consumo, admitindo a possibilidade de uma poesia cujos consumidores seriam, em primeiro lugar, outros produtores (poetas), como a do revolucionário Khliébnikov ³⁵, mas que acabaria afinal por inseminar tôda a linguagem poética com seu acervo de criações e assim ganhar um consumo mais largo (e neste caso justifica até as tiragens limitadas, pois se trata, num primeiro momento do processo de consumo, de uma estação central a distribuir energia para as subestações, que por sua vez a transformam em eletricidade para as lâmpadas, o que não ocorreria nas pequenas edições meramente voluntárias ou de luxo de poetas acadêmicos, obras inúteis como informação, destinada a um público de ociosos). No poema a que me reporto, considera os críticos (ou pelo menos certa crítica majoritária) "intermediários de gôsto bastante intermédio", postados entre o "produtor" e o "consumidor" de poesia, acusando a seus censores de aconselharem aos poetas a prática de uma literatura de alienação, pseudoproletária, num espírito não muito diferente daquele com que as classes dominantes se reservavam os conhecimentos essenciais e incrementavam uma literatura popular de evasão, de romanças e serestas nostálgicas. Propõe a elevação da cultura das massas, e conclui: "O livro bom é necessário e será compreendido" ("Nujná / i poniátna / khorocháia kníga"). Dessa programada necessidade, não está excluída, como se viu, a forma revolucionária ou a dificuldade do livro. "O verso mais difícil, se é comentado com duas ou três frases de introdução (seu conteúdo; por que foi escrito?) torna-se interessante e compreensível". E cita a experiência de uma bibliotecária que, no seu entender, preenchia uma função de ativa pedagogia cultural, procurando guiar o gôsto dos leitores no sentido das obras novas: "A leitura de obras difíceis diz a bibliotecária não sòmente lhes proporcionou prazer mas ainda lhes elevou o nível cultural". É, de certa forma, e sob êste aspecto do consumo do produto artístico, a proposição que Worringer resumiria na seguinte equação: "Não a arte, mas sim a compreensão da arte há de ser socializada" ³
 
 
NOTAS EXPLICATIVAS 
 
 
¹  "Pound é antes de mais nada um poeta. Waley é antes de mais nada um sinólogo. Nos círculos sinológicos, sem dúvida, as incursões de Pound no chinês despertam apenas um esgar de desdém... Por outro lado, as pessoas sensíveis às belezas sutis do verso poundiano não podem tomar a sério a técnica poética de êrro-e-acêrto do Sr. Waley" (H. G. Porteus, Ezra Pound and His Chinese Character: A Radical Examination, na coletânea organizada por Peter Russel (Ezra Pound), Peter Nevill Ltd., Londres/Nova Iorque, 1950). 
 
²  Tôda uma barreira ideológica separava os futuristas russos (aliás, cubofuturistas) do futurismo italiano de Marinetti, que pendeu para a direita. "Quando Marinetti visitou a Rússia, viu-se combatido e renegado pelos futuristas russos, que considerava seus discípulos; isto se deu porque êstes se horrorizaram com suas idéias políticas" (C. M. Bowra, The Creative Experiment - The Futurism of Vladimir Mayakovsky, Macmillan & Co., Londres, 1949). 
 
³  Frase de uma carta de 1º.9.1922, recolhida em 1958, junto com outros inéditos no volume Nova Luz Sôbre Maiakóvski, editado em Moscou pela Academia Soviética de Ciências, cf. K. S. Karol, Scoppia la bomba Maiacovski - Anche la Letteratura ha il suo XX Congresso, in L'Europeo, 697, 22.2.1959. Do mesmo autor, traduzido do New Statesman, leia-se A Outra Face de Maiakovski, em "O Estado de São Paulo", 1º.3.1959. 
 
Essa implantação deu-se por volta de 1932, cf. Ettore lo Gatto, L'Estetica e la Poetica in Russia, G. C. Sansoni, Florença, 1947, pág. 47. 
 
Sartre, em Critique de la raison dialectique/Questions de méthode, Gallimard, 1960, pág. 42), refuta duramente algumas dessas esquematizações, negando, por exemplo, a caracterização de Joyce como um "fetichista da interioridade", para afirmar, ao contrário, que o escritor irlandês se propunha a "criar um espelho do mundo, contestar a linguagem comum e lançar os fundamentos de uma nova universalidade lingüística". À evolução do pensamento crítico de Lukacs, Adolfo Casals Monteiro dedicou parte substancial de seu importante relatório Crítica Sociológica, apresentado ao recente Congresso de Crítica e História Literária (IIº), realizado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (julho, 1961). 
 
Veja-se a maneira compreensiva como o crítico Zdzislaw Sierpinski, da revista oficial "Polônia" (edição em língua espanhola), considerou o problema da música concreta e eletrônica em seu comentário ao IIIº "Outono de Varsóvia": "Pode-se não estar de acôrdo com as desnaturalizações musicais dos representantes do modernismo extremado, mas parece que não se poderá expressar um juízo sôbre esta criação até que passem muitos anos, quando tenha saído de sua infância e possa apresentar uma teoria e uma prática sólidas. Ademais, cada vez que nasce uma oposição, ao ouvir esta música sempre volta a dúvida, se não será a música do porvir, trazida pela época das viagens interplanetárias, se não é a música dos novos tempos. Quem sabe...!". Sôbre a orientação vanguardista do festival polonês, ler o pronunciamento do musicólogo Eurico Nogueira França: Um Exemplo de Festival/O "Outono de Varsóvia" ("Correio da Manhã", Rio de Janeiro, 29.10.1960). 
 
"Não querem reproduzir o mundo que os circunda, sem todavia lhe impor seus próprios mundos, frágeis e abstratos. Dêle fazem parte; nele participam pela materialidade de seu sinal, pela evidência e franqueza do procedimento pictórico, pela prudente consciência da exigüidade e do fraccionamento do seu chamado artístico. Eis porque são definidos e concretos. Fogem à metáfora criadora de mitos. Não admitem nenhuma contextura emocional ou evocadora suplementar, fora daquela que conseguem libertar diretamente da matéria do quadro" (Do catálogo, ed. Museu de Arte Moderna, São Paulo). 
 
  Leiam-se os pronunciamentos do escritor Niekrássov e do arquiteto Vlássov transcritos por François Fejto no artigo Novo degêlo na literatura e nas artes soviéticas (tópico Revolução na Arquitetura), "O Estado de São Paulo", 5.2.1961. 
 
  Cf. "Arte moderna na União Soviética", capítulo 6 do livro II da obra autobiográfica de Ilyá Erenburg - Gente, Anos, a Vida -, publicado em janeiro de 1961 na revista Nóvi Mir, e traduzido para o português por Boris Schnaiderman ("O Estado de São Paulo", 3.9.1961). 
 
¹ Depoimento referido por K. S. Karol, A Outra Face de Maiakóvski (art. cit.). 
 
¹¹ Consulte-se Majakovskij e il Teatro Russo d'Avanguardia, Einaudi, 1959, de Angelo Maria Ripellino, professor de língua e literatura russa na Universidade de Roma. Trata-se de obra fundamental para a consideração não apenas do teatro, mas de tôda a arte russa de vanguarda, levada a cabo com base em pesquisas desenvolvidas em Moscou, especialmente na Biblioteca-Museu Maiakóvski e junto aos amigos e estudiosos do poeta. 
 
¹²  Basta ler as Idéias de Nikita Khruschóv sôbre o papel dos artistas e críticos (transcrição da revista "Kommunist", publicada em "O Estado de São Paulo" 11 + 18.6.1961), onde K. invoca o "direito do líder" para decidir questões artísticas. Estamos longe da humildade de Liênin, que, ao se pronunciar sôbre Maiakóvski, admitia: "Não sou admirador dêste poeta, embora reconheça que não tenho competência para julgá-lo nesta esfera" (De um texto revelado no já citado volume Nova Luz Sôbre Maiakovski, cf. K. S. Karol). 
 
¹³  Sabe-se que as autoridades culturais soviéticas não acederam à sugestão que lhes fêz o crítico Mário Pedrosa, Diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e organizador da 6ª Bienal, no sentido de ser enviada à grande mostra brasileira uma retrospectiva do construtivismo e do suprematismo russo das primeiras décadas dêste século, movimentos interditados oficialmente, mas cujas obras se encontram nos depósitos dos museus de Moscou e Leningrado. 
 
¹⁴ Maiakóvski reeditado na Rússia, Suplemento Literário de "O Estado de São Paulo", 8.4.1961. "Realmente, era preciso um ato de coragem para fazer uma edição tão acadêmica da obra do poeta antiacadêmico por excelência", adverte B. S. desde logo, embora reconhecendo a importância desta reedição. 
 
¹⁵ "Recordo-me que há vinte anos levantamos a questão de uma nova beleza. Dizíamos que a beleza marmórea dos museus, tôdas essas Vênus de Milo sem braço, tôda essa beleza clássica grega não podia satisfazer os milhares de pessoas que, em meio aos ruídos da cidade, ingressavam numa vida nova, engajando-se no futuro pelo caminho da revolução. Hoje, durante a conferência, a camarada Koltzóva, presidente da mesa, me ofereceu uma bala; no invólucro, a marca: "Armazém do Estado de Moscou" e, em cima, a mesma Vênus, como sempre! Assim, aquilo contra o que se luta e se lutou desde há 20 anos, entra hoje na vida. Esta mesma velha beleza dessorada se difunde entre nós pelas massas até mesmo na embalagem dos caramelos, de novo ela envenena nosso cérebro e nossa concepção de arte" (Maiakóvski, Meu trabalho, notas taquigráficas das palavras proferidas pelo poeta em 25.3.1930, por ocasião da exposição Vinte anos de atividade poética de Maiakóvski, Casa do Komsomól, Moscou, cf. "Recherches Soviétiques", 1957, nº 7, pág. 132). 
 
¹ Em Moscou há dois monumentos a Maiakóvski: um deles é uma estátua, que, com tôda a certeza, êle haveria julgado com severidade; o outro, uma estação do metropolitano, que recebeu seu nome, e que, indubitàvelmente, tê-lo-ia entusiasmado, a êle, enamorado do industrial. É uma estação belíssima, com as paredes de arcos de aço que recordam as máquinas. Algo muito industrial" (...) "A camisa acerada de Maiakovski, ditou-me a mente" (Literatura Soviética, periódico em língua espanhola, Moscou, 1961, nº 2, pág. 148) 
 
¹⁷ Introdução às Obras Escogidas de Maiakóvski, tradução em língua espanhola, 4 volumes, Editorial Platina, Buenos Aires, 1957/1959 (v. I, págs. 9/10). O pintor construtivista El Lissítski paginou uma coletânea de poemas de Maiakóvski (Dliá gólossa / Para ser lido ou Para voz), segundo informa A. M. Ripellino, obr. cit., pág. 125, nº 5. Trata-se de uma edição publicada em Berlim, em 1923, cuja importância é ressaltada pelo gráfico e pintor suíço Karl Gerstner (que a dá como editada em Moscou, pela Imprensa do Estado, na mesma data) em seu estudo Integrale Typographie, separata do nº 6/7, 1959, da revista internacional de artes gráficas "Typographische Monatsblätter". Segundo me referiu o poeta argentino Agustin Larrauri, autor da tradução espanhola do Un Coup de Dés (Un Golpe de Dados, Editorial Mediterránea, Córdoba, Argentina, 1943), hoje residindo em Paris, Lila Guerrero, na exposição iconográfica comemorativa do vigésimo aniversário da morte de Maiakóvski, por ela organizada no Instituto Argentina - U.R.S.S. de Buenos Aires, teria exposto, lado a lado, cartazes com poemas de Maiakóvski gràficamente especializados e amostras de Um Lance de Dados
 
¹⁸ Cf. Elsa Triolet, Maiakovski - Vers et Proses (obr. cit., págs. 11-111-114 e 185-188); A. M. Ripellino, obr. cit., págs. 99-102 e 192-193. Colaboraram com Maiakóvski pintores construtivistas como Rodtchénko. Não obstante a reação da crítica a uma atividade que considerava indigna de um poeta, Maiakóvski reputava seus slogans e motes de propaganda como "poesia da mais alta qualidade" e muito se valeu da experiência adquirida neste campo em seus poemas e peças de teatro. 
 
¹ "Ritmo: fôrça relacional" (Décio Pignatari, Nova poesia - concreta, em ad, revista de arquitetura e decoração, São Paulo, nov./dez. 56, nº 20). 
 
² Sierguéi Eisenstein, The Film Sense, Harcourt Brace & Co., Nova Iorque, 1947, págs. 62/64. Hugh Kenner, The Poetry of Ezra Pound, New Directions, Norfolk/Connecticut, s/ data, págs. 113/114, nota 1. 
 
²¹  Oswald de Andrade diria algo semelhante: "Eu nunca fui capaz de contar sílabas. A métrica era coisa a que minha inteligência não se adaptava, uma subordinação a que eu me recusava terminantemente" (Depoimento citado por Mário da Silva Brito na sua História do Modernismo Brasileiro, Editôra Saraiva, 1958, pág. 26). 
 
²² Victor Erlich, Russian Formalism (History-Doctrine), Mouton & Co., Leiden University, S-Gravenhage, 1955, pág. 196. 
 
²³ Idem, loc. cit. Ver também René Wellek + Austin Warren, Teoria Literaria (tradução espanhola), Editorial Gredos, Madri, 1959, pág. 283. 
 
²⁴ Victor Erlich, obr. cit., págs. 54/55, nota 26. 
 
²⁵ Na nova Estética de Max Bense, de base teórico-informativa e estatística, a inovação é a marca distintiva da informação estética, que justamente "transcende a semântica no que concerne à imprevisibilidade, à surprêsa, à improbabilidade da ordenação dos signos" (cf. M. Bense. Das Existenzproblem der Kunst, Augenblick, Verlag J. G. Bläschke, Darmstadt, 1/58, pág. 8). 
 
² Piergiovanni Piermoli, Appunti sull'imagismo in America ed in Russia (revista "Nuova Corrente", Genova, nº 5/6, 1956, pág. 162, - simpósio especial dedicado a Ezra Pound), salienta que, para Iessiênin, o imagismo, ao invés de um simples estágio preparatório, "foi o meio adequado, mais vizinho à sua sensibilidade, para retornar como um camponês à sua terra e cantar as noites estreladas, a lua alta no céu, a fantasmagoria dos ícones, o silêncio do campo, o calor das tabernas...". 
 
²⁷ Elsa Triolet e Aragon (Maïakovski) adaptam o verso citado, chegando a uma versão que me parece forçada: "comme un hérossignol esséninien", pois interpretam o original ("kak piéssienno-iessiénienii provítiaz") assim: "comme un chant esséniniaque prépaladin" donde a palavra-montagem "hérossignol" ("héros" + "rossignol"). A solução faz intervir uma nota de "heroísmo" que não se casa com o contexto pejorativo, onde é antes evidenciado, perante o leitor de um mundo futuro, o caráter arquienvelhecido da lírica iessieniana. A palavra "provítiaz", forjada por M. com o prefixo "pro" + "vítiaz" (antigo guerreiro das lendas russas), está investida de um claro propósito bufo. - A posição de Maiakóviski em relação a Iessiênin, em seus vários aspectos - ataques ferozes; tributo de dor e admiração por ocasião do suicídio; combate posterior à influência deletéria de Iessiênin sôbre a juventude - é focalizada por Boris Schnaiderman em seu artigo Um paradoxo de Maiakóvski, Suplemento Literário de "O Estado de São Paulo", 6.5.1961. 
 
²⁸ Assim concebia Maiakóvski o "construtivismo", conforme se lê numa sua correspondência de Paris (dezembro, 1922), a propósito da exposição de arte russa que se realizava em Berlim, apresentando obras e idéias do movimento. Apud A. M. Ripellino, obr. cit., pág. 126. 
 
² Já estava elaborada minha tradução (junho/1961) e pràticamente concluído êste estudo, quando tive a oportunidade de entrar em contacto com Boris Schnaiderman, a quem agradeço a atenção que teve para com êste trabalho-tentativa, acompanhando a leitura da tradução e das notas explicativas, fazendo-me várias sugestões de detalhe que aproveitei, e, sobretudo, dirimindo minhas dúvidas na versão dos quartetos 7º, 10º e 16º. Agradeço-lhe ainda a solicitude com que me permitiu gravar em fita sua leitura do texto russo, possibilitando-me assim um confronto final, mais rigoroso, entre a sonoridade e o ritmo do original e a respectiva transposição em português. Antevejo nisto os prolegômenos do que eu chamaria um laboratório de textos para a tradução de poesia, reunindo, em equipe, poetas e lingüistas. 
 
³  Se é verdade que, na passagem citada, M. não cogita da era das espaçonaves, convém lembrar que, na segunda versão de sua peça "Mistério Bufo" (1920/21), o poeta fizera expressamente um vaticínio nesse sentido, escrevendo no prefácio: "Hoje lança-se para a comuna a vontade de milhões; daqui a meio século, talvez, atirar-se-ão ao ataque dos planêtas distantes os encouraçados aéreos da comuna" (Ver Vladimir Majakovskij, Mistero Buffo, tradução de Giorgio Kraiskj, Edizioni del Secolo, Roma, s/data, pág. 3). - A revista "Literatura Soviética", Moscou, nº 2, 1961, pág. 144, dá notícia de uma querela recentemente aberta na U.R.S.S. entre físicos e líricos, provocada pelas declarações de um engenheiro, publicadas no Komsomólskaia právda, no sentido de que "a poesia marcha na retaguarda do progresso técnico e se faz desnecessária; o século XX é o século dos físicos e não dos líricos". Moisséi Márkov, físico da Academia de Ciências da U.R.S.S. no mesmo número da revista (págs. 142/145), dá um excelente depoimento sôbre as relações entre poesia e ciência, afirmando a necessidade de uma poesia criativa, e dizendo mesmo: "Num artigo científico, buscam-se os descobrimentos científicos, ainda que pequenos; na obra poética, buscam-se os descobrimentos poéticos... Se o lírico - "não matemático" - inveja a linguagem exata e singular da física, o físico admira as ricas possibilidades da linguagem poética, que, a seu modo, com grande exatitude e inusitada concisão, com maravilhosa fôrça plástica, formula situações de suma complexidade que o matemático, para descrever, carece de meios adequados." - Aqui, me permito uma opinião: se um Dorônin estava na retaguarda de seu tempo, com sua poesia formalmente reacionária (que eu chamarei de "formalista" no seu sentido pejorativo, pois se compraz num repertório de formas já dado de antemão), um Maiakovski, com as invenções de seu laboratório poético, representa, vìvidamente, o mundo das conquistas técnicas que culminaram nos vôos espaciais, e até, de certa maneira, antecipa-se a êle no plano artístico. 
 
³¹  Antologia de Maiacovski, cit., pág 173: "Hoje cheguei aqui inteiramente enfermo: há algo com minha garganta, não sei o que, mas talvez me impeça por muito tempo de ler meus versos". Dizia Maiakovski na noite de 25 de março de 1930, poucas semanas antes de sua morte." 
 
³²  Elsa Triolet rastreia o tema do suicídio e do desengano amoroso em poemas de M. anteriores ao dedicado a Iessiênin (Maiakovski, págs. 52/62). L. Guerrero aflora também a hipótese, em sua introdução às Obras Escogidas do poeta (Tomo I págs. 10/11): "Conhecendo sua biografia, e as alternativas dêsse sentimento cujos detalhes não entram neste breve prólogo, se compreendem muitas páginas dramáticas de sua obra. Especialmente os capítulos de delírio suicida de seu poema "O Homem". As alucinações, os ciúmes penosamente confessados, revelam algo que explica a bala de 14 de abril de 1930." 
 
³³  A. M. Ripellino, obr. cit., págs. 214/215, escreve: "Pelas tiradas audazes e pelos slogans polêmicos expostos no palco e na platéia, êste espetáculo ("Os Banhos") assumiu um caráter de desafio aos teatros conservadores e ao gôsto mesquinho dos dirigentes soviéticos. E de fato, os burocratas levantaram-se logo em defesa de suas poltronas maciças. Uma torrente de críticas insossas e injuriosas se precipitou sôbre o poeta. Ataques vulgaríssimos se sucederam sem trégua, alimentando o desconfôrto que pouco depois conduziria M. ao suicídio. Acusando, ainda uma vez, M. de obscuridade, os áridos censores não se davam conta de repetir as palavras de Pobiedonóssikov"(o burocrata todo-poderoso de "Os Banhos"): "Tudo isto não é para as massas, os operários e os camponeses não o compreenderão, e é bom que não o compreendam, nem há necessidade alguma que lhes seja explicado." Os últimos dias do poeta foram acompanhados pelo refrão martelante dessa increpação gasta, que aflorava maquinalmente de tôda parte." (...) "No dia 9 de abril, numa sessão do Instituto Nacional de Economia, Pliekhánov, atacado e escarnecido por estudantes retrógrados, êle disse com amargo sarcasmo: "Quando eu estiver morto, lereis os meus versos com lágrimas de emoção. E agora, em vida, sou injuriado e se lança tôda sorte de invencionices a meu respeito." 
 
³⁴ Trabalhos referidos no início dêste estudo, com as respectivas fontes. 
 
³⁵ M. se refere a Khliébnikov, pesquisador da palavra poética, como um dos mestres de sua geração. Ver Victor Vladimirovich Khlebnikov, necrológio datado de 1922, traduzido por L. Guerrero nas Obras Escogidas (Tomo IV, págs. 167/172). Sôbre o papel de K. na poesia russa por volta dos anos 20, consultar o artigo de B. Schnaiderman, Khliébnikov: um grande poeta (Supl. Lit. de "O Estado de São Paulo", 25.3.1961). Uma antologia do poeta, em tradução francesa de Benjamin Goriély, foi publicada em 1960 (Emmanuel Vitte, Éditeur, Lyon). 
 
³ W. Worringer, Problemática del arte contemporáneo, Nueva Visión, B. Aires, 1955, tradução do original alemão de 1948, pág. 27.
 
Fonte: Maiakóvski em português: Roteiro de uma Tradução - Separata da Revista do Livro nº 23-24, jul/dez 1961, Rio de Janeiro: INL/Revista do Livro, 50 págs. 
 
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TRADUÇÃO DO POEMA EM RUSSO PARA OUTRAS LÍNGUAS 
 
 
Link: https://ruverses.com/vladimir-mayakovsky/to-sergei-yesenin/7682/ (Poema em inglês e original russo) 
 
Link: https://revistacarmina.es/?p=28029 (Poema em espanhol)  
 
 






Obs.: A numeração das estrofes refere-se aos comentários e não consta do original.

 


11 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Neste ano de 2021 completam 60 anos do monumental texto sobre o processo de tradução de Haroldo de Campos, intitulado MAIAKÓVSKI EM PORTUGUÊS: ROTEIRO DE UMA TRADUÇÃO. Tinha então 31 anos de idade e já tinha ideias bastante revolucionárias à época, evidenciadas nesta análise do poema de Maiakóvski em memória do poeta Sierguéi Iessiênin, que se suicidou na década de 1920 na União Soviética.
O texto de Haroldo não exige que o leitor saiba russo, pois ele pensou em tudo, transliterando os termos em russo para o português.
Vejamos o que o historiador e professor Adriano Miranda (Franca-SP) tem a nos dizer sobre esse poeta homenageado por Maiakóvski:
“SERGUÉI ALEXANDROVICH IESSIÊNIN não cometeu suicídio, como foi divulgado na época e até hoje difundido por muitos. IESSIÊNIN foi torturado e assassinado pela polícia secreta da então fundada URSS, já sob o comando de Stalin. Com o fim da URSS em 1991, as fotos do corpo de IESSIÊNIN no Hotel Inglaterra, em São Petersburgo e as fotos da autópsia ( todas disponíveis na internet ) mostram sérios ferimentos no crânio, ferimentos de perfuração aguda. Testemunhos de personagens da época que carregaram o corpo do Hotel Inglaterra ( disponíveis na internet, em russo ) apontam que o mesmo estava coberto de pó, sugerindo que o poeta morreu em outro lugar e foi transportado para o hotel. Seu suicídio foi uma encenação. Um estudo mais atento esclarece hoje esse episódio e os próprios russos estão se dando conta de que o que Kruschev revelou em 1956 contra o Stanilismo era pouco. Os fatos realmente começaram vir à tona com o fim da URSS.
IESSIÊNIN foi mais uma vítima do socialismo soviético, vítima que já estava sendo monitorada pelo governo desde suas viagens aos EUA e seu casamento com a bailarina norte-americana Isadora Duncan. Defensor da liberdade de expressão, sua filosofia estava em desacordo com o controle total da arte pelo governo russo, que desejava apenas panfletismo comunista. O poeta estava sendo considerado um indivíduo por demais ocidentalizado.”
Outros blogs postaram apenas o poema traduzido por Haroldo de Campos, mas ninguém - modéstia à parte - enfrentou a digitação de todo o monumental trabalho de Haroldo de Campos, secundado por Bóris Schnaiderman (Maiakóvski em português: Roteiro de uma Tradução - Separata da Revista do Livro nº 23-24, jul/dez 1961, Rio de Janeiro: INL/Revista do Livro, 50 págs.). Apenas o Blog do Braga fez esse trabalho de digitação das 50 páginas na íntegra, recuperando todas as notas e comentários feitos originalmente pelo poeta concretista com apenas 31 anos de idade.
Devo reconhecer que não foi fácil manter esse trabalho considerado um texto clássico, durante 50 anos no meu acervo bibliográfico, apesar de minhas muitas mudanças de endereço no País (São Paulo, Brasília, Americana, Curitiba, Porto Velho e São João del-Rei), ciente do valor desse trabalho inovador. Apesar de ser um texto clássico, até hoje não aparece em nenhum site na Internet, nem foi republicado. Antes, é uma verdadeira relíquia esta aula iniciática para nós tradutores. Ganhei meu exemplar de meu professor Ilo (natural de BH) e pertencente ao corpo docente da antiga União Cultural Brasil-URSS de São Paulo em 1971. Ilo estudara na União Soviética, provavelmente na MGU-Universidade Estatal de Moscou.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2021/03/maiakovski-em-portugues-roteiro-de-uma.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...

Obrigado!
Preciosíssimo!
Heitor

Rute Pardini (cantora lírica e escritora) disse...

Мой дорогой муж,
Я очень тебя люблю.
Que espantoso ler este texto complexo e maravilhoso, guardado por 50 anos de sua vida.
Você, em 1971, já se encantava por este raro “intrincamento” de rimas e ritmos aos 22 anos.
Sabe? Eu apareci em sua vida num momento em que você já estava maduro e guardava todo esse viver deste sua tenra juventude.
Sou muito agraciada de poder aproveitar junto de você sua sabedoria .
E fico muito, mas muito feliz, em perceber que hoje, neste seu momento único, está realizando a proeza de, por 50 anos, ter amadurecido sua consciência para produzir tão perfeito trabalho.
Grande - é verdade, - mas as minúcias de cada detalhe empregadas pelo autor do livro, Haroldo de Campos, nos aproxima de Maiakóvski em sua alma, trazendo para os tempos de hoje a emoção do poeta russo e fazendo com que seu processo de tradução do poema seja claro e lindo de se ler.
Parabéns meu amado, bela digitação. 50 páginas não é pouca coisa não.
Livro raro, creio que ninguém tenha este livro raríssimo!
Мои поздравления для тебя,
Rut

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente reeleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2021-2023) disse...

Parabéns pelo hercúleo trabalho,
Abraços fraternos.
Paulo Sousa Lima

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caríssimo amigo Braga

Mesmo antes de ler o seu texto – o que teremos o prazer de fazer em seguida – sobre o volumoso trabalho de digitação de “50 páginas na íntegra!”, escrito na língua russa (!), incluindo a recuperação de notas e comentários, queremos dar-lhe as nossas melhores felicitações.

Só mesmo uma pessoa, como o ilustre amigo, reconhecidamente amante da cultura universal, seria capaz de produzir e dar publicidade a tão importante trabalho, guardado em seus acervos bibliográficos por 50 anos! Parabéns!

Aceite o abraço fraterno,

Dos amigos Mario e Beth.

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga;
Parabéns pela divulgação na íntegra desse estudo. Há que se destacar os trágicos prejuízos à criação praticados por regimes autoritários, totalitários, experimentados pelo mundo afora ao longo do século XX, em especial, seja do lado "comunista", seja do lado "capitalista". Sobre o desafio das traduções de poemas, a questão é imensa; imagino que cada idioma tenha a carga emocional de seus familiares sons, algo que, por si, me parece impossível de ser explicado, assim como certas sensações só podem ser universalmente entendidas e compartilhadas a partir de outros sentidos, como a visão estética e talvez a audição musical. Depois o alcance social da forma poética, algo sempre problemático quando ela se propõe a ideais sociais ou políticos.
Grato. Saudações
Cupertino

Ivone Gomes de Assis (escritora, pesquisadora e mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia, com foco temático na obra "Guerra em surdina" de Boris Schnaiderman. É autora de A Ficção sob os Escombros da História. Além disso, é editora, projetista e designer gráfico de livros.) disse...

Professor, boa noite.
Quanta informação bacana. Você nunca quis participar de editais públicos para a publicação deste material em livro impresso?
Oportunamente, falarei sobre este seu trabalho. Parabéns! Vou lê-lo.
Abraço,
Ivone.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

bravo!!!

Maria Auxiliadora Muffato (poetisa são-joanense) disse...

Cumprimentos ao Francisco Braga, por ter-se empenhado em trazer à luz esta obra rara, e facilitar nosso alcance à poesia de Maiakóvski , tão bem entendida por Haroldo de Campos, com tamanha sensibilidade, técnica e persuasão, na tradução do poema “ A Sierguéi Iessiênin”

É preciso que a poesia rompa as grades das pressões, sejam elas quais forem; que lhe seja dado escapar, com arte, das formas convencionais (belíssimas, entretanto!) sem, jamais, abolir o que veio antes. Não resta dúvida que: fundamental é o significado.

No poema analisado, encantei-me com sua estrutura moderna; o desafio das rimas difíceis, como também o alinhavar dos versos e a brincadeira com os sons.

Como deve ser lindo isso em russo, se em português é fascinante.

Maria Auxiliadora Muffato ( que juntou ao seu comentário um arquivo pps com texto de Eduardo Alves da Costa, intitulado "No caminho com Maiakóvski" )

Gilberto Mendonça Teles (autor de O terra a terra da linguagem e Hora Aberta-Poemas Reunidos e é membro da Academia Goiana de Letras) disse...

Estimado Francisco,
Hoje me levantei às 4 d manhã, para terminar a revisão de um livro de ensaios e vi logo a sua tradução de Maiakóvski, que li (o texto em português). Coisa de encantar. Já tive duas coleções do poeta russo, inclusive um livrinho sobre dele sobre “Como fazer verso”, de que transcrevo três páginas no II volume de Defesa da poesia, publicado o ano passado pela Editora do Senado. Você já conhece esse livro? Abraço e cumprimentos deste que inveja o seu talento de tradutor. Gilberto Mendonça Teles

Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Caro Francisco Braga:

Li com proveito, e com grande interesse, o seu roteiro de uma tradução. Meus cumprimentos, e meu muito obrigado.

Abraço

Anderson