quinta-feira, 4 de março de 2021

COMO SE DIZ ADEUS EM JUDEU-ARÁBICO?

Por Sarah Bunin Benor *
Publicado originalmente em  JTA.org **
Traduzido do inglês por Francisco José dos Santos Braga
 
O tempo está se esgotando para preservarmos as línguas judaicas ameaçadas de extinção. Veja como podemos impedir que elas se percam para sempre.

 

Um kippah e um monte de documentos

 

Não consigo parar de pensar em Flory Jagoda, Joseph Sassoon e Kitty Sassoon três judeus americanos na casa dos 90 que morreram na semana passada. Como uma judia Ashkenazi, não compartilho suas origens familiares. Mas a morte deles me atingiu, já que eles estavam entre os últimos falantes nativos de línguas judaicas ameaçadas de extinção línguas que estou ajudando a documentar antes que seja tarde demais. 

Flory Jagoda (1923-2021)
 

Flory Jagoda dedicou grande parte de sua vida à preservação de uma dessas línguas. Ela cresceu na Bósnia falando ladino, também conhecido como judeu-espanhol, que seus ancestrais mantiveram desde sua expulsão da Espanha em 1492. Ela sobreviveu ao Holocausto em parte por suas habilidades musicais, tocando acordeão e cantando em servo-croata. Durante décadas, escreveu e interpretou canções ladinas, mantendo as tradições folclóricas sefarditas de sua Nona (avó), inovando-as e levando-as a um público mais amplo. 

A música de Jagoda me apresentou ao ladino e despertou meu interesse pelas línguas judaicas. Na minha turma da quinta série na escola judaica, meus colegas e eu aprendemos sua melodia cativante “Ocho Kandelikas” (Oito Velas Pequenas) junto com canções de Hanukkah em hebraico e inglês. Quando adolescente, ouvi Jagoda se apresentar em um Festival da Vida Folclórica Judaica do qual ela foi fundadora e comprei uma fita cassete dela, “La Nona Kanta” (The Grandmother Sings). Eu ainda ouço essas músicas e agora as compartilho especialmente minha favorita, “Laz Tiyas” (As Tias) com meus alunos quando ensino sobre línguas judaicas. Meus alunos leram um artigo sobre o trabalho de Jagoda para promover a língua e a cultura sefarditas apenas uma semana antes de morrer. 

Vídeo de “Ocho Kandelikas”: https://www.youtube.com/watch?v=0fHPK6CEN1k

Vídeo de “Laz Tiyas”: https://www.youtube.com/watch?v=SFuDxm41wS0

Enquanto Jagoda está entre a última geração de falantes nativos de ladino, os jovens continuaram seu trabalho de preservação da língua, como vemos no arquivo de Devin Naar de cartas, livros e outros tesouros históricos ladinos; pesquisa e aulas de Ladino de Bryan Kirschen; e a música ladina contemporânea e livros infantis de Sarah Aroeste. Devido a esses esforços, os judeus americanos tendem a conhecer a língua. Quando pergunto ao público de quais línguas judaicas eles ouviram falar, eles geralmente mencionam o hebraico, o iídiche e o ladino. 

As pessoas estão menos familiarizadas com outras línguas judaicas, incluindo o judeu-Shirazi (do Irã), o judeu-Malayalam (da Índia) e o Neo-Aramaico judaico (da região curda) todas criticamente ameaçadas. Os muitos dialetos judeu-arábicos ameaçados de extinção foram documentados em vários graus, do Egito ao Marrocos, da Síria ao Iêmen. E alguns jovens estão mantendo a música viva, como Neta Elkayam, A-WA e Asher Shasho Levy pelas tradições marroquina, iemenita e síria. Mesmo assim, a maioria dos judeus americanos nunca ouviu falar do judeu-arábico. Sempre que um falante morre, perdemos a oportunidade de aprender e ensinar mais sobre as nuances desta rica língua e cultura. 

Kitty e Joseph Sassoon, quando jovens
  

Joseph e Kitty Sassoon morreram de COVID-19 dentro de 12 horas um do outro, meses após seu 76º aniversário de casamento. Ambos eram filhos de pais Baghdadi que falavam judeu-árabe nativamente. Tendo crescido em Rangoon, Birmânia e Calcutá, Índia, Joseph e Kitty falavam vários idiomas, mas seus pais falavam judeu-arábico quando não queriam que os filhos entendessem. Como muitos filhos de imigrantes nascidos nos Estados Unidos sabem, isso significa que eles aprenderam trechos da língua. 

Já adultos, morando recentemente em Los Angeles, Joseph e Kitty falavam hindi e inglês juntos e não tiveram muitas oportunidades de usar o judeu-árabe, mas suas netas se lembram deles usando algumas palavras e frases. Kitty usava apelidos de animais de estimação para os netos, como "abdalnuana" para meninos e "abdalki" para meninas (ambos significando literalmente "penitência" como o hebraico "kapara") e frequentemente dizia "mashallah" (o que Deus quis) ao expressar orgulho e alegria. Joseph chamou sua mãe de Umm Shalom (mãe de Shalom, seu primeiro filho), de acordo com a convenção judaico-árabe, e lançou insultos de brincadeira aos netos, como “harami” (ladrão) e “mamzerim” (bastardos uma palavra hebraica usada em várias línguas judaicas). 

Os Sassoons são característicos de falantes de línguas ameaçadas de extinção. Ao contrário de Jagoda, eles não devotaram suas vidas à preservação cultural. E eles tinham vários graus de conhecimento do idioma Joseph cresceu falando mais judeu-arábico do que Kitty. Embora os documentadores de idiomas prefiram falantes fluentes, até mesmo os semifalantes podem fornecer informações importantes, especialmente quando o idioma está seriamente ameaçado. 

Todos os dias, especialmente durante a pandemia COVID-19, morrem mais falantes de línguas ameaçadas de extinção. Se não os entrevistarmos agora, perderemos a oportunidade de fazê-lo para sempre. Felizmente, várias organizações têm feito esse importante trabalho, incluindo a Endangered Language Alliance, o Jewish Language Project e Wikitongues nos Estados Unidos e o Mother Tongue Project em Israel. 

Esta não é apenas uma questão judaica. Das 7.000 línguas do mundo, cerca de metade estão ameaçadas de extinção. Organizações como essas são nossa última esperança de gravá-los antes que os últimos falantes morram. Todos nós podemos nos envolver doando fundos, fazendo trabalhos voluntários ou conectando os projetos com falantes de línguas ameaçadas de extinção. 

Que as memórias de Flory Jagoda e Joseph e Kitty Sassoon sejam uma bênção e um alerta: devemos agir agora para preservar suas línguas e culturas, enquanto ainda podemos. 

Link: https://blogs.timesofisrael.com/how-do-you-say-goodbye-in-judeo-arabic/ 

 

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* Sarah Bunin Benor é professora de Estudos Judaicos Contemporâneos e Linguística no Hebrew Union College em Los Angeles. Ela dirige o Projeto de Língua Judaica e edita o Jornal de Línguas Judaicas. 

** JTA = Jewish Telegraphic Agency (https://www.jta.org/)

 
I. AGRADECIMENTO 
 
 
Pelo envio do artigo em inglês aqui traduzido venho agradecer ao Sr. Heitor Garcia de Carvalho, o qual, nos idos da década de 1960, como então clérigo salesiano, pertenceu ao corpo docente da Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras de São João del-Rei e de quem fui aluno na disciplina “Metodologia Científica e Estatística”.

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

De acordo com o Museu Goeldi do Brasil, informando sobre Línguas Indígenas da Amazônia, "O Brasil é um país com uma grande diversidade linguística: falam-se no Brasil não somente o Português Brasileiro e várias outras línguas trazidas por imigrantes, mas também provavelmente cerca de 150 línguas indígenas. Isto pode parecer muito, e de fato só existe mais ou menos uma dúzia de países no mundo que têm mais línguas. Mas é bem provável que o Brasil, e toda a América do Sul, tenham tido muito mais línguas, talvez até oito vezes mais, 500 anos atrás, na época do primeiro contato com os Europeus. (...) As línguas indígenas não são “dialetos”, mas sim, línguas plenas, independentes, completas. É verdade que algumas delas tenham, por sua vez, dialetos, um pouco diferentes entre si, mas ainda próximos o suficiente para que seus falantes se comuniquem sem maiores dificuldades e sem ter que aprender o idioma do outro. (...)"
Fonte: http://linguistica.museu-goeldi.br/?page_id=205

O artigo cuja tradução fiz da língua inglesa sobre línguas judaicas, da autoria de SARAH BUNIN BENOR, também trata de uma situação idêntica para as línguas judaicas que tendem a desaparecer com a morte dos últimos falantes. A autora recomenda então algumas providências para que isso não ocorra.

https://bragamusician.blogspot.com/2021/03/como-se-diz-adeus-em-judeu-arabico.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga
Importantíssima publicação desse dramático exemplo que serve, me parece, de alerta para a maioria dos próprios brasileiros que, em pleno século XXI, banalizam o massacre secular ainda em curso das civilizações e povos nativos dentro de seu próprio território. Além do crime de lesa humanidade, em si, dá o Brasil exemplo de incivilidade ao destruir aquilo que na verdade deveria ser encarado como seu maior patrimônio: a presença em seu interior de povos originais de culturas milenares, pré-colombianas. Ao contrário, o que assistimos é o império da ignorância e do preconceito, quando se repudia a presença indígena dentro de sua própria alma. E o absurdo maior: a acusação, atualmente em processo no Tribunal Penal Internacional (TPI), de promoção de genocídio em pleno momento de Pandemia pelo Estado brasileiro que, obrigado pela sua Constituição, deveria ser a salvaguarda para esses mesmos povos.
Grato.
Cupertino

José Carlos Gentili disse...

Estimado Braga.
Saudações.
Seus escritos e o BLOG DO BRAGA, do qual sou assíduo ledor, têm grandeza cultural e literária,ofertando-nos conhecimentos em limites alheios aos parâmetros de política partidária, de cunho ideológico.
A Academia de Letras de Brasília guarda com muito carinho a sua vinda à Capital da Esperança,quando lhe foi concedida a Medalha Cultural D´Almeida Vitor.
Atualmente, estou a presidir nacionalmente o Projeto Educa Brasil, que visa
colaborar com os diversos segmentos da nação, envolvidos com o universo educacional.
Gostaria imensamente que viesse somar aos nossos ingentes esforços, acerca dos quais informarei, oportunamente.
Permita-me enviar este seu magnífico texto ao ilustre membro da Academia Brasileira de Letras, Arnaldo Niskier, de ancestralidade judaica e, também, ao latinista Tarcízio Dinoá Medeiros, membro da nossa entidade, além de pertencermos, todos, na condição de membros correspondentes da Academia das
Ciências de Lisboa.
Estamos, sempre, de pé e à ordem para servi-lo.
Cordialmente
José Carlos Gentili
Um pensador.

Anderson Braga Horta (poeta, escritor, ex-presidente da ANE-Associação Nacional de Escritores e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Grato, Francisco.

Abs.

abh

Paulo José de Oliveira (presidente da Academia Formiguense de Letras e do Clube Literário Marconi Montoli) disse...

Obrigado meu nobre! Este seu texto, publiquei no nosso Grupo da AFL hoje. Um abç

Att.,

Paulo José de Oliveira

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Olá Francisco e Rute,
Paz e Bem!
A respeito de línguas li uma vez um artigo em que um estudioso opinava que daqui a muito tempo, só vão sobrar três línguas no mundo: o Inglês, o Chinês e o Espanhol. Não sei se isto tem fundamento, mas acho ser melhor a gente não se preocupar com o futuro muito distante, mesmo tendo muito tempo com esta pandemia e quarentena. Tudo de bom para vocês!! Grande abraço, f. Joel.

Augusto Coura disse...

Parabéns pelo elucidativo texto. Abraços.