Por Francisco José dos Santos Braga
No dia 22 de
setembro de 1992, publiquei, no Jornal de Brasília, “Odes e Poemas de
Elevado Misticismo” ¹, uma crítica literária a um livro de poesias intitulado
“Odes e Poemas” do conhecido Deputado José Barbosa, que é, além de poeta,
jornalista de grande expressão e advogado pela Faculdade de Direito do Largo
São Francisco, tendo assessorado o Presidente Getúlio Vargas e exercido
diversas vezes o mandato de deputado federal por São Paulo.
No bojo daquele
livro destacavam-se seis páginas destinadas à descrição do formidável fenômeno
do estouro da boiada, em verso. O tema já fora abordado por dois dos mais
consagrados escritores do País: Euclides da Cunha, em “Os Sertões” em 1902, e
Rui Barbosa, em Conferência de Juiz de Fora, pronunciada em 17 de fevereiro de
1910, durante a Campanha Civilista.
É de se
imaginar a dificuldade de se cantar em versos o que Euclides e Rui fizeram em
prosa, em páginas que se tornaram clássicas na Literatura Brasileira. Mas José
Barbosa não se intimidou com o brilho dos que o precederam e, lançando mãos à
obra, com traços firmes e vigorosos, debuxou o quadro de reses em debandada,
num tropel desabrido e louco, arrastando consigo tudo de roldão.
A narrativa do
fenômeno é feita na primeira pessoa do singular por um boiadeiro (o autor?) que
ativamente assiste à condução da manada, “criação do Zé Caetano, lá das
Uberabas”. Sobrevindo a disparada, o rebanho, “num só corpo atomizado”, faz
meia volta, arroja-se nas agitadas águas do Rio Grande e retorna ao sítio de
onde saíra. Na recontagem das reses, dá-se pela falta de uma rês, “aquele boi
pintado, o culatreiro cego das esquerdas”. Finalmente, faz-se a descrição da
chegada do mesmo rebanho a seu destino, a fazenda Santa Fé, do Coronel Barreto,
que, satisfeito com a chegada das reses, manda preparar festa a noite inteira,
em homenagem àqueles peões valorosos.
“O Estouro da
Boiada”, de José Barbosa, ² vem de ser relançado pela Razão Cultural Editora, Rio
de Janeiro, 1998, com ilustrações de Marta Süssekind. A obra traz os três
textos sobre o estouro da boiada, com uma breve biografia de seus autores. Além
disso, a apresentação do poeta é feita pelo jornalista e ex-parlamentar do Rio
de Janeiro, Oscar Noronha Filho, ficando o prefácio a cargo de Esther de
Figueiredo Ferraz, ex-Ministra da Educação e colega de José Barbosa na
Faculdade de Direito.
Constam ainda
do livro trechos do meu artigo supracitado e de uma carta do jornalista e
historiador paulista Adriano Campanhole dirigida ao poeta em 1994.
Para deleite
dos leitores deste prestigioso jornal ³, José Barbosa autorizou, em caráter
excepcional, à Casa do Poeta Brasileiro-Seção de Brasília, a transcrição do seu
poema, na íntegra, reproduzido a seguir para o deleite do leitor.
O ESTOURO DA BOIADA
À memória de Moisés Barbosa e Tonico Barbosa,
legendários boiadeiros...
José Barbosa
Nessas viajadas para compra de boi magro,
Nunca me esqueço, ao vivo, do estouro da boiada,
Por motivo fortuito ou às vezes provocado:
O trem de ferro apitando nas curvas,
A onça que num relance corta a estrada,
O repentino raio ao ribombo do trovão,
Caixa de marimbondo bravo despencada,
Tiroteios ou rojões improvisados,
Labaredas de fogo em queimadas de agosto,
Ou até mesmo fantasma nas encruzilhadas...
À frente da manada, guias na condução,
Alinham-se marruáses e marrucos,
Mestiços de gir e guzerá,
Criação do Zé Caetano, lá das Uberabas,
Rebeldes aos cabrestos, aos laços e às cangas...
Inopinadamente, estacam-se estes bois,
Erguem-se suas cabeças reluzentes,
Olhos exorbitantes, temerosos,
Eretas as orelhas, pêlos eriçados,
Reviram-se nas suas patas firmados,
As caudas levantando na altura das ancas,
Debandam-se em satânica abalada,
E vão rompendo tudo de roldão...
Invertem-se, num ímpeto, as posições,
Culatra transformando-se na ponta,
Esta em culatra então vai se tornando,
Até se retornar ao que antes era.
A rês, de boi, vira boiada,
Boiada inteira vira boi,
Os músculos e nervos retesados,
Os chifres se batendo entrelaçados,
Cascos riscando pedreiras,
Faíscas por todos os lados,
Cheiro de queimado no ar...
Disformes estruturas movediças,
Num só corpo atomizado,
Súbitas explosões de força reprimida,
Ao expandir-se em latentes energias...
Na desabrida e louca disparada,
Vai deslocando tudo de arrastão,
Cerca-de-arame e porteiras,
Mato-virgem e capoeiras,
Os currais e pontilhões.
Acamam-se os capinzais,
Moitas grandes de macegas,
Rangem-se os ressequidos carrascais,
Estalam-se os raquíticos cerrados,
Choram os verdes das roças de plantação,
Afugentam-se levas de animais,
Casas de passarinho rolam pelo chão,
Até cobras pisoteadas...
Envereda o rebanho em atropelo
Na direção das orlas do rio Grande,
Que os limites assenta com Minas Gerais,
Voltando para o pouso de onde saíra.
Arroja-se nas águas do agitado rio,
Nada o gado ao sabor das correntezas,
Serpenteia-se em sinuosa diagonal,
Descendo assim como se pesca de rodada,
Segue o rumo das margens do outro lado.
Como o piloto que do barco perde a rota,
Permanecem agora os destemidos peões,
Mas aparece o capataz na liderança,
Dirigem-se para o antigo e velho porto,
Numa balsa conseguem travessia.
Não podendo seguir mesmo destino,
Risquei de leve a mula nas esporas,
Convoquei no assobio o Leão e a Pantera,
Ajustei bem as traias e o cano das duas botas,
Do rio conhecia as manhas e os segredos,
E juntos adentramos nas suas águas...
Por leis da natureza sempre governados,
Os animais já nascem sabendo nadar,
Mas eu, simples criatura racional,
Idêntico a outro ser que é ser humano,
Marcado pelo fogo de artes e talentos,
Carrego o fardo do constante tirocínio,
No aprendizado de outras técnicas e ciências,
As coisas que ao nascer eu não sabia...
Mais ou menos iguais nestes embates,
Cada qual sua tarefa desempenha.
Nas laterais exercem os cães o controle,
A manada para outra margem empurrando,
Ruana, nos movimentos de vaivém,
Contrabalança a falta da peonada.
Meu berrante pranteava seus lamentos,
Guiava acalmando os rudes animais,
Ao evocar os plangentes aboios dos vaqueiros...
Nas tranquilas paisagens daqueles rincões,
Vencida a trabalhosa e árdua jornada,
Acomodou-se o gado numa várzea,
Do verde jaraguá toda forrada.
O condutor e os peões se aproximando,
Com outros camaradas para ajuda,
Cantando juntos seus aboios dolentes,
Berrantes acordavam ecos nas quebradas,
E assim comboiavam o rebanho ao mangueirão.
Na recontagem de cabeça por cabeça,
No desfile através de uma porteira,
Anotou o sempre atento capataz
A falta de uma rês, uma única arribada...
Concluíram que era aquele boi pintado,
O culatreiro cego das esquerdas,
Que nas viagens pendia para este lado.
Apesar dos vestígios e procura,
Durante muitos dias e até por noite escura,
Este boi nunca mais por ninguém foi encontrado...
Depois de duas marchas exaustivas,
Com saídas ao romper da madrugada,
Vai chegando, afinal, a grande boiada,
Aos verdes prados da fazenda Santa Fé,
Do conhecido Coronel Barreto,
Logo adiante do Sítio do Chão Preto.
Feliz, e riso franco o fazendeiro,
Ao ver e recontar aqueles bois,
Dezoito ou vinte arrobas estimados,
Mandou preparar festa a noite inteira.
Cateretês e violas são improvisados,
Rodeios e desafios de moda sertaneja,
Muita cerveja e a velha pinga com limão.
Reza cantada ao pé do rústico cruzeiro,
Rezaram juntos aquela mesma oração.
Nasce assim, ao calor de nossa terra,
A festa alegre do Peão,
Do Capataz, do Boiadeiro...
Fonte: O ESTOURO DA BOIADA, Rio de Janeiro: Razão Cultural Editora, 1998, p. 29 a 34.
NOTAS EXPLICATIVAS
¹ BARBOSA, José: ODES E POEMAS, Rio de Janeiro: State-of-the-Art Editora Ltda., 1992, 49 p., ilustrações de Márcia Süssekind. Cf. análise literária do livro in http://bragamusician.blogspot.com.br/2015/12/odes-e-poemas-de-elevado-misticismo.html
² BARBOSA, José: O ESTOURO DA BOIADA, Razão Cultural Editora, Rio de Janeiro, 1998, ilustrações de Marta Süssekind, 36 p. Cf. ampla discussão desse opúsculo in http://bragamusician.blogspot.com.br/2015/12/o-estouro-da-boiada-por-deputado-jose.html
³ Localizei esse trabalho num arquivo de meu computador sem anotação da data de sua produção. Presumo ter escrito essas linhas para o Jornal de Brasília, mas infelizmente não consegui localizar a edição em que foram publicadas (se é que o foram). Seguramente isso deve ter acontecido logo após a publicação do livro "O Estouro da Boiada", em outubro de 1998 ou pouco depois.
O ESTOURO DA BOIADA
À memória de Moisés Barbosa e Tonico Barbosa,
legendários boiadeiros...
José Barbosa
Nessas viajadas para compra de boi magro,
Nunca me esqueço, ao vivo, do estouro da boiada,
Por motivo fortuito ou às vezes provocado:
O trem de ferro apitando nas curvas,
A onça que num relance corta a estrada,
O repentino raio ao ribombo do trovão,
Caixa de marimbondo bravo despencada,
Tiroteios ou rojões improvisados,
Labaredas de fogo em queimadas de agosto,
Ou até mesmo fantasma nas encruzilhadas...
À frente da manada, guias na condução,
Alinham-se marruáses e marrucos,
Mestiços de gir e guzerá,
Criação do Zé Caetano, lá das Uberabas,
Rebeldes aos cabrestos, aos laços e às cangas...
Inopinadamente, estacam-se estes bois,
Erguem-se suas cabeças reluzentes,
Olhos exorbitantes, temerosos,
Eretas as orelhas, pêlos eriçados,
Reviram-se nas suas patas firmados,
As caudas levantando na altura das ancas,
Debandam-se em satânica abalada,
E vão rompendo tudo de roldão...
Invertem-se, num ímpeto, as posições,
Culatra transformando-se na ponta,
Esta em culatra então vai se tornando,
Até se retornar ao que antes era.
A rês, de boi, vira boiada,
Boiada inteira vira boi,
Os músculos e nervos retesados,
Os chifres se batendo entrelaçados,
Cascos riscando pedreiras,
Faíscas por todos os lados,
Cheiro de queimado no ar...
Disformes estruturas movediças,
Num só corpo atomizado,
Súbitas explosões de força reprimida,
Ao expandir-se em latentes energias...
Na desabrida e louca disparada,
Vai deslocando tudo de arrastão,
Cerca-de-arame e porteiras,
Mato-virgem e capoeiras,
Os currais e pontilhões.
Acamam-se os capinzais,
Moitas grandes de macegas,
Rangem-se os ressequidos carrascais,
Estalam-se os raquíticos cerrados,
Choram os verdes das roças de plantação,
Afugentam-se levas de animais,
Casas de passarinho rolam pelo chão,
Até cobras pisoteadas...
Envereda o rebanho em atropelo
Na direção das orlas do rio Grande,
Que os limites assenta com Minas Gerais,
Voltando para o pouso de onde saíra.
Arroja-se nas águas do agitado rio,
Nada o gado ao sabor das correntezas,
Serpenteia-se em sinuosa diagonal,
Descendo assim como se pesca de rodada,
Segue o rumo das margens do outro lado.
Como o piloto que do barco perde a rota,
Permanecem agora os destemidos peões,
Mas aparece o capataz na liderança,
Dirigem-se para o antigo e velho porto,
Numa balsa conseguem travessia.
Não podendo seguir mesmo destino,
Risquei de leve a mula nas esporas,
Convoquei no assobio o Leão e a Pantera,
Ajustei bem as traias e o cano das duas botas,
Do rio conhecia as manhas e os segredos,
E juntos adentramos nas suas águas...
Por leis da natureza sempre governados,
Os animais já nascem sabendo nadar,
Mas eu, simples criatura racional,
Idêntico a outro ser que é ser humano,
Marcado pelo fogo de artes e talentos,
Carrego o fardo do constante tirocínio,
No aprendizado de outras técnicas e ciências,
As coisas que ao nascer eu não sabia...
Mais ou menos iguais nestes embates,
Cada qual sua tarefa desempenha.
Nas laterais exercem os cães o controle,
A manada para outra margem empurrando,
Ruana, nos movimentos de vaivém,
Contrabalança a falta da peonada.
Meu berrante pranteava seus lamentos,
Guiava acalmando os rudes animais,
Ao evocar os plangentes aboios dos vaqueiros...
Nas tranquilas paisagens daqueles rincões,
Vencida a trabalhosa e árdua jornada,
Acomodou-se o gado numa várzea,
Do verde jaraguá toda forrada.
O condutor e os peões se aproximando,
Com outros camaradas para ajuda,
Cantando juntos seus aboios dolentes,
Berrantes acordavam ecos nas quebradas,
E assim comboiavam o rebanho ao mangueirão.
Na recontagem de cabeça por cabeça,
No desfile através de uma porteira,
Anotou o sempre atento capataz
A falta de uma rês, uma única arribada...
Concluíram que era aquele boi pintado,
O culatreiro cego das esquerdas,
Que nas viagens pendia para este lado.
Apesar dos vestígios e procura,
Durante muitos dias e até por noite escura,
Este boi nunca mais por ninguém foi encontrado...
Depois de duas marchas exaustivas,
Com saídas ao romper da madrugada,
Vai chegando, afinal, a grande boiada,
Aos verdes prados da fazenda Santa Fé,
Do conhecido Coronel Barreto,
Logo adiante do Sítio do Chão Preto.
Feliz, e riso franco o fazendeiro,
Ao ver e recontar aqueles bois,
Dezoito ou vinte arrobas estimados,
Mandou preparar festa a noite inteira.
Cateretês e violas são improvisados,
Rodeios e desafios de moda sertaneja,
Muita cerveja e a velha pinga com limão.
Reza cantada ao pé do rústico cruzeiro,
Rezaram juntos aquela mesma oração.
Nasce assim, ao calor de nossa terra,
A festa alegre do Peão,
Do Capataz, do Boiadeiro...
Fonte: O ESTOURO DA BOIADA, Rio de Janeiro: Razão Cultural Editora, 1998, p. 29 a 34.
NOTAS EXPLICATIVAS
¹ BARBOSA, José: ODES E POEMAS, Rio de Janeiro: State-of-the-Art Editora Ltda., 1992, 49 p., ilustrações de Márcia Süssekind. Cf. análise literária do livro in http://bragamusician.blogspot.com.br/2015/12/odes-e-poemas-de-elevado-misticismo.html
² BARBOSA, José: O ESTOURO DA BOIADA, Razão Cultural Editora, Rio de Janeiro, 1998, ilustrações de Marta Süssekind, 36 p. Cf. ampla discussão desse opúsculo in http://bragamusician.blogspot.com.br/2015/12/o-estouro-da-boiada-por-deputado-jose.html
³ Localizei esse trabalho num arquivo de meu computador sem anotação da data de sua produção. Presumo ter escrito essas linhas para o Jornal de Brasília, mas infelizmente não consegui localizar a edição em que foram publicadas (se é que o foram). Seguramente isso deve ter acontecido logo após a publicação do livro "O Estouro da Boiada", em outubro de 1998 ou pouco depois.
6 comentários:
Dando continuidade às minhas publicações sobre o poeta José Barbosa, aqui apresento uma síntese objetiva da obra poética de José Barbosa.
A matéria em questão que escrevi para ser publicada a respeito da obra poética de José Barbosa, que localizei por acaso num arquivo PDF em meu computador, infelizmente não trouxe informação sobre a data de sua produção nem a da sua publicação. O que posso afirmar com certeza é que essa minha apreciação literária deve ter sido produzida logo após o lançamento de "O Estouro da Boiada", de José Barbosa, em outubro de 1998 ou pouco depois, para ser publicada provavelmente no Jornal de Brasília. A minha decisão de publicá-la no Blog do Braga assim mesmo prende-se ao fato de considerá-la um resumo objetivo da obra poética do velho menestrel, que só nos seus últimos anos de vida sentiu-se tocado por Euterpe, a deusa mitológica da poesia lírica.
Sobre a biografia do saudoso poeta, remeto o leitor ao seu currículo na Internet, disponibilizado pela B&B Advocacia no link http://www.advogadoemportugal.com/dr-jose-barbosa.php
Um belo trabalho, amigo. Sempre existiram grandes talentos escondidos da crítica oficial. Abraço do Fernando Teixeira
Bom dia, amigo.
Obrigado pelo envio de suas matérias, o que muito nos enriquece no dia a dia.
Belíssimo o poema sobre o Estouro da Boiada, com completo domínio da linguagem poética. Não conhecia José Barbosa. Grato pelo presente: um prazer ler o Barbosa. Dangelo
Braga, é bom divulgar obras de autores como JOSÉ BARBOSA que em geral não repercutem, por n razões, na mídia!
Sucesso! M. CELSO
Parabéns!
Ruth
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