Por Francisco José dos Santos Braga
Euclides da Cunha em seu escritório |
É de lamentar que um autor canônico como Euclides (20/01/1866-15/8/1909), talvez o mais canônico da literatura brasileira, depois de um século de sua morte, tenha a sua obra poética editada apenas em 2009 (BERNUCCI, Leopoldo M. & HARDMAN, Francisco Foot (org.): Euclides da Cunha: poesia reunida, Editora UNESP, 2009, 496 p.).
Depois de uma década de pesquisas, realizadas, especialmente, nos papéis da Biblioteca Nacional, da Academia Brasileira de Letras e do Grêmio Euclides da Cunha, os dois organizadores do livro são responsáveis pelo estabelecimento de textos, introduções, notas e índices do referido livro. Do levantamento realizado nos vários acervos consultados puderam apurar um total de 133 poemas, que podem ser desmembrados da seguinte maneira: 78 pertencentes ao caderno manuscrito “Ondas”; 20 poemas dispersos e 12 postais, além de 15 variantes principais e 8 secundárias.
O caderno de poesias “Ondas” é a prova de que os primeiros textos de autoria comprovada de Euclides são poemas, e na sua forma atual contém 78 poemas, mais 12 notas. No caderno, também é possível encontrar uma série de cálculos e exercícios matemáticos que o futuro engenheiro praticava. Além do caderno de poesias produzidas por Euclides no fim da adolescência e durante 100 anos praticamente desconhecidas do público leitor, há ainda poemas que seu autor publicou em jornais e revistas, e os que também foram deixados em manuscritos guardados em diversos arquivos do País, inclusive em uma coleção particular.
De forma dispersa, foram encontrados mais 55 poemas, dos quais 15 têm formas variantes principais e 8 secundárias. Tais variantes mostram a persistência de Euclides em lapidar sua literatura e provam que sua poesia não era apenas de inspiração; antes, evidencia que ele era um poeta romântico que também lapidava suas obras. É fato conhecido que ele era obsessivo com “Os Sertões”, corrigindo as três primeiras edições e fazendo correções substanciais. Por meio das correções e variantes, é possível também acompanhar o processo de escritura dos poemas, a forma como decidia mudar as frases e o próprio vocabulário.
Após a conferência pronunciada no Itamarati em 19/08/1938 por Firmo Dutra, intitulada Euclydes da Cunha - Geógrafo e explorador, foi dada a palavra ao Ministro Osvaldo Aranha que iria presidir aos debates. Vou extrair apenas um pequeno trecho da longa exposição deste último:
Após a conferência pronunciada no Itamarati em 19/08/1938 por Firmo Dutra, intitulada Euclydes da Cunha - Geógrafo e explorador, foi dada a palavra ao Ministro Osvaldo Aranha que iria presidir aos debates. Vou extrair apenas um pequeno trecho da longa exposição deste último:
"(...) Publicados Os Sertões, Euclides da Cunha, que se encontra em Lorena, vem ao Rio, a convite dos editores ver o livro. Abre um volume. Nota vírgulas, crases, pontos e vírgulas intruzos. Impacienta-se. Suspende o lançamento da obra e vai para as oficinas, na rua do Lavradio, armado de canivete e borracha. Passa noite e dia raspando oitenta êrros em cada exemplar, numa edição de dois mil volumes! Não se detém aí. Tempos depois, em carta a Francisco Escobar, seu amigo, diz: "Chamaste-me a atenção para vários descuidos dos meus "Sertões"; fui lê-lo com mais cuidado — e fiquei apavorado! Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um êrro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente — Um horror! Quem sabe se isto não irá destruir todo o valor daquele pobre e estremecido livro? Manda-me daí algo a respeito. Imagina que lá encontrei à facão, à pranchadas, braço à braço, tempos à tempos, etc. etc. — Não te posso dizer como fiquei. Por fim, abrindo, ao acaso, depois do jantar uma página, — encontrei isto: — Não iludia à história..." Não te descrevo o que houve! Quer isto dizer que estou à mercê de quanto meninote erudito brune as esquinas; e passível de férula brutal dos terríveis gramatiqueiros que passam por aí os dias a remascar preposições e a disciplinar pronomes!"
Muitos anos depois escreve, de novo, ao amigo, referindo-se aos Sertões: "Hei de emendar isso tôda a minha vida"! Cada vez que relê o livro, encontra o que emendar. Emendas de estilo, certo, que não alteraram nunca o sentido das páginas. Preocupações de forma. No volume, que deixou para a edição definitiva, há duas mil e tantas emendas de estilo. Quando José Veríssimo lhe critica o emprêgo de têrmos técnicos, defende-se com veemência, dizendo que os vocábulos fornecidos pelas ciências eram os aristocratas da linguagem. Os elogios, que mais o comovem, são de natureza artística e literária. É com certa candura, por exemplo, que lê o artigo de Araripe Júnior sôbre Os Sertões. Em resposta aceita o título de escritor, não disfarçando o orgulho de recruta transmudado repentinamente em triunfar. Palavras suas. A frase do discurso de posse na Academia Brasileira — escritor por acidente — não passou de repto imposto pela modéstia que sempre macula os discursos do gênero. Firmo Dutra entende que Euclides da Cunha foi, sobretudo, engenheiro. Ora, a engenharia, sim constituiu-lhe acidente na vida. Pelo menos sempre a considerou assim. Tinha-lhe quase horror. Praticava-a como quem se vê condenado aos trabalhos rudes de estiva. É na sua correspondência que recolhemos provas constantes dos enfados que a profissão lhe decreta. (...)"
Não resta dúvida de que a poesia de Euclides está profundamente ligada ao romantismo. Entre os autores brasileiros que cita de forma obsessiva nas epígrafes de suas poesias estão Castro Alves, Fagundes Varella e Gonçalves Dias. O francês Victor Hugo também é uma referência obrigatória para ele (uma filiação que jamais abandonará ao longo da vida).
A rigor, os poemas do caderno “Ondas” foram escritos entre 1883 e 1884, quando Euclides tinha entre 17 e 18 anos, e não 14 anos de idade que ele próprio se dizia ter, evidenciando que os primeiros textos de autoria comprovada de Euclides são poemas. Provavelmente o fato de que não tenham sido publicados pelo autor tenha sido devido a seu severo juízo crítico em relação à própria obra. Vemos que no mesmo caderno há uma anotação em que ele indica ter apenas 14 anos (sic) e diz que esta é uma “observação fundamental para explicar a serie de absurdos que ha nestas paginas”.
Apesar dessa constatável autocrítica, Euclides nunca deixou de escrever poesia. Os poemas dispersos dele foram produzidos entre 1885, quando tinha 19 anos, até 1906.
Guilherme de Almeida Prado foi o primeiro a dizer que a estrutura de “Os Sertões” era eivada de poesia: o uso da poesia e de formas poéticas percorre toda a produção de Euclides. Recentemente, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos empreenderam a transcrição de trechos da obra euclidiana para montar 13 poemas... Os versos estavam lá em “Os Sertões”, cabendo-nos apenas percebê-los e montá-los, como o exemplo, a seguir:
DODECASSÍLABOS
Estala na mudez universal das coisas
estrídulo tropel de cascos sobre pedras
e naquela assonância ilhada no silêncio
o cataclismo irrompe arrebatadamente.
O doer infernal das folhas urticantes
corta a região maninha das caatingas
fazendo vacilar a marcha dos exércitos
sob uma irradiação de golpes e de tiros.
Por fim tudo se esgota e a situação não muda,
lembrando um bracejar imenso, de tortura,
em longo apelo triste, que parece um choro.
Num prodigalizar inútil de bravura
desaparecem sob as formações calcáreas
as linhas essenciais do crime e da loucura.
Em Euclides da Cunha ganha nova biografia, Manya Millen de O Globo entrevista Leopoldo M. Bernucci, professor da Universidade da Califórnia, autor de uma elogiada edição anotada de “Os Sertões” (Ateliê Editorial) e supervisor editorial da nova biografia de Euclides intitulada Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos, da autoria de Frederic Amory, professor da Universidade de São Francisco (Califórnia) falecido em 2009. Eis um trecho da entrevista de 17/08/2009, em que Bernucci fala da poética euclideana:
(...)
(...)
Manya Millen: O impacto de “Os sertões” nos meios literário e acadêmico eclipsou o que Euclides fez antes e depois. Existe uma produção mais “injustiçada”, sobre a qual deveria se falar mais? Ou acredita que o fundamental foi dito?
Bernucci: Penso que sua poesia ficou injustamente relegada durante muitos anos. Ele, que escreveu poemas desde a idade dos 17 anos, sem nunca ter deixado de cultivar esse gênero, foi também muito cauteloso com a divulgação de sua coletânea poética. Muitos de seus poemas nunca foram publicados e não porque a qualidade deixasse muito a desejar. Dos 133 poemas que conhecemos dele até hoje, um grande número ficou desconhecido de seus leitores. Esta lacuna acaba de ser preenchida por nós, eu e um colega, o professor Francisco Foot Hardman da Unicamp, que acabamos de preparar um volume, que está no prelo, de suas poesias intitulado “Euclides da Cunha: Poesia reunida” (Editora da Unesp). Tenho certeza que os leitores da poesia euclidiana se surpreenderão com a diversidade, desenvoltura e qualidade poética dessas peças, muitas delas excelentes e que nos ajudam a entender a trajetória intelectual do escritor. (...)
9 comentários:
Tenho o prazer de enviar-lhe poesias selecionadas de Euclides da Cunha, extraídas de seu caderno de poesias "Ondas", que ele preencheu (mas não publicou) em 1883 e 1884, quando tinha 17/18 anos, conforme publicou o jornal DOM CASMURRO, edição de maio de 1946, Ano X, nº 439-440, pp. 31-2, em fac simile. Os autógrafos são manuscritos pelo próprio Euclides e tirados diretamente do seu caderno "Ondas", datado de 1883. As poesias de Euclides foram transcritas no Blog de São João del-Rei, observando a grafia de época.
Com o propósito de esclarecer algumas questões que possam originar-se do artigo acima, produzi "Apontamentos sobre a poética de Euclides da Cunha", artigo que postei no Blog do Braga.
Além de escritor, o autor do clássico 'Os Sertões' foi engenheiro, militar, funcionário público, jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras e professor de Lógica do Colégio Pedro II. Com a vida marcada por tragédias, Euclides da Cunha é tido atualmente como um autor canônico das letras nacionais.
Braga,
Obrigado pelo documento valioso. Abraço. João Carlos Taveira
Ótimo!
Caro amigo Braga
Mais uma vez – e sempre! – quero felicitá-lo por suas preciosas pesquisas, como esta sobre Euclides da Cunha, este escritor multifacetado cujo conjunto de sua obra, de grande valor no âmbito nacional, continua a ser estudada até hoje no mundo acadêmico, embora decorridos mais de 100 anos de seu falecimento.
Muito obrigado pelo envio.
Do amigo Mario.
Sensacional! O Blog do Braga resgata um conteúdo histórico de valor inegável.
Sabemos que a TRAGÉDIA DA PIEDADE é muito comovente e até hoje inspira grandes discussões acerca dos relacionamentos...
Anna de Assis se dizia injustiçada, pois conhecia O HOMEM e a sociedade, o escritor.Sem entrar no mérito, reconhecemos a grandiosidade do escritor e agora o EUCLIDES POETA. Como é visto no Blog é surpreendente e rende grandes elogios.
Parabéns, historiador Francisco Braga, pela pérola literária!
Meu caro Francisco,
agradeço-lhe muito o presente desses poemas de Euclides, já reveladores do estilo incisivo, forte, quase áspero de quem viria a escrever Os Sertões. Bem-vindos, também, os comentários esclarecedores.
Bom trabalho!
Abraço de
Anderson
Dr. Franciso,
Paz, saúde e alegria!
Obrigada pelo envio das poesias do grande Euclídes da Cunha.
Abraços extensivos a Rute.
Merania
Obrigado, Francisco,
Seu blog cada vez melhor.
Sds.
Marcos Cotrim de Barcellos
Professor Braga!
Importantíssima a sua divulgação de algo que se torna até mesmo a revelação de um outro grande poeta ao quadro daqueles que tão bem representaram o final do século XIX para o XX no Brasil. Chama efetivamente a atenção de que seja o próprio Euclides da Cunha! Seu "viés" poético, como já foi observado, ilumina o estudo de sua monumental obra prima!
Parabéns!
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