quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O DRAMA DE "O SERTÃO"



Por Francisco José dos Santos Braga

Efígie de Fernand Jouteux (1866-1956), por autor desconhecido, 
provavelmente desenhada em Paris no 2º período francês (entre 1921-1925)





I.  INTRODUÇÃO



Revista ilustrada e literária, a Alterosa trazia notícias sobre acontecimentos diversos em todo o Estado de Minas Gerais; suas seções compunham-se de literatura — basicamente contos e assuntos como culinária, saúde, moda, beleza, rádio, cinema e novidades sobre Hollywood — e resultados de enquetes, pilhérias, aspectos da vida moderna, propagandas, entre outros temas. Tal conteúdo estava disposto numa variedade de seções que, apesar de não denotarem o foco do feminino na revista, traziam, de maneira implícita, o viés a este público. Era uma revista mensal editada pela Sociedade Editora Alterosa Ltda, em Minas Gerais, no período de 1939 a 1964. Alterosa foi fundada pelo jornalista Miranda e Castro e em 1962 foi comprada pelo então Governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto.
Nos 25 anos em que circulou, os discursos presentes na revista sofreram transformação, à medida que ocorreu uma mudança no cenário das famílias mineiras e é possível observar, na representação presente na revista e nos enquadramentos que se podem observar sobre esta família, principalmente pelos conteúdos e narrativas, a inserção de Alterosa em um contexto de transformação editorial em sintonia com um cenário de transformação mundial, que redimensiona o consumo e o entretenimento. Na Alterosa podem ser sentidos os ecos do american-way-of-life e sua apropriação à brasileira.



II.  O DRAMA DE "O SERTÃO", matéria de ALTEROSA (edição 203, Ano XVI, 1º de fevereiro de 1955)


Janet Leigh, da M.G.M., numa tricromia do gravador Waldemar Turner






























1ª página: índice de Alterosa























Com texto de Vinicius de Carvalho e fotos de José Nicolau assim começa a matéria cobrindo a  estreia da ópera "O SERTÃO" do compositor francês Fernand Jouteux:

"4 ATOS EM CENA E 40 ANOS NOS BASTIDORES
Um homem que fêz música na caatinga e passou fome em Belo Horizonte — Fernand Jouteux, gênio que veio da França para sofrer no Brasil — Estréia mundial de uma ópera a princípio rejeitada e depois consagrada.

BELO HORIZONTE teve, há pouco, a honra de ser palco da estreia mundial da ópera "O Sertão", considerada por muitos a mais "indígena" das obras musicais, não obstante composta por um alienígena — por um francês de nascimento, mas naturalizado brasileiro pelo coração e, sobretudo, pelo sofrimento. Essa honra, porém, só foi aceita — quase imposta mesmo por uma plêiade de admiradores de Fernand Jouteux — depois de várias metrópoles a terem rejeitado como perfeitamente supérflua, senão prejudicial. A própria Capital Mineira só se inteirou de sua sorte (é bem êste o têrmo), quando as palmas estrugiram na plateia do Teatro Francisco Nunes e a crítica se levantou, unânime, para consagrar, no Brasil, o mestre já mundialmente consagrado.


Imagens (da esq. p/ dir. e de cima p/ baixo):
1) Final de "Dança Sagrada dos Cairús" (III ato — "A Festa da Vitória")
Para visão de conjunto: 1ª e 2ª páginas com revista aberta


Para melhor visualização: 1ª página



































2) O maestro Hostílio Soares, o tenor Assis Pacheco, do Municipal do Rio, e Fernand Jouteux, que, aos 89 anos de idade, viu, finalmente, realizado o seu sonho.

Para melhor visualização: 2ª página

3) Lady Francisco, num dos números coreográficos dirigidos por Lucien Garret ("Dança Sagrada dos Cairús"), foi um dos pontos altos de "O Sertão". Ao fundo, um dos cenários de Ari Caetano. Apesar de todos os atropelos decorrentes de um ensaio apressado, os bailados agradaram.


Imagens (da esq. p/ dir. e de cima p/ baixo):
1) Frei João (Evandro Vidigal), numa cena do III ato, quando transmite a Antônio Conselheiro uma mensagem do Arcebispo.
* Edson Macedo (Antônio Conselheiro), o soprano Lia Salgado (Cília, esposa de Antônio), Valter Cardoso (maestro de côro), Assis Pacheco (Vila Nova) e o maestro Hostílio Soares.

Para visão de conjunto: 3ª e 4ª páginas com revista aberta















Para melhor visualização: 3ª página
























2) A procissão, cena do II ato, no Monte Santo, junto à montanha rochosa do mesmo nome, no sertão da Bahia.

Para melhor visualização: 4ª página

3) Antônio Conselheiro, o "Filho do Homem", abençoa sertanejos e jagunços. Esta é uma das bonitas cenas do III ato.
4) O contralto Jupira Raposo Neto (D. Chiquinha) e o barítono Edson Macedo (Antônio Conselheiro).

Conclusão
 Identificação no acervo na F-Cerem: JOU.04.003




Fernand Jouteux nasceu, há 89 anos, na cidade francesa de Chinon (Indre-et-Loire) e estudou no Conservatório de Paris, onde foi contemporâneo de várias celebridades e aluno predileto de Massenet, de quem, por diversas vêzes, mereceu palavras de incentivo e de admiração.
Há cerca de 50 anos, o compositor decidiu vir para o Brasil, trocando, assim, a glória de sua terra natal, onde já alcançara inúmeros triunfos, pelos percalços de um país inóspito para com a arte e que, em breve, o encheria de atribulações. Percorreu o Pará, o Amazonas, o agreste nordestino, buscando novas inspirações para os poemas sinfônicos que sonhava compor. Conviveu com pessoas que haviam conhecido, de perto, Antônio Conselheiro e, tornando-se íntimo das lendas e tradições que também inspiraram Euclides da Cunha, ei-lo embevecido com a epopéia de Canudos.
Em Pernambuco, escreveu a "Sinfonia Brasileira", os "Cantos Brasileiros" e, após, a grande ópera "O Sertão" — obra-prima de singular vigor e de pura brasilidade. Vários trechos dessas obras, bem como o seu Oratório de São Martinho (Bellator Domini) e a ópera "Klytis" fizeram com que tôda a França mais uma vez aclamasse o seu nome. Aliás, seus "Cantos Brasileiros" alcançaram lauréis do Salon des Musiciens  Français, e "Le Retour du Marin", da Société des Compositeurs, de Paris. É verdade que, também no Brasil, Jouteux foi aplaudido em concertos, mas, até há pouco, ou sejam, quarenta anos após a sua composição, ainda não havia logrado encenar a ópera "O Sertão".
Primeiramente, o maestro tentou o Rio, São Paulo e outras capitais. Foi, todavia, incompreendido, escarnecido e até espezinhado. São inúmeras as suas queixas, inclusive do compositor Villa-Lobos. Cercearam-lhe os movimentos, desprezaram os seus apelos e perseguiram-no incessantemente, procurando evitar que êle realizasse o seu sonho.
Algumas sociedades se organizaram para ajudá-lo, mas os fados sempre se mostraram contrários, fazendo com que, à última hora, surgisse sempre um empecilho intransponível.
Depois de uma autêntica via-crucis, o venerando ancião resolveu, finalmente, vir para Belo Horizonte, o que se deu há cinco anos, e aqui continuaram os seus sofrimentos. Por incrível que pareça, o gênio franco-brasileiro desmaiou algumas vêzes... de fome! Na verdade, ficou por largo tempo desamparado, senão inclusive, ao que se diz, atacado de escorbuto, dada a sua grande avitaminose. Pode parecer espantoso que, em pleno século XX, ainda exista uma doença como esta e que ela ataque precisamente uma pessoa da envergadura intelectual e artística do grande maestro! Mas o fato é que Fernand Jouteux ficou, entre Cila e Caribdes, ouvindo negativas, enfrentando desculpas esfarrapadas, sendo vítima de imposições, mas sempre perseverante na luta pelo seu ideal. Não foram poucos os que a êle se uniram para, logo em seguida, vendo que não levariam vantagens monetárias ou que não se salientariam como desejavam, o deixarem de lado, buscando tudo fazer para que êle nada conseguisse.
Finalmente, depois de 40 anos de ingentes esforços e de derrotas sem conta, o maestro Jouteux conseguiu selecionar um grupo de abnegados admiradores, a cuja testa se encontra o cel. Egídio Benício de Abreu, o qual pôs à sua disposição a Orquestra da Polícia Militar e contratou o maestro Hostílio Soares para a preparação dos coros e direção do referido conjunto. Foi ainda o mencionado coronel que se dirigiu ao governador Juscelino Kubitschek, conseguindo que o mesmo doasse cem mil cruzeiros para a montagem do hino a Canudos.
E, na noite de 29 de novembro, o pano do Francisco Nunes se levantou para a estréia mundial de "O Sertão", fazendo com que Fernand Jouteux vivesse o dia mais feliz de sua vida, conforme êle próprio declarou.
Dias antes, por ocasião de um dos ensaios, era tão intensa a sua alegria, que uma das pessoas presentes lhe disse: "Maestro, estamos com mêdo de que o senhor morra." Mas a resposta veio imediata: "Depois de 40 anos de sofrimentos, posso muito bem aguentar um dia de satisfação."

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"O Sertão", que foi cantado em português, teve o barítono Edson Macedo no papel de Antônio Conselheiro, a principal figura do drama; o soprano Lia Salgado fêz Cília, espôsa de Antônio; Assis Pacheco atuou no papel de Vila Nova, chefe dos jagunços; Patrício, irmão do Conselheiro, foi encarnado por Evandro Vidigal; e D. Chiquinha, mãe de Antônio, foi interpretada por D. Jupira Raposo Neto. Vários outros contribuíram grandemente para o grande sucesso de "O Sertão", cumprindo, no entanto, destacar a atuação do maestro Hostílio Soares, que foi auxiliado pelo professor Valter Cardoso, tendo êste último feito também as vêzes de "regisseur". A parte coreográfica teve como responsável Lucien Garret e seu corpo de baile.
Não somos críticos de arte, nem temos tal veleidade. Pelo indiscutível sucesso de "O Sertão", todavia, falou e continua falando a crítica autorizada de nossa imprensa, ressaltando, sobretudo, o "Côro dos Peregrinos", a "Sarabanda dos Punhais", a "Dança Sagrada dos Cairús", o "Cateretê" e o "Baiano" como páginas das mais belas que, até agora, se escreveram sôbre coisas do Brasil.
De fato, usando de frases de duas cartas de Jules Massenet a Fernand Jouteux, todos aquêles que conhecem a vida do notável autor podem dizer-lhe: "Você é verdadeiramente único e corajoso. Sua grande obra merecia êste acolhimento..."


Fonte: O DRAMA DE "O SERTÃO", publicado pela revista ALTEROSA, edição 203, Ano XVI, 1º de fevereiro de 1955, p. 42-45 e 95 (conclusão).



 
III. AGRADECIMENTO 



À minha esposa Rute Pardini Braga pelas fotos que formatou e editou para os fins desta matéria.
À F-CEREM, na pessoa de Márcio Saldanha, Secretário do Programa de Pós-Graduação em Música da UFSJ, pela boa acolhida para a realização desta pesquisa no acervo francês do compositor Fernand Jouteux.






5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Principalmente ao leitor que pela primeira vez toma conhecimento do compositor francês que viveu entre nós de 1937 a 1952, FERNAND JOUTEUX(1866-1956), tenho a informar que já é o 8º post em que o Blog do Braga homenageia esse Maestro, discípulo predileto de Jules Massenet, este último, autor das óperas Manon e Thaïs, entre muitas outras.
Atualmente a rica coleção francesa do compositor Jouteux se encontra disponível aos pesquisadores na Fundação CEREM-Centro de Referência Musicológica "José Maria Neves", da UFSJ de São João del-Rei, a qual participa ativamente do esforço nacional de preservação da memória cultural através da produção, divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos relacionados às atividades musicais. Foi exatamente na F-CEREM que fui buscar elementos para a produção da presente matéria.
Aqui reproduzo um artigo que saiu na revista ALTEROSA, em 1º de fevereiro de 1955, sobre a estreia mundial da ópera "O SERTÃO" sobre a epopeia de Canudos, no Teatro Francisco Nunes, em Belo Horizonte, com a participação da Orquestra da Polícia Militar de Minas Gerais, sob a regência de Hostílio Soares, e de grande elenco constituído de renomados cantores solistas, coro e corpo de baile.
Essa estreia de "O SERTÃO" se deu em 29 de novembro de 1954 com a presença do compositor e de entusiástica plateia que aplaudiu essa histórica representação da ópera em primeira mão.

https://bragamusician.blogspot.com/2019/08/o-drama-de-o-sertao.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

ISSO É CULTURA!

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Bom dia
Francisco Braga.
Muito obrigado
Bom final de semana.
Abraço.
Diamantino Bártolo/Portugal

Paulo Roberto Sousa Lima (escritor, gestor cultural e presidente eleito do IHG de São João del-Rei para o triênio 2018-2020) disse...

Obrigado pelo envio. Informo que a Diretoria incluiu a ideia da apresentação comentada da ópera "O Sertão" no rol de possíveis eventos e atividades comemorativas do cinquentenário do IHG-SJDR, no próximo ano de 2020.
Receba meu fraternal abraço,
Paulo Sousa Lima

Jota Dangelo (diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural, cronista e escritor) disse...

Belas recordações da ópera de Jouteux. Na época daquela estreia eu fazia o 5º ano de Medicina em Belo Horizonte, e fui ver o espetáculo. Não tenho mais lembrança do que foi a ópera. Só me lembro de que a montagem era um pouco primária em figurinos e cenários, embora cantores, bailarinos, coral e orquestra fossem de boa qualidade. Lady Francisco era minha amiga: estava começando uma carreira na TV Itacolomi. É bom recordar estas passagens da vida. Seu artigo levou-me aos velhos tempos. Dangelo