Por Francisco José dos Santos Braga
Dedico este trabalho literário a meu amigo Lúcio Flávio Baioneta, autor do livro "De banqueiro a carvoeiro" e de vários artigos publicados no Blog de São João del-Rei, que me incentivou a retomar o estudo da língua francesa e a interessar-me pela obra monumental de Eduardo Canabrava Barreiros, especialmente pelo "Semicírculo (Recordações quase memórias)"
Retrato de Romain Gary (ca. 1970) |
I. NASCIMENTO DE ROMAIN GARY NO CENTRO DOS PERIGOS
Abaixo transcrevo, com pequenos acréscimos de minha responsabilidade, a minha tradução da biografia do romancista Romain Gary, considerado Compagnon de la Libération (Companheiro da Liberação), conforme consta dos arquivos da Ordem da Liberação:
Roman Kacew (que ficou famoso com o pseudônimo ROMAIN GARY) nasceu em 8 de maio de 1914 na comunidade judaica de Wilnius na Lituânia, então sob domínio russo. Seu pai, Arieh Kacew, era comerciante de peles e sua mãe, Mina Kacew, modista ¹.
Em 1915, enquanto seu pai era convocado pelo exército russo ², Roman era deportado com sua mãe para a Rússia central como um judeu dos países bálticos que os russos suspeitavam de espionagem para benefício dos alemães.
Em 1921, com a idade de sete anos, volta para Wilno (que se tornara território polonês desde a guerra russo-polonesa de 1920), onde vive até 1925.
Seus pais se separam e, com sua mãe, ele se muda para Varsóvia, onde frequenta a escola polonesa e tem aulas particulares de francês por dois anos.
Em agosto de 1928, Roman e sua mãe emigram para a França e se estabelecem em Nice. Roman continua seus estudos secundários no colégio antes de começar a estudar Direito na faculdade de Aix-en-Provence e depois em Paris, onde conclui o terceiro ano do curso.
Naturalizado francês em 1935, é convocado para o serviço militar para servir na Força Aérea. Incorporado em Salon-de-Provence em novembro de 1938, ele foi um estudante observador na Escola do Ar de Avord. Qualificado metralhador em 1º de abril de 1939, entre trezentos estudantes, foi o único, por causa de sua origem estrangeira, a não ser nomeado oficial.
Em junho de 1940, o sargento Kacew estava em Bordeaux-Mérignac e decidiu recusar a derrota. Ele escapa da França de avião, pousa em Argel, encontrou a escola aérea fechada em Meknès e, antes da entrada em vigor do armistício no Norte da África, parte para Casablanca onde encontra um cargueiro britânico que o leva para Gibraltar; duas semanas mais tarde, em 22 de julho de 1940, ele desembarca em Glasgow.
Desde sua chegada, ele pede para servir em uma unidade de combate e é promovido ao posto de ajudante em setembro de 1940. Nomeado para a Esquadrilha de Bombardeio Topic, ele troca a Inglaterra por Takoradi na Costa do Ouro em outubro de 1940. Ele escolhe para si mesmo em seguida, o pseudônimo de Romain Gary de Kacew. Mas Gary — que significa "Queima!" em russo ³ — em breve continuará sendo seu único sobrenome. Topic adere às Forças Aéreas Equatoriais da França Livre e passa a ser, em 24 de dezembro de 1940, com a esquadrilha "Ameaça", Grupo Reservado de Bombardeio nº 1 (GRB1), sob as ordens do Comandante Jean Astier de Villatte.
Com sua unidade, Romain Gary serve na Líbia, em Koufra especialmente em fevereiro de 1941, depois na Abissínia antes de ingressar na Síria em agosto de 1941. Nesse ínterim, em abril de 1941, ele foi certificado como observador de aviões e nomeado segundo-tenente. Tendo contraído tifo e quase morrido, ele permanece no hospital por seis meses e então se recupera de dezembro de 1941 a junho de 1942.
Restabelecido, ele se torna um oficial de ligação com o Estado-maior das FAFL do Oriente Médio, antes de ingressar, em agosto de 1942, na esquadrilha Nancy do Grupo de Bombardeio Lorraine.
Tenente promovido em dezembro de 1942, ele é levado de volta com sua unidade por mar à Grã-Bretanha, onde desembarca em janeiro de 1943 para servir no teatro de operações ocidental. O grupo é reequipado e retreinado nos centros de treinamento da RAF. A partir de outubro de 1943, o bombardeio de Lorraine é dirigido principalmente contra os sítios de V1; os Bostons que agora equipam o Lorraine voam juntos em grupos de seis, em baixa altitude, acompanhados por Spitfires de proteção. É nessas condições que o tenente observador Gary se destaca em 25 de janeiro de 1944 quando, líder de uma formação de seis aviões, é ferido por um estilhaço de granada ao mesmo tempo que seu companheiro de equipe piloto Arnaud Langer é gravemente danificado nos olhos. Apesar de sua lesão, ele orienta seu companheiro de equipe e toda a sua formação com domínio suficiente para realizar um bombardeio muito preciso e trazer a esquadrilha de volta à base.
Temporariamente incapaz para o combate, o tenente Gary foi designado para o Estado-maior das Forças Aéreas Francesas em Londres a partir de maio de 1944. Capitão em março de 1945, ele executou na Frente Ocidental mais de 25 missões ofensivas, totalizando mais de 65 horas de voo de guerra.
Após sua desmobilização em dezembro de 1945, ele ingressa na carreira diplomática ao mesmo tempo em que publica seu primeiro romance: Educação Europeia. Secretário de embaixada, trabalha na Bulgária e na Suíça.
Em 1952, foi secretário da Delegação Francesa nas Nações Unidas em Nova York, depois em Londres em 1955.
Em 1956, foi nomeado Cônsul Geral da França em Los Angeles e recebeu o Prêmio Goncourt pelo romance As raízes do céu.
Em 1967, após alguns anos de licença para escrever e dirigir dois filmes, ele ocupou o cargo de gestor de projetos no Ministério da Informação por dezoito meses.
Em 1975, ele se torna o único escritor a receber duplamente o Prêmio Goncourt concedido naquele ano a Émile Ajar ⁴ (Ajar que significa “brasa” em russo) por A vida pela frente ⁵. Essa mistificação literária não foi conhecida até o suicídio de Romain Gary, que deu fim à sua vida em 2 de dezembro de 1980. ⁶
Foi agraciado com os seguintes títulos honoríficos, condecorações e medalhas por seus feitos militares:
• Comandante da Legião de Honra
• Companheiro da Liberação por decreto de 20 de novembro de 1944
• Cruz de Guerra 39/45 (2 citações)
• Medalha Colonial com grampo “Koufra-Erythrée”
• Medalha dos Feridos
II. A REENCARNAÇÃO PELA ESCRITA
[LEMONNIER, 2015, p. 43-53], no artigo intitulado “Do amanhecer até à noite. Romain Gary ou a reencarnação pela escrita”, examina a ideia de suicídio sempre presente em Romain Gary, tanto na sua obra quanto na sua vida. Quando ele parou de escrever, pôs fim à sua vida.
Ela se propõe a estudar a ligação entre a escrita e sua função.
Na introdução do seu artigo, Lemonnier afirma que o próprio Gary, em seu livro A noite será calma, atribui à escrita o objetivo de permitir que esse autor se reencarne, o que pode ser observado no uso frequente de pseudônimos, o último dos quais foi Émile Ajar.
Sabendo que ele se suicidou, interessa indagar quais foram os motivos que o levaram a esse gesto fatal? Por que não funcionou na escrita aquela chama que ainda muito jovem ele tinha achado e que lhe permitia renascer sem cessar? Se essa chama se apagou, cabe indagar: Por quê?
À luz da psicologia, Lemonnier pretende oferecer sua resposta a essa questão, entendendo que a obra de Gary apresenta um terreno muito fértil para aplicações do conhecimento da Psicologia, abordando os seguintes temas expostos em Promessa ao Amanhecer:
• Um futuro promissor
• O casal mãe/filho
• Uma mãe profeta
• A escrita contra a loucura
• O mundo imaginário de Gary
• O desvio
Devo mencionar que apreciei a forma como ela subdividiu o conteúdo do livro através de tópicos sugestivos. Ela, por sua vez, colheu informações do livro “Romain Gary, o camaleão”, por Myriam Anissimov.
Portanto, vou apresentar alguns elementos colhidos diretamente desse artigo de Lemonnier, onde houver sintonia com o assunto que estudamos. Antes, porém, de verificar os elementos que a autora menciona, é fundamental mencionar o que ela omite. A autora evita mencionar ou analisar um trecho de uma crítica constante do capítulo X de Promessa ao Amanhecer que Gary desfere à Psicanálise e seus praticantes, sem reservas e até com certa agressividade, questionando a sua cientificidade, bem como os seus benefícios popularmente preconizados.
Vejamos em que situação essa divergência ocorre na sua obra.
Ora, a obra de Romain Gary é frequentemente estudada na psicanálise por conter explicitamente referências freudianas. Para essa tendência de tentar explicar tudo através da psicanálise (o famoso “Freud explica”), parece que ele tem a resposta pronta. Ele zomba dessas teorias, em particular do famoso complexo de Édipo, explicando que ele nunca conheceu nada além de sentimentos platônicos e afetuosos por sua mãe. Assim, Gary revida qualquer transgressão da ordem natural e social em sua relação com sua mãe:
“A psicanálise hoje assume, como todas nossas ideias, uma forma totalitária aberrante; ela busca nos prender nas algemas de suas próprias perversões. Ela ocupou o terreno deixado livre por superstições, esconde-se habilmente num jargão semântico que fabrica seus próprios elementos de análise e atrai clientes por meio de intimidação e chantagem psíquicas, um pouco como aqueles gângsteres americanos que te impõem sua proteção. Portanto, de bom grado deixo isso para os charlatães e os loucos que nos governam em tantas áreas o trabalho de explicar meu sentimento por minha mãe, por algum exagero patológico: dado que a liberdade, a fraternidade e as mais nobres inspirações do homem estão em suas mãos, não vejo porque a simplicidade do amor filial não se deformaria em seus cérebros doentios, além disso.” ⁷
Feita essa ressalva, continuemos com os tópicos da análise de Lemonnier para o livro de Gary, acompanhados de trechos de sua análise psicológica, em minha apresentação, tradução e seleção de trechos.
UM FUTURO PROMISSOR
Romain Gary foi atraído pela escrita desde cedo, um tema que ele aborda desde a abertura de Promessa ao Amanhecer (1960), que escreveu aos 44 anos. Foi aos 12 anos que ele situou essa "necessidade obscura e confusa, mas imperiosa" de escrever (...), mostrando-se mais ocupado em encontrar seu pseudônimo do que em escrever livros.
“A ideia de que aquelas horas de trabalho poderiam ter sido mais proveitosamente gastas no desenvolvimento das obras-primas em questão nunca nos ocorreu.”
O que é este “nós” por trás desse tom enfático e zombeteiro? É ele mesmo compartilhando seus sonhos ambiciosos com Mina Kacew, sua mãe, que é indiscutivelmente o personagem central na sua vida e no livro Promessa ao Amanhecer, bem como no filme homônimo.
O CASAL MÃE/FILHO
Gary também analisa a complexidade da relação entre ele e sua mãe, que ele resume sob o signo da promessa.
“Promessa da mãe aos filhos (um futuro brilhante e radiante, conquistas, sucessos, amor incondicional...), à qual responde tacitamente o filho à mãe, com a promessa de não decepcioná-la e de corresponder também às suas esperanças, por mais loucas que sejam.”
Outra passagem do livro, quando já residia em Nice, fala da realidade desse liame com sua mãe, tecido de promessas que iam constituir a trama de sua vida:
“(...) Eu pensava na promessa que tinha feito, ao amanhecer de minha vida, de lhe fazer justiça, […] depois de ter disputado vitoriosamente a posse do mundo ⁸ com aqueles cujo poder e crueldade tinha tão bem aprendido a conhecer, desde meus primeiros passos […] e devolver a terra àqueles que a habitam com sua coragem e seu amor.”
Noutra passagem do livro, Gary surpreende sua mãe se privando de alimentação por ele. Imediatamente após essa descoberta, tomado de vergonha e de impotência, correu para se jogar sob um trem. Eis que foi retido por “uma resolução feroz de endireitar o mundo e colocá-lo um dia aos pés de minha mãe, […] mordeu meu coração com uma queimação cujo fogo meu sangue carregou até o fim.”
A imagem banal da queimação e do fogo não é metáfora inútil para o escritor, quando se sabe que o sobrenome “Gary” que ele escolheu e obteve oficialmente, significa em russo “queima!” que ressoa como um imperativo de prazer.
É ainda a mola da vergonha e da impotência a salvar sua mãe da injustiça que faz de novo surgir a tentação de se matar. Ele a retoma numa outra lembrança de infância, em que sua mãe, acusada de furto por suas vizinhas, foi o objeto da chacota de suas acusadoras.
Gary nunca relativizou, em seus romances ou entrevistas, o papel determinante que sua mãe desempenhou em sua vida, fazendo dela, por sua vez, “profetiza de seu futuro”, seu “centro de gravidade”, sua “testemunha interior”, sua voz alucinante.
É, de fato, a aposta de Promessa ao Amanhecer: mostrar que tudo, absolutamente tudo, vem a ele de sua mãe e somente dela, e que ele não teve outra escolha senão fazer-se executor de sua lei.
UMA MÃE PROFETA
“Ela sabia”, assim resume [GARY, La Promesse de l'aube, 52-3] o poder profético de sua mãe. Sabia qual seria o destino de seu filho: “Ele será embaixador da França, cavaleiro da Legião de honra, grande autor dramático, Ibsen, Gabriele D’Annunzio!”
Gary escreve a profecia maternal quando já era Cônsul da França, condecorado com a Legião de honra, exceto Ibsen e D’Annunzio, mas não é por falta de tentativa, desculpa-se ele.
Esse processo ficcional, essa “manipulação temporal” em a profecia é enunciada no après-coup ⁹ de sua realização, visa a acentuar o estado de submissão do escritor aos ditos de sua mãe, que não lhe deixava outra escolha.
“De mim sabia que estava prometido a píncaros vertiginosos, dos quais faria chover sobre minha mãe meus louros, como reparação. Pois eu sempre soube que não tinha outra missão; que eu existia, de certa forma, apenas por procuração”, “eu era seu happy end. Eu sempre me vi como vitória dela.”
Happy end? Claro que não. Conforme [GARY, ibid., 38], o amor maternal pode provocar efeitos desastrosos:
“Com o amor maternal, a vida lhe faz uma promessa ao amanhecer que nunca cumpre. Você é então forçado a comer frio até o fim da vida. Depois disso, toda vez que uma mulher o abraça, são só condolências. Sempre voltamos para gritar sobre o túmulo de nossa mãe como um cachorro abandonado. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.”
Este dever de reparação, mesmo até à morte, se necessário, é narrado em um episódio em que, comunicando à sua mãe, sua confusão e silêncio diante de seus colegas de classe que a chamavam de cortesã. Antes de abandonar a Polônia e ir prosseguir seus estudos na França, sua mãe o fez sentar-se diante dela:
“Me escuta bem. A próxima vez que insultarem tua mãe na tua frente (sem uma reação de tua parte), a próxima vez, prefiro que te tragam para casa em macas. Entendes? (...) Prefiro que te tragam para casa sangrando, entendes? Mesmo se não te restar nenhum osso intacto, me entendes?”
“Sem isso não vale a pena partir... Não vale a pena ir tão longe.”
“Lembra o que te digo. A partir de agora, tu vais me defender. Não me importa o que te farão com os punhos deles. É com o descanso que dói. Tu serás morto, se necessário.”
A ESCRITA CONTRA A LOUCURA
Escrever para Gary é uma questão de sobrevida, conforme confessa em L’affaire homme, outro livro de Gary:
“Eu sou doente de nascença. É preciso que eu entregue minha tripa quente; é auto-terapia. Eu não posso parar de escrever. É um fenômeno de compensação, senão eu fico doente, picado.”
Ou seja, segundo ele, ou escreve ou fica louco. De fato, ele foi um autor particularmente prolífico, escrevendo às vezes dois romances por ano, entre 1944, ano de seu nascimento literário com Educação Europeia, e 1979.
Conseguiu o sucesso desde seu primeiro livro, recebeu o prêmio Goncourt com seu romance As Raízes do Céu em 1956 e quando o mundo literário se afastou dele, ele se reencarnou no pseudônimo Émile Ajar com um sucesso renovado e um segundo prêmio Goncourt com A Vida pela frente (1975)...
Essa necessidade imperiosa de escrever senão de tornar-se picado no mundo que [GARY, ibid., 160] qualificava de “invasivo, esmagador, intolerável, insuficiente, inadaptado, mutilado” consistia em “se refugiar num mundo imaginário e ali viver, através dos personagens que eu inventava, uma vida plena de sentido, de justiça e de compaixão.”
O MUNDO IMAGINÁRIO DE GARY
Sua identidade histórica é: criança judia, russa, imigrada, refugiada em toda parte, da qual não queria ficar prisioneiro. Não querendo que seu projeto literário ficasse preso a essa “inaceitável limitação”, ele aspirava sair do Reino do Eu, por todos os seus poros, isto é, por todos seus personagens. A escrita devia ser um ato de travessia de fronteiras desta limitação: “livrar-se de si mesmo” é continuamente reafirmado por Gary como sendo a perspectiva ética de sua obra.
Cabe perguntar se Gary conseguiu sair da claustrofobia da sua identidade histórica e subjetiva, posto que suas personagens se submetem a fenômenos de introjeção do escritor e aparecem muitas vezes como o reflexo de sua identidade histórica, até mesmo como anunciadoras de seu destino (suicídio, muito presente nas suas obras, desde os seus primeiros romances), sob a forma de vociferações e alucinações que o povoam.
Foi no contexto de desaparecimento literário progressivo — o que ameaça todo o edifício de sua missão salvífica — que ele inventou em 1974 o pseudônimo Émile Ajar, uma nova máscara mas que guarda um parentesco com Gary, já que Ajar significa “brasa” em russo. Essa estratégia tem a ver com a ligação do nome de Gary a valores demodês: símbolo da Resistência, diplomata, fiel ao heroísmo gaulês. Considerou que o nome Gary se tornava um obstáculo a suas obras, numa época em que o Novo Romance recebia a preferência do público.
Como segunda travessia de fronteiras, tratou-se então de livrar-se de sua identidade literária: Gary se apagou atrás de Ajar e pediu a seu sobrinho Paul Pavlowitch emprestar-lhe seu nome e sua biografia imaginária, com a proibição de revelar sua verdadeira identidade.
Ele operou essa muda equalização, modificando seu estilo: livra-se de certo academicismo com ganho de um linguajar familiar, altera a sintaxe, a linguagem, e dá a seus personagens uma identidade comum, a de estrangeiro. O escritor afirma seu judaísmo, sua identidade histórica, representando por essa montagem a necessidade que os judeus tiveram de se esconder.
O DESVIO
Gary parou de escrever um ano antes de sua morte. Convém lembrar que ele fazia da escrita uma função vital.
Então por que ele parou de escrever?
Na sua carta de suicídio ele afirma com vigor: “Nenhuma relação com Jean Seberg“. Sabe-se que sua esposa, da qual acabava de se divorciar, estava sendo assediada pelo FBI por seus envolvimentos políticos com as Panteras Negras, razão por que mergulhou na loucura.
Será que se pode separar totalmente a morte da atriz como não tendo tido nenhuma ligação com o seu suicídio?
Sabe-se que ele ficara muito próximo da atriz, zelando por ela, enquanto ela estava mergulhada na loucura. O suicídio da atriz coloca em xeque a posição que ele tinha sempre adotado de salvá-la da injustiça da qual era vítima. Aliás, após a morte dela, ele tentará de novo reparar a injustiça que lhe fizeram, defender sua honra, convocando a imprensa para denunciar o verdadeiro culpado de sua morte.
É possível reconhecer a criança de Promessa ao Amanhecer que quer reparar a injustiça feita a outrem, e que, não podendo alcançá-lo, é tentado à morte.
Essa matriz infantil se encontra em todos os seus envolvimentos: com sua mãe, com a França. O trabalho de escrita apropriou-se muito cedo dessa função de reparação.
Sua missão salvífica é colocada em xeque em todos os fronts: a atriz se suicidou, o escritor se livrou de si mesmo, mas seu renascimento fracassou. Ele se sente cada vez mais à mercê dessa criatura “Ajar demais”, como ele próprio escrevia acerca de seu sobrinho Paul Pavlowitch.
Um evento contingente vem acentuar essa sensação de despojamento: ele será obrigado a responder a uma intimação de controle fiscal que corre o risco de revelar em plena luz do dia sua mistificação literária. O medo de um novo despojamento — Gary não queria fosse revelada a identidade de Ajar enquanto vivesse — o precipita na ideia de que por seu erro o escândalo ia “respingar no exército francês, na Ordem da Liberação. Iam considerá-lo um canalha, um criminoso. Estaria liquidado, humilhado, degradado. Gary falava de sua mãe morta, cuja voz não parara jamais de ressoar nele. Não era possível ser resolvido infligir-lhe esta prova. Iam decerto colocar uma bomba nele, descarregar no seu filho.”
Despojado de seus últimos redutos contra a sua desaparição literária, Gary se identifica com um mau escritor, para de escrever definitivamente.
Lacan, no seu conceito de passagem ao ato, faz do objeto o agente do ato. Aqui nós reencontramos esse objeto incarnado no mau escritor.
Esmagado pelo objeto, põe fim a seus dias.
Ele o revela em seu livro póstumo de 1981, Vida e Morte de Émile Ajar: “Eu sabia que Émile Ajar estava condenado. (...) Por que me fui deixado tentar secar a fonte que ainda continuava a trazer ideias e temas dentro de mim? Mas é claro! Porque eu estava despojado. Agora havia outra pessoa vivendo a fantasia em meu lugar. Ao se materializar, Ajar tinha posto fim à minha existência mitológica. Justa virada das coisas: o sonho agora estava às minhas custas..."
E, finalmente, sobre sua adaptação para o cinema, o diretor Eric Barbier comenta o seguinte, a respeito do livro Promessa ao Amanhecer:
"Acabou" e "Eu vivi" são as duas frases que começam e terminam um livro melancólico, de luto, mas em que não há vestígios de amargura, cinismo ou derrotismo. Em vez disso, há um elogio de esperança e vontade, tolerância e heroísmo também. Gary nunca é crítico ou queixoso. Ele destila com humor devastador uma visão da existência que exalta o que há de melhor em nós, que valoriza o desejo de tornar reais os nossos sonhos e as ficções que trazemos.
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Promessa ao Amanhecer é um livro autobiográfico de 1960 escrito por Roman (sob o pseudônimo de Romain Gary). No filme homônimo de 2017, dirigido por Eric Barbier em parceria com Marie Eynard, a atriz Charlotte Gainsbourg atua no papel da mãe de Roman, Mina Kacew, cujo nome é levemente alterado para "Nina" Kacew. No filme, desempenham o papel de Roman: na infância, Pawel Puchalski; na adolescência, Némo Schiffman, e na idade adulta, Pierre Niney.
O tema central de Promessa ao Amanhecer é o amor maternal. A obra de Romain Gary é assombrada pela guerra e pela figura do sobrevivente. Romain se inspira em elementos autobiográficos retirados de sua infância com sua iídiche mamma (mãe judia), uma ex-atriz e comediante quando jovem em Moscou, que o ama incondicionalmente. Gary, portanto, conta a história desse amor maternal que nutre uma fé extravagante e inabalável no filho, bem como a energia desdobrada por este último para realizar o sonho que sua mãe tem para ele. O verdadeiro objetivo do livro não é, portanto, refazer os passos do autor, mas homenagear quem lhe deu a vida e o levou a ser o que é: famoso e reconhecido.
² Na ocasião em que Arieh é convocado como combatente na I Grande Guerra pelo exército russo, inicialmente Mina e seu filho ficam refugiados na casa dos pais dela em Święciany, a 60 km de Wilnius. Roman, no seu romance Promessa ao Amanhecer, rememora seus primeiros sete anos (1914-1921), evocando estadas em Koursk e Moscou (omitindo a figura paterna, é verdade, conforme estudos recentes o comprovam).
Tão logo é desmobilizado, o pai de Roman é o primeiro a retornar a Wilno provavelmente em 1918, mas, não encontrando sua família, acaba por abandonar o lar em 1925 para ir viver com outra mulher, Frida Bojarska, com quem terá dois filhos.
Em 1921, Mina e Roman retornam a Wilno, que, de agora em diante, está integrada ao território polonês, mas levam uma vida difícil.
Mina, fascinada pela França desde seu encontro com atores na Rússia, instala-se em um prédio chamado "Le Petit Versailles" e se faz passar por modista "de Paris". Ela não se intimida de apresentar sua loja como a única filial do famoso estilista Paul Poiret no país. Pudera!
Com efeito, o apartamento fica no final de um pátio no antigo bairro judeu, degradado e sujo, e as encomendas são escassas.
Ela não desanima: luta para prover as necessidades de ambos, mas não perde a oportunidade de levar o filho ao cinema ou de incentivá-lo a devorar Vitor Hugo, Alexandre Dumas ou Júlio Verne.
Nada é bom demais para o seu filho que, — está convicta —, encontrará um grande destino nesta França que ela venera e da qual o faz decorar as palavras da “Marseillaise”.
É particularmente especial o tempo que o filme reserva à infância de Roman na Polônia, onde a câmera de Barbier se posiciona na altura dos olhos do protagonista e o espectador tem a oportunidade de enxergar Mina com a mesma admiração e temor que o menino. Nesta fase, a iluminação natural é capturada de forma brilhante, criando uma atmosfera de sonho, de nostalgia.
Em outro momento, é notável a aura mágica e de fascinação exercida sobre Roman pelo mar. Recém-curado de uma febre tifóide, quando criança, Roman em convalescença é levado por sua mãe a Bordighera na Itália. É da seguinte forma que ele narra, em seu livro “Promessa ao Amanhecer”, seu primeiro encontro inesquecível com o grande azul em março/abril de 1925:
Link: http://www.buzz-litteraire.com/200907221466-devenir-un-noye-heureux-extrait-de-la-promesse-de-l-aube-de-romain-gary/
“Meu primeiro contato com o mar teve um efeito comovente sobre mim. Eu estava dormindo pacificamente em meu beliche quando senti em meu rosto um sopro de frescor perfumado. O trem acabava de parar em Alassio e minha mãe baixara a janela. Levantei-me nos cotovelos e minha mãe seguiu meu olhar, sorrindo. Olhei para fora e soube, bruscamente, claramente, que havia chegado. Vi o mar azul, uma praia de seixos e barcos de pesca deitados de lado. Eu contemplei o mar. Algo aconteceu dentro de mim. Não sei o quê: uma paz ilimitada, a sensação de ter chegado. Desde então, o mar sempre tem sido para mim uma metafísica humilde mas suficiente. Não sei falar do mar. Tudo o que sei é que de repente ele me livra de todas as minhas obrigações. Cada vez que olho para ele, torno-me um afogado feliz.”
³ Na infância Roman falou russo e polonês e, a partir dos 14 anos, principalmente francês, que seria a sua língua literária, embora também tenha escrito livros em inglês. Em 1935 tornou-se cidadão francês e, mais tarde, trocaria seu nome de Roman Kacew para Romain Gary, sobrenome que significa “Queima!”, em russo, no modo imperativo do verbo, extraído de uma canção cigana em russo: Гори, Гори, Любовь Цыганки (literalmente: Queima, queima, amor da cigana ou, em francês, “Brûle, brûle d’ amour, tzigane”).
Link do vídeo: https://youtu.be/xuqltcdmo54
⁴ Émile Ajar foi o ultimo pseudônimo usado por Romain Gary. Esta, porém, não é uma exceção, uma vez que Romain Gary publicou inúmeras outras obras sob outros pseudônimos como Shatan Bogat, Lucien Brûlard, René Deville e Fosco Sinibaldi.
⁵ Título irônico para quem iria se suicidar cinco anos depois, assim como já o tinha feito, alguns meses antes, sua ex-mulher, a atriz Jean Seberg. O suicídio dele com certeza não fazia parte dos planos de sua iídiche mamma Mina.
⁶ A primeira esposa de Gary foi a escritora, jornalista e editora da Vogue britânica, Lesley Blanch. Eles se casaram em 1944 e se divorciaram em 1961. De 1962 a 1970, Gary foi casado com a atriz americana Jean Seberg, com quem teve um filho, Alexandre Diego Gary.
Gary morreu de ferimento a bala auto-infligido em 2 de dezembro de 1980 em Paris, com a idade de 66 anos. Ele deixou uma carta misteriosa dirigida à imprensa, com a inscrição “Jour J” (Dia D), dizendo que sua morte não tinha relação com o suicídio de Seberg em 30/08/1979. Ele também declarou na mesma carta que era Émile Ajar.
⁷ Por sua importância, convém reproduzir o texto no original francês:
“La psychanalyse prend aujourd'hui, comme toutes nos idées, une forme aberrante totalitaire; elle cherche à nous enfermer dans le carcan de ses propres perversions. Elle a occupé le terrain laissé libre par les superstitions, se voile habilement dans un jargon de sémantique qui fabrique ses propres éléments d'analyse et attire la clientèle par des moyens d'intimidation et de chantage psychiques, un peu comme ces racketters américains qui vous imposent leur protection. Je laisse donc volontiers aux charlatans et aux détraqués qui nous commandent dans tant de domaines le soin d'expliquer mon sentiment pour ma mère par quelque enflure pathologique: étant donné ce que la liberté, la fraternité et les plus nobles aspirations de l'homme sont devenues entre leurs mains, je ne vois pas pourquoi la simplicité de l'amour filial ne se déformerait pas dans leurs cervelles malades à l'image du reste.”
⁸ Em julho de 1958, Gary anuncia a Gaston e Claude Gallimard que ele está a ponto de lhes entregar o manuscrito deste que intitula então A Posse do Mundo.
Dando uma importância particular a esse relato autobiográfico, Gary informa a seus editores que relerá e corrigirá pessoalmente as primeiras provas.
O livro aparecerá em abril de 1960 sob o título La Promesse de l’aube (Promessa ao Amanhecer). Esse título definitivo foi escolhido por Gary em setembro de 1958, depois de ter considerado outros títulos, a saber: A Posse do Mundo, A Confissão de Big Sur e A Corrida contra a Vida.
Segundo Gary, “falta pouca coisa: uma linha geral mais clara entre o querido e o vivido, um contraste mais acentuado entre a dimensão da alma e a das mãos, e o humor prevalece um pouco demais sobre a poesia, que é para mim — poesia — a única forma possível de transcender nossa condição, e a única filosofia. Portanto, estou lhe dizendo que não considero o livro totalmente concluído e vou gastar inúmeras semanas, talvez meses, nele. Depois disso, teremos que refazer as provas, para que eu possa julgar o projeto com clareza antes de me aproximar do mármore.”
⁹ “O tempo do après-coup é um conceito fundamental no arcabouço freudiano. Há acontecimentos da infância que se inscrevem difusamente, marcas psíquicas que ficam informes, indefinidas, à espera de um acontecimento e que só depois adquirem sentido. Temos então a idéia de um passado que não é fixo, mas que se ressignifica no presente.”
Vide ALONSO, Sílvia Leonor: O tempo que passa e o tempo que não passa, Revista CULT
¹⁰ Minha tradução para a carta de suicídio de Romain Gary:
"para a imprensa Dia D
Nenhuma relação com Jean Seberg. Pede-se aos crentes no coração partido para se dirigirem a outro lugar.
Obviamente, isso pode ser atribuído a uma depressão nervosa. Mas então é preciso admitir que isso dura desde que eu atingi a idade adulta e me terá permitido realizar minha obra literária.
Então, por quê? Talvez seja preciso buscar a resposta no título de minha obra autobiográfica, "A noite será calma", e nas últimas palavras de meu último romance: "Pois não se saberia dizer melhor".
Eu finalmente me expressei completamente,
Romain Gary"
IV. BIBLIOGRAFIA
BUZZ... LITTÉRAIRE: La promesse de l'aube de Romain Gary: Tu seras un héros mon fils
________. Devenir un noyé heureux... (extrait de "La promesse de l'aube" de Romain Gary)
GARY, Romain: "La Promesse de l'aube", Paris: Gallimard, Folio, 1960.
Obs. Para carregar uma cópia PDF do livro em francês, clicar abaixo:
Romain Gary La promesse de l'aube - e-Disciplinas
LEMONNIER, Brigitte: Revue de psychanalyse Savoirs et Clinique, 2015/2 (nº 19), p. 43-53.
Musée de l'Ordre de la Libération: "Romain Gary".
Romain Gary (1914-1980), L'homme sans identité, publicado em 07/07/2020.
10 comentários:
Tenho o prazer de enviar-lhe meu mais recente trabalho de pesquisa sobre ROMAIN GARY, tanto sobre sua vida, quanto sua obra que é um rico manancial de experiências exitosas como piloto de guerra, escritor, cônsul, embaixador, entre outras profissões que exerceu durante sua curta existência (66 anos).
Foi o único escritor a ser agraciado duas vezes com o prêmio Goncourt (sob duas identidades diferentes, Romain Gary e Émile Ajar). Homem com vida lendária, tão sensível às honras, faz finalmente sua entrada na Calçada da Fama literária francesa: escritor "esquivo" para uns, escritor camaleão para outros, em 2019, quarenta anos após sua morte em 1980, ele finalmente entrou para "La Pléiade" (A Plêiade), "a" consagração de todo escritor francês. Entre outros títulos de Romain Gary, reunidos na Plêiade, consta PROMESSA AO AMANHECER, que será objeto da presente análise literária.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2020/12/promessa-ao-amanhecer-o-livro-e-o-filme.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Caro professor Braga;
Magnífica publicação traduzida ! Fascinante a vida e obra dessa invulgar personalidade que foi Roma(i)n "Gary" Kacew, que enfrentou de forma genial e mesmo fatal as experiências das agruras de uma época repleta de contradições e, em si mesmo, de tragédias pessoais. Particularmente tocantes sua experiência e sua repulsa à psicanálise, bem como sua reflexão sobre o amor maternal.
Muito grato.
Cupertino
Muito obrigada!
Abs.,
Eudóxia.
Muito obrigado!
Encaminhei para a nossa Equipe Pedagógica para maiores apreciações.
Fraterno abraço.
Meu prezado amigo FJSBRAGA,
entre os muitos presentes que recebi nas festas de Natal, ao longo de minha, já longa vida, nenhum representou tanto como a sua dedicatória a minha pessoa pelo trabalho de pesquisa sobre ROMAIN GARY, com Promessa ao Amanhecer que foi o objeto da sua presente analise literária.
Você, ex-colega do Ginásio Santo Antonio, na minha querida São João Del Rey, sempre me distinguiu em todas as vezes que aí estive, e em especial nas inesquecíveis reuniões do Instituto Histórico e Geográfico, onde tive a oportunidade de fazer uma palestra sobre o Eduardo Canabrava Barreiros, titular de uma cadeira neste sodalício.
Agradeço-lhe pela dedicatória e parabenizo-o pela excelente pesquisa.
Você continua sempre nos surpreendendo pela brilhante inteligência e pela propriedade dos trabalhos apresentados.
Aproveito para lhe desejar Boas Festas.
Receba o meu abraço com os meus agradecimentos.
Lùcio Flávio Baioneta.
Análise Comercial Ltda
Caro Braga, agradeço o envio de seu trabalho, como sempre fruto de seu talento e profundidade na pesquisa. Laus Deo. Lembranças também para Rute, sua esposa. Abraço do Fernando Teixeira
Caro amigo Braga
Mais uma excelente tradução de sua autoria. Parabéns!
Que vida conturbada e fascinante teve Romain Gary!
Agradecemos pelo envio.
Receba o nosso fraterno abraço.
Mario e Beth.
👏👏👏,
Obrigada. Vou ler e repassar para amigos lusófonos !!!
Obrigado, confrade Francisco Braga, pelo envio. Um relato interessante, emocionante até, da história de autor que se submete ao objeto da sua criação: a escrita literária.
Tinha referências da sua produção, mas agradeço por ter me apresentado a este autor de forma tão minuciosa.
Parabéns pelo ótimo texto de pesquisa literária.
Abraços fraternos,
Paulo Sousa Lima
Recebi e agradeço-lhe a remessa da reflexão anexa.
Pe. Sílvio
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