Por Francisco José dos Santos Braga
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Em 11/12/2019, doodle do Google celebrou 109º aniversário do querido cantor e compositor brasileiro, NOEL ROSA.
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Meu pai Roque da Fonseca Braga-Crédito: Celina Maria Braga Campos
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Dedicado a meu saudoso pai ROQUE DA FONSECA BRAGA (15/04/1918-26/09/1984)
Dia dos Pais, 08/08/2021
Transcorria o ano de 1977, em São Paulo, ocasião em que eu morava no início da Barata Ribeiro, rua que nascia na Praça 14 Bis e findava, depois de uma rampa pronunciada, na rua Peixoto Gomide. Fui surpreendido pela segunda e última visita de meu pai feita a mim, distante da casa paterna. (A sua primeira visita será relatada numa oportuna ocasião.) Agora basta informar que eu morava num apartamento minúsculo, inadequado para acomodar dois hóspedes. Meu pai veio acompanhado do tio Sebastião, seu irmão, ambos conduzidos pelo motorista "Pavão" da "Mina" (atualmente AMG Mineração de Nazareno-MG), e por isso os três se hospedaram num hotel conhecido do motorista.
Combinamos de reencontrar-nos à noite para assistir a um espetáculo inaugural da sede própria do Teatro Popular do Sesi, na Av. Paulista: Noel Rosa, o poeta da Vila e seus amores, fruto de uma parceria de Flávio Império (cenários e figurinos) e Osmar Rodrigues Cruz (diretor da casa), que iria futuramente repetir-se ainda em três montagens consecutivas: A Falecida, em 1979, Chiquinha Gonzaga, ó abre alas, em 1983 e O rei do riso, em 1985.
O espetáculo daquela noite contava com grande aceitação do público que lotava avidamente o salão.
Ali vimos a história de um dos maiores compositores, sambistas e cantores da música popular brasileira que tomou a forma de teatro musical. Com texto de Plínio Marcos e direção de Dagoberto Feliz, a peça passeou por fragmentos da vida do poeta, alinhavados por algumas de suas mais belas canções.
Quando teve início a representação, desde seu leito de morte, o artista Noel Rosa revisitava momentos cruciais de sua existência. Mulheres como sua mãe D. Marta, as damas que abalaram seu coração e suas intérpretes favoritas — Marília Batista e Araci de Almeida — protagonizavam uma espécie de delírio que recriava o clima boêmio da era do rádio, dos carnavais de bloco e dos cabarés típicos dos arredores dos Arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Igualmente, atores, músicos e bailarinos dividiam o espaço da cena em uma sequência como que produzida pela livre associação do pensamento moribundo, onde a ordem cronológica se perde.
O auge da peça aconteceu quando se encenava o duelo musical protagonizado pelo "poeta da Vila" e seu arqui-rival Wilson Batista, ocasião em que Noel Rosa já era mestre consagrado e artista popular, enquanto Wilson Batista iniciava sua carreira de compositor e autor. Há quem imagine que os dois eram bons amigos e o duelo não passasse de uma brincadeira de provocar um ao outro. Há também quem ache que Noel Rosa na realidade quisesse simplesmente tirar Wilson Batista do anonimato e oferecer-lhe o primeiro plano.
A rivalidade teve início quando a chegada de um rapaz de Campos-RJ, Wilson Batista, fascinara tanto Sílvio Caldas que gravou seu samba imediatamente, ambos atraídos pela malandragem da Lapa, do centro da capital federal, simbolizada no samba do músico novato chamado
Lenço no Pescoço (1933)
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
em ser tão vadio (BIS)
Sei que eles falam deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha andar no miserê
Eu sou vadio porque tive inclinação
Eu me lembro: era criança tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão
E ele toca, e você canta e eu entoo
Por sua vez, Noel era fascinado por essa mesma malandragem. Resolveu então redarguir o samba de Wilson Batista quase verso a verso. Assim, para contestar o novo rival, Noel escreveu
Rapaz Folgado
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Eu já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado
Wilson viu na réplica de Noel excelente oportunidade para se promover, pois, enquanto ele era um iniciante, Noel já era um artista consagrado. Para botar lenha na fogueira, armou-se de outro samba intitulado
Mocinho da Vila
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão, barracão
E outros fricotes mais
Se não quiser perder o nome
Cuide do seu microfone e deixe
Quem é malandro em paz (BIS)
Injusto é seu comentário
Fala de malandro quem é otário
Mas malandro não se faz
Eu de lenço no pescoço
Desacato e também tenho o meu cartaz
A polêmica teria terminado por aí, se não fosse um samba de Noel que foi um sucesso tão grande que atravessou gerações, do qual até hoje todo o mundo se lembra:
Feitiço da Vila
Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos
Do arvoredo e faz a lua
Nascer mais cedo
O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora
Sol, pelo amor de Deus,
Não vem agora
Que as morenas
Vão logo embora
Lá em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café
Minas dá leite e a
Vila
Isabel dá samba.
A Vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente
Eu sei tudo o que faço
Sei por onde passo
Paixão não me aniquila
Mas tenho que dizer
Modéstia à parte, meus senhores,
Eu sou da Vila.
O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora
Sol, pelo amor de Deus,
Não vem agora
Que as morenas
Vão logo embora
A zona mais tranquila
É a nossa Vila
O berço dos folgados
Não há um cadeado
No portão porque
Na Vila não há ladrão
Então, foi a vez de Wilson caprichar numa tréplica na base do verso-a-verso tal como Noel tinha feito com ele, no frescor de um samba dotado de bela melodia intitulado
Conversa fiada
É conversa fiada dizerem
Que o samba na Vila tem feitiço
Eu fui ver para crer e não vi nada disso
A Vila é tranquila porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir dêem duas voltas no cadeado
Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer
E conhecer o berço dos folgados
A lua nesta noite demorou tanto
Assassinaram meu samba
Veio daí o meu pranto
Visto que Wilson caprichou, Noel devolveu em dobro no samba seguinte:
Palpite infeliz
A vila não quer abafar ninguém,
Só que mostrar que faz samba também!!!
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também
Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também
A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pr' aquele cara que não sabe
Aonde tem o seu nariz
Quem é você que não sabe o que diz?
Quem é você que não sabe o que diz?
Wilson Batista, quando se viu descontrolado com a genialidade do poeta da Vila, partiu para um comportamento agressivo, humilhando seu oponente e zombando de sua fealdade devido à malformação de sua mandíbula inferior, consequência de má colocação do fórceps na hora do parto.
Frankenstein da vila (1936)
Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão:
por uma cara feia
perde-se um bom coração
Entre os feios és o primeiro da fila
Todos reconhecem lá na Vila
Essa indireta é contigo
E depois não vá dizer
Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo...
Imagine se não fosse amigo!? Qual teria sido a direta!?
Certo dia, Noel ouviu pelo rádio um samba de Wilson e não gostou da letra, mas impressionou-o a melodia:
Terra de cego
Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no samba.
És o abafa da Vila, eu bem sei,
Mas na terra de cego
Quem tem um olho é rei.
Pra não terminar a discussão
Não deves apelar
Para um barulho à mão.
Em versos podes bem desabafar
Pois não fica bonito
Um bacharel brigar.
Tempos depois Noel encontrou Wilson num café e propôs-lhe fazer uma nova letra para aquela melodia, uma parceria única entre os dois, que teria como assunto comum uma mulher que ambos namoraram, Ceci, para Wilson um caso passageiro, para Noel o grande amor de sua vida. A letra revela outra forma de dizer nos anos 30: "Baixa a bola, filha, que eu te conheço!"
Deixa de ser convencida (1935)
Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida
És uma perfeita artista, eu bem sei,
Também fui do trapézio,
Até salto mortal
No arame eu já dei. (BIS)
E no picadeiro desta vida
Serei o domador,
Serás a fera abatida
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé
Em amor, em amor de parceria
(Muita medalha eu ganhei!)
Ou seja, o duelo de titãs acabou gerando um lindo samba.
25 comentários:
Meu saudoso pai, ROQUE DA FONSECA BRAGA, tinha uma característica toda especial de visitar de forma inesperada todos os seus filhos que tinham partido da terra natal.
Aqui relembro sua segunda e última visita a mim quando residia em São Paulo em 1977. Algo relativamente corriqueiro, mas que me marcou indelevelmente: fomos assistir a um espetáculo (teatro musical) que fazia grande sucesso em São Paulo naquele ano.
Se ele soubesse como me deixava feliz, teria vindo mais vezes para nossos reencontros.
Com que saudade lembro desse nosso último congraçamento fora de casa!
A vida nos reserva muitos momentos de descontração e encantamento e este foi exatamente um deles.
Clique no link para ler: https://bragamusician.blogspot.com/2021/08/meu-pai-e-noel-rosa.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Muito lindo depoimento !
Cordial abraço,
Eudóxia .
Gostei muito. Um grande abraço.
Que saudades do Tio Roque!
Saudades do Tio Roque!
Marília Ibanez
Bela homenagem com tão boas recordações do nosso pai. Imagino como ele deve ter ficado feliz por estar com você e ainda assistir a essa peça do Noel Rosa! Abraço, Luzia Rachel
Parabéns, Braga!
Li o texto sobre a memória da visita de seu pai no blogue e não queria que ele terminasse!
Saudações literárias.
Conceição Cruz
Meu caro Francisco Braga,
uma das mais simples, emocionante e bela crônica que você fez me ler agora, antes de dormir. Amanhã vou lê-la de novo. Parabéns! Abraço do Gilberto Mendonça Teles
Caro professor Braga
Lindíssima forma de relembrar e homenagear seu digníssimo pai ! Coincidentemente, também tive o privilégio de assistir àquelas temporadas memoráveis do Teatro Popular do Sesi em São Paulo (Av. Paulista). A célebre montagem sobre Noel Rosa, de Plínio Marcos, com Ewerton de Castro vivendo o poeta da Vila, mais grande elenco, sob a batuta musical do Evandro e seu Regional, cenários maravilhosos de F. Império. Eram espetáculos que quanto mais você assistia mais deles gostava.
Saudações!
Cupertino
Linda homenagem para o querido tio Roque...
Beijos.
Li todo o texto.
Muito interessante.
Boa Noite
Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim
("Naquela Mesa" (Sérgio Bittencourt) do show de "Santo Amaro a Xérem" que reúne Maria Bethânia e Zeca Pagodinho.)
Amei ler, lembrei com saudade do Sr. Roque, com quem conversava horas a fio nos fins de semana quando íamos para São João.
Belíssimo trabalho, além de conhecer seu pai, o carinho e preocupações que ele nutria por você, também pude aprimorar os conhecimentos sobre o grande mestre Noel Rosa. Grande abraço.
Que bom relembrar esses momentos felizes ao lado de nosso querido pai. O privilégio de sua companhia sempre se tornava inesquecível para nós. Obrigada por compartilhar conosco esse episódio que deve ter lhe proporcionado grande alegria!
Muitas saudades!
Bom dia.
Que texto excelente 👏
Prende nossa atenção. Muito bom 👍
Caro Braga.
Que texto fantástico!
Adorei o duelo que se formou.
Porém, o mais marcante da narrativa é a fiel lembrança do segundo e último encontro com o pai.
Essas coisas marcam nossa vida para sempre.
Parabéns.
Caro Professor Braga,
Bela homenagem ao amor entre pai e filho e ao inesquecível e magistral Noel Rosa.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira
Que boas recordações!
Abs
Parabéns, grande Braga!
Magnífico, Francisco.
Abraços
Anderson
Bonita e simbólica homenagem ao pai que, quieto no seu canto, velava pela vida e obra dos filhos distantes. Bela lembrança do Noel, meu Deus do céu...
Rute,
Nando e eu lemos este lindo texto escrito pelo Francisco com tanto amor e saudosismo. Parabéns a ele. Gostamos imensamente. Uma abençoada semana para vocês dois. Bjs
São momentos inesquecíveis.., os quais estão no nosso presente e estarão no nosso futuro. Não se trata de mero saudosismo.
Um belo texto.
Muito interessante como falou de seu pai e de Noel. Um era cravo,o outro, Rosa.
O que vale mesmo é o perfume da lembrança.
Parabéns!
Benjamin Batista
Presidente da Academia de Cultura da Bahia.
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