Por Francisco José dos Santos Braga
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Retrato ficcional de Hipátia feito por Jules Maurice Gaspard, para a biografia ficcional de Hipátia por Elbert Hubbard in "Little Journeys to the Homes of Great Teachers" de 1908 [East Aurora, New York: The Roycrofters] |
Inicialmente, para esclarecimento do leitor, refiro-me à imagem de Hipátia que aparece na abertura deste ensaio. Obviamente não se trata do semblante real da minha homenageada, mas de uma réplica da gravura extraída do volume dedicado a ela e intitulado "Little Journeys to the Homes of the Great Teachers" por Elbert Hubbard, 1908. Frequentemente tal gravura é usada para representá-la na maioria dos trabalhos publicados sobre ela.
I. INTRODUÇÃO SOBRE FONTES PRIMÁRIAS E FICCIONAIS SOBRE A FILÓSOFA NEOPLATÔNICA, MATEMÁTICA E ASTRÔNOMA HIPÁTIA
Preliminarmente, com base no ensaio 63, feito por [DEAKIN, 1995], para a História da Matemática, intitulado As Fontes Primárias para a Vida e Obra de Hipátia de Alexandria, são as seguintes as fontes primárias de que dispomos atualmente para a biografia de Hipátia e, portanto para seu assassinato:
1) uma passagem na História Eclesiástica por Sócrates Escolástico. A maioria dos autores seguem Sócrates Escolástico no seu relato da morte de Hipátia, embora haja também material sobre ela no Suda Lexikon e alhures. Sócrates era um cristão fiel, entretanto não incluiu material explicitamente crítico do assassinato de Hipátia (nas mãos de fanáticos cristãos). O bispo cristão na época era Cirilo (São Cirilo de Alexandria) e a questão sobre até que ponto houve sua cumplicidade (se é que houve alguma) no delito tem gerado muita controvérsia.
2) um excerto de Crônica de João, Bispo copta de Nikiu
3) inúmeras cartas de um discípulo de Hipátia, Sinésio de Cirene
4) quatro breves extratos heterogêneos de outras obras (a inscrição no começo do Livro III do Comentário sobre Almagest de Ptolomeu pelo pai de Hipátia, Théon; e breve referência de cada um dos seguintes autores: historiador eclesiástico Philostorgius, que era ariano; Crônica de João Malalas e Chronographia de Theophanes.
5) o excepcionalmente longo verbete no Suda Lexikon, uma enciclopédia do século X disposta alfabeticamente.
Embora não seja necessário que as fontes primárias sejam coincidentes em todos os seus detalhes, realmente essas fontes históricas para Hipátia se contradizem em alguns pontos. Em relação às fontes primárias, mormente para Hipátia, convém uma boa dose de interpretação e avaliação por parte do pesquisador. Muitas dessas fontes primárias foram escritas em grego patrístico, cujas traduções estão publicadas principalmente em inglês sobre a biografia de Hipátia.
Ainda segundo [DEAKIN, idem], os historiadores precisam dizer de eventos passados que eles re-contam não apenas o que aconteceu, mas também como eles o souberam ou quem consultaram. Essa última questão é geralmente respondida por referências às fontes, isto é, aos relatos anteriores da matéria sob consideração. Não é aconselhável que fontes secundárias vão além daquilo que as fontes primárias afirmam, sem uma boa razão. Finalmente, deve ser dito que obras de ficção (seja a
ficção intencional ou não!) não são fontes históricas absolutamente. Lamentavelmente muito daquilo que está prontamente disponível sobre Hipátia deriva de fontes ficcionais, mais do que históricas.¹
II. O ASSASSINATO DE HIPÁTIA E OUTRAS TURBULÊNCIAS EM ALEXANDRIA DURANTE E APÓS SUA VIDA
O assassinato de Hipátia está descrito nos escritos do historiador cristão do século V, Sócrates, o Escolástico de Constantinopla, o historiador mais próximo aos eventos relativos à vida e morte de Hipátia e autor de uma História Eclesiástica que cobre a história do antigo Cristianismo durante o período que vai de 305 a 439 d.C., e que assim se manifestou acerca do incidente da morte cruenta de Hipátia, em minha versão para o português, da tradução de Philip Schaff para o inglês:
"Havia uma mulher em Alexandria chamada Hipátia, filha de Théon, o filósofo, que conseguiu tantos feitos em literatura e ciências, a ponto de superar todos os filósofos de seu tempo. Tendo sucedido na Escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios de filosofia a seus ouvintes, muitos dos quais vinham de longe para receber suas instruções. Devido à sua serenidade e boas maneiras que ela havia adquirido em consequência do cultivo de sua mente, ela não raro apareceu em público na presença dos magistrados. Também ela não se sentiu envergonhada em vir a uma assembleia de homens, pois todos os homens a admiravam ainda mais por causa de sua extraordinária dignidade e virtude. No entanto até ela foi vítima do ciúme político que prevalecia naquela época. Pois, como muitas vezes ela mantinha encontros com (o prefeito) Orestes, correu o boato calunioso entre a população cristã de ter sido ela quem impediu Orestes de se reconciliar com o Bispo. Alguns deles, então, incitados por um zelo feroz e fanático, cujo líder era um leitor chamado Pedro, assaltaram essa mulher voltando para casa e, arrastando-a de sua carruagem, levaram-na para a igreja chamada Cæsarium, onde a despiram completamente e, em seguida, arrancaram-lhe a pele e cortaram-lhe a carne do corpo com conchas afiadas, desmembraram-lhe o corpo, levaram seus membros mutilados para um lugar chamado Cinaron e lá os queimaram. Este caso não trouxe o menor opróbrio, não apenas a Cirilo, mas também a toda a Igreja alexandrina. E certamente nada pode estar mais longe do espírito do Cristianismo do que a permissão de massacres, lutas e situações semelhantes. Isso aconteceu no mês de março durante a Quaresma, no quarto ano do episcopado de Cirilo, sob o décimo consulado de Honório, e sexto de Teodósio." (História Eclesiástica, Livro 7, Capítulo 15)
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"Morte da filósofa Hipátia" (1866), ilustração por Louis Figuier in "Vidas de sábios ilustres, desde a antiguidade até o século XIX", representando o que o autor imaginava ter sido o massacre de Hipátia pela multidão religiosa em 415 d.C. |
Cabe, nesta altura, indagar qual foi a participação do Bispo Cirilo de Alexandria neste crime hediondo. Adianto que não tenho uma opinião formada sobre a questão. Em nota explicativa de Philip SCHAFF (1819-1893) para o trecho acima da História Eclesiástica, em sua competente tradução, ele entendeu que
"a responsabilidade de Cirilo, Patriarca de Alexandria, neste incidente foi distintamente avaliada por diferentes historiadores.
Walch, Gibbon e Milman estão inclinados a culpá-lo.
James Craigie Robertson atribui a ele responsabilidade indireta, afirmando que os executores do crime "eram na maioria pessoas que ocupavam um posto de confiança e de autoridade na igreja dele, e tinham inquestionavelmente incentivado ações criminais anteriores", cf. History of the Christian Church, Vol. I, p. 401.
William Bright diz: “Cirilo não participou desse ato hediondo, mas esse foi o trabalho de homens cujas paixões ele originalmente convocou. Se não tivesse havido um ataque às sinagogas, sem dúvida não haveria assassinato de Hipátia", cf. History of the Church, 313-451, pp. 274-5. Vide também Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. III, p. 943. ²"
Até aqui, a nota explicativa de Schaff em minha tradução.
Pode ser interessante repassarmos um pouco de História, o que pode ajudar a lançar alguma luz sobre a complexidade da questão.
Seria oportuno tercer algum comentário sobre essa turba de fanáticos cristãos que desempenharam papel ativo na morte de Hipátia, sob a liderança de um leitor chamado Pedro. A informação que temos é que a morte dela esteve a cargo dos "parabolanos", os quais eram membros de uma irmandade cristã que, nos primeiros séculos da Igreja, se encarregavam, de forma voluntária, de cuidar dos enfermos e de enterrar os mortos. A denominação de "parabolanos" adveio do fato de serem atendentes de hospital, porque eles arriscavam suas vidas, ao se exporem a doenças contagiosas. Geralmente provenientes dos estratos mais baixos da sociedade, eles também funcionavam como assistentes de bispos locais e às vezes eram usados por eles como guarda-costas e em violentos confrontos com seus oponentes. Acredita-se que a irmandade foi organizada pela primeira vez durante a grande praga em Alexandria no episcopado do Papa Dionísio de Alexandria (segunda metade do século III). Embora os parabolanos fossem escolhidos pelo bispo e permanecessem sempre sob o seu controle, o Codex Theodosianus colocou-os sob a supervisão do prefeito de Alexandria. Como o fanatismo deles resultou em tumultos, leis sucessivas limitaram seu quantitativo: assim, eram 1100 em Constantinopla no tempo de Constantino e 950 no de Anastácio. Certamente devido ao incremento das agressões, o decreto de Teodósio II de 28 de setembro de 416 limitou o número deles a 500, aumentado para 600, dois anos depois. ³
O que lemos da autoria de Sócrates Escolástico se passou há quase 17 séculos atrás na Alexandria. Desde o começo do século II d.C., o Império Romano começou a esboçar sua fragilidade decorrente das guerras civis, das disputas internas pelo poder político e das invasões externas de estrangeiros. Em 330 d.C., o imperador romano Constantino patrocinou a cristianização do Império Romano e mandou construir Constantinopla onde na antiguidade se localizava Bizâncio. Em 395 d.C., o imperador Teodósio I fez a divisão do Império Romano em duas partes com o objetivo de controlar e manter a preponderância do Império Romano: a parte oriental, com a capital em Constantinopla, coube a seu filho mais velho Arcádio (375-408), que se tornou o primeiro imperador do Império Romano do Oriente; com a morte de Arcádio em 408, assumiu seu filho Teodósio II (401-450). A parte ocidental, com a capital em Roma, herdou o filho mais novo de Teodósio I e irmão de Arcádio, chamado Honório (395-423), que se tornou o primeiro imperador do Império Romano do Ocidente.
Cirilo de Alexandria nasceu por volta de 375 d.C., foi bispo de Alexandria a partir de 412 e morreu em 27 de junho de 444. Santo para os ortodoxos e católicos, é também, desde a proclamação do Papa Leão XIII em 1882, padre e doutor da Igreja Católica.
Reconhecido como santo pelos ortodoxos e católicos, ele é celebrado respectivamente em 9 de junho e 18 de janeiro pelos ortodoxos e em 27 de junho pelos católicos. Foi proclamado Doutor da Igreja em 1882 pelo Papa Leão XIII.
Em uma audiência de 3 de outubro de 2007, Bento XVI o homenageou por sua importante contribuição ao culto mariano.
Pelos valores da época contemporânea, ele também é uma figura polêmica por suas ações contra os judeus (Livro 7, Capítulo 13), e por seu envolvimento (ainda não comprovado!) na tentativa de homicídio de Orestes (Livro 7, Capítulo 14) e depois no homicídio de Hipátia (Livro 7, Capítulo 15).
Cirilo se empenha em erradicar o paganismo, o judaísmo e o que considera heresias: escreve contra os arianos e os antioquianos, e manda fechar as sinagogas e igrejas dos novatos. Ele assim aniquila a comunidade judaica e ataca da mesma forma outras comunidades cristãs qualificadas como hereges. Essas medidas brutais o opuseram a Orestes, prefeito de Alexandria (também cristão), e foram ocasião de pogroms e outras cenas sangrentas, durante as quais faleceu em 415 a filósofa Hipátia, vítima de um linchamento por fanáticos cristãos.
Por volta de 440 d.C., o historiador cristão Sócrates, o Escolástico, apresenta seu relato em última análise hostil a Cirilo sobre os incidentes verificados em Alexandria, embora não o tenha incriminado diretamente pelo assassinato de Hipátia. No entanto, um crime continua sendo um crime. Mas vejamos como ele apresenta num "crescendo" os dois capítulos anteriores ao capítulo 15 cujo trecho trata da morte de Hipátia:
・Capítulo 13: "Conflito entre cristãos e judeus em Alexandria: e ruptura entre o bispo Cirilo e o prefeito Orestes"
・Capítulo 14: "Os Monges de Nitria descem e levantam uma Sedição contra o Prefeito de Alexandria"
Foi da seguinte forma que o autor Sócrates Escolástico abre o Capítulo 13, na tradução de Philip Schaff e em minha versão para o português:
"Por volta dessa mesma época, aconteceu que os habitantes judeus foram expulsos de Alexandria por Cirilo, o bispo, pelo seguinte relato. O público alexandrinense se deleita mais com o tumulto do que qualquer outro povo: e se em algum momento encontrar um pretexto, irrompe nos excessos mais intoleráveis; pois nunca cessa sua turbulência sem derramamento de sangue. Aconteceu na presente ocasião que surgiu um distúrbio entre a população, não por uma causa de grande importância, mas por um mal que se tornou muito popular em quase todas as cidades, a saber, um gosto por exibições de dança. Em consequência dos Judeus estarem desobrigados de negociarem no Sábado e de passarem seu tempo, não em ouvir a Lei, mas em diversões teatrais, os dançarinos frequentemente reúnem grandes multidões naquele dia, e uma desordem é produzida quase invariavelmente. E embora isso fosse em certo grau controlado pelo governador de Alexandria, no entanto os Judeus continuavam a se opor a essas medidas. Quando, por isso, o prefeito Orestes estava publicando um edito no teatro para a regulação dos shows, alguns da facção do bispo Cirilo estavam presentes para tomar conhecimento da natureza das ordens prestes a serem expedidas. Havia entre eles um certo Hierax, professor dos ramos rudimentares da literatura, e que era um ouvinte muito entusiasmado dos sermões do bispo Cirilo, e se destacou por sua ousadia em aplaudir. Quando os judeus observaram essa pessoa no teatro, eles imediatamente clamaram que ele tinha vindo ali com o único propósito de excitar a sedição entre o povo. Ora, Orestes há muito via com ciúmes o crescente poder dos bispos, porque eles usurpavam a jurisdição das autoridades nomeadas pelo imperador, especialmente porque Cirilo desejava espionar seus procedimentos; ele, portanto, ordenou que Hierax fosse preso e o submeteu publicamente à tortura no teatro. Cirilo, ao ser informado disso, mandou chamar os principais judeus e os ameaçou com a maior severidade, a menos que desistissem de molestar os cristãos. A população judaica ao ouvir essas ameaças, em vez de reprimir sua violência, só ficou mais furiosa e foi levada a formar conspirações para a destruição dos cristãos; um deles era de caráter tão desesperado que causou sua expulsão total de Alexandria; isso vou agora descrever. Tendo sido acordado que cada um deles deveria usar um anel no dedo feito da casca de um ramo de palmeira, para o reconhecimento mútuo, eles decidiram fazer um ataque noturno aos cristãos. Eles, portanto, enviaram pessoas para as ruas para levantar um protesto por estar em chamas a igreja com o nome de Alexandre. Assim, muitos cristãos ao ouvir isso correram, alguns, de uma direção, e outros, de outra, em grande aflição para salvar sua igreja. Os judeus imediatamente os atacaram e os mataram; facilmente distinguindo um ao outro por seus anéis. Ao raiar do dia, os autores dessa atrocidade não podiam ser escondidos: e Cirilo, acompanhado por uma imensa multidão de pessoas, indo às sinagogas deles – pois assim os judeus chamam sua casa de oração – tirou-os delas e expulsou os judeus para fora da cidade, permitindo que a multidão saqueasse seus bens. Assim, os judeus que habitavam a cidade desde o tempo de Alexandre, o Macedônio, foram expulsos dela, despojados de tudo o que possuíam, e dispersos alguns, em uma direção, e outros, em outra. Um deles, um médico chamado Adamantius, fugiu para Atticus, bispo de Constantinopla, e professando o cristianismo, algum tempo depois retornou a Alexandria e fixou sua residência lá. Mas Orestes, o governador de Alexandria, encheu-se de grande indignação com essas operações, e estava excessivamente pesaroso de que uma cidade de tal magnitude tivesse sido subitamente desprovida de uma parcela tão grande de sua população; ele, portanto, imediatamente comunicou todo o caso ao imperador. Cirilo também escreveu para este, descrevendo a conduta ultrajante dos judeus; e, enquanto isso, enviou pessoas a Orestes que deveriam mediar a reconciliação: para tal o povo o instou a fazer. E quando Orestes se recusou a escutar iniciativas amigáveis, Cirilo estendeu-lhe o livro dos evangelhos, acreditando que o respeito pela religião o levaria a deixar de lado seu ressentimento. Quando, contudo, mesmo isso não teve qualquer efeito pacífico sobre o prefeito, mas ele persistiu em hostilidade implacável contra o bispo, o evento abaixo ocorreu a seguir. (...)" ⁴ (grifo nosso)
O capítulo 14, na tradução de Philip Schaff e em minha versão para o português, também atesta a hostilidade do historiador Sócrates Escolástico em relação a uma suposta justiça e imparcialidade de Cirilo diante de ações criminosas de uma turba de fanáticos cristãos:
Alguns dos monges habitantes das montanhas da Nítria, de humor muito inflamado, que Teófilo algum tempo antes armara injustamente contra Dióscoro e seus irmãos, sendo novamente transportados com um zelo ardente, resolveram lutar a favor de Cirilo. Cerca de quinhentos deles, portanto, deixando seus mosteiros, entraram na cidade; e encontrando o prefeito em sua carruagem, chamaram-no de idólatra pagão e utilizaram para ele muitos outros epítetos abusivos. Supondo que isso fosse uma armadilha armada por Cirilo, exclamou que era cristão e havia sido batizado por Ático, o bispo de Constantinopla. Como eles deram pouca atenção aos seus protestos, e um deles, chamado Amônio, atirou uma pedra em Orestes, que o atingiu na cabeça e o cobriu com o sangue que escorria do ferimento, todos os guardas, com poucas exceções, fugiram, mergulhando na multidão, alguns em uma direção e outros em outra, temendo ser apedrejados até a morte. Enquanto isso, a população de Alexandria correu em socorro do governador e colocou o resto dos monges em fuga; mas, tendo prendido Amônio, entregaram-no ao prefeito. Ele imediatamente o submeteu publicamente à tortura, que foi infligida com tanta severidade que ele morreu sob seus efeitos: e não muito tempo depois, ele prestou relato aos imperadores do que havia acontecido. Cirilo, por outro lado, encaminhou ao imperador sua declaração sobre o assunto: e fazendo com que o corpo de Amônio fosse depositado em uma certa igreja, deu-lhe a nova denominação de Admirável, ordenando que fosse inscrito entre os mártires e elogiando sua magnanimidade na Igreja como a de alguém que caíra em um conflito em defesa da religiosidade. Mas os mais sóbrios, embora cristãos, não aceitaram a julgamento preconceituoso de Cirilo sobre ele; pois eles bem sabiam que este havia sofrido o castigo devido à sua imprudência e que não havia perdido sua vida sob a tortura pelo fato de que não negaria a Cristo. E o próprio Cirilo, consciente disso, deixou que a lembrança da circunstância fosse gradualmente obliterada pelo silêncio. Mas a animosidade entre Cirilo e Orestes não diminuiu de forma alguma neste momento, mas foi reacendida por uma ocorrência semelhante à anterior. ⁵
A seguir, apresento a argumentação de [DZIELSKA, 1997], a respeito desse delito mostruoso.
Segundo essa historiadora polonesa, a situação em Alexandria não permite uma fácil ideologia da história, e talvez seja por isso que Sócrates Escolástico atribui as atitudes à cidade e seu clima como um todo, e não apenas a uma parcela da população, expressando, como outras antigas fontes, "uma incapacidade de explicar a tendência dos alexandrinenses para a violência e crimes".
A turba de Alexandria não é apenas responsável pela morte horrível de Hipátia em 415 ou 416 d.C., mas também pela morte igualmente horrível do bispo Jorge durante o reinado de Juliano em 361, bem como pelo assassinato do Patriarca Protério em 457. Em todos os casos, "seus cadáveres, como aconteceu com Hipátia, foram arrastados por toda a cidade e depois entregues à pira", enquanto os responsáveis escapavam da punição, o que "muitas vezes acontece em casos de tumultos". ⁶
Aparentemente, Hipátia não foi perseguida por suas ideias religiosas ou filosóficas. Como Crawford e Rist, entre outros, argumentaram, a morte de Hipátia foi resultado dos tumultos em Alexandria com causas mais políticas do que religiosas. A cidade sofria de conflitos, e a multidão cristã estava certa de que a influência de Hipátia estava exacerbando o conflito e acreditava que, se ela saísse do caminho, a reconciliação (entre o prefeito Orestes e o patriarca Cirilo de Alexandria) poderia ser concretizada. Assim, eles a assassinaram por iniciativa própria, não como inimiga da fé, mas como um suposto obstáculo à sua paz. ⁷
Em todo caso, mesmo que Cirilo quisesse, "era difícil atacar ou perseguir Hipátia a pretexto de seu paganismo, porque, ao contrário de seus contemporâneos, ela não era uma pagã ativa e devotada. Ela não cultivou a filosofia mágica neoplatônica, ela não foi aos santuários pagãos e não reagiu à sua conversão em igrejas cristãs. Na verdade, ela gostou do Cristianismo e protegeu seus discípulos cristãos. Com seu secularismo e compreensão plena das questões metafísicas, ela os ajudou a alcançar a realização espiritual e religiosa. Dois deles se tornaram bispos. Os pagãos e os cristãos que estudavam com ela eram amigos entre si". ⁸
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Hipátia ensinando na Escola de Alexandria, obra de Masolino da Panicale, 1428
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Além disso, como se depreende das fontes, nenhum caso de ciúme sexual poderia existir contra uma mulher com idade entre 45-60 anos, cuja modéstia, ascetismo e abstinência consciente de qualquer atividade sexual eram conhecidos de todos.
Finalmente, de acordo com Maria Dzielska, a acusação desse período como um tempo de "declínio do espírito" também é infundada: "Não podemos, portanto, concordar com aqueles que lamentam Hipátia como a "última dos gregos" ou que argumentam que a sua morte marcou o declínio da ciência e filosofia alexandrinenses. O paganismo não desapareceu com Hipátia, assim como a matemática e a filosofia grega. Após sua morte, o filósofo Hierocles iniciou um desenvolvimento bastante impressionante do neoplatonismo eclético em Alexandria [...] até floresceu até certo ponto, com os "santos" do neoplatonismo que combinaram a filosofia platônica tardia com o ritual formal e sacerdotal para os deuses." ⁹
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Detalhe de Hipátia, única filósofa, ao lado de Parmênides, na famosa obra A Academia de Atenas de Rafael Sanzio (Observação: Brambly, biógrafo de Leonardo Da Vinci, considera que o modelo para esta representação é o próprio Rafael).
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III. NOTAS EXPLICATIVAS
⁶ DZIELSKA, Maria, Υπατία η Αλεξανδρινή (μτφρ. Κουσουνέλος Γιώργος), Ενάλιος, Αθήνα 1997, p. 184-5. 👈
⁷ Ibidem, idem, p. 192. 👈⁸ Ibidem, idem, p. 192-3. 👈
⁹ Ibidem, idem, p. 194-5. 👈
IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEAKIN, Michael A.B.: The primary sources for the Life and Work of Hypatia of Alexandria, History of Mathematics Paper 63, 1995.
DZIELSKA, Maria: Υπατία η Αλεξανδρινή (μτφρ. Κουσουνέλος Γιώργος), Ενάλιος, Αθήνα 1997, 210 p.
SCHAFF, Philip: History of the Christian Church, 8 vol., 1890.
7 comentários:
Prezad@,
HIPÁTIA, a filósofa neoplatônica, matemática e astrônoma alexandrina, filha do filósofo Théon, grande matemático e filósofo neoplatônico, foi brutalmente assassinada por uma turba fanática de cristãos em Alexandria, no ano de 415 d.C. Desde então ela virou lenda e passou para a história. Poetas, historiadores, romancistas, todos viam em Hipátia o símbolo da educação clássica e da liberdade de pensamento. Eles a tinham como a antítese do fanatismo religioso, identificavam-na com liberdade de pensamento e elevação espiritual. Ela era a professora original de um grupo de estudiosos, filósofos, matemáticos e astrônomos. Seu prestígio era tal que ela reuniu em torno de si um número considerável de seguidores devotados. Hipátia, com seu espírito aberto, com sua insistência na filosofia e educação gregas, pelo modo de vida pioneiro com que se orientou, foi a próxima a entrar em conflito com o poder político e religioso de Alexandria exercido pelo ambicioso Patriarca Cirilo.
A literatura disponível, com suas constantes referências a SÓCRATES ESCOLÁSTICO, parece concordar com uma conclusão básica sobre as narrativas dos trágicos eventos que levaram ao assassinato de Hipátia: que "o historiador Sócrates Escolástico é a fonte mais confiável dos eventos". Ele é quem "descreve com realce os detalhes de sua morte", e alguns estudos se basearam apenas nos testemunhos desse autor contemporâneo de Hipátia.
Maria Dzielska, historiadora polonesa que escreveu importante obra sobre Hipátia, justifica esse fato da seguinte forma:
"A informação mais importante e mais valiosa sobre a vida de Hipátia vem da História Eclesiástica do contemporâneo Sócrates Escolástico (379-450) [...] Este historiador eclesiástico, um advogado de Constantinopla, cujo trabalho é a continuação da História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, dedica um capítulo a Hipátia. Embora a sua descrição de Hipátia seja breve, sua evidência é historicamente confiável. Como os estudiosos de suas obras demonstram, ele estava muito bem informado sobre os desenvolvimentos políticos e eclesiásticos no Império e seu conhecimento de Hipátia provavelmente tenha vindo de testemunhas oculares."
Este meu trabalho introdutório procura desvendar fatos que possam esclarecer um pouco a morte cruenta da influente filósofa e cientista, não se esquecendo de abordar as condições sociais da época na Alexandria que contribuíram para o brutal desfecho.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2022/09/hipatia-de-alexandria-parte-1.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Caro confrade e amigo Francisco Braga; muito obrigado pela profusão de detalhes a respeito da morte de Hipátia, vítima dos radicalismos religiosos vigentes na época. De perseguido até Diocleciano, o cristianismo foi aceito por Constantino e tornado obrigatório por Teodósio. A partir daí, toda e qualquer manifestação que não fosse para defender um fundamentalismo à "outrance" do cristianismo oficial, teria que ser perseguida com a mesma violência antes praticada contra os cristãos. A imagem de Hipátia permanece como mártir da Filosofia.
Obrigado pelo texto. Segue um meu feito hoje, Mauricio
Obrigado, Francisco.
Bom fim de domingo para vocês.
Abraços
Anderson
Obrigado pelo envio.
Abraços
Interessante ! Já vi este assassinato de Hipátia num filme ( não me recordo o nome ) e ela é exatamente como vc descreve ; e seu assassinato também ! Vou ler seu artigo ! Obrigado pelo envio !
Obrigado, amigo... Vamos aprendendo...
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