segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O PATRIOTISMO DE CATÃO NA FARSÁLIA DE LUCANO


Por Francisco José dos Santos Braga
 
Marco Aneu LUCANO: PHARSALIA (1740) - Crédito: Wikipédia
 
 
I. ANTECEDENTES DA HISTÓRIA ROMANA ATÉ A BATALHA DE FARSÁLIA

 
No ano de 70 a.C., Marco Licínio CRASSO e Cneu POMPEU foram eleitos cônsules com o apoio de boa parte da população romana. Em sinal de retribuição, os dois políticos restauraram os poderes do tribuno da plebe; estabeleceram a divisão equânime dos tribunais entre os aristocratas, militares e plebeus; e fizeram com que os plebiscitos tivessem força de lei. 
Nesse mesmo tempo, o general JÚLIO CÉSAR ganhava importante destaque político, destacando-se pelas grandes conquistas militares realizadas na região da Gália, conquistando a admiração de seus comandados e declarando-se filiado ao partido popular. 
Em 60 a.C., Pompeu, Crasso e Júlio César unificaram seu poder político e assim estabeleceram a formação do Primeiro Triunvirato. Tal mudança acarretava o enfraquecimento do papel dos senadores e reforçava o mando daquelas três figuras afamadas entre a população romana. 
No ano de 55 a.C., ficou determinado que Júlio César comandaria a província da Gália; Crasso, a Síria; e Pompeu, a Península Ibérica. À primeira vista, o poder e a autoridade dos primeiros triúnviros estavam em equilíbrio. 
Em 54 a.C., a morte da esposa de Pompeu, Júlia, rompia os laços familiares entre Pompeu e Júlio César, pai da jovem. 
No ano de 53 a.C., a morte de Crasso na campanha militar contra os partas desenvolveu um novo rearranjo nas relações de poder em Roma. Dessa forma, com o fim do equilíbrio do triunvirato, os restantes dois generais passaram a traçar estratégias para comandar Roma de forma individual. Apoiado pelo Senado, Pompeu deu o primeiro passo ao ser eleito como cônsul único. 
No ano de 50 a.C., César foi impedido de voltar ao consulado, quando o Senado impôs uma lei que exigia que os candidatos a cônsul residissem na cidade de Roma durante a campanha. Como César estava ocupado com a administração da Gália, ficava desse modo impedido de concorrer às eleições. Ao buscar um acordo com os magistrados romanos, o general acabou tendo seu pedido de candidatura anulada. Foi então que ele decidiu realizar uma das mais ousadas ações militares de sua vida. 
Ignorando a autoridade do Senado, Júlio César congregou as suas legiões, atravessou o rio Rubicão e invadiu a cidade de Roma. Após capturar Pompeu e os senadores que se opunham à sua atuação política, o general foi transformado em ditador com a aprovação de boa parte da população romana. Assumindo diversas funções simultaneamente, ele acabou minando a autoridade senatorial e ficando acima das instituições que regulamentavam a República Romana. 
Entre os anos de 49 e 48 a.C., César liderou uma guerra civil que obrigou os senadores romanos e Pompeu a fugirem de Roma para o sul da Itália e depois para a Grécia. Determinado a garantir o poder em suas mãos, César perseguiu Pompeu e os senadores romanos em território grego, sagrando-se vitorioso na Batalha de Farsália. Nesse meio tempo, Pompeu, derrotado, fugiu para o Egito, com César no seu encalço. Com auxílio dos ministros egípcios, Pompeu acabou assassinado. 
Não deixando sua vocação militar de lado, César conquistou territórios na Espanha, na África e transformou o Egito em província romana. 
Dessa forma, Júlio César teve condições de fixar uma nova fase na história política romana. Com o apoio dos soldados e dos plebeus, acumulou uma série de títulos, por exemplo, Pai da Nação, Imperator (comandante-em-chefe das forças armadas) e, possivelmente ainda em vida, Divino Júlio (Divus Julius). Em outubro de 45 a.C., renunciou ao posto de único cônsul e trabalhou para que os dois eleitos que o sucederiam fossem seus partidários. Um mês antes de ser assassinado em 44 a.C., foi elevado à condição de Ditador Vitalício, com o direito de criar novas leis. 
 
Cf. SOUSA, Rainer Gonçalves. "Primeiro Triunvirato" e "A ditadura de Júlio César"; Brasil Escola. Disponível em: 
Acesso em 31/12/2022.
 
II. POETA LUCANO E SEU POEMA ÉPICO "GUERRA CIVIL" OU FARSÁLIA

 
Marco Aneu Lucano (em latim: Marcus Annaeus Lucanus; Córduba, Hispânia, 3 de novembro de 39 d.C. — Roma, 30 de abril de 65 d.C.), também conhecido simplesmente como Lucano, foi um poeta romano, nascido na província da Bética. 
Apesar de sua vida curta, é tido como uma das figuras de maior destaque do período dito clássico do latim. Sua juventude, além de sua proficuidade, fizeram com que se destacasse entre os poetas da época. 
Lucano era neto de Sêneca, o Velho, e sobrinho do filósofo e tragediógrafo Sêneca, o Moço. Esse seu tio, que também foi preceptor de Nero, velou por sua educação, levando-o a estudar retórica e filosofia estóica, à qual se dedicou sob a orientação do filósofo Aneu Cornuto, em cujo círculo se encontra com o satirista Perse. 
Conhece na corte de Nero um destino tão fulgurante quanto passageiro. Sob a proteção de seu tio, torna-se favorito de Nero antes de cair em desgraça, por causa da inveja do imperador de seu talento literário. Foi implicado na conjuração dos Pisões contra a vida do imperador Nero. Tendo sido preso, ele foi obrigado a cometer suicídio aos 25 anos. Restou de sua extensa obra apenas uma epopeia possivelmente inacabada, em 10 cantos ou livros, o Bellum Civile (mais conhecido por FARSÁLIA).
Lucano, quando era protegido de Nero, publicou os 3 primeiros livros do seu Bellum civile sem iniciais repercussões, embora seu (agora perdido) poema Laudes Neronis, declamado na primeira celebração em estilo grego da Nerônia quinquenal datada de 60 D.C. (com competições de música, ginástica e equitação) tivesse claramente ajudado, pois Lucano foi coroado e nomeado para o augurado logo depois. 
Contudo, à medida que avançou com seu Bellum civile (que chegou a dez livros, o último inacabado), o poema, influenciado pela saudade republicana de Tito Lívio, pareceu cada vez mais ousado, pronto a atacar os excessos tirânicos do imperador Nero, e isto, bem como as críticas ousadamente enunciadas de Lucano, resultaram na morte do prodígio precoce aos vinte e cinco anos de idade no despertar da conspiração dos Pisões que foi exposta em abril de 65 D.C. 
 
O poeta Lucano compartilha com seu tio Sêneca (Córdoba, 4 a.C.Roma, 65 d.C.), o Moço (também conhecido como "o Rétor"), uma indisfarçável admiração por Catão, de Útica (Cato Uticensis, em latim). Márcio Pórcio CATÃO, o Jovem ou de Útica (Roma, 95 a.C. — Útica, 46 a.C.) ¹, para se distinguir do seu bisavô, Marco Pórcio Catão, o Velho , foi um político romano célebre pela sua inflexibilidade e integridade moral. Partidário da filosofia estóica, era avesso a qualquer tipo de suborno. Opunha-se, particularmente, a Júlio César. Em 45 a.C., César esmagou os republicanos na batalha de Tapso. Catão então cometeu suicídio. 
Mas sua morte não acabou com sua influência. Muitos dos conspiradores que assassinaram César em 44 a.C. conheciam Catão, principalmente Brutus, que era genro de Catão e outro biógrafo. E quando o sobrinho-neto de César, Augusto, tornou-se imperador em 31, ele fez questão de evitar todas as armadilhas do poder. César flertou em ser rei, mas Augusto fingiu que era apenas um cidadão humilde. 
Muitos escritores proeminentes da Roma Imperial, nostálgicos da República morta, compuseram todos os tipos de homenagens a Catão, removendo suas verrugas e pintando-o como um heróico defensor das liberdades perdidas. O poeta Luciano chegou a escrever Farsália, um poema épico tendo Catão como herói.
Os fundadores da América, amantes da liberdade, mergulharam nos clássicos e acharam inspirador o Catão retratado pelos escritores romanos imperiais. O legado de Catão, no entanto, não se limitou aos fundadores. O lema dos Estados Confederados da América era da Farsália de Lucano (livro 1, linha 128): “Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni.” (A causa vitoriosa era querida pelos deuses; a causa perdida, por Catão.) Este tipo de introdução no poema épico ajuda a selar a posição de Catão como a de uma figura de autoridade em contraposição aos deuses, assumindo um papel de  oráculo divino.
Uma das qualidades distintivas de que é dotado o sapiens estóico (representado aqui por Catão, o Jovem), conforme Lucano aprendeu na escola de Aneu Cornuto, é a precaução ou prudência (“ευλάβεια” ou, em latim, cautio), virtude que diz respeito à razão prática e ocupa uma posição central do sistema de virtudes no Estoicismo, eis que discerne o bem do mal e preside as ações, isto é, prevê e procura evitar as inconveniências e os perigos. A prudência, segundo os estóicos, é o contrário do temor, porquanto evita racionalmente o perigo; assim o sapiens nunca tem medo, mas sempre se acha em guarda [LAERTIOS, 2008, 207].
Lendo atentamente o Bellum Civile de Lucano, observa-se a presença de Catão, de Útica, representando a Virtus (virtude, valor) opondo-se à deusa Fortuna ou Fado (em latim, Fatum ou, no plural, Fata). A figura do filósofo estóico ocupa um lugar importante nos livros ou cantos II e IX, eis que incarna as virtudes republicanas e estóicas. No livro IX, especialmente, é onipresente: dos 1108 versos, 800 lhe são dedicados.
 
No livro II de sua Guerra Civil (ou Farsália), Lucano apresenta, pela primeira vez no seu poema épico, a personagem de Catão, de Útica. O trecho relata o encontro de Brutus e Catão. Aí, Brutus vem em busca do filósofo estóico para lhe pedir conselho acerca da atitude a adotar no conflito que opõe César a Pompeu. Se puder dar um título ao trecho que traduzirei do Livro II abaixo (Fars. II, 286-307), vou chamá-lo "O PATRIOTISMO DE CATÃO". Às indagações de Brutus, Catão, um romano e um exemplo vivo da Virtude romana, responde com palavras sagradas tiradas do fundo do coração:
 
Catão de Útica ou Catão, o Jovem no Museu Arqueológico de Rabat, Marrocos. Descoberto na Casa de Vênus, Volubilis.

 
 
Reconhecemos, Brutus, que a guerra civil é a pior abominação de todas, mas a Virtude seguirá desassombrada para onde o Fado me arrastar. O crime seria dos deuses supremos, pelo qual me tornasse culpado. Quem desejaria contemplar as estrelas e o céu desabarem, estando ele próprio livre do medo? Quem, — enquanto o éter desmorona de toda a sua altura, a Terra cambaleia sob o peso e a massa confusa do universo com ela colide, — gostaria de ficar de braços cruzados? Eu usufruirei sozinho do ócio, enquanto nações desconhecidas e reis afastados pelo mar seguirão a fúria da Hespéria ² e as guerras romanas, reinando sob outro céu? Afastai de mim esta desonra, ó deuses supremos: que eu esteja a salvo e seguro, enquanto Roma, com sua queda, terá amotinado os Dahas ³ e os Getas . Assim como o próprio pesar ordena que um pai enlutado, privado de seus filhos pela morte, acompanhe até ao túmulo o longo cortejo fúnebre, e alivia-lhe meter a mão no fogo terrível e, uma vez erguida a pira, segura ele próprio a tocha lúgubre no alto, também não me afastarão de ti, Roma, sem antes abraçar-te exânime, nem antes de seguir até à morte teu nome, Liberdade , e tua sombra vazia . Assim seja! Que os deuses impiedosos tenham seus sacrifícios romanos por completo: não despojemos a guerra de uma única gota de sangue! Oh, oxalá fosse possível oferecer esta cabeça como expiação por todas as penalidades devidas às divindades celestes e infernais!
 
 
 
Summum, Brute, nefas civilia bella fatemur; 
Sed quo fata trahunt, virtus secura sequetur; 
Crimen erit superis et me fecisse nocentem. 
Sidera quis mundumque velit spectare cadentem 
Expers ipse metus? Quis, cum ruat arduus aether, 
Terra labet mixto coeuntis pondere mundi, 
Compressas tenuisse manus? Gentesne furorem 
Hesperium ignotae Romanaque bella sequentur 
Diducti fretis alio sub sidere reges, 
Otia solus agam? Procul hunc arcete pudorem
O superi, motura Dahas ut clade Getasque 
Securo me Roma cadat. Ceu morte parentem 
Natorum orbatum longum producere funus 
Ad tumulos iubet ipse dolor, iuvat ignibus atris 
Inseruisse manus constructoque aggere busti 
Ipsum atras tenuisse faces: non ante revellar 
Exanimem quam te complectar, Roma, tuumque 
Nomen, libertas, et inanem prosequar umbram. 
Sic eat: immites Romana piacula divi 
Plena ferant, nullo fraudemus sanguine bellum. 
O utinam caelique deis Erebique liceret 
Hoc caput in cunctas damnatum exponere poenas! 
 
 
III. ALGUMAS REFERÊNCIAS DE ESTUDIOSOS DA FARSÁLIA 

 
[PICHON, 1912] publicou uma monografia (Les Sources de Lucain) que ainda influencia surpreendentemente todos os estudiosos de Lucano, 110 anos depois do seu lançamento. Ele firmou o entendimento de que Tito Lívio tinha sido a única fonte para os fatos históricos descritos no poema épico Bellum Civile (também chamado FARSÁLIA) de Lucano.
 
No entanto, [ZISSOS, 2013, 138-140] levanta um problema: os oito livros de Lívio cobrindo a guerra civil não existem mais. Sustenta que apelar para a única e decisiva influência de um texto inexistente tem a grande vantagem de excluir refutação decisiva. Ao mesmo tempo, observa que é possível ser certificado, a partir de testemunhos e outras evidências, que Lucano fez uso da narrativa de Lívio em inúmeras passagens. Ele argumenta que sua tese se baseia duas suposições: 1) que Lucano teria tido acesso a uma única fonte para fatos históricos; e 2) que qualquer semelhança entre Lucano e outros autores pós-Lívio se origina na dependência comum de Lívio. Semelhanças e superposições na cobertura entre Lucano e César podem ser explicadas pela mediação de Lívio, uma vez que César foi uma das fontes de Lívio. Caso Lívio seja considerado como intermediário crucial, César pode simplesmente ser dispensado. E para a maioria, ele foi.
Por outro lado, se as considerações de Pichon continuaram prevalecendo no debate crítico, ocasionalmente eram ventilados argumentos a favor de o Bellum Civile da autoria de Júlio César ter sido utilizado por Lucano como fundamento histórico de seu poema épico.
Por exemplo, num artigo de 1957, Haffter apontou para o fato de ambas as narrativas (de César e de Lucano) abrirem e finalizarem quase no mesmo ponto. Este artigo foi seguido, três anos após, por outro de Michel Rambaud provando que o poema épico de Lucano visava uma inversão sistemática da propaganda sutil dos comentários de César sobre a guerra civil. Este último ponto é crucial, pois anuncia uma mudança conceitual fundamental, quer dizer, imagina uma espécie diferente de relação intertextual entre os comentários de César e o poema épico de Lucano. Em vez de considerar César como fonte para Lucano (algo que Pichon rejeitava), Rambaud o tinha redefinido como modelo – mais especificamente, um modelo negativo
Masters apoderou-se dessa noção e desenvolveu-a com perspicácia característica, ponderando César como antimodelo de Lucano em prosa, com Virgílio como seu antimodelo em poesia. Uma das muitas virtudes dessa abordagem é que ela elimina de consideração o que poderíamos chamar de argumentos de simpatia, que agradou uma defesa que cobre pelo menos três diferentes séculos. Tais argumentos rejeitam o uso que Lucano fez dos comentários de César principalmente porque os relatos mitigados deste teriam ofendido as convicções políticas de Lucano, e não teria apelado para suas sensibilidades estéticas; em suma, não teria fornecido suficiente matéria prima para sua narrativa anti-César. Naturalmente, o argumento avança, Lucano teria preferido o relato pompeano de Lívio, que tinha evidentemente já realizado a espécie de “neutralização” e inversão ideológica que Lucano exigia. 
Por outro lado, se supusermos, com Rambaud e Masters, que César é um antimodelo, a prosa equivalente ao poema épico de Virgílio, então não mais olharemos para César da mesma forma que faríamos com uma fonte” como Lívio. Aqui seria útil lembrar a observação perspicaz de Bramble de que “Lucano está no seu melhor quando possui algum padrão a seguir, adaptando, invertendo, ou negando-o.” Em termos ideológicos não teria havido um só texto que Lucano estaria sido mais interessado em neutralizar, oferecer réplica, e realmente apagar a existência, do que os comentários de César sobre a guerra civil. Henderson discutiu bem tais características dos comentários como ventriloquismo negativo dos rivais de César, e o jogo do eufemismo de César contra a depreciação de Pompeu. 
A prosa de César levemente viesada é entre as mais convincentes explicações para a poesia descaradamente viesada de Lucano. Parece inerentemente provável que Lucano não teria poupado esforços para tornar nulos e vazios as sutis mas poderosas correntes ideológicas dos comentários de César. 
 

IV. A PRESENÇA DE FARSÁLIA NA HISTÓRIA

 

Ainda no século I, Lucano foi imitado por poetas da geração imediata, como Sílio Itálico (28-103 d.C.) e Estácio (45-95 d.C). Marcial (38-104 d.C.), carregado de orgulho hispânico, exalta o conterrâneo, dizendo que Lucano juntou o rio Bétis à apolínea fonte de Castália, na Grécia. Igualmente a influência de Lucano é evidente em Petrônio (27-66 d.C.), especialmente em seu Satíricon. 
Bellum Civile é o título encontrado nos manuscritos mais antigos e referidos por Suetônio (69-130 d.C.), autor de capítulo sobre Lucano no livro De viris illustribus, e Vacca, autor de Vita Lucani, gramático do século VI d.C. e comentador das obras de Lucano. 
Desde o começo, muitos estudiosos têm dúvida em classificar Bellum Civile, uns como uma épica histórica devido à aproximação do estilo de Lucano ao dos historiadores latinos (Tito Lívio, especialmente), enquanto outros o definem como poesia épica. Por exemplo, Voltaire o considera uma obra de história, quando diz: "Alguns de seus discursos têm a majestade daqueles de Tito Lívio e o vigor de Tácito. Ele descreve como Salústio, em uma palavra, ele é grande sobretudo onde ele não quer ser poeta." 
Parece que, mais modernamente, está prevalecendo o entendimento de que Bellum Civile é o representante de um momento singular do gênero épico. 
Na Idade Média, o poema épico de Lucano passou a integrar o cânone dos autores, tornando-se extremamente popular e seu texto foi amplamente divulgado, passando a ser muito citado em centenas de autores europeus. Farsália foi o poema épico mais popular e conhecido, depois da Eneida de Virgílio. 
Da Idade Média estão preservados acima de 400 manuscritos contendo partes do texto. Lamentavelmente, a contaminação e a interpolação têm sido fatores dominantes desde o começo. 
Mais tarde Camões imitou o poeta hispânico em várias passagens, e tem nele o precursor do motivo literário da "máquina do mundo" e de uma epopeia em 10 cantos. Excertos do Bellum Civile foram traduzidos ou imitados por ilustres poetas portugueses, incluindo Filinto Elísio (canto I), Camões (canto II) e Bocage (descrição do bosque de Marselha, do canto III). A tradução mais extensa pertence a José Feliciano de Castilho (Lisboa, 1810-Rio de Janeiro, 1879), que publicou os cantos I, VI, VII e metade do X em periódicos de Portugal e do Brasil
 
 

V. NOTAS EXPLICATIVAS

 

¹  A biografia de Catão, o Jovem faz parte de uma série de biografias em prosa escritas por Plutarco (c. 46 d.C.-120 d.C.), um historiador grego que viveu no Império Romano. Nessa série intitulada Vidas Paralelas, Plutarco compara vários nomes da história grega com seus equivalentes romanos. Catão foi comparado com Fócion, político e general ateniense do século IV a.C.
 
²  A Hespéria, também chamada Erytheia (Ilha Vermelha) localizada no Sul da Espanha ou Noroeste da África, na mitologia grega. A exata localização dessa ilha ainda é objeto de debate entre os geógrafos. Acredita-se que se tratasse de ilhas na costa oeste da África do Norte, provavelmente as ilhas Canárias. 
A Hespéria era uma ilha onde viviam as Hespérides, ninfas que eram guardiãs das maçãs douradas que Gaia tinha presenteado Hera no seu casamento com Zeus. Essas ninfas e suas maçãs brilhantes e douradas eram consideradas como a fonte da luz crepuscular dourada – um fenômeno que celebrava o noivado de Zeus e Hera, pai e mãe dos deuses do panteão grego. Os poetas as descrevem como possuídas pelo poder da doce canção. 
O Jardim das Hespérides era conhecido como jardim dos imortais, pois continha um pomar que abrigava árvores mágicas de onde nasciam os pomos de ouro, considerados fontes de juventude eterna. O Jardim das Hespérides era guardado por um Dragão (serpente) de cem cabeças. 
Plínio, o Velho e Solino relatam apenas dois mortais (heróis) que encontraram os Jardins das Hespérides: Perseu quando fora enfrentar Medusa; e Hércules num de seus famosos Doze Trabalhos.
 
³  Dahas: uma confederação de 3 tribos que viviam a leste do Mar Cáspio, região conhecida como Dahestan, provavelmente a norte da chamada Hyrcânia. Segundo o historiador babilônico Beroso, o Caldeu, Ciro II, o Grande, fundador do império persa aquemênida, morreu lutando contra os Dahas. 

⁴  Getas: povo que habitava as regiões para ambos os lados do Baixo Danúbio, onde hoje é o norte da Bulgária e o sul da Romênia. Alguns estudiosos, especialmente na historiografia romena, postulam que os Getas e os Dácios eram o mesmo povo.

⁵  Por um lado, Roma e Liberdade são os motivos de Catão para a sua adesão à guerra civil, ao lado de Pompeu e Brutus. Com sua declaração, coloca-se Catão individualmente à parte, pois todos os envolvidos com a guerra têm-se mostrado guiados por algum outro instinto, seja de autopreservação seja de ganho egoísta. Por outro lado, também na mesma declaração do filósofo estóico, Roma e Liberdade  se revelam como as verdadeiras vítimas da guerra civil e se tornam os objetos da sua devotio (voto com que dedica sua vida à expiação dos crimes como auto-sacrifício propiciatório) que em última análise motivam sua entrada na guerra com sua participação efetiva. Embora Roma e Liberdade estejam condenadas à derrota e à morte, resta ver-se o que Catão espera realizar com o seu envolvimento na guerra civil a favor de ambas, na sequência do discurso de Catão neste livro II e, especialmente, no livro IX de Farsália.

Diferentemente do uso frequente de "inanis" como "vazio ou vão", aqui Catão interpreta que a Liberdade está além de qualquer esperança de recuperação, ligando o conceito de "inanis" à morte, que apresenta pelo menos a possibilidade de posterior comemoração.

Todo o trecho traduzido é composto de duas partes: 1) a primeira se encerra até à expressão "Assim seja!",  caracterizada por ser uma descrição notável, por sua intensidade emocional bem como por suas conotações sócio-políticas detectáveis nos verbos iubet/iuvat (ordena/alivia) e na alegoria do pai, uma figura carregada de implicação política; 2) na segunda parte, Catão sugere a prática da devotio (oferecendo-se como vítima expiatória), na qual, por um motivo de interesse coletivo, se consagrava uma pessoa aos deuses infernais.
No Livro II, vv. 297-316, a virtude de Catão orientada para fora é reiterada quando ele esboça sua morte como sacrifício (piaculum, v. 304), através do qual deseja que Roma possa ser redimida e restaurada em qualidade. Enquanto os deuses exigem expiação dos romanos, ele lembra o sacrifício de Décio da própria vida (devotum Decium, 308) e expressa a esperança de que poderia restaurar a paz oferecendo sua cabeça para expiar todas as faltas (hoc caput in cunctas damnatum exponere poenas, vv. 306-7).
Assim, no livro II, vv. 297-305, o Catão de Lucano se parece com a figura dos Décios (pelo menos, dois desta família), embora, em contraste com o segundo Décio, ele não mais esteja preocupado com os deuses que queriam a guerra civil, mas apenas com o destino da República. Sob o signo da devotio símbolo do devotamento absoluto à Pátria , Catão anunciou sua morte como um auto-sacrifício que transfere (confers) seus benefícios a outros e quer convencer suas alianças internas e externas a lutarem. Os espectadores de uma devotio desempenham um importante papel, pois supõe-se que o impulso sacrificial do homem devotado os inspire a lutar mais intensamente contra o inimigo. O Catão de Lucano está convocando Brutus e os romanos a fazerem algo sobre sua iminente perda. O juramento que ele formula será cumprido pelo seu suicídio em Útica, que não pode ser avaliado unicamente como uma "vitória da virtude" privada, porém precisa ser considerada um ato benéfico e inspirador. Como M. Thorne observa, não só a participação de Catão na guerra é ditada por razões próprias, mas a devotio de Catão possui o objetivo essencial de memorializar o ideal de uma Roma livre e como tal é uma autêntica obra de pietas (Thorne 2010: 149 e 163).

  Eu li "pudorem" em vez de "furorem", interpretando que seria de bom tom não ter a repetição do mesmo termo (furorem) na mesma posição (final de versos muito próximos, isto é, vv. 292 e 295); seja como for, o sentido geral ainda permanece bastante constante, quer na acepção de pudor (desonra, vergonha), quer na acepção de furor (fúria, loucura).

  Lucano foca no cortejo fúnebre com o verbo persequar (eu siga até à morte/I follow into death), preferido ao mais frágil prosequar (eu acompanhe/I escort) (cf. Fantham 1992:135). No grupo "non ante revellar... persequar umbram" (vv. 301-3), "Catão traça a analogia entre o luto de um pai que persiste depois da morte e seu amor pelo Estado livre republicano apresentado numa hendíadis ¹⁰ de Roma e Liberdade" (Fantham 1992:135). Catão incapaz de ser arrancado da República moribunda, caminha para o seu túmulo e abraça seu cadáver (exanimem quam te complectar, Roma) (v. 302). A sintaxe e a escolha da palavra ligam-no tão fortemente à República moribunda que a cena pode ser lida como uma antecipação da morte do próprio Catão.

¹⁰  Transcrevo o que diz o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa sobre hendíadis, uma figura de retórica que pretende gerar uma noção mediante o uso de duas palavras coordenadas:
"Hendíadis é a figura que consiste em exprimir por dois substantivos, ligados por conjunção copulativa, uma ideia que usualmente se designa por um substantivo e um adjetivo ou complemento nominal (p. ex. enterrou as suas mágoas no silêncio e no claustro em lugar de no silêncio do claustro ou no claustro silencioso)." Etimologicamente, a palavra hendíadis provém do grego e significa "um através de dois". Desta forma, a ideia de Roma e Liberdade pode ser convertida em Roma livre ou Liberdade romana.
 

 

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BEHR, Francesca D’Alessandro: Sage, soldier, politician, and benefactor: Cato in Seneca and Lucan, in ZIENTEK & THORNE (orgs.): Lucan’s Imperial World: The Bellum Civile in its Contemporary Contexts, cap. 8, pp. 151-170 
 
FANTHAM, E.: De Bello Civili. Livro 2. Texto e Comentário. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. 
 
HENDERSON, John: “Lucan: The Word at War”, Ramus 16, 122-64, 1987.

_____________ Fighting for Rome. Poets and Caesars, History and Civil War. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. 

LAERTIOS, Diógenes: Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos ilustres, Brasília: Ed. UnB, 2008, 357 pp.
 
LUCANO: FARSÁLIA: cantos I a V (1º volume). Introdução, tradução e notas: Brunno V. G. Vieira, Campinas: Editora da Unicamp, 2011, 421 pp. 
 
LUCANO: A GUERRA CIVIL (FARSÁLIA). Tradução do latim coordenada por Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2020, 313 pp. 
 
MASTERS, J.: Poetry and Civil war in Lucan’s Bellum Civile. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. 
 
PICHON, R.: Les sources de Lucain. Paris: Ernest Leroux, 1912. 

PLUTARCO: VIDAS PARALELAS
 
RAMBAUD, Michel: L'art de la déformation historique dans les Commentaires de César. Paris: Belles Lettres, 1953: 1 vol. in-8º de 410 pp. (Annales de l'Université de Lyon) 
 
THORNE, Mark Allen: Lucan’s Cato, the defeat of victory, the triumph of memory. Tese submetida à Universidade de Iowa para obtenção de seu PHD em Estudos Clássicos, 2010, 223 pp. 
 
ZISSOS, Andrew: Lucan and Caesar: Epic and Commentarius, 2013. 

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
É com alegria que fiz a tradução do célebre discurso de CATÃO, de Útica, filósofo estóico que se aliou aos republicanos Pompeu e Senadores romanos na tentativa de derrotar Júlio César.
Como os republicanos foram derrotados por César na batalha de Tapso, Catão não titubeou em cometer o suicídio em Útica.
Neste trabalho, veremos a estreia de Catão no poema épico FARSÁLIA de LUCANO através do seu discurso, antes de alistar-se no exército de Pompeu, a convite de Brutus (que futuramente participará do assassinato de César). Neste texto é possível verificar a figura inflexível e de autoridade e integridade moral, que representa Catão para seus contemporâneos.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/01/o-patriotismo-de-catao-na-farsalia-de.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

António Valdemar (jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-cadeira nº 3) disse...

Caro Francisco Braga

Muito obrigado pelo envio da sua tradução do célebre discurso de CATÃO e dos seus eruditos comentários.
Vou ler com todo o interesse e a maior atenção
Abraço cordial do Antonio Valdemar

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Olá, estimado amigo. Muito obrigado. Abraços.
Diamantino

Raquel Naveira (membro da Academia Matogrossense de Letras e, como poetisa publicou, entre outras obras, Jardim Fechado, antologia poética em comemoração aos seus 30 anos dedicados à poesia) disse...

Caro Francisco Braga,
Que belas figuras históricas.
Como foram difíceis e violentos os tempos romanos.
E a Retórica em ascensão com a República.
Obrigada pelo envio da tradução do discurso de Catão.
Abraço fraterno,
Raquel Naveira

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga;

Um tema sempre fascinante e atual, cuja apresentação e tradução de Lucano em seu texto conferem colorido especial. No campo da política, a ética do estoicismo revela-nos o próprio valor da "consciência pública" que se associou em definitivo no pensamento ocidental.
Saudações por mais essa contribuição no estudo e divulgação do classicismo.
Muito grato.
Cupertino