Argumento, tradução literal do latim, comentários e bibliografia sugerida por Francisco José dos Santos Braga
PÚBLIO OVÍDIO NASO (✰ Sulmona, Abruzzo, Itália, 43 a.C. - ✞ Constança, Romênia, 18 d.C. / Crédito: Ancient History Encyclopedia |
O poeta infeliz e exilado em Tomis na Cítia (hoje Constança, na Romênia) aconselha a seu livro que, tendo de partir da Cítia para Roma, tome o aspecto que convém a um desterrado, recomenda o que deve responder aos que perguntarem o que ele faz. Ensina ao mesmo tempo como deverá desculpar-se, se os versos parecerem inferiores ao seu talento. Ordena finalmente que evite o palácio de César, de onde o raio lhe fora arremessado, isto é, a ordem de partir para o degredo em 8 d.C..
Nesta primeira Elegia (Tr. I, 1), de caráter programático, o eu-poético Ovídio dirige-se a seu livro, que parte para Roma, e lhe apresenta uma série de instruções sobre como se comportar durante a viagem e na Urbe. A apóstrofe ao livro — parve liber (Tr. I, 1, 1, “ó livrinho”) —, uma vez que o coloca como interlocutor, já configura um primeiro elemento de sua antropomorfização, que se desenvolverá ao longo dessa elegia e da obra como um todo. A esse respeito, deve-se lembrar que a referência ao livro é um procedimento tradicional, tendo suas fontes na epopeia homérica (os σήματα λυγρά, sinais sinistros numa placa levados por Belerofonte a mando de Proetus para a Lícia in Hom. Il. 6.163-71), e na literatura latina, em Catulo (Carm. 1 e 35) e em Horácio (Ep. I, 20).
Nesta elegia ovidiana, porém, ele adquire um novo significado, pois o seu dominus (dono, pai ou autor) está exilado. Diante disso, o livro/carta desempenha a função de intermediário do autor, levando sua mensagem a Roma e aos destinatários distantes, e, sobretudo, assume características do poeta exilado, já que, identificando-se com ele, o substitui e o representa nos locais a ele vedados. Assim, pode-se pensar, por um lado, em uma metamorfose do poeta em "livro": transformado em sua obra, Ovídio alcança Roma. Por outro, é o livro que se metamorfoseia em poeta, ao se tornar eu-poético desta elegia.
Na elegia I, 1, o eu-poético Ovídio explicita o aspecto exterior de seu livro e defende que ele deva transparecer a situação de seu autor. Assim, enquanto livro de um exilado, deve ser incultus (“sem polimento”, v. 3) e infelix (“triste”, v. 4), cuidando de não apresentar cores vivas, inadequadas ao luto e ao sofrimento (v. 6). Quanto às semelhanças entre livro e autor, elas são intensificadas pela antropomorfização do livro.
Na elegia I, 1, o eu-poético Ovídio explicita o aspecto exterior de seu livro e defende que ele deva transparecer a situação de seu autor. Assim, enquanto livro de um exilado, deve ser incultus (“sem polimento”, v. 3) e infelix (“triste”, v. 4), cuidando de não apresentar cores vivas, inadequadas ao luto e ao sofrimento (v. 6). Quanto às semelhanças entre livro e autor, elas são intensificadas pela antropomorfização do livro.
Logo, de início, Ovídio apresenta-se como dominus (dono, pai ou autor, v. 10) de seu livrinho, o que implica uma relação de superioridade e autoridade, bem como a ideia de posse e responsabilidade sobre a obra. Neste plano textual superior, situa-se a figura do poeta, dotado de autoconsciência literária e manipulador do texto. Essa diferenciação dos termos esclarece o jogo de alternância de personae (máscaras), que instaura na obra verdadeiras metamorfoses, entre as quais se destaca aquela em que o próprio eu-poético é transformado em livro.
Constata-se a existência de um "eu-exilado", personagem da obra, um "eu-poeta" (o exilado que afirma ter perdido suas habilidades, mas, ainda assim, escreve) e, por fim, um poeta, que se situa num nível enunciativo superior e se expressa frequentemente de forma irônica e paródica.
A esses três âmbitos, soma-se ainda o fato de que o eu-exilado, nesta e em outras elegias, veste a máscara de diversos “eus”. Essa diferenciação dos termos esclarece o jogo de alternância de personae, que instaura na obra verdadeiras metamorfoses, entre as quais se destaca aquela em que o próprio eu-poético é transformado em livro.
Constata-se a existência de um "eu-exilado", personagem da obra, um "eu-poeta" (o exilado que afirma ter perdido suas habilidades, mas, ainda assim, escreve) e, por fim, um poeta, que se situa num nível enunciativo superior e se expressa frequentemente de forma irônica e paródica.
A esses três âmbitos, soma-se ainda o fato de que o eu-exilado, nesta e em outras elegias, veste a máscara de diversos “eus”. Essa diferenciação dos termos esclarece o jogo de alternância de personae, que instaura na obra verdadeiras metamorfoses, entre as quais se destaca aquela em que o próprio eu-poético é transformado em livro.
II. TRADUÇÃO LITERAL
Ai de mim! Ó livreto, irás à Urbe sem mim — e não impeço — aonde ir não é permitido ao teu dono. Vai, mas sem polimento, como convém ao livro de um exilado. Triste, veste a roupa que é própria desta circunstância ¹: Não te cubram os mirtilos com o seu corante purpúreo: esta cor não combina com lutos; nem será realçado o (teu) título com o mínio, nem (teu) papiro com o cedro. Também não levarás "cornos" brancos na "fronte" negra. Que esses aparatos ornem livrinhos felizes; a ti convém lembrares a minha sorte. Nem (tuas) duas capas sejam polidas pela macia pedra-pomes, para que pareças desleixado com (tua) cabeleira desgrenhada. Nem te envergonhes das manchas: quem as vir, perceberá terem sido feitas por minhas lágrimas.
Vai, ó livro, e saúda em meu nome os lugares gratos a mim. Vou tocá-los pelo menos com aquele pé ² que me é permitido.
Se (houver) ali alguém, como (é natural) na multidão, não esquecido de mim ³; se houver alguém que pergunte, por acaso, o que eu faço, dirás que eu existo; entretanto, negarás que eu viva bem; até o fato de que esteja vivo, considero um presente de deus. Afora isso, mantém-te discreto — a quem buscar mais coisas —, dá-te para ler.
Cuidado! Não digas, por acaso, o que não é necessário: de imediato, o leitor avisado vai rememorar os meus crimes. E eu serei condenado como réu pela boca do povo. Cuidado! Não (me) defendas, mesmo que sejas atormentado por injúrias, pois (minha) má causa não se tornará melhor com a defesa. Encontrarás alguém que suspire por mim no exílio, que leia estes versos com pálpebras que não estejam secas. E, discreto, deseje consigo que nenhum perverso os ouça. Que seja atenuada a minha pena, após abrandar-se César. Eu também rogo aos deuses que não seja infeliz aquele, seja ele quem for, que deseje deuses mais indulgentes para com (este) desgraçado. E que sejam realizados seus desejos! E que a ira do príncipe apaziguada me permita morrer no seio da pátria!
Mesmo que cumpras essas ordens, ó livro, talvez sofrerás censura: serás julgado por estares aquém do meu talento. É dever do juiz averiguar os fatos, assim como as circunstâncias dos fatos, que, examinadas, estarás a salvo. A poesia nasce sob a inspiração de um espírito sereno: meus dias estão turvados com súbitas desgraças. A poesia exige o sossego e o ócio do escritor: sou joguete do mar, de ventos, de rigoroso inverno. Toda inquietação (me) afasta da poesia: eu, desvairado, imagino desde já que uma espada hesitará em perfurar minha garganta. Um juiz imparcial admirará também isto que faço, e vai ler quaisquer escritos meus com indulgência. Dá-me um Homero e cerque-o de tantos infortúnios; tão grandes males destruiriam todo o seu gênio.
Finalmente, ó livro, não te preocupes com a opinião pública, lembra-te de partir e não tenhas vergonha de haver desagradado, depois de lido. Assim como a sorte não se mostra favorável a mim, a causa da fama não deve te preocupar. Na época da minha prosperidade, eu era tocado pelo desejo da glória e tinha a paixão por ganhar renome. Ora, se não odeio a poesia e a paixão que me prejudicou, isso deve bastar: meu exílio é o fruto do meu talento para a poesia.
Vai enfim, vai por mim, tu, a quem é permitido, contempla Roma. Ah! fizessem os deuses com que eu agora pudesse ser meu livro!
Não penses que, chegando estranho a esta imensa cidade, chegas lá desconhecido pelo seu povo; mesmo sem título, só a tua cor te fará reconhecido: mesmo que quisesses encobrir que és meu. Porém, entra secretamente, para que meus versos anteriores não te prejudiquem: não gozam mais do mesmo favor de outrora. Se houver alguém que pense que não devas ser lido, porque és meu, e te rejeite de seu seio, dize-lhe: "Olhe para meu título: não sou mestre de amor: os castigos que mereceu, aquela obra já os sofreu" ⁴.
Talvez esperas que eu te mande subir ao alto Palatino e ao paço de César. Que aqueles augustos sítios e as suas divindades ⁵ me perdoem esta confissão: daquela colina partiu o raio que caiu sobre minha cabeça. Certamente, lembro que divindades muito benevolentes estão naqueles sítios, mas temos os deuses que me prejudicaram. A pomba ferida pelas tuas garras, ó falcão, fica aterrorizada com o mínimo ruído de tua asa. Se uma ovelha foi arrancada dos dentes de um lobo voraz, não ousa afastar-se para longe dos apriscos. Faetonte ⁶ evitaria o céu, se vivesse, e não quereria conduzir os cavalos que desejara loucamente. Confesso também que temo as armas de Júpiter, que já senti: acho que sou atingido pelo fogo funesto, quando troveja. Qualquer barco da frota argólica evita o promontório Cafaréu, desvia sempre as velas ds águas eubóicas. E minha barca, uma vez golpeada por grande tempestade, tem horror a ir àquele local, onde foi avariada. Portanto, querido livro, considera com espírito prudente que te baste seres lido por gente comum. Enquanto Ícaro ⁷ procurava atingir as alturas com asas muito fracas, deu nome ao mar Icário. Contudo, é difícil aqui dizer se deves usar os remos ou as velas: o tempo e o lugar servirão de guias. Se puderes apresentar-te nas horas de lazer; se te parecer tudo tranquilo; se a ira tiver abrandado sua violência; se houver alguém que, ensinando-te quando te achares indeciso e tímido de se expor, e antes fale pouco, vai em frente! Em boa hora e com mais sorte do que eu, teu dono, chegarás ali e aliviarás meus infortúnios. Com efeito, ou ninguém, ou quem me feriu pode sozinho curar minhas feridas, à maneira de Aquiles ⁸. Apenas, toma cuidado para que não me prejudiques, enquanto queres me servir; pois minha esperança é menor do que o temor de meu espírito. Acautela-te para que a ira provocada e que dormia não recrudesça e tu não constitua outro motivo de castigo.
Todavia, quando fores recebido em meu santuário, e chegares ao teu escrínio circular, tua morada, verás ali, depositados em ordem, teus irmãos, para todos os quais se trabalhou sem descanso com o mesmo cuidado. O grupo restante trará na fronte descoberta seus títulos. Verás longe três livros ⁹ que se ocultam num lugar escuro: também ensinam a amar, o que ninguém ignora. Ou tu os evitarás, ou, se tiveres coragem suficiente de nomear, dá-lhes as denominações de Édipo e Telégono ¹⁰. E exorto, se tens alguma afeição por teu pai, que a nenhum dos três ames, embora ele próprio ensine (a amar).
Há também quinze livros da "Metamorfose", versos há pouco arrebatados de meus funerais: encarrego-te de dizer-lhes ser possível representar, entre essas metamorfoses, a figura da minha sorte. Porquanto ela, subitamente, se tornou diferente da anterior: outrora foi alegre, agora é deplorável.
OVÍDIO ENTRE OS CITAS(1859), por Eugène Delacroix, mostra o poeta vestido de branco em meio a figuras armadas e uma paisagem parda e entediante |
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Os próximos versos de Ovídio deste parágrafo descrevem o processo que era utilizado para confeccionar livros em sua época. Inicialmente, cabe esclarecer que na Antiguidade o processo de carregar registros importantes era através de tabuletas ou placas de argila, pedra, barro, madeira e outros materiais. Mais tarde, principalmente no Egito, surgiu uma nova forma de imprimir a história. Cyperus papyrus é o nome da planta egípcia da qual, a partir do seu talo, eram extraídas as folhas de papiro.
A produção de livros de papiro foi impulsionada no século III a.C. com a criação da biblioteca de Alexandria. As obras eram tão importantes que, durante o Império Romano, os livros eram alvos constantes de saques, durante as guerras.
Segundo [PRATA, 2007, 121, nota 1, apud POLI, 1944],
“o livro era composto de folhas de papiro, tratadas com óleo de cedro para serem conservadas e tingidas de amarelo, enroladas em cilindros, cujas extremidades chamavam-se “cornos”. Esses, feitos de marfim, osso ou madeira, eram brancos e serviam de adornos; por isso, algumas vezes eram pintados com cores vivas. As “frontes”, conforme Paoli (1944, p. 169), eram as margens extremas do rolo de papiro e, como não eram coladas, podiam facilmente se desfiar. Contudo, eram polidas cuidadosamente com a pedra-pomes para tirar toda a descontinuidade e desigualdade. Também havia o costume de tingi-las com cores vivas ou cor negra, pois eram como que a “capa” do livro, em cuja extremidade superior se escrevia o nome do autor e do título da obra.”
Apesar do grande sucesso, o papiro logo cedeu seu lugar na história dos livros para um novo formato. Passados dois séculos depois do processo descrito por Ovídio, o códice deu origem ao processo de encadernação. Códice nada mais era do que um livro em material mais durável, que permitia escrever de ambos os lados da folha, dobrá-la e costurá-la, formando cadernos. A encadernação só foi possível após a substituição do papiro pelo pergaminho.
A principal diferença entre o pergaminho e o papiro é que enquanto este era impresso em vegetais, o pergaminho era uma técnica de escrita feita de pele curtida de animais (principalmente cabra ou cordeiro).
Junto com o pergaminho, chegamos à Idade Média. É nessa época dos mosteiros medievais que os livros em pergaminhos ganham notoriedade, sendo a forma mais utilizada de difusão do livro.
É nessa época também que surgem o manuscrito e o trabalho do copista. Na verdade, um justifica a existência do outro.
Os livros medievais eram produzidos, principalmente, nos mosteiros, com objetivo de difundir a cultura clássica. Os livros eram escritos totalmente à mão, por isso o termo "manuscrito". E os livros eram copiados um a um pelos monges (copistas) e cada cópia representava um exemplar único.
O sucesso do manuscrito chegou aos âmbitos laicos, como universidades.
O pergaminho foi perdendo espaço até o aparecimento da imprensa no século XV. Mas, um século antes, outro fator seria determinante: por conta da influência árabe na Europa, o pergaminho começou a ser trocado pelo papel.
Cf. PAOLI, Ugo Enrico: URBS: LA VIDA EN LA ROMA ANTIGUA, 1944.
² Ovídio revela-se ambíguo ao utilizar o termo pé, que pode se referir tanto ao livro como prolongamento do autor quanto ao pé métrico, isto é, à unidade rítmica do poema.
Na Antiguidade, o poeta recitava seus poemas acompanhado de lira ou marcando o ritmo com o pé, de onde lhe veio o nome. O pé compõe-se de duas ou mais sílabas. Os tipos mais frequentes (básicos) são:
Troqueu – pé formado por uma sílaba longa e uma breve;
Iambo ou jambo – formado por uma sílaba breve e uma longa;
Dátilo – formado por uma sílaba longa e duas breves;
Anapesto – formado por duas sílabas breves e uma longa.
Troqueu – pé formado por uma sílaba longa e uma breve;
Iambo ou jambo – formado por uma sílaba breve e uma longa;
Dátilo – formado por uma sílaba longa e duas breves;
Anapesto – formado por duas sílabas breves e uma longa.
³ Neste verso — Si quis, ut in populo, nostro non immemor illi — Ovídio alude sutilmente à sua obra anterior, Ars Amatoria (A Arte de Amar), cujo verso inicial é Si quis in hoc artem populo non novit amandi (Se existir alguém que, em meio a esta gente, não conheça a arte de amar [...])
⁴ Ovídio refere-se a seu livro A Arte de Amar, obra que foi retirada das bibliotecas públicas por ser considerada indecente.
⁵ O palácio de Augusto foi edificado sobre o Monte Palatino em Roma, onde já se encontravam vários templos de deuses protetores, como Júpiter ou Jove, sua esposa Juno, Apolo que também esteve presente na religiosidade romana com o mesmo nome, etc.
⁶ Eis a versão de Ovídio para o mito. Durante muito tempo, Faetonte ou Faéton desconheceu a identidade de seu pai verdadeiro (o Sol ou Hélio), pensando ser Mérope, e, quando sua mãe Climene lhe contou a verdade, Faetonte se dirigiu ao palácio de Hélio para perguntar-lhe se o que sua mãe lhe contara era verdadeiro. Hélio confirmou a versão de Climene e, para que não restassem dúvidas, jurou que faria qualquer desejo do filho. Então, este pediu para conduzir o carro do pai ou carro de fogo, como prova de sua filiação, o que lhe foi concedido. Faetonte lançou-se à aventura. Depois de quase esbarrar nas constelações, queimou a Terra e evaporou a água com o calor que emanava do carro. Perante um grito de desespero da Mãe Terra, Jove lançou um raio que precipitou Faetonte nas águas do rio Erídano (identificado por Políbio como o rio Pó, no norte da Itália.
⁷ Ícaro é filho de Dédalo e de uma escrava de Minos, chamada Náucrate. Expulso de Atenas por matar o seu sobrinho Pérdix, Dédalo refugiou-se na ilha de Creta junto ao rei Minos. Após a morte do Minotauro, Dédalo e seu filho Ícaro ficaram presos no labirinto. Decidiram então fabricar asas para poderem sair de lá. Depois de prontas, Dédalo recomendou a Ícaro que voasse próximo a ele. Ícaro, esquecendo-se da recomendação, voou muito alto em direção ao sol e a cera que unia as penas derreteu, levando-o a cair no mar Egeu, afogando-se na área que hoje leva o seu nome, o mar Icário, perto de Icária, uma ilha a sudoeste de Samos.
⁸ Na mitologia grega, Télefo, filho de Hércules e da sacerdotisa Auge, desempenhou um importante papel na Guerra de Tróia. Aparentemente, foi abandonado por sua mãe e recolhido por uns pastores. Quando chegou à idade adulta, retornou à Mísia em busca de seus pais. Ali reinava Teutras, que prometeu a Télefo a mão de sua filha e seu reino, caso vencesse o inimigo, os Gregos.
Na tomada de Mísia foi ferido por Aquiles. Os Gregos, por um oráculo que fazia depender de Télefo o resultado da Guerra de Tróia, convenceram Ulisses a ajudá-los. Télefo se curou com um remédio feito com a ferrugem da lança de Aquiles e contribuiu para a vitória dos Gregos.
Através dessa alusão, Ovídio compara-se a Télefo, bem como associa Augusto a Aquiles: para Ovídio, Augusto seria a única pessoa que poderia livrá-lo do exílio, uma vez que fora ele mesmo quem lhe infligira tal pena.
⁹ São os três livros que compõem A Arte de Amar.
¹⁰ Édipo, filho de Jocasta e de Laio, matou o pai sem saber; Telégono, filho mais novo de Ulisses e de Circe, também matou o seu pai Ulisses de forma não intencional. Telégono, tendo sabido por Circe quem era seu pai, partiu à procura de Ulisses. Desembarcou em Ítaca e começou a devastar os rebanhos que encontrava. O velho e alquebrado herói saiu em socorro dos pastores, ocasião em que foi morto pelo filho. Quando este tomou conhecimento da identidade de sua vítima, chorou amargamente e, acompanhado de Penélope e Telêmaco, transportou-lhe o corpo para a ilha de sua mãe Circe. Lá a senhora da ilha de Eéia fez com que Telégono desposasse Penélope, e ela própria, Circe, se casou com Telêmaco.
No poema, Ovídio compara A Arte de Amar a esses dois personagens (Édipo e Telégono), visto ser essa obra considerada aqui como causa, não intencional, do exílio, que é para os romanos uma espécie de morte em vida, pois implica perda de direitos civis, públicos e institucionais.
IV. TEXTO LATINO
Liber I, Elegia prima
Parve – nec invideo – sine me, liber, ibis in urbem:
ei mihi, quod domino non licet ire tuo!
vade, sed incultus, qualem decet exulis esse;
infelix habitum temporis huius habe.
nec te purpureo velent vaccinia fuco –
non est conveniens luctibus ille color –
nec titulus minio, nec cedro charta notetur,
candida nec nigra cornua fronte geras.
felices ornent haec instrumenta libelos:
fortunae memorem te decet esse meae.
nec fragili geminae poliantur pumice frontes,
hirsutus sparsis ut videare comis.
neve liturarum pudeat; qui viderit illas,
de lacrimis factas sentiat esse meis.
vade, liber, verbisque meis loca grata saluta:
contingam certe quo licet illa pede.
siquis, ut in populo, nostri non inmemor illi,
siquis, qui, quid agam, forte requirat, erit:
vivere me dices, salvum tamen esse negabis;
id quoque quod vivam, munus habere dei.
atque ita tu tacitus – quarenti plura legendus –
ne, quae non opus est, forte loquare, cave!
protinus admonitus repetet mea crimina lector,
et peragar populi publicus ore reus.
tu cave defendas, quamvis mordebere dictis;
causa patrocinio non bona peior erit.
invenies aliquem, qui me suspiret ademptum,
carmina nec siccis perlegat ista genis,
et tacitus secum, ne quis malus audiat, optet,
sit mea lenito Caesare poena levis.
nos quoque, quisquis erit, ne sit miser ille, precamur,
placatos miseris qui volet esse deos;
quaeque volet, rata sint, ablataque principis ira
sedibus in patriis det mihi posse mori.
ut peragas mandata, liber, culpabere forsan
ingeniique minor laude ferere mei.
iudicis officium est ut res, ita tempora rerum
quaerere. quaesito tempore tutus eris.
carmina proveniunt animo deducta sereno;
nubila sunt subitis tempora nostra malis.
carmina secessum scribentis et otia quaerunt;
me mare, me venti, me fera iactat hiems.
carminibus metus omnis obest; ego perditus ensem
haesurum iugulo iam puto iamque meo.
haec quoque quod facio, iudex mirabitur aequus,
scriptaque cum venia qualicumque leget.
da mihi Maeoniden et tot circumice casus,
ingenium tantis excidet omne malis.
denique securus famae, liber, ire memento,
nec tibi sit lecto displicuisse pudor.
non ita se nobis praebet Fortuna secundam,
ut tibi sit ratio laudis habenda tuae.
donec eram sospes, tituli tangebar amore,
quaerendique mihi nominis ardor erat.
carmina nunc si non studiumque, quod obfuit, odi,
sit satis; ingenio sic fuga parta meo.
tu tamen i pro me, tu, cui licet, aspice Romam.
di facerent, possem nunc meus esse liber!
nec te, quod venias magnam peregrinus in urbem,
ignotum populo posse venire puta.
ut titulo careas, ipso noscere colore;
dissimulare velis, te liquet esse meum.
clam tamen intrato, ne te mea carmina laedant;
non sunt ut quondam plena favoris erant.
siquis erit, qui te, quia sis meus, esse legendum
non putet, e gremio reiciatque suo,
“inspice” dic “titulum. non sum praeceptor amoris;
quas meruit, poenas iam dedit illud opus.”
forsitan expectes, an in alta Palatia missum
scandere te iubeam Caesareamque domum.
ignoscant augusta mihi loca dique locorum!
venit in hoc illa fulmen ab arce caput.
esse quidem memini mitissima sedibus illis
numina, sed timeo qui nocuere deos.
terretur minimo pennae stridore columba,
unguibus, accipiter, saucia facta tuis.
nec procul a stabulis audet discedere, siqua
excussa est avidi dentibus agna lupi.
vitaret caeleum Phaëton, si viveret, et quos
optarat stulte, tangere nollet equos.
me quoque, quae sensi, fateor Iovis arma timere:
me reor infesto, cum tonat, igne peti.
quicumque Argolica de classe Capherea fugit,
semper ab Euboicis vela retorsit aquis;
et mea cumba semel vasta percussa procela
illum, quo laesa est, horret adire locum.
ergo cave, liber, et timida circumspice mente,
ut satis a media sit tibi plebe legi.
dum petit infirmis nimium sublimia pennis
Icarus, aequoreas nomine fecit aquas.
difficile est tamen hinc, remis utaris an aura,
dicere: consilium resque locusque dabunt.
si poteris vacuo tradi, si cuncta videbis
mitia, si vires fregerit ira suas,
siquis erit, qui te dubitantem et adire timentem
tradat, et ante tamen pauca loquatur, adi.
luce bona dominoque tuo felicior ipso
pervenias illuc et mala nostra leves.
namque ea vel nemo, vel qui mihi vulnera fecit
solus Achilleo tollere more potest.
tantum ne noceas, dum vis prodesse, videto –
nam spes est animi nostra timore minor –
quaeque quiescebat, ne mota resaeviat ira
et poenae tu sis altera causa, cave!
cum tamen in nostrum fueris penetrale receptus,
contigerisque tuam, scrinia curva, domum,
aspicies illic positos ex ordine fratres,
quos studium cunctos evigilavit idem.
cetera turba palam titulos ostendet apertos,
et sua detecta nomina fronte geret;
tres procul obscura latitantes parte videbis, –
sic quoque, quod nemo nescit, amare docent.
hos tu vel fugias, vel, si satis oris habebis,
Oedipodas facito Telegonosque voces.
deque tribos, moneo, si qua est tibi cura parentis,
ne quemquam, quamvis ipse docebit, ames.
sunt quoque mutatae, ter quinque volumina, formae,
nuper ab exequiis carmina rapta meis.
his mando dicas, inter mutata referri
fortunae vultum corpora posse meae.
namque ea dissimilis subito est effecta priori,
flendaque nunc, aliquo tempora laeta fuit.
plura quidem mandare tibi, si quaeris, habebam,
sed vereor tardae causa fuisse morae;
et si quae subeunt, tecum, liber, omnia ferres,
sarcina laturo magna futurus eras.
longa via est, propera! nobis habitabitur orbis
ultimus, a terra terra remota mea.
V. BIBLIOGRAFIA
AVELLAR, Júlia Batista Castilho de: O livro-poeta e o poeta-livre: jogo de personae nos Tristia, de Ovídio, dissertação de Mestrado em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, 2014, 25 p. (publicada in Caletroscópio - ISSN 2318-4574 - Volume 2 / nº 3 / jul/dez 2014.
BRAGA, Francisco José dos Santos: Autobiografia e exílio do poeta latino Ovídio, post publicado no Blog do Braga em 31/10/2017.
GANNIER, Odile: Lettres d'exil: un long chemin des Tristes et des Pontiques, d'Ovide à Marie Darrieussecq, paru dans Loxias-Colloques, 13. Lettres d'exil. Autour des Tristes et des Pontiques d'Ovide.
NASO, Publius Ovidius: TRISTIUM. 2ª edição. Tradução literal de Augusto Velloso. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1952.
PANCKOUCKE, C. L.F.: OEUVRES COMPLÈTES D'OVIDE, nova tradução por M.A. Vernadé, tomo IX, 1834, 424 p.
OVIDE: OEUVRES CHOISIES - LES TRISTES, Paris: Librairie Garnier Frères, 1861, tradução de Émile Pessonneaux reprenant Armand-Balthasard Vernadé
PRATA, Patrícia: O caráter intertextual dos TRISTES de Ovídio: Uma leitura dos elementos épicos virgilianos, tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, como um dos requisitos para a obtenção de Doutora em Linguística, na área de Letras Clássicas, 2007, 421 p. (publicada na revista Sínteses, vol. 8, p. 345-362, 2003)
9 comentários:
Prezad@,
Tenho o prazer de enviar-lhe minha tradução literal comentada do Livro I, Elegia primeira de OS TRISTES, de OVÍDIO, quando desterrado de Roma pelo imperador Augusto em 8 d.C., para Tomis, cidade costeira no Mar Negro, na Cítia.
Impedido de retornar a Roma, encarrega seu livro para substituí-lo, representando seu dominus (dono ou autor), embora reconheça que ele será um estranho na Urbe. O livro de Ovídio deve falar com os amigos do poeta que estão preocupados com ele; se possível, ainda encontrar-se com Augusto e ocupar seu lugar na biblioteca onde os outros livros de Ovídio já estão trancados no penetrale nostrum ("meu santuário"), chegando a um escrínio circular ("scrinia curva") de modo a se perfilar ali ao lado de seus "irmãos", isto é, os livros anteriores de Ovídio que têm títulos.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/07/recupere-seu-latim-parte-16-ovidio-os.html 👈
Cordial abraço,
Francisco Braga
BRAVO!
Caro professor Braga
Outra tradução com conteúdo literário clássico de grande curiosidade e interesse com que brinda seus leitores ! Como se isso não bastasse, temos também as notas complementares que, por si, já são textos excelentes.
Gratidão!
Cupertino
Olá Francisco e Rute! Obrigado pelos seus comentários a respeito de figura histórica de Ovídio., pouco conhecida nos nossos tempos!
Votos franciscanos de "Paz e Bem", do irmão frei Joel,
Lindo, amigo.
É muita cultura. Como me sinto ignorante diante de tanta cultura! Estou pensando em retirar um trecho de Ovídio para reproduzir em um livro que estou publicando, que trata de concursos realizados na Universidade Federal do ES na década de 1980. Não conseguia ingressar por falta de QI.
"Finalmente, ó livro, não te preocupes com a opinião pública, lembra-te de partir e não tenhas vergonha de haver desagradado, depois de lido. Assim como a sorte não se mostra favorável a mim, a causa da fama não deve te preocupar. Na época da minha prosperidade, eu era tocado pelo desejo da glória e tinha a paixão por ganhar renome. Ora, se não odeio a poesia e a paixão que me prejudicou, isso deve bastar: meu exílio é o fruto do meu talento para a poesia".
Vou citar a fonte e o tradutor.
Se você não tem óbice, farei isso.
Abraço.
Maravilha!
Obrigado, mestre.
Bravo!
Excelente iniciativa.
Abraço
GET YOUR LATIN BACK > > Part 16: OVID's TRISTIA, Book 1, 1st Elegy
Here is my literal translation of part of a book composed by Ovid, when banished from Rome by Emperor Augustus in 8 A.D., to Tomis, a coastal town on the Black Sea in Scythia.
Prevented from returning to Rome, Ovid commissions his book to replace himself, representing its "dominus" (owner or author), although he recognizes that he will be a stranger in "Urbe" (Rome). Ovid's book must speak to the poet's friends who are concerned about him; if possible, still meet with Augustus and take his place in the library where Ovid's other books are already locked away in the "penetrale nostrum" (my sanctuary), arriving at a "scrinia curva" (circular casket) so as to profile there alongside its "fratres" (brothers), that is, Ovid's earlier books that have titles.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2023/07/recupere-seu-latim-parte-16-ovidio-os.html
Best regards,
Francisco Braga
Postar um comentário