quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A PALAVRA “JUDEU”

Por ROSETTA LOY (1931-2012)

Tradução do francês e seis comentários por Francisco José dos Santos Braga

Esta tradução é inédita na língua portuguesa.
Dei preferência ao texto em francês (“Madame Della Seta aussi est juive”, 1998, Éditions Payot & Rivages, traduzido do italiano por Françoise Brun, 167 p.), ao invés do original em italiano (La Parola "ebreo", 1997, Giulio Einaudi editore s.p.a., Turin), por me considerar possuidor de apenas rudimentos da língua italiana e, portanto, sentir-me mais confortável no trato com a língua francesa.
 
Madame Della Seta aussi est juive (1997), por Rosetta Loy

 
Se eu voltar no tempo e pensar no jeito como a palavra “judeu” entrou na minha vida, me vejo sentada em uma cadeirinha azul no quarto das crianças. Um quarto com um papel de parede com flores de pêssego manchado em diversos pontos; a primavera resplandece e a janela alta que dá para a sacada de pedra está totalmente aberta. Posso ver o apartamento do outro lado da rua, onde as cortinas se enchem de ar entre os batentes das janelas. Nesta casa está havendo uma festa e vejo gente indo e vindo. Nesta casa nasceu recentemente um bebê e a festa é para ele. 
“Um batismo?”, eu pergunto. 
“Não”, responde a mulher sentada perto de mim em outra cadeirinha, onde seu corpo está curvado como uma bola. “Claro que não”, ela acrescenta. Esta mulher é Annemarie, minha Fräulein (governanta), que continua: “Eles são judeus”, apontando com o queixo para a janela, “eles não batizam seus bebês, eles os circuncidam”. 
Ela disse “beschneiden” com uma careta de nojo. Essa é uma palavra incompreensível, mas que contém “schneiden”, "cortar" que conheço bem. 
"O quê?", murmuro incrédula. 
“Eles lhes cortam um pedacinho de carne”, ela responde bruscamente. 
Eu sussurro: “Mit der Schere...?” (Com a tesoura...?) E posso ver o sangue, um mar de sangue banhando o berço. A explicação é vaga, mas assustadora. Annemarie sugere alguma parte do corpo que eu não entendo, enquanto ela olha severamente pela janela: 
“Vielleicht mit der Schere, ja, dass weiß ich nicht...” (Talvez com a tesoura, sim, isso eu não sei...) 
Atrás daquelas janelas vejo menininhas passando com laços de fita na cabeça semelhantes aos meus, senhoras com pérolas em volta do pescoço e envoltas em vestidos de jersey macio como os de minha mãe. 
“Sind Juden” (São judias), ela repete; e o olhar de seus lindos olhos da cor do céu se fixa severamente numa criada que circula com uma bandeja. Talvez haja, escondido entre as xícaras de chá, o pedacinho de carne que tiraram do recém-nascido. Um dedinho, um pedaço de pele. 
A sra. Della Seta também é judia. Ela mora na frente de nossa casa: é velha, em todo caso me parece. Quando estou doente ela vem me ver, estou com febre e meu corpo afunda na grande cama de casal do quarto da minha mãe. A sra. Della Seta tem cabelos grisalhos presos em uma rede. Ela me traz um presente. É um cesto revestido de cetim azul, dentro da qual há uma boneca de celulóide presa por elásticos costurados no forro; outro elástico segura uma minúscula mamadeira com bico vermelho. Acho lindo esse presente: há também, presas, uma calcinha e uma blusinha. Adoro a sra. Della Seta, mesmo que ela seja judia. 
No andar de cima moram os Levi. Eles são mais barulhentos: muitas vezes a gente pode ouvi-los tocando piano, e a mãe tem olhos escuros muito brilhantes; não são tão gentis quanto a sra. Della Seta e a gente só se encontra com eles na escada ou no elevador. Eles não me trazem presentes. 
"Eles também são judeus", Annemarie me disse. Às vezes, Giorgio Levi toca a campainha e pede ao meu irmão para ir jogar bola com ele nos jardins da Villa Borghese. Giorgio é um ano mais velho do que ele, é alto, tem cabelos negros e cacheados e a expressão alegre de quem está ansioso para descer as escadas e se juntar aos companheiros de jogo. Ao voltar, meu irmão, enquanto lava os pés no bidê, reclama que Giorgio é mandão e que, quando alguém não lhe passa a bola com bastante rapidez, lhe dá uma cotovelada nas costelas. 
No jardim de infância, "tia" Gregória nos mostra ilustrações coloridas da Bíblia. Ela tem bochechas redondas e rosadas. Ela é baixa, e também está sentada em uma cadeirinha com seu longo hábito de lã branca lançando até o chão as pregas que se alargam na parte inferior; ela está trajando um coração vermelho bordado no peito, em memória da Paixão de Cristo. Sobre a página que ela vira diante dos nossos olhos com sua mão rechonchuda, Abraão levanta sua espada para matar Isaque. Isaque é filho de Abraão; mas felizmente o anjo chega e o interrompe. Abraão e Isaque são judeus. Os sete irmãos Macabeus também são judeus e morrem queimados por não renegarem a Deus. Na ocasião Deus era insensível, mas felizmente Cristo desceu à terra, e ele, ao contrário, é muito gentil e bom. Ele tem longos cabelos castanhos e olhos azuis; todos os dias, quando chego ao jardim de infância, ele está lá me esperando, e sua mão rosada de gesso aponta para o coração descoberto em seu peito, de onde escorrem algumas gotas de sangue. O coração é onde está o amor: Cristo nos ama. 
Somos cristãos, fui batizada em São Pedro e minha madrinha é a sra. Basile. Ela é tão idosa quanto a sra. Della Seta, mas é muito mais magra, e seu pescoço comprido e sua cabeça pequena a fazem parecer uma avestruz; meu irmão, uma vez, quando ela tinha vindo nos visitar, abriu a porta da sala e disse: “A sra. Basile tem bigode!”, antes de fugir. É verdade, os pelos do seu lábio superior, longos e grisalhos, um pouco eriçados, picam minha bochecha sempre que ela se abaixa para me dar um beijo. Ela tem olhos redondos e meigos; não ficou brava nem naquela tarde em que meu irmão se zombou dela para bancar o espertalhão. Pelo meu batismo, ela me deu uma corrente de ouro com um pingente da Madonna de Pompeia, que chupo quando estou na cama, no escuro. Todos os anos, no Natal, a sra. Basile organiza uma rifa beneficente para os pobres da nossa paróquia. Pilatos era romano e os fariseus e escribas eram judeus. Herodes também era judeu e, da mesma forma, Caifás. Também Barrabás. Eram todos judeus, exceto os centuriões. 
Quando não vou ao jardim de infância, Annemarie me leva ao Valle Giulia,  numa planície isolada perto do Museu de Arte Moderna. Estou sempre agasalhada em cachecol e boina de lã, porque minha saúde não é tão boa quanto a da minha irmã Teresa. Quase não há mais ninguém em Valle Giulia, mas de qualquer forma não posso brincar com outras crianças porque eu poderia pegar suas doenças. Perto dos bancos, às vezes há outra menina, fadada, como eu, à solidão, que fica remexendo o cascalho com sua pequena pá colorida. Posso ver sua calcinha branca, a mesma da Petit Bateau que Annemarie me ajuda a enfiar todas as manhãs. Eu me agacho também e a observo. Ela é loira e seu cabelo cai em ondas ao redor de seu rosto muito pálido. Eu bem que gostaria de ter a sua pá. Em volta do pescoço ela usa uma estrela dourada. Annemarie me chama; está conversando com a governanta da menina: parece que a menina é muito rica. Talvez eu possa brincar com ela. Volto a olhá-la remexendo o cascalho; estou fascinada pela estrela que está balançando ao sol. Pergunto a ela se posso tocá-la. 
“Não”, ela responde, “você não pode”. Ela não quer que eu chegue muito perto. Enquanto Annemarie e eu voltamos para casa, conto a ela sobre a estrela. 
“É a Estrela de Davi”, me diz ela. "Tia" Gregória nos mostrou um desenho de Davi, em que joga uma pedra em Golias. “Esta garota, em vez de um colar com a Madonna ou o menino Jesus”, explica Annemarie, “usa a estrela de seis pontas”. Ela não o diz, mas não sei porquê, compreendi que aquela garota era judia. Imediatamente penso em tesouras e sangue. Pergunto se a cortaram também.
"Do que você está falando, cortar o quê?" ela pergunta em alemão. Eu também deveria falar em alemão, caso contrário ela não me responderá. Agora esta estrela está cheia de mistério. Invejo essa garota que usa a estrela em vez do meu pingente chato. Esta criança, sou eu no inverno de 1936. 
Num livro que conta as aventuras de um menino católico, assediado por incrédulos que querem fazê-lo renegar a Jesus, entre os quais há malvados maçons, o menino é levado a um barco, onde está um judeu, muito malvado ele também. Todos querem arrancar o menino de sua fé, mas ele resiste e reza à Nossa Senhora. A certa altura ele tem até mesmo os olhos vazados. Não gosto deste livro: é estúpido e cruel. 
O que eu amo é o livro sobre o João Pestana, que joga pó prateado nas pálpebras das crianças e as leva ao País dos Sonhos. Também gosto do livro em que Befana ¹ caminha com dificuldade pela neve, em plena noite, e se introduz nas casas pela chaminé. Tenho uma fé cega em Befana, mesmo que nunca neve em Roma e, além do mais, não tenhamos chaminé. 
Mas antes de voltarmos à menininha sentada na cadeirinha azul, olhando pela janela, gostaria de voltar no tempo, quando essa menina nasceu, no nono ano da era fascista, no número 21 da Via Flamínia, no quarto chamado "vermelho”, por causa do papel de parede da cor de borra de vinho. E poucos dias depois, enquanto gotas de chuva batiam nas janelas do carro, ela foi levada à Basílica de São Pedro para ser batizada. Seu irmão mais novo e duas irmãs pequenas a acompanham nos braços de amas de leite e governantas (a mais velha tem quatro anos, enquanto a mais nova tem apenas quinze meses), e na pia batismal lhe é conferido, junto com seus demais sobrenomes, o nome Pia, em honra do papa sob o qual nasceu: Pio XI. 
No mesmo ano de 1931, em novembro, uma circular do Ministério da Instrução Pública impõe aos professores universitários um juramento de lealdade ao fascismo. Dos 1.200 docentes, 1.188 prestam juramento e comprometem-se a ensinar de acordo com os princípios da doutrina fascista; apenas 12 desistem de suas cátedras. 
Igualmente em 1931, foi lançado o novo romance do estimado e famoso escritor Giovanni Papini, homem de letras florentino de grande gênio e inteligência, que nos primeiros anos do século foi considerado um “herege”. Mas em 1921, tendo se convertido publicamente ao catolicismo, ele escreveu A História do Cristo, uma biografia romanceada que retoma a lenda do “Judeu Errante” para revelar “uma verdade mais assustadora, que não é a verdade histórica”. A imortalidade de Buttadeo ², condenado a vagar indefinidamente, é, para Papini, na verdade aquela mesma dos judeus, sobre quem repousa eternamente o sangue de Cristo, que estará sempre nas mãos dos judeus: castigados com a Diáspora, isolados dos outros homens, os descendentes daqueles que mataram o filho de Deus teimam ainda em não se converter. Papini narra também como esses errantes eternos desde então “descobriram uma nova pátria no ouro”, enquanto outros, vindos dos “guetos dos países eslavos”, “sujos e gordurosos”, representam ainda hoje a “figura ainda viva do verdadeiro Buttadeo.” É um "roman à thèse" ³ que tinha suscitado muita controvérsia no lançamento, mas igualmente num ano foram vendidos 70.000 exemplares e que tinha sido traduzido para francês, inglês, alemão, polonês, espanhol, romeno, holandês, finlandês, etc.  
Seu novo livro se chama Gog, abreviação do nome de seu protagonista, se apresenta como uma série de entrevistas imaginárias realizadas por um rico e excêntrico empresário americano, que quer descobrir “as doenças secretas de que sofre a civilização atual”. Por intermédio desse personagem, Papini finge entrevistar Gandhi, Freud, Edison, Shaw e toda uma série de personalidades deste século. E acrescenta a esses um encontro com o protótipo do judeu, personificado por Benrubi, secretário particular de Gog: “um jovem baixo, de ombros ligeiramente caídos, bochechas encovadas, olhos fundos, cabelos já um pouco grisalhos, tez esverdeada como lama de pântanos ... e uma expressão de cachorro que tem medo de ser atropelado, porém sabendo que é necessário.” Instigado pelas perguntas do seu chefe sobre a covardia judaica, Benrubi se dedica a uma longa explicação sobre o fato de que “incapazes de usar o ferro, os judeus se protegeram com o pior, com o ouro... O judeu, tendo-se tornado capitalista como legítima defesa, é agora considerado como sendo, devido à decadência moral e mística da Europa, um dos mestres da terra... dominador tanto dos ricos como dos pobres... Como poderia o judeu pisoteado e cuspido vingar-se dos seus inimigos? Humilhando, rebaixando, desmascarando, aniquilando os ideais dos "goyim", ao destruir os valores que a cristandade entende estar vivendo. E, de fato, se observardes atentamente, desde o último século e até nossos dias, a inteligência judaica não cessou de minar e manchar as vossas crenças mais caras... desde que os Judeus puderam escrever livremente, todas as vossas construções espirituais estão ameaçadas de desabar." Benrubi enumera uma série de personagens como Marx, Heine ou Lombroso, destruidores dos valores da cristandade, para finalizar: “Nascidos [os judeus] no meio de povos diferentes, dedicados a pesquisas diferentes, todos eles, alemães e franceses, italianos e polacos, poetas e matemáticos, antropólogos e filósofos, têm um caráter comum, um objetivo comum: o de questionar verdades reconhecidas, de rebaixar o que é elevado, de macular o que parecia puro, de tornar instável o que parecia sólido, de apedrejar aquele que era respeitado.” (Gog será escolhido em abril de 1943 pela Rádio Vichy para uma transmissão de propaganda; e, no mesmo ano, uma escola de formação de oficiais da República de Salò adotará o texto para um curso sobre anti-semitismo.) 
Mas se Papini é um escritor muito apreciado na minha família, e se tanto A História do Cristo quanto Gog estejam enfileirados na estante do corredor em frente às biografias de Napoleão e aos romances de Bourget, essa família não é fascista, nem mesmo racista. Alguma dúvida poderia ser suscitada pela presença dos livros de aventura de Ugo Mioni, um padre cuja inspiração anti-semita é inegável, e que nos foram lidos em voz alta. Mas a preferência que lhes foi concedida foi certamente associada a motivos religiosos. 
Meu pai fez seus estudos com os barnabitas de Lodi, no Piemonte, num colégio onde ingressou aos dez anos e permaneceu até os dezoito, exceto vinte dias de férias anuais com a família. Suas histórias sobre aquela época sempre nos deixam maravilhados e um pouco angustiados. Suas palavras fazem reviver os meninos, alinhados sobre suas camas no dormitório e aguardando o mordomo que viria tirar-lhes as grandes botas pretas. O mordomo passa muito rapidamente e puxa com tanta força que os meninos caem no chão, e toda vez parece que o pé está sendo arrancado ao mesmo tempo que a bota. A água para lavar de manhã é coberta com um véu de gelo no jarro. Os alunos só podem brincar de pega-pega com a condição de não se tocarem: é uma coisa que nunca deve acontecer; podem usar um pedaço de corda que alguns dos alunos mais velhos deixam congelar na fonte do pátio para se tornar uma vara, e com a qual batem violentamente nos companheiros menores. A espera da visita materna, que vem uma vez por mês, é vibrante. Certas manhãs nubladas, o frio e a escuridão deixavam meu pai tão melancólico que ele preferia passar o dia inteiro sem comer, sozinho num leito de enfermaria. Mas, bem depressa, a criança irreverente e imprudente que faltou à escola para ir nadar no rio Pó transformou-se num aluno-modelo, que, no final do ensino secundário, obteve a “menção honrosa”, um reconhecimento que lhe valeu seu retrato pintado a óleo na galeria do colégio. Depois foi para o Instituto Politécnico de Turim, onde estudou com paixão e descobriu a política. Quase imediatamente, ele se inscreveu no Partido Popular Italiano e com seu amigo Fioravanti tornou-se seguidor entusiasta do chefe desse partido, Don Sturzo. Na eclosão da guerra de 15 a 18, ele era não-intervencionista, aposentado e, felizmente, declarado incapaz de servir devido a insuficiência respiratória. 
Ele tinha sido alérgico ao fascismo desde o início. Ele já era um engenheiro que havia se destacado na construção de casas, pontes e estradas e, em seu otimismo, tinha acreditado que o fascismo fosse um mero fogo de palha. Mesmo depois do assassinato de Matteotti pelos fascistas, ele apostara no rápido declínio de Mussolini. Em vez disso, foi exatamente o oposto que acontecera. Então, para conter no escritório a tagarelice dos entusiastas do novo regime, mandou anexar um cartão na portaria com a mensagem “Não discuta política neste escritório”. Ele se casou tarde — minha mãe é treze anos mais nova que ele. Mais tarde, ele teve, como a maioria dos italianos, que se filiar no Partido Nacional Fascista se quisesse continuar trabalhando, e usa o distintivo na lapela do paletó. Por outro lado, ele não possui o uniforme completo; nas raras ocasiões em que ele tem que vestir a camisa preta (na inauguração de um canteiro de obras, na visita de algum funcionário a uma estrada ou ponte quase terminadas), nós, crianças, desfrutamos de seus gestos de escárnio diante do espelho. Seu grande amigo, desde o tempo do Partido Popular, ainda é o engenheiro Fioravanti, que preferiu partir para trabalhar no estrangeiro em vez de pegar uma carteira, qualquer que fosse. 
Uma das melhores amigas da minha mãe casou-se com um judeu, o Barão de Castelnuovo; e a sra. Della Seta costuma sentar-se em nossa sala exatamente na mesma cadeira que a sra. Basile frequentemente ocupa. Minha mãe entra de boa vontade em lojas com nomes como Cohen e Piperno. Uma de suas favoritas é Schostal. E nosso pediatra é o professor Luzzatti, médico da Casa real. "Volljude" , como diria Hitler. 
A primeira data trágica para os judeus italianos é, de fato, a ascensão de Hitler ao poder em 1933. Algo profundamente novo penetrou nas mentes dos 40 milhões de italianos habitantes da península. Com o óleo de rícino e o cassetete do fascismo, começou a sobrepor a coreografia mortuária e sacrificial da suástica, enquanto o antijudaísmo de origem religiosa (decerto fadado a desaparecer com o tempo) se via caminhar ao lado do ódio e da fanática mistica pagã. O decreto contra os judeus de 29 de março de 1933, cerca de dois meses após a nomeação de Hitler como Chanceler do Reich, dividiu os cidadãos alemães em arianos e não-arianos (ter um avô judeu basta para ser considerado não-ariano). E mesmo que as limitações dos primeiros decretos se apliquem indistintamente aos Mischlinge (nascidos de um progenitor judeu) e aos Volljuden (cujos dois progenitores são judeus), estes últimos vão ter rapidamente um tratamento que os excluirá da vida social; depois até da vida. São os Volljuden já os visados, desde o final de 1933, objeto da noção de Judenrein, o "expurgo dos judeus". Somente mais tarde com a guerra, esse mesmo tratamento será estendido aos Mischlinge. 
No mesmo ano de 1933 é o acordo entre a Igreja e o Terceiro Reich, promovido e assinado pelo secretário de Estado do Vaticano, cardeal Eugenio Pacelli. Durante a sessão de 14 de julho do Conselho de Ministros do Reich, como se pode deduzir das atas da reunião (C.I., doc. 362), o novo Chanceler Hitler, que governa um Estado onde existem cerca de 30 milhões de católicos, expressa o seu alívio: “Este acordo entre a Igreja e o Terceiro Reich, cujos detalhes não me interessam nem um pouco, cercou-nos de uma atmosfera de confiança que é muito útil na nossa luta intransigente contra o Judaísmo”. De fato os bispos alemães acolhem com satisfação esta notícia, que os protege de uma possível retaliação nazi e permite-lhes agora simpatizar abertamente com o novo homem da nova Alemanha. O único a se diferenciar é Monsenhor Faulhaber, bispo de Munique, e, do púlpito da mesma catedral onde será sepultado muitos anos depois, não hesita em censurar as opressões a que os judeus estão sendo submetidos. Mas os seus sermões do Advento sobre “Judaísmo, Cristianismo e Germanidade”, apesar de seguidos por uma multidão de fiéis tão numerosa que foi preciso instalar alto-falantes em duas outras igrejas para que eles pudessem ser ouvidos, não despertam qualquer repercussão. Essa denúncia permanece um fenômeno isolado e a hierarquia católica alemã não sente necessidade de tomar uma decisão. (Na Itália, as homilias de Faulhaber serão publicadas em 1934 pela editora católica Morcelliana de Brescia, numa tradução de Don Giuseppe Ricciotti, que assinará igualmente um prefácio exemplar.) 
Na França, há maior atenção por parte dos católicos. Isto é perceptível através dos escritos e discursos de Jacques Maritain e de Oscar de Férenzy, ou das declarações da oradora Marie-André Dieux, que, em abril de 1933, por ocasião de uma manifestação de solidariedade aos judeus alemães, fala da necessidade de “uma reparação... pelas injustiças cometidas no passado por aqueles que tinham a mesma fé que a minha”. No entanto, não se deve ter ilusões. Mesmo na França estes manifestos permanecem isolados. O clero e fiéis, na sua maioria, só percebem uma fraca ressonância deles. 
Mas voltemos à menina sentada em frente a Annemarie, no quarto com flores de pessegueiro nas paredes. Annemarie está reproduzindo para si um álbum de ilustrações de Struwwelpeter, o livro que conta a história de João Felpudo .  Ela desenha bem e o lápis traça a silhueta do Grande São Nicolau, que mergulha crianças travessas na tinta por zombarem de um negrinho pela cor de sua pele. De sua garrafa gigantesca tornam a sair as crianças inteiramente negras, pretas do topo da cabeça até a sola dos sapatos. Até a vela que elas seguram na mão é preta, enquanto correm alegremente atrás do negrinho, que já não se distingue delas. 
À tarde, quando meu irmão terminou o dever de casa, caminhamos atrás dele ao longo da borda do tapete do hall de entrada e cantamos: "Faccetta nera, bella abissina, aspetta e spera che già l'ora s'avvicina"   (“Rostinho negro, linda abissínia, espere e verá, pois a hora se aproxima...”), vestindo, cada um, um fez de veludo roxo na cabeça, do qual pende uma bolota esfarrapada. Mas é especialmente na primavera que nosso repertório de canções pode se exibir melhor. Durante o trajeto de carro para ir a Ostia e respirar a brisa marítima, que deveria fortalecer nossos pulmões, as nossas vozes decolam em hinos deliciosamente patrióticos.  Enquanto desfilam os plátanos da via del Mare, o nosso motorista Francesco fecha a divisória de vidro para não ficar surdo, enquanto passamos da alegria de “Sol que nasce, tão livre e alegre, doma os teus cavalos nas nossas colinas...” às estrofes melancólicas de “Você nunca verá nada no mundo maior que Roma, maior que Roma...” O fim é extremamente triste, pois sugere que o Major de Roma (categoria inferior ao nosso Duce, Marechal do Império) cometeu um crime grave, fato que o leva a definhar na prisão, atrás das grades para sempre, condenado a nunca mais ver nada do mundo. Felizmente, vem sempre a seguir “Roma recupera o império, e a hora da águia soará, os toques dos trompetes saúdam o voo...”, hino que me parece de brilhante exaltação. 
Mas, da noite para o dia, não poderemos mais cantar Faccetta Nera, o fez é confiscado e enfiado debaixo dos brinquedos no baú no hall de entrada. Domenico, o porteiro, explica a Annemarie que a canção está proibida porque seu apelo à “bela abissínia” é perigoso para a raça ariana pura à qual pertencemos. Assim, agora, quando costumo ir à padaria com Itália para comprar panini all’olio, vejo com certa apreensão o negrinho de chapa metálica pintada, que tem em suas mãos uma caixinha. Se eu colocar uma moeda dentro dela – e bastam dez centavos – o negrinho balança a cabeça do alto para baixo. "Ele te agradece", diz a moça do caixa. Agora ele é "Faccetta Nera", embora a Itália insista que este é o negrinho das Missões. 
Na nossa casa as Missões eram muito importantes. São muito comentadas e às vezes são encarnadas pelos padres de longas barbas que tomam café em nossa sala. Eles vêm de muito longe e trazem de presente caixas de madeira de sândalo e crucifixos incrustados com madrepérola e rosários feitos de oliveira de Getsêmani. E peles de tigre com patas com garras e goelas abertas, e com olhos frios de vidro. Antes de partirem, abençoam-nos, a nós crianças, pondo a mão em nossa cabeça; e quando regressam à África, enviam-nos uma fotografia deles vestidos de branco, em frente à sua igreja de madeira novinha.
 
II. NOTAS EXPLICATIVAS
 
¹ Velha feiticeira benfazeja que traz presentes às crianças no 6 de janeiro, dia da Epifania.
 
² Buttadeo significa "joga-Deus" ou, em francês, "jette-Dieu". Em As flores do mal aparece uma litania intitulada "Abel e Caim", na qual, é claro, o que Baudelaire pensa dos deserdados, que são, em muitos dos seus poemas, o herói moderno: 
Raça de Abel, frui, come e dorme/ Deus te sorri bondosamente,/ Raça de Caim, no lodo informe/ Roja-te e morre amargamente. /[...] Raça de Abel, eis teu fracasso:/ Do ferro o chuço ganha a guerra!/ Raça de Caim, sobe ao espaço/ E Deus enfim deita por terra./
Segundo [BAUDELAIRE, Charles. Abel e Caim. In: As flores..., op. cit., p. 418-421], a raça de Caim sobe ao céu "et sur la terre jette Dieu!" 
 
Cf. [MENEZES, 2013, 88, 90] in Baudelaire e os sujeitos da modernidade 
 
RONCARI, Luiz: O universo marginal, São Paulo: Folha de S. Paulo, edição de 04/09/1995

³ "Roman à thèse", em francês, é uma novela que é didática ou que expõe uma teoria; normalmente tal obra literária tem por objetivo defender uma ideia filosófica ou política. 

Literalmente, Volljude é a condição do descendente que possui ambos os progenitores judeus.
 
"João Felpudo" foi a tradução portuguesa do título para o livro (1845) de Heinrich Hoffmann que, através de dez histórias ilustradas pelo próprio autor e rimadas, conta as consequências desastrosas do mau comportamento de uma forma exagerada. O título da primeira história fornece o título da obra. O livro é considerado um precursor das histórias em quadrinhos. Alguns pesquisadores vêem essas histórias do livro como ilustrações de muitos transtornos mentais infantis que conhecemos hoje, por exemplo, os da criança hiperativa.
 
"Faccetta nera" é uma canção composta por Giuseppe Micheli (letra) e Mario Ruccione (música) para o exército da Itália fascista por ocasião da Segunda Guerra Ítalo-Etíope (1935-1936). Fala sobre uma escrava que será levada a Roma e como lhe será oferecida uma nova vida, livre das amarras da escravidão. O narrador da canção promete que lá, sua pele escura será "beijada" pelo sol italiano, e que ela será apresentada a uma nova legislação, novos governantes e costumes. 
 
 

5 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Prezad@,
ROSETTA LOY nos deixou duas obras contra o holocausto: LA PAROLA “EBREO” e LA CIOCCOLATA DA HANSELMANN.
É uma autora que pode ser definida como escritora "da memória". A sua memória é uma história do passado comum, uma história social e moral, donde se pode extrair uma ética que ensina e adverte, mas acima de tudo é um assumir responsabilidades que todos devem cumprir.
Na primeira obra, cujo primeiro capítulo acabei de traduzir, ela demonstra um profundo compromisso em manter viva a memória do Holocausto, apesar de ser católica. Em suas palavras: "Esquecemos por preguiça e porque é confortável...", reafirmou mais tarde numa entrevista; e acrescenta: "esquecer o horror da perseguição anti-semita deste século XX e seu fim terrível pode ser muito perigoso. É como ser míope e jogar fora os óculos."

TEXTO (1º capítulo do livro A PALAVRA “JUDEU”)
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/02/a-palavra-judeu.html 

BREVE BIOGRAFIA DA AUTORA
Link: https://saojoaodel-rei.blogspot.com/2024/02/colaboradora-rosetta-loy.html 

Cordial abraço,
Francisco Braga

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Obrigadísimo!

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga

Maravilhoso e comovente texto traduzido! Podemos observar que a memória pessoal é também social, de um lugar, de uma coletividade e época. Assim, viva fosse a escritora Rosetta Loy, estaria angustiada com estes tempos de avanço de uma espécie de neofascismo e com os horrores assistidos ao vivo e em cores, aqui e alhures por um mundo que ainda tem alguma consciência da realidade, alguma sensibilidade. E, testemunhando as vítimas do passado transformando-se nos algozes de hoje, bem como a instrumentalização rasteira da religião, estaria algo mais descrente da espécie humana.
Saudações !
Cupertino

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...

Muito obrigado!
Não conhecia.
Mas 'grande parte do fascismo educacional' me soa 'familiar'.
Quando entrei no 'Colégio São João',
embora 'cristão' e não 'abertamente anti-semita'
tinha uma 'disciplina' de rotinas 'quotidianas'
que, muito tempo depois - não compreendia as razões dela na época -
me pareceram "análogas" as da "Giventù Fascista"...
Os judeus com certeza eram os 'assassinos de Jesus' e, por castigo
estavam em diáspora.
Felizmente, estando no Brasil, não se chegava aos extremos
de insultos raciais e discriminação... afinal a guerra já acabara
e o nazismo e o fascismo não poderiam mais ser
'exaltados' publicamente.
Além disso havia o Padre Gruen, alemão, mas de etnia
judaica, excelente e estimado professor de Grego
e catequista.

===============
Obrigadíssimo!

Meu pai, católico praticante, de missa semanal,
pertencente às Conferências de São Vicente
pelas quais fazia visita aos pobres e às vezes
me levava com ele, também era leitor
e admirador de Maritain.

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador, ex-presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG-MG e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Sou Israel!
Abs