quarta-feira, 4 de setembro de 2024

ANO DOIS MIL


Por URBANO DUARTE *
Comentários por Francisco José dos Santos Braga
 


Fotografia profética do que será o Rio de Janeiro no V Centenário


Veja o leitor a estampa. Aquilo é um pedacinho do Rio de Janeiro no ano 2000, quando se festejar o quinto centenário. 
A famosa avenida parisiense dos Campos Elísios, com o seu arco de triunfo na extremidade, fará triste papel ao lado das nossas incomparáveis avenidas a se terminarem na maravilhosa baía de Guanabara, orlada de píncaros recortados, inçada ¹ de ilhas dos amores, um mar de esmeralda sob cúpula de eterna safira, águas levemente franjadas de graciosas crispações pela brisa fagueira... 
A barra, o gigante de pedra continuando a dormir o seu sono milenar; em volta, no anfiteatro, soberbos cais de cantaria desde a base do Pão de Açúcar até à Praia do Caju, bordados por uma teia de palácios comerciais e industriais feitos de granito, combinando o efeito da beleza arquitetônica ao de indestrutível solidez. 
Da rua do Ouvidor restará apenas a memória; os homens de 2000 dela se lembrarão como hoje nos recordamos do largo do Rocio quando Tiradentes foi enforcado ou do campo da Honra no tempo das lavadeiras. Estará transformada em vasto e belíssimo bulevar ², indo da praça da República ao mar, ladeado de admiráveis construções, hotéis monumentais, luxuosos cafés com terraços, armazéns de modas à feição do Bon Marché. Para evitar aglomeração e embaraço (pois a população fluminense contará então um e meio milhão de almas) haverá no grande bulevar caminho para os pedestres separado do dito para as carruagens. 
Ao meio, em um largo, ver-se-á a estátua de um grande brasileiro que ainda não está nascido, estátua esculpida por um genial artista que igualmente ainda vai nascer. 
As moças do século futuro saberão pisar com mais elegância e falar com mais correção. Das suas lindas bocas não se ouvirá, como hoje, esse fraseado tão desagradável: vi ele, qui home, me deixe, tá bom, etc. 
Sabem como se chamará o Saco do Alferes? Avenida das Rosas! Um dos passeios prediletos da nossa aristocracia... 
Botafogo, com a sua sublime enseada, atrairá turistas do mundo inteiro, para se embevecerem na sua contemplação. 
O último caso de febre amarela terá ocorrido em 1940 há 50 anos. Os nossos netos exclamarão: Que moléstia seria esta que produzia vômito negro e tinha nome de amarela? Nossos avoengos eram uns esquisitórios ³
A tuberculose pulmonar também haverá passado à cesta das velharias. Os pósteros dirão: como estava a ciência atrasada há cem anos! Morria-se de tísica! Ora veja! Morria-se de tísica!! Que médicos ignorantes os do tal século 19. 
Mas o nosso tempo encontrará defensores, pois sempre existirão partidários do passado, apologistas do bon vieux temps; os velhos do ano 2000 hão de alegar a pureza de costumes dos homens do ano de 1900, a sua sinceridade, o seu patriotismo, a sua vida patriarcal, o seu desinteresse (exatamente o que nós hoje dizemos dos homens de 1800 e o que os de 1800 diziam dos de 1700). 
Le bon vieux temps é sempre o melhor embora não prestasse para nada. 
 
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Em suma, ao se comemorar o quinto centenário da descoberta do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro terá atingido a um grau estupendo de progresso e de refinada civilização. Depois da revolução francesa, realizam-se mais progressos em um único século do que se realizavam em dez séculos anteriores à grande data humana
Todavia, não nos iludamos sobre os progressos morais. Os brasileiros de dois mil padecerão dos mesmos defeitos e vícios, das mesmas paixões que os brasileiros de 1900. Na política, haverá intrigantes, nulidades empavesadas , excelsos engrossadores. No comércio e na indústria altos ladrões, açougueiros para vender quilos de 600 gramas, fabricantes de vinho sem uva, de manteiga sem leite. Na imprensa, escritores analfabetos, jornalistas venais. Nas eleições, mesas facciosas, apuração a bico de pena, defuntos votando, câmara depurando, oposição protestando, e finalmente tudo ficando em paz. 
A municipalidade do ano 2000 continuará a não ter dinheiro para pagar aos seus empregados, apesar da sua renda de 250 mil contos. O Prefeito contrairá empréstimo para saldar dívidas, e por isso será considerado benemérito funcionário. 
A eterna questão das carnes verdes ainda não terá obtido a sua solução. Uns pugnarão pelo monopólio, outros pela livre matança. Uns e outros comerão... carne. Pensam os senhores que desaparecerão os bolinas ? Qual história! Eles são imortais. Nem mesmo no século 43 deixarão de existir: intrigantes políticos, nulidades empavesadas, excelsos engrossadores, altos gatunos, açougueiros ladrões, falsificadores, escritores analfabetos, jornalistas venais, apuração a bico de pena, defuntos votando, câmara depurando, oposição protestando, municipalidade caloteira, empréstimo do Prefeito, questão de carnes verdes, de lixo, de falta d'água. E um jornalista descontente escreverá no final do seu artigo de fundo: O país vai à garra ! Caminhamos para um abismo.
(Nota final: Das coisas feias do Rio só existirá em 2000 o canal do Mangue. Não houve engenharia capaz de dar cabo daquela abjeção).
 
* Urbano Duarte de Oliveira (1855-1902), natural de Lençóis-BA, foi jornalista, cronista, humorista e teatrólogo e é o fundador da cadeira nº 12 da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono é França Júnior, tendo sido sucedido por Augusto de Lima.
 
Fonte: REVISTA DA SEMANA nº 1, edição de 20/05/1900, p. 7.
 


II. PEQUENO GLOSSÁRIO PARA ESCLARECIMENTO DO VOCABULÁRIO UTILIZADO NO TEXTO

¹ inçado: cheio, repleto
² bulevar: rua ou avenida larga e geralmente arborizada
³ esquisitório: estrambólico, esdrúxulo
empavesado: engalanado, enfeitado 
engrossador: adulador, chaleira 
o bolina: personagem da belle-époque brasileira, frequentador dos bonds, trens, restaurantes e confeitarias da cidade, podendo ser identificado com o dândi ou janota. Fazia parte de um grupo tão coeso que poderia ser considerado membro de um clube. Onde houvesse uma mulher bonita, lá estava ele, pronto para exercer sua arte de sedução.  
ir à garra: perder o rumo, desgarrar-se
 
 
III. A COBERTURA DA REVISTA DA SEMANA PARA O IV CENTENÁRIO DO DESCOBRIMENTO  DO BRASIL


As festas do IV Centenário do Descobrimento do Brasil na capital federal foram a matéria de capa da primeira edição da Revista da Semana em 20 de maio de 1900, mostrando, através de textos ufanistas e imagens, a aspiração ao cosmopolitismo e imagem moderna de um país. Na virada para o século XX, a então capital federal do Brasil estava no contexto de modernização, sendo o maior centro industrial e comercial do país: o Rio recebia não só o afluxo de novas ideias, como também de capitais estrangeiros. 
[MONTEIRO, s/d, 2, apud OLIVEIRA, 1989] observa que "a data comemorativa foi utilizada pelo regime republicano que instituiu suas festas procurando estabelecer uma continuidade com eventos históricos passados. O desejo de reverenciar o passado, através de narrativas históricas em comum, era fundamental na construção de um sentimento de pertencimento." 
Observa-se no texto a construção de um Brasil imaginário, tendo por base as comemorações dos 400 anos da descoberta do Brasil (ou da colonização portuguesa no País). Portanto, o descobrimento do Brasil seria uma data importante para, "a partir de tradições inventadas, como símbolos, bandeiras, cerimônias e exaltação de figuras heróicas, consolidar a legitimidade, soberania e cidadania que são as questões centrais de construção de uma nação e se fazerem presentes na organização da tradição e da memória coletiva, constituidora da identidade nacional", [ibidem, apud HOBSBAWM & RANGER (org.)]. 
Segundo [MONTEIRO, s/d, 12], "o descobrimento do Brasil é uma data importante na construção de um sentimento de pertencimento, e na elaboração de fronteiras emocionais para o país, pois se constituiu no mito de origem de uma civilização à europeia", haja vista a abundância de termos em francês nos textos literários dessa época. 
A comissão organizadora dos festejos do IV Centenário pensou em fazer a homenagem através da inauguração de um monumento. Assim o monumento dedicado a Pedro Álvares Cabral no Largo da Glória foi a solução encontrada para "auxiliar na construção da identidade nacional com a exaltação ao símbolo do indivíduo" recorrendo à busca de personagens que consolidasse o perfil dessa "nova nação", inaugurado a 3 de maio de 1900. Foto desse monumento foi incluída na 1ª página da Revista da Semana, edição de 20/05/1900. 
O monumento comemorativo do descobrimento do Brasil, trabalho do escultor Rodolfo Bernardelli. Vista do Largo da Glória no dia 3 de Maio de 1900. Fotografia oferecida pelos Srs. Bastos & Dias.

Cabral, em destaque                  


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Detalhes da escultura
 
A respeito dessa "nova nação", [HOBSBAWM & RANGER (org.), 1984, 19] constataram a importância de "os novos regimes políticos e movimentos inovadores poderem encontrar equivalentes seus para os ritos tradicionais de passagem associados à religião". 
Segundo informa o site Monumentos Rio, “a obra de Rodolfo Bernardelli tem um pedestal de 10 metros em granito brasileiro na folha hexagonal, onde estão ficadas esculturas de bronze de três importantes figuras da história: Pedro Álvares Cabral, comandante da frota que chegou ao Brasil em 1500; Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota; e frei Henrique de Coimbra, capelão e celebrante da primeira missa”. 
Os organizadores dos festejos do IV Centenário também não se esqueceram de fazer a inclusão de uma missa campal na celebração dos 400 anos do descobrimento do Brasil, simulando a 1ª missa celebrada por frei Henrique de Coimbra: a missa campal na data de 3 de maio de 1900. [MONTEIRO, s/d, 11, apud HOBSBAWM & RANGER (org.)] lembra que "a invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição", concluindo autora que "essa reiteração de informações voltadas à pauta do IV Centenário de Descobrimento do Brasil corrobora para a construção de um ethos brasileiro moderno na virada para novo século". Foto dessa missa campal foi incluída na 2ª página da Revista da Semana, edição de 20/05/1900.
As festas do IV Centenário: a missa campal no dia 3 de Maio de 1900

 
IV.  AGRADECIMENTO

À minha amada esposa Rute Pardini Braga pela formatação de todos os registros fotográficos utilizados neste trabalho.
 
 
V. BIBLIOGRAFIA

 
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: Nação e Consciência Nacional. Trad.: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 336 p.

HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (org.): A invenção das tradições. Trad.: Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, 316 p.

MONTEIRO, Maria Eduarda Monnerat: As festas do IV Centenário - 1900 em revista: A Pedagogia ilustrada de uma nação, trabalho apresentado ao Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, 13 p.

MONUMENTOS RIO (site)
 
OLIVEIRA, Lúcia Lippi: A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense. Brasília: CNPq, 1990, 208 p.

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga disse...

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Tenho o prazer de resgatar um texto, incluído na 1ª edição da REVISTA DA SEMANA, da autoria de URBANO DUARTE, escrito para celebrar os festejos do IV Centenário do descobrimento do Brasil na capital federal em 1900 e que augura um futuro promissor para a arquitetura e urbanização para um Rio de Janeiro promissor do ano 2000.
Ao mesmo tempo, apresento um glossário para termos utilizados no texto que caíram em desuso com o passar dos anos.
Por fim, discuto a cobertura da REVISTA DA SEMANA de 20/05/1900 dos festejos na ocasião, de forma crítica.

Link: https://bragamusician.blogspot.com/2024/09/ano-dois-mil.html 👈

Cordial abraço,
Francisco Braga

Francisco José dos Santos Braga disse...

Geraldo Reis (poeta, membro da Academia Marianense de Letras e gerente do Blog O Ser Sensível) disse...
Que preciosidade, Braga. Só mesmo você para nos trazer esse qualificado mimo. Vamos verificar.
Super obrigado. Geraldo Reis: O Ser Sensível. BH 04/09/1949

Francisco José dos Santos Braga disse...

Heitor Garcia de Carvalho (pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008) disse...
Nada de novo sob o sol!!!!

Francisco José dos Santos Braga disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco José dos Santos Braga disse...

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...
Caro professor Braga

Um registro importante e mesmo curioso de uma data tão significativa. Excelente resenha crítica da matéria com os esclarecimentos pontuais. Há que se notar o otimismo com que o século XXI era projetado, tendo em vista a República e as modernizações da segunda Era Industrial. O jornalista, entretanto, com certa razão, percebia que as bases culturais e morais de um povo evoluem muito lentamente, quando evoluem.
Cumprimentos.
Cupertino

Francisco José dos Santos Braga disse...

Pe. Sílvio Firmo do Nascimento (membro da Academia de São João del-Rei e da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos) disse...
Gratidão pela remessa do link.