Por ANTON TCHÉKHOV
Tradução literal do russo, com análise, comentários e bibliografia por Francisco José dos Santos Braga
O conto foi publicado em 27/09/1886 no nº 39 da revista Fragmentos, assinado pelo pseudônimo A. Tchekhonté.
Natália Mikháilovna, jovem mulher casada ¹ e muito guapa, acaba de chegar de trem de Yalta ², onde passara o verão, e enquanto come, fala sem cessar, contando os encantos da Crimeia. O marido, alegre, satisfeito do regresso da esposa, acompanha as irradiações da sua fisionomia com olhos enternecidos e, de vez em quando, intercala alguma pergunta.
— Dizem que a vida lá é muito cara, — observou-lhe, entre outras coisas.
— Cara? O que posso dizer? Creio que o diabo não é tão medonho quanto se diz. Júlia Petróvna e eu tínhamos um quarto muito confortável e decente, a vinte rublos por dia. Tudo depende de saber a gente se virar. Naturalmente, se fizer uma excursão às montanhas, por exemplo, a Al Ai-Patri... levar o cavalo, o guia é caro... tudo isto fica bastante caro... caríssimo! Mas, filho, que montanhas são essas! Imagina que são altíssimas... mil vezes mais altas que a igreja... Em cima, neve... nada mais senão neve... Embaixo, pedras, nada mais senão pedras... Ah! quanta recordação!"
— A propósito. Durante a tua ausência, li não poucas atrocidades praticadas por esses guias... É verdade que eles são muito perversos?"
Natália Mikháilovna faz uma careta e move a cabeça negativamente ³.
— São tártaros como todos os demais tártaros, — responde. — Além de tudo, eu não os vi senão de longe, uma ou duas vezes... Eles me apontaram, mas eu não dei atenção... Sempre senti aversão a todos os tipos de circassianos, gregos, mouros...
— Dizem que são uns Don Juans terríveis.
— Pode ser... Há algumas descaradas que...
Natália Mikháilovna pula da cadeira e, com os olhos arregalados, como se visse algo assustador, diz ao marido, enfatizando cada palavra:
— Vassítchka! Como há no mundo mulheres levianas!... Que imorais! E não das classes baixa ou média; não, aristocratas, do melhor do mundo!... Eu via e não queria acreditar! Nunca poderia me esquecer! É preciso a gente ser tão desprovido de princípios para chegar a tal ponto... Nem me atrevo a contá-lo... Tomemos como exemplo Júlia Petróvna, minha companheira... Tem um marido tão simpático, dois filhos, faz parte da melhor sociedade... Quer se passar por santa, e sabes o que ela fazia?... Não podes imaginar... Mas isso vai ficar entre nous ⁴... Você me dá sua palavra de que não vais contar a ninguém?
— Ora, que ideia! A quem eu iria contar?
— Palavra de honra? Bem, vou confiar...
A moça coloca o garfo na mesa e, com um ar misterioso, diz ao marido em voz baixa:
— Imagine só... Júlia Petróvna foi cavalgar pelas montanhas. O tempo estava magnífico. À frente ia ela com seu guia; eu a seguia. A dois ou três quilômetros do povoado, Júlia Petróvna soltou um grito e levou as mãos ao peito. O tártaro a susteve; ela teria caído da sela se não fosse ele... Aproximei-me dela com meu guia...
— Que foi? O que aconteceu?
— Estou me sentindo mal, estou morrendo! Não consigo mais ir adiante.
Imagina o meu susto!
— Voltemos, — eu disse.
— Não consigo voltar, — contestou ela. — Se eu der mais um passo, morro. Sinto vertigens.
E ela pediu a mim e a Suleiman que fôssemos para casa em busca de umas gotas que a aliviariam.
— Espera; não entendo..., — balbucia o marido. — Me dizias há pouco que só vias os tártaros de longe, e agora estás falando de um certo Suleiman ⁵.
— Lá vens de novo com suas asneiras! — interrompe a moça, impassível. — Odeio essas suspeitas! Não as suporto! Tu te comportas tolamente ⁶!
— Não sou desconfiado; mas... de que serve mentir? Tu passeavas com os tártaros... Para que esses embustes?
— És impossível!, — protesta a moça, indignada. — Estás com ciúmes de Suleiman! Queria ver como irias para as montanhas sem guia! Queria ver! Se não conheces nem entendes aquela vida, é melhor calares. Ouve e fica quieto! Lá, não se pode dar um único passo sem guia.
— Claro!
— Por favor, para com esses sorrisinhos bobos! Eu não sou uma Júlia qualquer para aguentá-los. Também não a justifico, mas eu... psss! Embora eu não pretenda me passar por santa, ainda não esqueci certas coisas... Comigo Suleiman não saiu dos limites. Não! Mametkul: esse passava todo o tempo com Júlia Petróvna, e eu não... Quando dava onze horas, eu ordenava:
— Chega!... Suleiman, em marcha!
E meu tartarozinho bobo ia embora. Comigo ele se encolhia todo... Mal ele vinha até mim com alguma exigência, sobre dinheiro ou qualquer outra coisa, eu o interpelava imediatamente: — Como? O quê? O que quer dizer isso?
— Ah! Ah! Ah!... Ele se assustou tanto que se encolhia todo. Entendes, Vassítchka? Ele tinha olhos negros como carvão... uma carinha tártara, tão boba, tão engraçada... Eis como o controlava! Eis aí!
— Eu imagino — diz o marido, enrolando bolinhas de migalhas de pão.
— Você é um tolo, Vassítchka; Que bobagem!... Sei o que estás pensando... Conheço tuas ideias... Mas te garanto que, quando ele caminhava, nunca saía dos limites. Por exemplo, fazíamos excursões às montanhas ou à cachoeira Ucha-Su. Eu sempre lhe ordenava:
— Suleiman, afasta-te! Estás ouvindo?
E o pobre sujeito sempre me seguia... Mesmo durante... mesmo nos lugares mais patéticos, eu sempre o alertava: “Apesar de tudo, você não deve se esquecer de que é um tártaro e eu sou a esposa de um Conselheiro de Estado!” Ah! Ah! Ah!...
A senhora caiu na gargalhada, depois depressa fez uma cara de espanto e sussurrou:
— Mas Júlia!... Ah, aquela Júlia!... Eu compreendo, Vassítchka, por que não fazer travessuras, por que não dar uma pausa no vazio da vida convencionial?... Tudo o que for possível... divirta-se, por favor, ninguém vai te culpar; mas levar isso a sério, dar escândalos... não, como quiseres, isso eu não entendo! Imagina, ela estava com ciúmes! Bem, não é bobagem? Um dia, Mametkul, o amante dela, chega... Ela estava fora. Bem, convidei-o para o meu quarto... começamos a conversar, isso e aquilo... saímos juntos... eles são, sabes?, muito engraçados... passamos a noite assim sem sermos notados... De repente, essa Júlia chegou como um furacão... Ela atira-se a mim, sobre Mametkul; ela fez um escândalo conosco... Argh! Isso, Vassítchka, eu não entendo...
Vassítchka solta um "hum!" muito significativo, franze a testa e caminha a grandes passos.
— Aparentemente te distraíste bem!, — diz, sorrindo.
— Que idiota!, — responde a moça. — Eu sei o que estás pensando! Sempre tens ideias tão perversas. Da próxima vez, já sei: não vou te contar mais nada! Nada!
A moça fica em silêncio e faz uma cara triste.
II. ANÁLISE DO CONTO
Tchékhov é um dos mais não convencionais escritores russos de prosa e ficção curta que o mundo já conheceu. "A Linguaruda" é um conto humorístico de Tchékhov, que se inscreve dentro da escola realista. Uma de suas técnicas ao produzir os seus contos consistia em formular perguntas investigativas, não em dar-lhes uma resposta.
No caso em questão, Natália é uma jovem mulher casada da elite aristocrática com certas posses que lhe permitem tirar férias anuais na Crimeia. O conto reproduz um diálogo mantido entre ela e seu marido no retorno dessas férias. Natália é a protagonista, que é provocada a fazer uma narrativa de suas aventuras. O marido, Vassítchka, se restringe a fazer algumas perguntas e eventualmente faz algum comentário que é logo rechaçado por ela, que considera tolice ou má interpretação. Na verdade, ele procura preencher a narrativa dela, plena de entrelinhas, com certa conclusão maliciosa, já que, para ele, sua narrativa é dominada pela sua fértil fantasia em que a mentira predomina. Por meio de seu ato falho, conhecido também por lapso freudiano ⁷ de fala, ela consegue indiretamente revelar a verdade de seu próprio comportamento escandaloso na Crimeia, em Yalta.
Logo ficamos sabendo que Natália se fez acompanhar por uma companheira, Júlia, que é retratada pela narradora como uma boa companhia, com quem dividia um quarto muito confortável e decente, até o momento em que a primeira presenciou um escândalo da companheira por ciúmes, algo que a decepcionou. Os relatos da narradora e suas opiniões revelam que ambas eram pessoas fúteis, cativas do hedonismo, em busca de relacionamentos eróticos. A sua busca por novas experiências prazerosas não excluía o confronto com relacionamentos tóxicos.
No caso em questão, Natália é uma jovem mulher casada da elite aristocrática com certas posses que lhe permitem tirar férias anuais na Crimeia. O conto reproduz um diálogo mantido entre ela e seu marido no retorno dessas férias. Natália é a protagonista, que é provocada a fazer uma narrativa de suas aventuras. O marido, Vassítchka, se restringe a fazer algumas perguntas e eventualmente faz algum comentário que é logo rechaçado por ela, que considera tolice ou má interpretação. Na verdade, ele procura preencher a narrativa dela, plena de entrelinhas, com certa conclusão maliciosa, já que, para ele, sua narrativa é dominada pela sua fértil fantasia em que a mentira predomina. Por meio de seu ato falho, conhecido também por lapso freudiano ⁷ de fala, ela consegue indiretamente revelar a verdade de seu próprio comportamento escandaloso na Crimeia, em Yalta.
Logo ficamos sabendo que Natália se fez acompanhar por uma companheira, Júlia, que é retratada pela narradora como uma boa companhia, com quem dividia um quarto muito confortável e decente, até o momento em que a primeira presenciou um escândalo da companheira por ciúmes, algo que a decepcionou. Os relatos da narradora e suas opiniões revelam que ambas eram pessoas fúteis, cativas do hedonismo, em busca de relacionamentos eróticos. A sua busca por novas experiências prazerosas não excluía o confronto com relacionamentos tóxicos.
Essas experiências eram compartilhadas com guias tártaros de uma classe inferior à delas, que eram contratados para fins turísticos originalmente e cujas relações evoluíam para diversões sexuais. Nas entrelinhas, Natália deixa entrever que os guias tártaros estavam à disposição delas para a prestação de serviços sexuais. No diálogo com o marido, Natália enfatizou que "o pobre sujeito sempre me seguia... Mesmo durante... mesmo nos lugares mais patéticos, eu sempre o alertava: "Apesar de tudo, você não deve se esquecer de que é um tártaro e eu sou a esposa de um Conselheiro de Estado"."
Natália tenta esconder sua história. Ela se envergonha de ter tido um caso com Suleiman. Ao ler o texto, percebemos que o caso estava ficando sério quando Suleiman se esquecia constantemente de que Natália era uma russa casada.
Segundo ela, sempre conseguia que seu parceiro não ultrapassasse certos limites, que lhe eram constantemente impostos e que ele humildemente respeitava. Quando este vinha com alguma exigência sobre dinheiro ou qualquer outra coisa, ela opunha-se com firmeza, a ponto de assustá-lo tanto que se encolhia todo (como um ouriço). Com isso evidenciou que Suleiman era bastante comedido e reconhecia a sua condição de servo, ao passo que Mametkul não tinha as mesmas qualidades do outro.
Segundo ela, sempre conseguia que seu parceiro não ultrapassasse certos limites, que lhe eram constantemente impostos e que ele humildemente respeitava. Quando este vinha com alguma exigência sobre dinheiro ou qualquer outra coisa, ela opunha-se com firmeza, a ponto de assustá-lo tanto que se encolhia todo (como um ouriço). Com isso evidenciou que Suleiman era bastante comedido e reconhecia a sua condição de servo, ao passo que Mametkul não tinha as mesmas qualidades do outro.
Quanto ao parceiro de Júlia, Mametkul, era mais fogoso e, certo dia, na ausência de sua amante, dividiu o leito com Natália. Quando sua amiga retornou e encontrou os dois juntos, "fez o maior barraco", investindo contra os cúmplices na traição.
Muito característica foi a interpretação de Natália do seu caso com o tártaro Mametkul: não entende porque a outra fez um escândalo, confrontando-a e a seu amante Mametkul.
Conforme anteriormente dito, tudo isso é intuído pelo leitor. O relato dos fatos é feito nas entrelinhas. Nada disso passa desapercebido a seu marido que durante toda a narrativa, age e faz observações bastante irônicas a respeito dos fatos narrados por Natália.
Muito característica foi a interpretação de Natália do seu caso com o tártaro Mametkul: não entende porque a outra fez um escândalo, confrontando-a e a seu amante Mametkul.
Conforme anteriormente dito, tudo isso é intuído pelo leitor. O relato dos fatos é feito nas entrelinhas. Nada disso passa desapercebido a seu marido que durante toda a narrativa, age e faz observações bastante irônicas a respeito dos fatos narrados por Natália.
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ “Дама” (pron. dáma) é um vocábulo russo comumente traduzido por “senhora”; por outro lado, seu diminutivo “дамочка” (pron. dámotchka) é o termo um tanto pejorativo, levemente provocativo, utilizado por Tchékhov neste conto. Nesse caso, caberia bem aqui traduzir este último vocábulo por “jovem mulher casada” ou algo do gênero. Observe que Natália Mikháilovna pertence à elite aristocrática, pelo fato de ser casada com Vassítchka, conselheiro civil no governo czarista russo.
² Yalta é uma cidade turística na costa sul da Península da Crimeia, cercada pelo Mar Negro.
³ Vassítchka está ciente do comportamento imoral dos guias tártaros na Crimeia. Ele já tinha lido sobre eles em uma revista enquanto Natália estava de férias. A reação de Natália à pergunta de seu marido evidencia que ela cai pela primeira vez na armadilha de suas próprias mentiras, que, a partir de agora, vão se tornar cada vez mais frequentes.
⁴ “Entre nous” (trad. entre nós), em francês, língua falada comumente pela sociedade russa letrada.
⁵ O marido observa que sua esposa se contradiz.
⁶Em russo, “глупо” (advérbio), que será usado repetidamente no conto em suas diferentes funções na frase, durante o diálogo entre a protagonista e seu marido. A partir deste ponto, toda vez que o marido mostra as contradições e inconsistências da esposa, ela utiliza o mecanismo de defesa acusando-o de ser tolo ou bobo, de estar dizendo uma asneira, tolice ou bobagem, ou por não estar levando-a a sério. Também as situações comprometedoras e desagradáveis são descritas por ela como "bobagens". Por fim, ela usa o termo “глупый” também para Suleiman, o tártaro bobo na opinião dela.
⁷ Somente em 1901, Sigmund Freud descreveu pela primeira vez o fenômeno do ato falho em seu livro A psicopatologia da vida cotidiana. Em língua alemã usou o termo Pfehlleistung, enquanto em inglês se usa Freudian slip.
IV. BIBLIOGRAFIA
CAMPOS, Humberto de: Antologia dos Humoristas Galantes, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio-Editora, 1936, cap. V: ANTON CHEJOV, pp. 30-34.
PATHAN, Fiza: "A Tripping Tongue" by Anton Chekhov: Short Story Analysis, 2021
TCHÉKHOV, Anton: Dramatização do conto "A Linguaruda" (1979)
Um comentário:
Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...
Prezad@,
Dando sequência à minha tradução de contos do escritor russo ANTON TCHÉKHOV, tenho o prazer de enviar-lhe minha tradução do russo para o conto humorístico, intitulado A LINGUARUDA, obra que antecede em 15 anos a utilização de um fenômeno linguístico do ato falho descrito por Freud apenas em 1901, in A Psicopatologia da vida cotidiana.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2025/09/a-linguaruda.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
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