domingo, 8 de janeiro de 2012

A ARTE DOS CARREGADORES DE PIANOS, SOB A ÓTICA DE LIMA JÚNIOR



Por Francisco José dos Santos Braga

Folheando as páginas da Revista Itaytera, órgão oficial do Instituto Cultural do Cariri, nº 10, correspondente aos anos de 1965 e 1966, quando era presidido por José Alves de Figueirêdo Filho, deparei-me com curioso artigo publicado nas páginas 177-182. Além do seu cunho nitidamente musical, “Mudança de Pianos”, de Félix Lima Júnior, logo despertou o meu interesse pelo que tem de estudo etnográfico. 

O que guia o etnógrafo é uma técnica proveniente das disciplinas da Antropologia Social, que consiste em observar e analisar a atividade das pessoas sem que estas necessitem explicar o seu trabalho, extraindo daí conclusões importantes acerca de fatores sociais e organizacionais. O trabalho do etnógrafo, diferentemente do profissional de processos e de sistemas, é mais rico e complexo. Uma das características do trabalho do primeiro é que ele acredita que as pessoas em estudo são competentes na realização do seu trabalho e tudo o que tem a fazer-se é descrever como as pessoas se comportam, e não como deveriam comportar-se. As pesquisas realizadas pelo etnógrafo são o resultado de grande quantidade de informação, através de apontamentos, gravações de áudio e vídeo. Por isso, um estudo etnográfico consome muito mais tempo do que as técnicas de identificação de requisitos mais comuns, como as entrevistas.
ROCHA (2001), que selecionou, apresentou e organizou os artigos que compuseram "Maceió de Outrora", volume II, de Lima Júnior, assim se expressou na sua Apresentação: "(...) Reside aqui a preciosidade da obra deste escritor curioso que tanto se aproxima da linguagem etnográfica: no detalhamento do cotidiano, na busca pelo dado direto, de primeira mão, mas que não descuida da investigação junto a outras fontes: jornais, por exemplo, fotografias, folhetos publicitários de campanhas políticas, documentos. Etnógrafo no estilo e na curiosidade. Intuitivo na metodologia. Grandemente afeito às observações diretas, Félix Lima Jr. manteve-se sempre atento a objetos que somente na segunda metade do século XX ganharam expressividade com a chamada nova história cultural, uma história antropológica, atenta a uma história das mentalidades, dos odores, da moda, dos comportamentos enfim, que informam as realidades culturais de sujeitos inseridos num tempo e num espaço específicos."
EDMUNDO (1932), poeta, jornalista, redator, repórter, correspondente e especialmente como cronista do passado, nos seus 83 anos de existência, pesquisando o porquê do desenvolvimento da mentalidade colonial carioca e de suas antigas características urbanas, retratou as muitas mudanças que presenciou no plano político, econômico e sócio-cultural da Cidade do Rio de Janeiro e do País. Em “O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis (1763-1808)”, ele dedica 10 capítulos da obra aos aspectos da cidade e das ruas. A rua colonial, de acordo com o cronista carioca, era “movimentada e alegre, coalhada de negros, de padres e de mendigos”, apinhada de lojas e fétida. No capítulo IV, faz-se espectador da “multidão bulhenta, desencabrestada e feliz” que pelas ruas circulava, dando o relato de alguns hábitos, práticas e costumes curiosos, como os que se seguem:
“(…) Passam negros agora portadores de um enorme e pesadíssimo tonel amarrado em tramas de corda e páo. Cantam. À frente vae o capataz erguendo, na mão direita, o ruidoso maracá animando os homens do esforço, marcando, com solennidade e importancia, o rythmo syncopado da marcha e da toada cheia de melancholia e de tristeza:
Maria, rabula, auê
Calunga auê.
Vão passando.
Vago, longe, cortando o crystal da manhã illuminada e azul, de repente, outro cantar que se escuta, quiçá ainda mais triste e mais monotono, como que vindo das bandas do céo. Ha quem pare escutando. Ha quem se persigne e espere. Ha quem abale em direcção à litania mysteriosa, com a molecagem das ruas a gritar: Nosso Pae! Nosso Pae! Nosso Pae! (…) ¹ Vem a seguir a descrição da passagem do Santo Viático, com destino à Igreja da Candelária, em perfeito contraste com o quadro anterior do transporte do tonel ².
Permiti-me citar o trecho do livro de Luiz Edmundo para mostrar a semelhança da primeira seção desse texto com o que vai relatado pelo maceioense Lima Júnior, com exceção de que, no primeiro caso, se trate do transporte de um tonel, e não de pianos.
Transcrevo abaixo, portanto, o referido artigo de Lima Júnior, respeitando a sua grafia de época, esperando que seja de interesse dos pesquisadores, historiadores e cientistas sociais.


MUDANÇA DE PIANOS
Félix Lima Júnior ³


Na Folha da Manhã, de Recife, de 17 de março de 1947, o saudoso jornalista Mário Mello , estudioso de tudo quanto se refere a Pernambuco, e, especialmente à sua formosa e progressista capital, escreveu um tópico sôbre o transporte de pianos, há vinte anos passados, que era realizado por seis ou oito “ganhadores”, marchando ao som de uma canção ritmada.
Um amigo do ilustre jornalista da terra de Nabuco indagara quando desaparecera, no Recife, o costume de pianos serem assim transportados, pois de 1930 em diante passaram a ser conduzidos em possantes caminhões americanos, principalmente.
Nesta capital, até o ano citado, a mudança de pianos era feita, quase que obrigatòriamente, por “ganhadores” ou diaristas.
Havia grupos ou turmas especializadas, de seis ou oito homens, conforme o caso, sob a direção de um dêles, espécie de mestre, chefe ou capataz, que contratava a mudança e dirigia o serviço, assumindo a responsabilidade. Tiravam o piano da casa com todo o cuidado, punham-no à cabeça, sob rodilhas de pano (muitas vezes o próprio paletó, à falta de coisa melhor…) e, a um sinal do chefe, iniciavam uma espécie de marcha militar, passo cadenciado, “para tornar o pêso mais maneiro”, diziam no Recife; “para não desafinar o instrumento”, ouvi dizerem muitas vezes em Maceió.
Lá vem o piano! — gritavam um menino ou uma doméstica. As janelas e calçadas se enchiam. Todos queriam assistir à passagem do préstito e ouvir o canto característico.
Um jornalista da terra do tio Sam, hospedado no Hotel Central, no Recife, conversava com Mário Mello, em 1930, tendo à mão uma pequena máquina fotográfica, quando interrrompeu a conversa, sem explicações, deu um pulo para o meio da Avenida Manoel Borba e, na esquina da rua das Ninfas, tirou fotografias de um grupo de homens conduzindo um piano à cabeça. Quando êles passaram, o jornalista pediu, então, desculpas ao seu colega brasileiro e explicações ao mesmo tempo, pois aquele meio de transportar pianos era inédito para êle.
Mário Mello, que tinha boa memória musical, como escreveu, recordou-se da música e da letra de uma dessas canções ritmadas, fornecida por êle, há vinte anos, a Mário de Andrade, para o seu folclóre:
Meu barco é veleiro,
Nas ondas do má,
Eu vou embóra, eu vou embóra,
Meu bem me mandou chamá, Iaiá…

Com essa mesma letra ouvi, quando menino, muita gente dançar o esquecido e desaparecido “côco”, indispensável então em todas as festas, principalmente no Natal, dança da qual pouca gente se recorda em nossos dias, apesar de ser alagoana nata.

Em Casa Grande e Senzala registrou Gilberto Freire: “Os pianos não se carregavam outróra sem que os negros cantassem:
É o piano de ioiô,
É o piano de iaiá!…

No livro Inglêses no Brasil, o sociólogo transcreveu outra cantiga de carregadores de piano:
Não se pesca mai de rêde,
Não se pode mai pescá,
Que já sube da notiça
Que os ingrês comprou o má.

Dos grupos de carregadores de pianos de Maceió , um dos melhores organizados trabalhava sob a chefia do Carvão de Pedra (Wenceslao Moisés da Costa), falecido em 1943. Dêsse grupo restam ainda algumas figuras, sendo a principal o Peroba (Firmino José dos Santos), com “ponto” na calçada da Despensa Familiar, à rua do Comércio, residindo no Pinheiro, próximo ao quartel do 20º Batalhão de Caçadores. Outras — Manoel Aviador, Antônio Santos, Francisco André — repousam em sepulturas sem epitáfio nos cemitérios da nossa capital.
Peroba, a meu pedido, forneceu cópia de várias canções, das que êle e o grupo de que era figura de destaque cantavam, quando mudavam os pianos:

Mãe Maria chorou!
É de zombaria!
Mãe Maria chorou!
É de zombaria!
Pilão pisa o milho!
É pilão gonguê!
Pilão pisa o milho!
É pilão gonguê!
Róla o páo, róla o páo!
Dinrim, dandô, dinrim, dandô!
Róla o páo, róla o páo!
Dinrim, dandô, dinrim, dandô!
Olha o tôco no caminho,
Alevanta o pé!
Olha o tôco no caminho,
Alevanta o pé!
Navio chegô na barra,
Afundô!
Navio chegô na barra,
Afundô!
Moleque,
Abra o ôlho, finca o pé!
Moleque,
Abra o ôlho, finca o pé!
Rolinha,
Fôgo pagô!
Rolinha,
Fôgo pagô!
O páo rolou, caiu!
La na mata ninguem viu!
O páo rolou, caiu!
La na mata ninguem viu!

Outro grupo bem organizado e preferido por muita gente, para a mudança dos pianos das “sinhasinhas”, era chefiado pelo Torquato, ganhador que merecia especial confiança de grande parte do comércio desta capital, e cujo “ponto” ficava na Despensa Familiar, já citada. Torquato, identificado facilmente pelo grande bigode que usava, apesar de ser homem pobre, de origem humilde, simples diarista, muito estimado.
Iaiá, dondon,
Este côco é bom,
É bom, é bom,
Iaiá Dondon.

Outra canção que Mário Mello conservou:
Zomba, minha nêga!
Zomba, meu sinhô!
Quem quizé se embarcá,
Trem de ferro já chegô!
Iaiá…

E aqui está outra, ouvida em Maceió e que me foi fornecida pelo ilustre e saudoso desembargador Augusto Galvão, há uns seis anos passados:
A água é para se beber,
O ferro para se engomar,
Abre alas, minha gente,
Que o piano quer passar!

Lembro-me de uma, creio que a mais simples e preferida por isso mesmo, ouvida, há muito tempo, nesta capital:
João Criôlo,
Maria Mulata!
João Criôlo,
Maria Mulata!

E de uma variante:
João Criôlo,
Maria Mulata!
Vestido de renda,
Pulseira de prata!

e de outra:

Eu também vou,
Apanhar maracujá!
Eu também vou,
Apanhar maracujá!
Gemeu, gemeu,
gemedô!
Gemeu, gemeu,
gemedô!

E esta, que é apenas uma espécie de toada:
É de zombaria!
É de zombaria!
É de zombaria!

Em agôsto de 1950, quando se comemorou, no Teatro Santa Isabel, em Recife, o primeiro centenário do nascimento do grande abolicionista e político José Mariano, seu filho, o poeta Olegário Mariano, da Academia Brasileira de Letras, pronunciou conferência, na qual citou toada popular dos carregadores de piano “de que todos os recifenses do começo do século terão certamente guardado no ouvido a ressonância como um perdido acalanto:
Olelê, vira a moenda,
Olelê, moenda virou,
Eu estava em Beberibe
Quando a notícia chegou.
Mataram Zé Mariano,
O comércio se fechou.
Mas a notícia era falsa
Graças a Deus Nosso Sinhô.
Olelê, vira a moenda,
Olelê, moenda virou".

Em “Segismundo no carnaval”, publicado no suplemento literário do Jornal do Comércio, de Recife, de 16 de janeiro de 1966, registrou Tomás Seixas:
“Acabaram-se os pianos e os carregadores de piano que iam do Recife até Caxangá com o bruto de um piano na cabeça e cantando:
Iaiá não me diga adeus,
Olhe que eu vou embarcar,
O vapor entrou na barra,
O telegra deu siná…"

Em 29 de agôsto de 1953 passava eu, de ônibus, pela rua 26 de Abril, no Poço, quando encontrei na esquina daquela artéria com a rua Inácio Calmon, seis homens conduzindo um piano à cabeça. Não cantavam. O instrumento pertencia a uma viúva… Piano de viúva, conforme a tradição, é conduzido em silêncio…

Seis homens passaram, na rua Saldanha da Gama, no Farol, na tarde de 10 de junho de 1950, levando um piano e cantando:
É de zombaria!
É de zombaria!

Pelo mesmo bairro, na rua Comendador Palmeira, no dia 14 de junho de 1956, pela manhã passou outro piano carregado por seis homens, que cantavam, apenas para marcar o passo:
Fogo pagô!
Fogo pagô!

Três anos depois, pela rua Angelo Neto, assisti à passagem de outro grupo de seis ganhadores, conduzindo um piano de côr preta, cantando apenas e monotonamente:
João Criôlo,
Maria Mulata!
João Criôlo,
Maria Mulata!

Foi a última vez que vi piano transportado em cabeças de homens de ganho, na simpática capital alagoana.

NOTAS DO AUTOR

¹ EDMUNDO, Luiz: O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis (1763-1808)”. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1932, p. 46-47.

² Pode-se imaginar que EDMUNDO (1933) aqui se referisse ao transporte de fezes em tonel, como descrito no texto abaixo de outro autor: “A urina e as fezes dos moradores, recolhidas durante a noite, eram transportadas de manhã para serem despejadas no mar por escravos que carregavam grandes tonéis de esgoto nas costas. Durante o percurso, parte do conteúdo desses tonéis, repleto de amônia e uréia, caía sobre a pele e, com o passar do tempo, deixava listras brancas sobre suas costas negras. Por isso, esses escravos eram conhecidos como “tigres”. Devido à falta de um sistema de coleta de esgotos, os “tigres” continuaram em atividade no Rio de Janeiro até 1860 e no Recife até 1882. O sociólogo Gilberto Freyre diz que a facilidade de dispor de “tigres” e seu baixo custo retardou a criação das redes de saneamento nas cidades litorâneas brasileiras.” (Fonte: GOMES, Laurentino: 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, Ed. Planeta do Brasil, p. 144).

³ Félix Lima Júnior nasceu em Maceió em 6 de março de 1901 e faleceu na mesma cidade em 10 de junho de 1986. Estudou as primeiras letras em escola pública estadual e os preparatórios no Liceu Alagoano. "Sem curso de formação superior, nos deixou rico legado descritivo sobre um sem-número de aspectos da Maceió da primeira metade do século XX, tornando-se um cronista de sua época, indispensável leitura para todos os que quiserem se debruçar em qualquer tempo, sobre a Maceió daquele período", sentenciou Rachel Rocha, a organizadora de "Maceió de Outrora", vol. II, de Lima Júnior, na Apresentação do livro. Ele trabalhou no Serviço do Algodão, foi funcionário do Banco do Brasil, onde ingressou por concurso em 1927, tendo chegado a gerente. Tomou posse como membro do IHG de Alagoas em 1954 e da Academia Alagoana de Letras em 1957. Foi sócio correspondente do Instituto Histórico de Pernambuco e da Comissão Alagoana de Folclore, bem como sócio benemérito da Sociedade Montepio dos Artistas Alagoanos e sócio honorário do Instituto Histórico, Etnológico e Folclórico de Tucuman - Argentina. Colaborou com jornais e revistas maceioenses e de outras cidades brasileiras como o Recife e o Rio de Janeiro. Dentre suas inúmeras obras, destacam-se as seguintes: Festejos Populares de Maceió de Outrora (1956), Tipos Populares de Alagoas e Uma Tragédia Alagoana (1958), História dos Teatros de Maceió (1961), Delmiro Gouveia, o Mauá do Sertão Alagoano (1963), Igrejas e Capelas de Maceió (1965), Fortificações Históricas de Maceió (1966), Irmandades (1970), Episódios da História de Alagoas e A Escravidão em Alagoas (1975), Maceió de Outrora, vol. I (1976), Última Execução Judicial no Brasil (1979), As Emboladas do Chico Barbeiro, Dois Maestros Alagoanos e Memórias de minha Rua (1981), Piriquitis: contos e Cemitérios de Maceió (1983), Maceió de Outrora: Obra póstuma, v. II, texto selecionado, apresentado e organizado por Raquel Rocha, Maceió, EDUFAL, 2001. Segundo a supracitada organizadora deste segundo volume de "Maceió de Outrora", Rachel Rocha, ele consiste em 23 artigos em duas partes: "Cenas urbanas da Maceió no início do século XX" e "Manifestações políticas na Maceió pré- e recém-republicana". As fotografias e ilustrações constituem a terceira e última parte desse segundo volume, chamada "Paisagens urbanas da Maceió na primeira metade do século XX".

Mário Carneiro do Rego Mello nasceu em 5 de fevereiro de 1884, no Engenho Barbalho. Advogado formado pela Faculdade de Direito do Recife, jornalista (colaborou com quase todos os jornais do Recife de sua época), historiador, geógrafo, filatelista, numismata e autor de mais de 50 livros e incontáveis artigos de interesse dos historiadores, deixou sua marca em defesa de Pernambuco, amante que era do seu folclore, do seu carnaval, do seu frevo e das suas tradições. Seu “ex-libris” como escritor ostentava orgulhosamente a divisa “Omnia pro Pernambuco” (Tudo para Pernambuco). Além de tocar vários instrumentos de sopro, foi também exímio violonista e bom pianista, tendo composto várias peças musicais, entre as quais o conhecido dobrado “Tiro 333”. Pertenceu a várias instituições e associações literárias, entre as quais se destacam o IAHG de Pernambuco, a Academia Pernambucana de Letras, a Federação Carnavalesca Pernambucana, a Universidade Popular do Recife, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, as Sociedades Geográficas de Lima, Havana e Washington, a Academia Internacional de História, a Comissão Nacional do Folclore, além de Institutos de História e Geografia espalhados por todo o Brasil. Faleceu em 24 de maio de 1959.

Félix Lima Júnior trata mais extensamente dos carregadores de pianos em Maceió, no livro Maceió de Outrora (1976). RAFAEL (2004), estudando a presença dos negros na historiografia alagoana, refere-se “à contribuição inestimável de Félix Lima Júnior, cronista alagoano que reuniu, no livro intitulado Maceió de Outrora, uma série de artigos sobre os costumes e hábitos da população maceioense, no começo do século passado, de onde se podem recolher alguns dados, ainda que incipientes, sobre a atuação dos negros na capital alagoana. Mais recentemente outras crônicas desse autor foram reunidas em obra póstuma, com o mesmo título, vindo aumentar o já consistente e variado conjunto de sua produção, cuja importância para essa pesquisa deve-se ao fato dele ter nascido em 1900 e assim ter podido acompanhar in loco alguns dos principais fatos por ele narrados. A consulta desse material torna-se, portanto, indispensável a quem pretenda reconstituir alguns aspectos pitorescos, históricos e sociais da Maceió do começo do século XX. (…)
O primeiro dos trabalhos citados de Félix Lima Júnior, Maceió de Outrora, Vol. I divide-se em duas partes: 1) Os costumes, a etiqueta e a moda; e 2) Paisagens e aspectos da cidade. Neste segundo tópico, encontramos informações relativas às atividades econômicas desenvolvidas por negros em Maceió, os quais as praticavam num espaço quase exclusivo da cidade, no caso, as ruas do centro da cidade, ou para ser mais preciso, a rua do Comércio. Na esquina com a antiga rua do Açougue, no lugar conhecido como Quatro Cantos, onde antes existiam marcos de pedras utilizados para assinalar as entradas dos becos, instalava-se uma variada gama de negros africanos e brasileiros, à espera de algum tipo de serviço:
Encostados nos ‘frades’ (…) colocados nos Quatro Cantos, vadios, engraxates, ganhadores e diaristas: Zé Molequinho, Chico Bonzinho, João Laurindo (…) Joaquim Pedro, Sebastião, Zé Broa — vitimado em plena rua por um colapso quando conduzia um piano, ajudado por cinco companheiros —, Nicolau — italiano, engraxate de profissão —, Pedroba (Francisco José dos Santos). Todos chefiados pelo Torquato (…). Cantavam, queriam irritar o Carvão de Pedra (Wenceslau José da Costa), em pé, do outro lado da rua:
A ponte de Jaraguá
Foi feita de geringonça
Bacalhau é comer de negro
E negro é comer de onça. (…)
Sabe-se pela crônica local que esta era uma atividade comum entre os homens livres das principais capitais do país, e que depois de extinta a escravidão, foi assumida pelos remanescentes desse sistema econômico, os quais não encontram outra atividade compatível com sua capacidade física, senão o trabalho braçal desenvolvido nas estivas da zona portuária, ou no serviço de transporte de móveis e utensílios domésticos pesados no centro da cidade. Há quem afirme que, no exercício dessa atividade, algumas canções eram executadas com a finalidade de cadenciar o movimento dos operários; depois, as mesmas tornaram-se de domínio público. (Em nota de rodapé: Sabe-se pelas estatísticas criminais divulgadas entre os anos de 1909 e 1911, período em que foram divulgados dados acerca da filiação, idade, profissão, cor e endereço dos detidos, a maior parte deles levava a vida como ganhadores e que, entre os negros, essa era a profissão predominante.) (…)
Já Félix Lima Júnior fala dos amoladores de canivetes, facas e tesouras, serviço em grande parte oferecido por italianos com seus apitos estridentes, os quais também eram os tocadores de realejo; do vendedor de papagaios (…); dos moleques de pés descalços que apregoavam à porta dos teatros o afenim, dedinho, broa de goma, tapioca de eucalipto, bloas de eucalipto, de goiaba e de mel de abelha; do vendedor de leite tirado em frente das casas dos clientes; e ainda dos vendedores de galinhas e de perus, de coco verde, de sorvete, e, principalmente do sururu (…).
Contudo, a variedade desse comércio ambulante que maior repercussão teve em Maceió, no período em questão, parece ter sido a da venda de quitutes, desenvolvida em grande parte por mulheres negras (…).


BIBLIOGRAFIA


BARROS, Francisco Reynaldo Amorim. ABC das Alagoas, verbete Lima Júnior, Félix, Brasília: Secretaria Especial de Editoração e Publicações do Senado Federal, 2005.
EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis (1763-1808). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1932, 549 p.
GOMES, Laurentino.  
--> --> 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Ed. Planeta do Brasil, 2007, 408 p.
LIMA JÚNIOR, Félix. Maceió de Outrora, vol. II (Coleção Nordestina). Rachel Rocha (org.). Maceió: EDUFAL, 2001.
RAFAEL, Ulisses Neves. “Presença dos negros na historiografia alagoana: o discurso do silêncio”, artigo disponibilizado na Internet e considerado pelo autor parte da tese de doutorado intitulada: “Xangô rezado baixo: Um estudo da perseguição aos terreiros de Alagoas em 1912”, defendida por ele em 2004 na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Imagem: CARREGADORES DE PIANO - Recife (PE) – 18/02/1938: Manoel Eliziário do Nascimento, Genaro José Barbosa (Papa mé), Manuel Felix da Silva (Riscão), José Amaro da Silva, Artur Francisco da Silva, André Henrique dos Santos, Aureliano Rezende de Maria (Galo Muiado), Francisco Pinheiro de Lacerda.
Fotógrafo: Luis Saia
Fonte: Missão de Pesquisas Folclóricas (Mário de Andrade) in http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/index.html, no subtítulo FOTOS


* Francisco José dos Santos Braga, cidadão são-joanense, tem Bacharelado em Letras (Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras, atual UFSJ) e Composição Musical (UnB), bem como Mestrado em Administração (EAESP-FGV). Além de escrever artigos para revistas e jornais, é autor de dois livros e traduziu vários livros na área de Administração Financeira. Participa ativamente de instituições no País e no exterior, como Membro, cabendo destacar as seguintes: Académie Internationale de Lutèce (Paris), Familia Sancti Hieronymi (Clearwater, Flórida), SBME-Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica (2º Tesoureiro), CBG-Colégio Brasileiro de Genealogia (Rio de Janeiro), Academia de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei-MG, Instituto Histórico e Geográfico de Campanha-MG, Academia Valenciana de Letras e Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ e Fundação Oscar Araripe em Tiradentes-MG. Possui o Blog do Braga (www.bragamusician.blogspot.com), um locus de abordagem de temas musicais, literários, literomusicais, históricos e genealógicos, dedicado, entre outras coisas, ao resgate da memória e à defesa do nosso patrimônio histórico.Mais...

19 comentários:

Anônimo disse...

Muito interessante! É daí, então, que vem a expressão "carregar o piano"?
Beijos, Petete
Gostei muito. Beatriz

Anônimo disse...

Meu querido,
Foi muito oportuna sua matéria sobre o carregamento de pianos.
Você uniu a história à música e aos costumes variados deste Brasil plural.
Parabéns, meu amor!
RUTE

Anônimo disse...

Olá hj pesquisando no Google, achei uma matéria sua sobre o Hino Nacional em latim (30/09/2010). Fiquei muito emocionada, pois sou neta de Joaquim Luís Mendes de Aguiar. Sou filha de Luiz Alexandre Mendes de Aguiar, o único filho dele ainda vivo. Obrigada por esta linda homenagem à memoria do meu avô.Parabéns pelo blog. Um abração, Teresinha Mendes de Aguiar Syllos

Ulisses Passarelli disse...

Caro Braga,
Como disse que o faria, ora comento brevemente os textos de seu blog que recebi link. A calmaria do feriado me possibilitou uma leitura tranquila e prazerosa.

Entre a versalhada dos carregadores de piano encontrei uma cantoria que é minha velha conhecida: "O pau rolou, caiu! / Lá na mata, ninguém viu ..." Naturalmente que a música se faz diversa mas a letra é idêntica à que ouvi cantada pelos dançantes do Mestre Geraldo Cosme, no povoado de Cabeceiras, município de Tibau do Sul / RN, em 1997-8, num agitado coco de zambê. Esta dança, de origem africana é como um célere batuque, ginástico, impressionante pela gestualidade assumida pelo corpo todo em movimento, que rabisca no espaço da dança movimentos telúricos e ancestrais. Mas antes ainda, desde 1995, escutava aqui em São João del-Rei esses mesmos versos, tal e qual, cantados pelo saudoso capitão de congado Luís Santana, no Bairro São Dimas, que à frente de seu catupé acreditava estar saudando as forças da mata com esta cantoria: as almas do índios, os espíritos caboclos, o orixá Oxóssi.

O folclore tem em si mesmo essa universalidade. A dinâmica da cantoria se torna adequada a várias situações. De onde veio? Para onde vai? Ninguém sabe... ninguém viu!
Ulisses Passarelli

Maestro Walter Caetano disse...

Olá Maestro Francisco,

Boa noite!!!

Parabenizo-o pelo artigo.

Muito interessante e bem escrito.

Grande abraço.

Att

Walter Caetano

Prof. Ulisses Passarelli (folclorista, escritor e Membro da Academia de São João del-Rei) disse...

O texto é ótimo, já o tinha lido e acabo de salvar o link entre os favoritos para ler de novo na primeira oportunidade. Mário de Andrade rendeu atenção a este fato folclórico, tão peculiar. Parabéns. Continue escrevendo, não pare, e sempre por gentileza me envie seus textos. Abração.

Profª Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (escritora e docente da UFMG) disse...

Parabéns, pelo artigo.
Muito bom!
Abraço,
Maria Cândida T.C. Seabra

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor e Preisdente do Instituto Cultural Rio Preto-Valença, RJ) disse...

Caro amigo Braga
Muito interessante o seu artigo, pelo que agradecemos. Achamos ótima -- e muito original -- aquela foto dos carregadores de piano!
Abraços, Mario.

Prof. Fernando Teixeira (escritor e Secretário Geral da Academia Divinopolitana de Letras) disse...


Meu caro Braga, creio que os carregadores de piano espelham um tempo com costumes simples e primitivos. Amenizavam certamente o peso do carregamento com as canções e passo quase dança. Esta fotografia de ontem nos dá uma lição: hoje não carregamos pianos, mas erguemos outros pesos. Materiais ou espirituais. Mas, não cantamos, gememos e lamentamos. E o peso se torna muito maior. Desculpe o devaneio. Parabéns pela escavação no tempo. Cumprimente a Rute por mim. Abraço confraterno do Fernando Teixeira

Augusto Fidelis (poeta e Presidente da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Caro Francisco Braga,

Gostei muito do artigo. Ainda bem que a arte de carregar piano foi modernizada, porque era uma tarefa bastante dura.

Abraço

Augusto Fidelis

Dr. Getúlio Targino Lima (advogado, professor, poeta e Presidente da Academia Goiana de Letras) disse...

Caro amigo Braga, que delícia este
"A Arte dos Carregadores de Pianos, sob a ótica de Lima Júnior". Cheiro de história, sabores de estória, tudo bem acondicionado (para que nada se perdesse) nos limites do seu texto.
Parabéns.
Obrigado.
Getulio Targino Lima

Luiz Carlos de Oliveira Cerqueira (poeta e Presidente da Casa do Poeta Brasileiro-seção DF) disse...

Prezado Francisco. Gosto de ler as suas matérias e este "carregadores de piano" está muito interessante, principalmente pela sua curiosa temática. Lembrei-me de quando comprei com minha irmã um piano alemão antigo, já com a caixa toda corroída de cupim e tivemos de transportá-lo para o nosso apartamento na Tijuca. Era um prédio bem antigo e o elevador pequeno, ainda de portas de grade, movidas manualmente. O caso é que o elevador não comportava o grande piano de armário pesadíssimo. A escada era estreitíssima e possuía duas dobras. Também por ela o piano não podia passar. Para encurtar a conversa: Para içá-lo por fora e introduzi-lo pela varanda, no 6º andar tivemos uma despesa superior ao preço pago pelo velho piano. Abraços do Luiz Carlos.

Anônimo disse...

Mestre Braga,

Sensacional este artigo, mudança de piano. Carregar era tão difícil quanto tocar, portanto, só cantando mesmo,mas, resultando, em consequência, na arte de compor aquelas cantigas.

Mais uma vez, amigo Braga, parabéns pela matéria, qual muito agradeço por tomar conhecimento deste fato.

P.S: Curioso que, no Nordeste brasileiro, aliás,região de nosso país responsável pela grande parte de nossa cultura e costume.

Musse Hallak

José Egídio de Carvalho (Membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Boa noite e muito obrigado pela sua gentil e costumeira atenção. Recebo sempre motivado por grande alegria.

Prof. Dr. Henryk Siewierski (professor, ensaísta, poeta e tradutor) disse...

Caro Francisco,

Muito obrigado por este artigo! Foi comovente saber como se transportava Pianos outrora no Brasil,
com os cantos que os Carregadores cantavam, e que, tratando-se do piano da viúva, carragavam
em silêncio.

Um forte abraço,
Henryk

Benjamin Batista (Presidente da Academia de Cultura da Bahia) disse...

Belo artigo. Gostaria de saber se posso publicar na Revista da Academia de Cultura da Bahia. Gostaria de conhecer sua terra. Que sugestões pode me dar? Abraços. BBF.

Sérgio de Vasconcellos-Corrêa (compositor e Membro da Academia Brasileira de Música) disse...

Muito bom, meu caro Braga. Essa eu não conhecia. Valeu!!!

LuDiasBH (escritora, poetisa e gerente do Blog Vírus da Arte & Cia.) disse...

Irei até lá.
Muito obrigada, Braga (com rima e tudo).
Abraços,

Lu

Profª Elza de Moraes Fernandes Costa (diretora do Portal Concertino) disse...

Prezado Braga,

É sempre bom reler artigos como este! Os visitantes do Portal Concertino também gostaram muito pois o número de acessos é alto.

Parabéns, mais uma vez.

Um abraço,

Elza