quinta-feira, 15 de junho de 2017

NÃO ENTRES EM COMBATE COM O GREGO


Por Francisco José dos Santos Braga



Tenho o prazer de trazer ao público lusófono um exemplo de peça expressiva de um grupo musical cretense, que, num poema e música de sua autoria, faz uso de dois princípios fundamentais: 
1. identificação do orgulho nacional ferido
"Por que, ó Grego, te acovardas,
Por que não te encorajas?
Tantas coisas que conseguiste 
Precisas gabar."
2. reafirmação do seu direito de resistência, como mecanismo de autodefesa da sociedade grega, insurgindo-se contra leis injustas e governos desleais que se revezam no poder. Contra esses são dirigidos os versos: 
"Desejam tua liberdade para surripiarem novamente
Querem te escravizar... "
Está claro que o propósito desse grupo musical é inflamar, instigar e sublevar sua audiência que é obviamente a comunidade grega.

O poema é concluído com uma advertência a outros povos que se aproveitam do momento de crise da Grécia para impor ao povo grego a espada de Dâmocles: 
"Enquanto combateres o Grego,
Fazes um esforço errado,
Mesmo que tenhas ganhado a batalha,
Perdes a guerra."
Na ficha técnica temos a dupla cretense Manólis Titákis (compositor) e Kóstas Cheilás (autor dos versos e tocador de lira). Bravos jovens tomam parte nessa canção que os Cretenses produziram (na verdade, além de Cretenses, há um Évzonas (ou Tsoliás), um Thrácio  e um Grego Pôntico ¹), a qual inspira encorajamento, toca e agita todos os Gregos, os quais, por sua vez, acham que é uma iniciativa válida para mostrar que eles ainda dispõem de forças para lutar como povo contra os que os traem.
Évzones desembarcam em Smyrna (maio de 1919)
Vários elementos utilizados no cenário da gravação estão carregados de mensagens a toda a comunidade grega: a gaita de foles ² e a lira cretense de três cordas tocadas com arco, o cenário típico de Creta, camaradas corpulentos, a bandeira grega, os dançarinos e músicos trajando vestes tradicionais.
Lira cretense de 3 cordas























As filmagens aconteceram no desfiladeiro de Rogdia, na localidade conhecida por "Três Igrejas".

Esses elementos trazem à memória dos Gregos não só os valorosos Cretenses, mas também evocam um mundo onde o presente está inseparavelmente ligado ao passado, trazendo à tona a lembrança de outros gloriosos heróis no imaginário grego: os habitantes de Roúmeli (Roumeliótes), da Thrácia, de Póntos, lembrados por suas ações gloriosas em combate... Da forma como a comunidade grega tem sido tocada pela música tão instigante e patriótica de Titákis, Cheilás e seu grupo, não é difícil imaginar uma retomada de solidariedade e reanimação nacionais (εθνική ομοψυχία  και ανάσταση), ou pelo menos, é o que seria desejável.
Manual 2000 da Liga dos Roumeliótes da Grécia do Norte,  520 p.






















Monumento do Genocídio do Helenismo Pôntico, em Piréus















A bandeira dos revolucionários trácios em 1821






















Analisando a peça musical em questão, observa-se que ela foi estruturada em duas partes distintas: na abertura, o poema abaixo musicado, e para finalizar, uma dança tradicional de Creta. A primeira é composição de Manólis Titákis; e a dança, um syrtós ³ chaniótiko (de Chaniá, Creta). Os passos são dados circular ou ciclicamente com os pés no solo e possui 12 movimentos diferentes.
Embora me considere um neófito no dialeto cretense, ainda assim atrevo-me a oferecer abaixo minha tradução para a letra da canção cretense, com a ressalva de que estive em Creta por poucos dias e apenas uma vez:


NÃO ENTRES EM COMBATE COM O GREGO
Por Kóstas Cheilás
Manólis Titákis, Kóstas Cheilás e seu grupo, em Creta

Por que, ó Grego, temes?
Não lembras a liberdade
Quando nasceste
Para combater feras?

Por que, ó Grego, te acovardas,
Por que não te encorajas?
Tantas coisas que conseguiste
Precisas gabar.

Ergue tua estatura
Dá à terra para separar uma
Os teus antepassados te deixaram
Uma pesada herança.

Ponha isso bem na tua cabeça
E nunca te esqueças:
Alguns deram a sua vida
Para que tu festejes.

Sai e para em pé para não curvar a cabeça.
Instigador, sempre entravas na batalha com o peito.
Desejam tua liberdade para surripiarem novamente
Querem te escravizar, mas guerreiam durante anos.

Enquanto combateres o Grego,
Fazes um esforço errado,
Mesmo que tenhas ganhado a batalha,
Perdes a guerra.


Abaixo apresento o texto original grego rico de inúmeras expressões idiomáticas cretenses:

"Μην πολεμάς τον Έλληνα"

Γιάντα Έλληνα φοβάσαι
λευτεριά δε πεθυμάς
αφού είσαι γεννημένος
με θεριά να πολεμάς.

Γιάντα Έλληνα δειλιάζεις
γιάντα δε θαρρεύεσαι
τόσα που 'χεις κατορθώσει
πρέπει να πενευεσαι.

Ύψωσε τ' ανάστημα σου
δως της γης να σπάσει μια
οι προγόνοι σου σ' αφηκαν
μια βαριά κληρονομιά.

Βάλε το καλά στο νου σου
και ποτέ σου μη ξεχνάς
κάποιοι δώσαν τη ζωή τους
τη δική σου να γλεντάς.

Σήκω και στέσου όρθιος μη σκύβει το κεφάλι
μπροστάρης πάντα έμπαινες στη μάχη με το μπέτη.
Τη λευτεριά σου πεθυμούν ν' αρπάξουνε και πάλι
να σε σκλαβώσουν θέλουνε, μα πολεμουνε έτη.


Σα πολεμάς τον Έλληνα
άδικο κόπο κάνεις,
τη μάχη κι αν την κέρδισες
το πόλεμο τον χάνεις.







NOTAS  EXPLICATIVAS




¹  "Póntos" significa mar. Os "Póntioi" (Gregos Pônticos) costumavam viver entre a Rússia e a Turquia. Eram Gregos ali enviados na época bizantina para proteger as fronteiras. Eles eram um povo dominado por fortes instintos primitivos e apaixonados.

²  Reza a mitologia grega que foi a deusa Athena a inventora da gaita. Decidida a abrilhantar a assembleia dos deuses com um novo instrumento de nome Aulo (assim se chamava), Athena o tocou durante um banquete. Contudo, os deuses riram-se ao verem as suas bochechas inchadas, e furiosa a deusa jogou longe o aulo, amaldiçoando quem o viesse a encontrar. Consta que Mársias, o sátiro, encontrou o aulo rejeitado por Athena e que seus lábios teriam inchado, arruinando sua beleza. De qualquer forma, Mársias adquiriu tal domínio sobre o instrumento que desafiou Apolo para um concurso de música, no qual aquele que saísse vencedor poderia fazer do oponente o que quisesse. Como seria de esperar, Apolo, o deus da Música, venceu e esfolou vivo o sátiro, dependurando-o em uma árvore, para punir a sua arrogância (hybris). O sangue do sátiro e as lágrimas das musas formaram o rio Mársias na Ásia Menor.

³ Sob o título Syrtós de Kíssamos, melodias e peculiaridades, transcrevo a abertura da curiosa matéria de Rivendell sobre a modalidade de dança grega conhecida como syrtós:
"A tradição musical cretense se destaca tanto pela variedade acusmática, quanto pela diversidade das danças, dos instrumentos e das artes. Tudo isso, contudo, desde meados da década de 50 e depois, começou a mudar, não para melhor. As dezenas de danças deram lugar a apenas cinco "pancretenses", o que ocorreu também com as melodias: os milhares de motivos musicais chegaram ao ponto de murcharem ao mínimo. Tipos de danças, tais como Apanomerítis, Lazótis, Mikró-Mikáki, Angaliastós, Prinianós ou Braimianós, Roumathianí Soústa, etc. quase desapareceram dando lugar às mais "impressionantes" danças, tais como Malevyziótikos, Pentozáli, etc. O Syrtós, uma das danças mais antigas em Creta, que se estruturou mormente por volta de 1750, será a seção que nos ocupará. Não, porém, como dança em sentido amplo, mas como melodia. E, para sermos exatos, como melodias. Pois são centenas as melodias do Syrtós, que começam a partir da Queda de Constantinopla, tornam-se realidade nas Loussakiés do distrito de Kíssamos da municipalidade de Chaniá. A maioria delas se perdem na noite dos séculos, outras talvez permaneçam apenas anedotas, bem como, seja como for, um significativo número dessas melodias nos faça ver com clareza o seu valor. (...)" 
Fonte: Blog KISAMOS MUSIC & CULTURE, disponível in http://kissamoschania.blogspot.com.br/2010/07/blog-post_21.html

A Wikipedia, no verbete Syrtós, esclarece que é um nome coletivo de um grupo de danças folclóricas gregas, cuja etimologia provém do verbo σύρω, no sentido de atrair, puxar. 
Syrtós, junto com seu parente kalamatianós, são as danças mais populares ao longo da Grécia e Chipre, e são frequentemente dançados pela diáspora grega no mundo inteiro. São muito populares em reuniões sociais, casamentos e festivais religiosos. Syrtós e kalamatianós usam os mesmo passos de dança, sendo o syrtós no compasso 4/4 e o kalamantianós no compasso 7/8, organizados nos ritmos lento (3 tempos), rápido (2 tempos) e rápido (2 tempos).
Syrtós e kalamatianós são danças de linha e danças cíclicas ou circulares, executadas por dançarinos numa linha curva dando as mãos e olhando à direita. O dançarino na extremidade direita da linha é o líder. Ele também pode ser um "performer" solo, improvisando movimentos hábeis contorcendo-se e exibindo-se, enquanto o resto da linha faz o passo básico. Enquanto o líder  faz isso, o próximo dançarino na linha para de dançar e o sustenta no alto com um lenço enrolado prendendo suas mãos, de modo que ele possa virar-se e não cair.
O syrtós é mencionado como dança tradicional grega já na Grécia antiga.
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Syrtoshttps://el.wikipedia.org/wiki/Συρτός

Para comprovar o que foi dito acima (que o syrtós já existia na Grécia antiga), é interessante fazer uma pequena digressão para reafirmar a antiguidade do syrtós.
Pausânias, já no século II d.C., relatava ter encontrado vários templos em ruínas em sua passagem pela Megalópolis na Arcadia (Peloponeso), a saber: o de Athena Polias e o de Hera; os santuários das Musas, de Hermes, de Apolo (restando somente as fundações) e de Hércules (restando um altar). Ainda segundo Pausânias, o templo de Dioniso encontrava-se em péssimas condições, uma vez que fora atingido por raio há umas duas gerações atrás, sem ser reconstruído. 
Como evidência para a restauração das tradições de culto, é frequentemente citada, entre outras, a seguinte: na cidade de Akraiphia, na Beócia, durante o reinado de Calígula, um respeitado cidadão chamado Epaminondas assumiu a iniciativa de restaurar o festival em honra de Apolo Ptoos, que tinha sido interrompido por um período de 30 anos. De acordo com a inscrição, Epaminondas restaurou piedosamente os sacrifícios, organizou as grandes procissões e (fez executar) as danças cíclicas (citando literalmente syrtós), tudo segundo os costumes dos ancestrais: 
"Τὰς δὲ πατρίους πομπὰς μεγάλας καὶ τὴν τῶν συρτῶν πάτριον ὄρχησιν θεοσεβῶς ἐπετέλεσεν."
 

6 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Com o pretexto de apresentar ao público lusófono uma peça musical cretense que há uns sete meses tem levantado o ânimo do povo grego, inúmeros outros assuntos interligados são tocados no texto que ora o(a) convido a ler.

Da complexa teia temática se destacam alguns elementos que merecem ser postos em destaque: além da letra do poema e da música, são abordados ainda o tipo de dança, dois dos instrumentos musicais (o aulo e a lira) e a procedência dos membros do grupo musical: além dos Cretenses, há um Évzonas, um Thrácio e um Grego Pôntico, descendentes de povos lembrados por suas ações gloriosas em combate.

José Antônio de Ávila Sacramento disse...

Parabéns, Francisco Braga!
Sempre aprendo muito com suas importantes, necessárias e bem fundamentadas publicações.

João Carlos Ramos (poeta, escritor, ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Mestre Braga nos alegra e surpreende com seus estudos sócio-historiográficos de valor universal.Um texto de tamanha qualidade como esse,deveria ser apresentado no Congresso Nacional, nas universidades e em
todas as comunidades artísticas e culturais do País.
Sua presença na Academia Divinopolitana de Letras indubitavelmente nos engrandece!
Parabéns, ó mestre internacional!

Danilo Carlos Gomes (cronista, escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal) disse...

Prezado Francisco Braga, muito grato por "Não entres em combate com o grego". Aprendi muito com os textos: História e Literatura. Eu gostaria de enviar-lhe meu último livro, um pequeno volume de 100 páginas. Título: "Augusto Frederico Schmidt, Juscelino Kubitschek e Odilon Behrens". Pode enviar-me seu endereço? Muito grato. É sempre bom ler o Blog do Braga.Abraço do marianense Danilo Gomes, em Brasília há 42 anos.

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

O “Blog do Braga” sempre nos traz informações com refinadas pesquisas, como esta sobre: “Não entres em combate com o grego”, pelo que agradecemos.

José Ribas da Costa (antiquário e aposentado da Reserva da Aeronáutica) disse...

Muito bom!