sábado, 10 de março de 2018

CARTA DE EPICURO A MENECEU > > > Parte 2


Traduzida por Francisco José dos Santos Braga

(132) Pois não são as bebedeiras e as diversões ininterruptas nem os prazeres de garotos e mulheres, nem a degustação de peixes e de outras iguarias que uma suntuosa mesa oferece, que geram a vida agradável, mas sim o cálculo sóbrio que examine em profundidade as causas para cada escolha ou rejeição, e que elimine as crendices por meio das quais uma grande perturbação toma conta das almas.
O princípio de tudo isso e o maior bem é a prudência ¹⁸ ; por isso, deve-se preferi-la à própria filosofia, pois dela provieram todas as restantes virtudes, e porque ela nos ensina que não é possível levar uma vida feliz, se não se vive com prudência, ética e justiça, nem é possível viver-se com prudência, ética e justiça sem levar uma vida feliz. Porque as virtudes brotaram da mesma raiz que a vida feliz. E a vida feliz é inseparável delas.

(133) Ó Meneceu, quem pensas ser superior àquele que tem opiniões corretas acerca de Deus, que está liberto completamente do temor da morte, que tem consciência da finalidade que a natureza colocou e crê ser fácil poder atingi-la e conseguir o bem supremo, e (sabe) quão breves são a duração e a intensidade dos males? ¹⁹ Por um lado, alguns propõem o destino como senhor de tudo ²⁰, enquanto outro zomba afirmando que algumas coisas acontecem necessariamente, umas por acaso e outras por nós, porque vê que, por um lado, a necessidade é irresponsável, por outro lado o acaso é inconstante ²¹ , porém a nossa própria atividade é livre; por isso é de sua natureza estar submetida à censura ou ser louvada,

(134) porque é preferível seguirmos o mito sobre os deuses a sujeitarmo-nos ao destino dos filósofos naturalistas. Porque o mito sobre os deuses deixa transparecer alguma esperança de expiação com a mediação do respeito aos deuses. Por outro lado, o destino mostra a necessidade de não conhecer expiação. Nem o acaso ele (o destino) considera Deus, como muitos o fazem, porque nada é gerado desordenadamente por Deus, nem mesmo ele (o destino) considera-o (acaso) uma causa incerta, porque não crê que dele (acaso) é concedido o bem ou o mal para a felicidade das pessoas, apesar de criar o ponto de partida para os grandes bens e males.

(135) Ele (o destino) crê, então, que é melhor fracassar alguém depois de um pensamento correto, do que ser bem sucedido disparatadamente. Porque é melhor nas ações da pessoa o fracasso naquilo que foi bem escolhido, do que aquele sucesso, devido ao acaso, que foi mal escolhido.
Medita, então, Meneceu, sobre essas coisas ²² afins, noite e dia por ti mesmo ou com alguém semelhante a ti e nunca serás perturbado, nem no sono nem desperto, viverás como um deus entre as pessoas ²³ , pois de forma nenhuma se parece com um animal mortal a pessoa que vive entre bens imortais.


NOTAS EXPLICATIVAS (cont.)



¹⁸ Qual será, então, a contribuição da "prudência"? Constituirá as virtudes aceitas, porque mostrará que a vida feliz é aquela na qual se praticam a honra e a justiça. Desta forma, por meio de uma austera reflexão, Epicuro, partindo do primeiro princípio da aspiração do prazer, chega à aceitação das normas reconhecidas da ética; a resposta aos opositores é mais completa.

¹⁹ Um hino para o "prudente". Epicuro volta a argumentos que desenvolveu anteriormente: o "prudente" que conhece as circunstâncias da vida, que possui completa compreensão da natureza dos deuses e da morte, que reconhece as leis que regem o mundo e a responsabilidade da pessoa liberal, a qual não considera que o acaso determina as ações, mas que constitui oportunidade para ação, e prefere sofrer com temperança a prosperar na imprudência.

²⁰ Subentende o destino, de um ponto de vista ético. Os primeiros filósofos e especialmente Demócrito, invocando uma "necessidade" todo-poderosa pelas suas teorias sobre a natureza, chegavam obrigatoriamente à aceitação do determinismo nas relações humanas. Epicuro desvencilhou-se da noção da "necessidade" com a introdução da παρέγκλισις, o primordial impulso voluntário dos átomos durante a sua queda. A tal παρέγκλισις, de acordo com a integração consciente da "psiquê", constitui a causa da vontade livre. Epicuro não rejeita que a "necessidade" constitua causa das muitas coisas, contudo considera que a maior parte da nossa vida é controlada por nós próprios.

A teoria de Epicuro difere do atomismo primevo de Demócrito, porque ele admite que os átomos não seguem sempre linhas retas, mas a direção de seu movimento pode ocasionalmente exibir um "swerve" (inclinação, declinação, viés, desvio ou "efeito" da bola no futebol), παρέγκλισις (fem. em grego) ou clināmen (traduzido por Lucrécio para o latim in De Rerum Natura). Isso permitiu a Epicuro evitar o determinismo implícito no atomismo primitivo e afirmar uma vontade livre.

²¹  Parece que Epicuro considera o acaso como potência em conexão com a necessidade. A lei natural provoca o inevitável curso das coisas, sendo o acaso, contudo, aquele que governa a produção das causas específicas. Por exemplo, a "necessidade" causa o movimento e os choques dos átomos; o acaso, porém, faz com que eles ocupem as posições que criaram o nosso mundo.

²² Se a "necessidade" fosse universal, como afirmam os deterministas, não seria possível existir responsabilidade no espaço da ética, mas nunca aconteceriam alguns "vácuos" no espaço da natureza, os quais denominamos "casuais".

²³   A pessoa prudente subentende a natureza do casual: não se trata de poder divino nem efeito direto do bem ou do mal, simplesmente se refere a boas ou más condições.



REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS



HAMELIN, Octave: ÉPICURE, Lettre à Ménécée, publiée dans la Revue de métaphysique et de morale, 1910, in https://nicomaque.files.wordpress.com/2013/09/lettre_a_menecee.pdf

LAËRCE, Diogène: Vie, doctrines et Sentences des Philosophes Illustres, 2 tomos, Paris: Garnier-Flammarion, tradução do grego, introdução e notas por Robert Genaille, 1965

LAÉRTIOS, Diógenes: Vidas de Filósofos, Atenas: Cactus Editions, 1994, coleção Literatura Grega Antiga "Os Gregos", tomo 284 referente a Epicuro no Livro X (Editor: Odysséas Chatsópoulos - edição bilíngue: grego antigo e moderno), 331 p. 

LAÊRTIOS, Diôgenes: Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, tradução do grego, introdução e notas por Mário da Gama Kury, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008, 357 p. 

LORENCINI, Álvaro & CARRATORE, Enzo del: Carta sobre a felicidade (a Meneceu), com texto baseado na edição de ARRIGHETTI, G.: Epicuro. Opere, Torino, 1973), São Paulo: Editora UNESP, 2002
 

12 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Apresento ao leitor do Blog do Braga minha tradução de um texto considerado crucial para entender a filosofia de Epicuro. Trata-se da CARTA DE EPICURO A MENECEU.
Esta é uma tradução mais literal do que literária, buscando ser fiel à ideia do filósofo grego. Outras traduções em língua portuguesa, bem como a tradução de Octave Hamelin citada na bibliografia, incorreram no risco de desvirtuar a ideia do autor, que é bastante científico, seguidor do Atomismo, mas que rejeita o determinismo de Demócrito.
Finalmente, para fazer a tradução, esclareço que me servi basicamente da edição bilíngue (grego antigo e moderno), da Cactus Editions de Atenas, tomo 284 referente a Epicuro, Livro X do livro intitulado VIDAS DOS FILÓSOFOS, da autoria do polígrafo Diógenes Laértios, que teve o mérito de preservar a referida carta de Epicuro.

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Bom dia

Estimado Amigo.

Muito obrigado.

Bom domingo.

Abraço.

Diamantino

João Carlos Ramos (poeta, escritor, membro e ex-presidente da Academia Divinopolitana de Letras e sócio correspondente da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Lavrense de Letras) disse...

Prezado Braga,
Bom dia!
Sempre provas seu vasto conhecimento histórico e nós somos beneficiados.
Parabéns, mais uma vez!

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, desembargador do TJMG, escritor e membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Que falta faz a lição grega!

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Acabo de abrir o seu e-mail. Muito interessante! Agradeço pelo envio e lhe parabenizo por mais essa pesquisa hitórico-literária.

Abraços, Mario.

José R. B. Bechelaine (escritor, orador, Acadêmico da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Caro confrade,
Felicito-o por este magnífico trabalho. É de grande valor e revela uma grande erudição linguística, literária, filosófica e histórica (coisa rara atualmente). Tenho grande interesse pela filosofia de Epicuro, que estudei um pouco.
J. R. Batista Bechelaine

Rafael dos Santos Braga (pesquisador e bacharel em Filosofia pela UFSJ) disse...

Vou fazer questão de lê-las! Meus parabéns!

Dra. Merania de Oliveira (jornalista e viúva do ex-presidente da Academia Marianense de Letras, Dr. Roque Camêllo) disse...

Dr. Francisco,
Paz, saúde e alegria!

Agradeço-lhe muito suas ricas mensagens.
Pena que neste momento não tenho tempo para estudá-las como eu gostaria.
Irei repassá-las para um amigo, filósofo, prof. Allan.
Abraços extensivos à querida Rute.
Merania

Prof. Allan Autran disse...


Prezada Merania,

Paz, saúde e alegria!

Agradeço a gentileza em enviar-me os textos da Carta de Epicuro a Meneceu, pois, além de interessantes, são uma verdadeira fonte de cultura para o entendimento deste ramo filosófico.
Terei imenso prazer em ler, analisar e assim, agregar mais conhecimentos culturais acerca da Filosofia.

Atenciosamente,
Prof. Allan

Prof. Cupertino Santos (professor de história aposentado de uma escola municipal em Campinas) disse...

Caro professor Braga!
É fascinante ler sua tradução, tendo em vista a forma rigorosa e cuidadosa com que a faz. O fundo ético que norteia as absolutamente sensatas observações de Epicuro acerca daquilo que nos é mais central na existência, o entendimento da natureza da divindade e das regras de bem viver - questão desenvolvida depois pela Escola do Estoicismo - é fundamental na visão de mundo do Ocidente naquilo que diz respeito ao equilíbrio, inclusive na própria ciência.
Parabéns pelo trabalho e divulgação.
Obrigado.

Profª Fátima Aparecida Ferreira disse...

Olá!
Prezado Mestre.
Sr. Francisco José dos Santos Braga.

Agradeço o envio do documento com seu precioso trabalho.
Parabéns!
É uma satisfação poder conhecê-lo.
Um forte abraço.
Obrigada!
Excelente Domingo.
Att,.Professora Fátima Ferreira.
Membro da AMEF (Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos)

José Maurício de Carvalho (professor titular aposentado da UFSJ, professor do Centro Universitário Presidente Tancredo Neves - UNIPTAN, membro do Instituto de Filosofia Brasileira, do Instituto de Filosofia Luso-brasileira com sede em Lisboa, da Academia de Letras de São João del-Rei e da Academia Mantiqueira de Estudos Filosóficos-AMEF) disse...

Parabéns, Braga! Li o seu cuidadoso trabalho. Maurício