terça-feira, 10 de dezembro de 2019

PRÓLOGO DO LIVRO 'OS ANTIGOS COLEGAS' POR LEFTÉRIS PAPADÓPOULOS


Traduzido e comentado por Francisco José dos Santos Braga


Encontro de ex-alunos * de escola primária em Gónnoi, Lárissa, Tessália, Grécia em junho de 2019


Nossos antigos colegas não são apenas as crianças com quem íamos à mesma classe, à mesma escola. Nossos antigos colegas, para mim pelo menos, são todas as pessoas que então amamos. Quando éramos crianças, adolescentes, jovens.

Quando éramos crianças, adolescentes, jovens... - Crédito da foto:
Κων/νος Κορωναίος há 47 anos atrás 

Nossos antigos colegas não são apenas pessoas. São também ruas, parques, terrenos (para brincar) e guerras de pedradas. São também as bolas de pano que fazíamos de meias esfiapadas. São também o sino da igreja e o cheiro de vela derretida nos candelabros. São também o "clorato e enxofre" ¹, que colocávamos debaixo de um azulejo quebrado sobre os trilhos do bonde, e "fazíamos explodir" Atenas, cada Ressurreição (de Cristo, comemorada à meia noite do Sábado Santo).

Nossos antigos colegas eram também nossos antigos brinquedos. Principalmente. Brinquedos muito antigos, com os quais brincavam nossos avós e bisavós. Quando a vida não mudava a cada dois, três anos, mas caminhava com calma, dentro das mesmas sempre sábias sendas do tempo.

Nossos antigos colegas são também algumas canções que amamos muito, em especial quando somos crianças. Como esquecer "Eu quero equipar uma barca / com quarenta e dois remos", que cantávamos com uma gaita quebrada nas intermináveis noites de verão, na Praça de Kyriakós ²? Como esquecer as canções de Sofia Vémbo, depois da Libertação? Como esquecer as estrofes de oito versos de Fílonas Arías e os versos de Orestis Láskos, nos salões do "Favo de mel" e do "Alcazár" ³, e as lindas cantoras que passavam pelo palco, brilhavam por pouco tempo, e depois, à medida que partiam, te deixavam um pesar no coração, sobre o qual não sabias dizer qual era a causa: se o canto delas ou o requebro e a beleza delas?

Nossos antigos colegas são também os quarteirões desta cidade que nós, as crianças, os vivíamos cada instante do dia e da noite, de dentro das fragrâncias do jasmim e da acácia, e das folhas verdes do choupo e da amoreira, o gosto azedo da pimenteira-brava.

Nossos antigos colegas são também os cinemas ao ar livre. Com as cercas cobertas de flores, o cascalho no chão, as cadeiras escangalhadas e a voz anasalada do técnico de projeção, que fazia o anúncio para os "em breve" e estava apaixonado, ora pela Maria Montez, ora por Lana Turner, ora por Hedy Lamarr e sempre por Rita Hayworth.

Nossos antigos colegas são também os bondes verdes da rua Acharnón, os bondes amarelos da rua Patissíon, os ônibus que se arrastavam exaustos pelas avenidas centrais, e, claro, os vendedores de grão-de-bico torrado com os seus carrinhos iluminados pelo acetileno, os carregadores com os "executam-se transportes", o único viajante no quarteirão, que deixava seu carro na praça e jogava carteado no café.

"Executam-se transportes"

Nossos antigos colegas são o doce no pote, que a mãe fazia com suas mãos, e a camisa branca, recém-passada a ferro pela irmã, que cheirava sabão verde e festa, e, naturalmente, a primeira calça longa, com a prega na perna (da calça), e a lapela a estourar no peito do pé do sapato engomado, para impressionar as moças.

Nossos antigos colegas são também nossas gavetas fechadas. As gavetas de nossa época infantil, cheias de piões, fios e soldadinhos de chumbo, que a guerra do tempo mutilou, e estão já sem mãos e sem pernas. As nossas gavetas fechadas com nossos antigos blocos de notas, versinhos amputados e as cartas de amor, com as flores secas que se despedaçam com o toque.

Como amo aquelas gavetas fechadas... Às vezes as abro, devagar, com cuidado, com ternura, com temor de que aquela andorinha dourada da minha juventude bata as asas e voe para fora e se perca, cujo coração bate com meu coração e me conta sobre viagens e aventuras, Condes de Montecristos e fugitivos do Alcatraz e um Cristo que parou em Chaidári , ressuscitou em Drapetsóna e depois pegou sua espingarda e se fortificou atrás das barricadas, em companhia de minha mãe, meu pai e o amigo deles Spyro, catador de lixo, que os alemães executaram em maio de 1944, em Kessarianí...


 

NOTAS EXPLICATIVAS


*  Superaram as expectativas dos organizadores as participações de colegas de turma no encontro-demonstração que organizaram nos Gónnoi de Lárissa, no sábado, 8 de junho de 2019. Para a história, esta foi o terceiro encontro, além de dois outros ocorridos o primeiro em 1992 e o segundo em 2008. O encontro deste ano foi mais extenso, pois incluiu colegas de turma com datas de nascimento em 1953-5.
Link da fotografia: https://www.larissanet.gr/2019/06/09/symmathites-synantithikan-stous-gonnous-meta-apo-chronia-fot/

¹  Em termos químicos, a pólvora compõe-se de aproximadamente 75% de salitre (nitrato de potássio)+10% de enxofre+15% de carvão.

²  A Praça Viktoría dos tempos atuais era chamada na década de 1960 Praça de Kyriakós, em homenagem ao presidente da Câmara de Atenas, Panaghí Kyriakós (1870-1879), em cuja vizinhança possuía sua casa.

³  Fílonas Arías e Orestis Láskos eram empresários teatrais, apresentadores de importantes programas de entretenimento, respectivamente “Favo de Mel” e “Alcazár”, que tinham em comum o gosto pela poesia, que não podia faltar nos seus espetáculos. Ambos se notabilizaram pela descoberta de novos talentos, especialmente de cantoras que encantaram multidões. Nos seus salões, era oferecido um espetáculo de entretenimento no estilo de ‘vaudeville’ ou teatro de ‘variedades’ francês (gênero teatral e forma de entretenimento popular que misturava diversas atrações distintas). Essas ‘variedades’ tinham muito a ver com teatro e circo. Referiam-se a uma performance teatral com uma farta opção de espetáculos, especialmente música, dança, elementos de programas de cabaré, mímicos, palhaços e prestidigitadores.
Fílonas Arías, além de empresário teatral, era apresentador de programa de entretenimento grego, pintor, poeta e versificador. Atingiu seu ápice nas décadas de 1940 e 1950.
Orestis Láskos, além de empresário teatral, era ator grego, roteirista (de 24 filmes), diretor de cinema (55 filmes durante 40 anos) e, principalmente, poeta que editou diversas coletâneas de poemas de 1934 a 1974. Durante a Ocupação nazista, ele mantinha seu teatro de ‘variedades’ na estação Laríssa. Nessa época costumava declamar seus poemas com sua inesquecível voz trovejante.

  Chaidári é um subúrbio a oeste do centro de Atenas.

  Na época das memórias do autor grego, Drapetsóna era um subúrbio na parte sudoeste de Atenas.

  Kessarianí é um subúrbio na parte oriental de Atenas.


 

OBRA CONSULTADA


PAPADÓPOULOS, Leftéris: Οι παλιοί συμμαθητές (Os Antigos Colegas), Atenas: Edições Kastanióti, 2000, 23ª edição.

7 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

Tenho o prazer de apresentar ao leitor do Blog do Braga o prólogo do livro "OS ANTIGOS COLEGAS", ainda inédito em língua portuguesa, onde o autor ateniense fala de sua infância e mocidade, certamente antes de 1950. Para os passadistas amantes das Letras é uma maravilha, pois o autor é um mestre em comunicações com ampla experiência em jornais, publicação de livros e letrista de canções que se tornaram enorme sucesso. Veremos aqui um caso raro de alguém que, como o rei Midas, transforma em ouro tudo o que é tocado por ele.
Boa leitura!

TEXTO: Prólogo do livro "OS ANTIGOS COLEGAS" por Leftéris Papadópoulos
https://bragamusician.blogspot.com/2019/12/prologo-do-livro-os-antigos-colegas-por.html

BIOBIBLIOGRAFIA DE LEFTÉRIS PAPADÓPOULOS pelo próprio
https://bragamusician.blogspot.com/2019/12/biobibliografia-de-lefteris-papadopoulos.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Eric Tirado Viegas (tradutor, escritor, proprietário dos blogs Eric Ponty Poesia Reunida e http://oranicefranco.blogspot.com.br/ (acervo de Oranice Franco), membro da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Braga
rico material
eric

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Muito interessante, caro amigo Braga!

Apreciei a leitura sobre as reminiscências de nossa juventude, não só em cada amigo, em cada lugar, mas em cada recordação do que vivemos.

O autor é, de fato, um Mestre em comunicação. O “tradutor” é um Mestre em exaltar a memória de personalidades que se destacaram em vários segmentos culturais.

Caro Braga, mais uma vez, parabéns por seu meritório trabalho: obrigado por nos enviar suas obras literárias.

Abraços, de Mario e Beth.

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Prezado Braga, saudações acadêmicas. Muito obrigado pelo envio. Abraço para você e Rute.
Fernando Teixeira

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

BRAVO!

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga;
Uma vez mais parabéns por trazer a produção grega contemporânea para leitores brasileiros, algo que não é mesmo comum. Lindíssima a forma pela qual esse autor apresenta seus sentimentos dos tempos do frescor da juventude. Acabamos, sugestionados, fazendo um exercício semelhante, tendo em mente nossa própria experiência a respeito, embora cada qual a possua de modo profundamente subjetivo.
Muito obrigado.
Abraço.
Cupertino

Pe. Dr. Zdzislaw Malczewski SChr (escritor e redator da Revista Polonicus, revista de reflexão Brasil-Polônia) disse...

Prezado Sr. Francisco,

Mui grato por ter enviado-me mais uma parte dedicada aos gregos!
Através de seus textos o senhor me lembra segundo grau, quando estudamos bastante sobre antigas civilizações como Grecia, Império Romano, Egito...


Que Deus lhe conceda muita Paz e Alegria neste Natal! Para o Senhor e sua Família! No Ano Novo, saúde, realizações sob a bênção do Altíssimo!

Respeitosa saudação - pe. Zdzislaw