Por Francisco José dos Santos Braga
Quando eu viajei em companhia do Prof. Jacob Ancelevicz, israelita natural de Hadera-Israel, e seu sobrinho paulistano Lior, no mês de dezembro de 1989, fizemos uma parada em Nova Iorque, embora nosso destino fosse Israel, em longa estada de turismo que se prolongaria até 09/02/1990. Um parente de meus colegas de viagem, que era rabino em Nova Iorque, nos convidou para uma celebração do festival de Hanukkah ¹ (חֲנוּכָּה), que já estava no seu oitavo dia (quando todas as oito velas são acesas), em sua residência. Fiquei vivamente bem impressionado com essa manifestação do povo judeu e achei que tal festa correspondia ao Natal cristão, por ser um momento de congraçamento e união.
A festa judaica conhecida por Hanukkah ou “Festival das Luzes”, segundo Flávio Josefo in Antiguidades Judaicas (XII 7, § 7, #323), comemora a re-dedicação do Templo em Jerusalém por Judas Macabeu após a vitória dos Macabeus sobre o rei selêucida Antíoco IV em 165 a.C. (Observe que se trata da vitória de uma revolta judaica sobre um rei helenístico!). Pode ser o mais antigo aniversário comemorativo de um evento histórico que é comemorado sem interrupção há mais de dois milênios, originalmente no Mediterrâneo Oriental e no Oriente Próximo, mais tarde no Império Romano, hoje em todas as áreas do mundo em que os judeus vivem. Já na antiguidade, esse festival definia a identidade judaica na Judeia e na diáspora.
Este festival está conectado a um rito específico. Os elementos básicos consistem de um candelabro especial para a festa (hanukkiah), espécie de menorah comportando oito suportes para azeite. Adicionalmente, deve haver outro suporte para o shamash – a vela “auxiliar” que pode ser feita de cera de abelha. Por oito noites, as lâmpadas de azeite de uma hanukkiah ou menorah de oito braços são acesas, usando o shamash para acender cada uma das lâmpadas. O suporte deste fica um pouco acima ou abaixo do que os demais suportes para o azeite: é importante distingui-lo dos demais, senão poderia parecer que a hanukkiah tivesse nove braços. A nona vela, chamada shamash, é usada para acender as outras oito lâmpadas, uma a cada noite, até que sejam todas acesas no oitavo dia. O ponto central da festa está no acendimento da hanukkiah. Uma lenda (ou «mito etiológico») explica o rito: Em 165 a.C., quando os rebeldes judeus expulsaram o exército selêucida do Templo, apenas um único recipiente com azeite ritual foi encontrado, selado pelo Sumo Sacerdote e protegido da profanação. Era necessário manter a menorah no Templo acesa por um único dia. No entanto, milagrosamente a menorah queimou por oito dias, até que o novo óleo, conforme prescrito in Ex. 27:20-21, pudesse ser preparado. A partir de então, o povo judeu comemora o "Festival das Luzes".
É bem possível que este "novo" festival de oito dias seja a celebração combinada dos festivais de Sucot (Festa das Cabanas ou Tabernáculos em 7 dias festivos) e Shemini Atzeret (8º dia de Assembleia que se segue a Sucot), que não haviam sido celebrados na época prevista devido à referida guerra. Além de seu próprio único rito – o ato de acender a hanukkiah –, o festival é acompanhado de orações, bênçãos, recitação de hinos, troca de presentes e consumo de alimentos fritos.
A menorah é acesa em toda família judia (ou mesmo por determinado indivíduo dentro da família) e colocada no batente oposto à mezuzah, ou numa janela, claramente visível do lado de fora. Na primeira noite de Hanukkah, deve a família estar reunida para o acendimento da menorah. Antes de acender, é recitada a bênção apropriada. O shamash é utilizado para acender a primeira lâmpada no extremo direito da menorah. Na segunda noite, é acesa uma lâmpada adicional à esquerda da acesa na noite anterior. Repete-se o mesmo processo a cada noite de Hanukkah, onde a lâmpada a ser acesa é sempre a nova, procedendo da esquerda para a direita. As lâmpadas devem arder durante pelo menos meia hora. Se uma lâmpada se apagar durante o período em que deveria estar ardendo, deve ser reacendida. Na noite seguinte, os pavios e o azeite restantes podem ser reaproveitados. A luz da menorah é sagrada e não pode ser utilizada para outro fim, como leitura ou trabalho.
A menorah também é acesa em sinagogas e outros locais públicos, além das residências. Nos últimos anos, milhares de menorahs enormes têm sido colocadas na frente de prédios das prefeituras e casas legislativas, e em shopping centers e parques. A tecnologia moderna introduziu uma Hanukkiah com luzes elétricas, possibilitando a celebração em lugares onde é proibido o fogo aberto. Nos últimos anos, o festival é comemorado em Israel com tons militares, enquanto na diáspora o Hanukkah evoluiu para um sucedâneo judaico ao Natal cristão, que são comemorados aproximadamente na mesma época (normalmente em dezembro). Desde 2001, a recepção oficial de Hanukkah é patrocinada pelo Presidente dos Estados Unidos na Casa Branca. ²
Como o convite para assistir a uma celebração em comemoração ao triunfo dos Macabeus sobre os helenizantes denota, as celebrações dos festivais podem ser regidas por normas específicas e ditadas por tradições rituais, mas também têm aspectos individuais. Sua recepção por agentes, artistas e audiências varia, dependendo das experiências individuais. É esse aspecto individual, às vezes muito emocional, de um festival que é muito difícil de entender nas evidências antigas mais estudadas de outros festivais.
Nos mundos grego, etrusco e romano, os festivais eram principalmente uma forma de comunicação entre mortais e deuses ou outros seres fora da esfera humana; da mesma forma, as competições geralmente aconteciam em honra a deuses e seres com um “status’ superior ao dos mortais comuns. Mas também eram atividades humanas com um grande significado para identidade e memória, vida política e sociedade, economia e cultura.
Embora o Festival das Luzes tenha uma motivação diferente dos já mencionados nos mundos grego, etrusco e romano, a sua mera celebração merece o estudo especializado, como o que ora temos desenvolvido, e a sua divulgação.
HISTÓRICO DO FESTIVAL DE HANUKKAH OU DAS LUZES
Por volta do ano de 200 a.C., os judeus viviam como um povo autônomo na terra de Israel, a qual, nessa época, era controlada pelo rei selêucida da Síria. O povo judeu pagava impostos à Síria e aceitava a autoridade dos selêucidas, sendo, em troca, livre para seguir sua própria fé e manter seu modo de vida.
Em 180 a.C., o tirano Antíoco IV Epifânio ascendeu ao trono selêucida. Braço remanescente do império grego, encontrou barreiras para sua dominação completa sobre o povo judeu, e o modo mais prático para resolver isso foi dominar de vez a região de Israel (mais precisamente a Judeia, ao sul) impondo de maneira firme a cultura da Grécia sobre os judeus, tendo eliminado, assim, aquilo que os unificava em qualquer lugar que estivessem: a Torá. O rei Antíoco ordenou que todos aqueles que estavam sob seu domínio (em especial Israel) abandonassem sua religião e seus costumes. No caso dos judeus, isso não funcionou, ao menos em parte. Muitos judeus, principalmente os mais ricos, aderiram ao helenismo e ficaram odiados e conhecidos pelos judeus mais pobres como "helenizantes", uma vez que ficavam tentando fazer a cabeça do resto dos judeus para também seguirem a cultura grega. Antíoco queria transformar Jerusalém em uma "pólis" (cidade) grega, e conseguiu.
Em 167 a.C., após acabar com uma revolta dos judeus de Jerusalém, Antíoco ordenou a construção de um altar para Zeus erguido no Templo, fazendo sacrifícios de animais imundos (não kasher) sobre o altar, e proibiu a Torá de ser lida e praticada, sendo morto todo aquele que descumprisse tal ordem.
Na cidade de Modim (sul de Jerusalém), tem início uma ofensiva contra os greco-sírios, liderada por Matatias (um sacerdote judeu da família dos Hasmoneus) e seus cinco filhos João, Simão, Eliézer, Jonatas e Judas (Yehudá). Após a morte de Matatias, Judas toma a frente da batalha, com um pequeno exército formado em sua maioria por camponeses. Mesmo assim, os judeus lograram vencer o forte exército de Antíoco no ano 165 a.C. e libertaram Jerusalém, purificando o Templo Sagrado. Judas acabou conhecido como Judas Macabeu. Os reis selêucidas reconhecem a autonomia judaica, mantendo autoridade formal, o que os Hasmoneus reconhecem. Isso inaugura um período de grande expansão geográfica, crescimento populacional, e desenvolvimento religioso, cultural e social.
O festival de Hanukkah foi instituído por Judas Macabeu e seus irmãos para celebrar esse evento (II Mac., 10: 9). Após terem conseguido a recuperação de Jerusalém e do Templo, Judas ordenou que este fosse limpo, que um novo altar fosse construído no lugar daquele que havia sido profanado e que novos objetos sagrados fossem feitos. Quando o fogo foi devidamente renovado sobre o altar e as lâmpadas dos candelabros foram acesas, a dedicação do altar foi celebrada por oito dias entre sacrifícios e músicas (II Mac., 10: 3).
Até aqui, viu-se a vitória do pequenino exército judeu: esse foi o primeiro milagre. O segundo milagre é mais sobrenatural e deu origem à festa de Hanukkah. Após a purificação da Cidade Santa e da Casa de Deus, foi constatado que só havia um jarrinho de azeite puro no Templo com o selo intacto do Kohen Gadol (Sumo Sacerdote) para que as luzes da Menorah fossem acesas, e isso duraria apenas um dia, mas milagrosamente durou oito dias, tempo suficiente para que um novo azeite puro fosse produzido e levado ao templo para o seu devido fim, conforme manda a Torá (Ex. 27:20-21).
A Judeia ficou independente até a chegada do domínio romano em 63 a.C. Apesar da vitória da revolta judaica contra a helenização em 165 a.C., o Reino Judaico Hasmoneu chega ao fim graças a uma rivalidade entre os irmãos Aristóbulo II e Hircano II, sendo que ambos apelam à República Romana para intervir e assegurar o poder em suas mãos. O general romano Pompeu é despachado para a área. Doze mil judeus são massacrados quando da vinda dos romanos a Jerusalém. Os sacerdotes do Templo são abatidos no altar. Roma anexa a Judeia.
REFLEXÕES MORAIS
O rabino Prof. David Golinkin resume bem qual foi o resultado da rebelião contra a helenização em 165 a.C.: “Todo o bem de Israel e sua sobrevivência depende de sua unidade. Nossos Profetas e Sábios compreenderam o perigo da desunião e por isso enfatizaram de tempos em tempos que o desacordo leva à derrota, enquanto a unidade leva à redenção.”
Mostra como no I Livro dos Macabeus (I Mac., 1:41-50) há verdadeira perseguição aos judeus fiéis por parte dos “helenizantes”:
“Então o rei (Antíoco) publicou para todo o reino um edito, prescrevendo que todos os povos formassem um único reino e que abandonassem suas leis particulares. Todos os gentios se conformaram com esta ordem do rei, e muitos de Israel adotaram a religião de Antíoco, sacrificando aos ídolos e violando o sábado. Por intermédio de mensageiros o rei enviou a Jerusalém, e às cidades de Judá, cartas prescrevendo que aceitassem os costumes dos outros povos da terra, suspendessem os holocaustos, os sacrifícios e as libações no templo, violassem os sábados e as festas, profanassem o santuário, erigissem altares e templos para ídolos, sacrificassem porcos e animais imundos, deixassem seus filhos incircuncidados e maculassem suas almas com toda sorte de impurezas e abominações, de maneira a obrigarem-nos a esquecer a lei e a transgredir as prescrições.
Todo aquêle que não obedecesse a ordem do rei, devia ser morto.”
Mas o rabino Golinkin enfatiza que, segundo o II Livro dos Macabeus (cap. 4-6), os decretos de Antíoco eram o resultado do ódio sem sentido entre os líderes judeus na ocasião, que sem cessar tramavam uns contra os outros, como um episódio da “Guerra dos Tronos”. Jasão usurpou o Sumo Pontificado de seu irmão Onias; Menelau o arrebatou de Jasão. Onias difamou Menelau às autoridades, que retaliaram mandando assassinar Onias. Jasão então tentou capturar Jerusalém à força. Consequentemente, Antíoco pensou que os judeus estavam rebelando contra ele. Capturou Jerusalém, massacrou 80.000 judeus, saqueou o Templo, baniu as práticas judaicas e profanou o Templo – tudo por conta do ódio sem sentido supracitado.
NOTAS EXPLICATIVAS
¹ A primeira letra dessa palavra (H), às vezes transliterada como Kh, pronuncia-se como um R não aspirado, mas gutural.
² Vide a mensagem presidencial por ocasião da Hanukkah de 2019:
OBRA CONSULTADA
BÍBLIA SAGRADA, São Paulo: Editôra AVE MARIA Ltda, 1967, p. 562-619.
16 comentários:
Embora não seja judeu nem siga o judaísmo, e sim (seja) cristão e católico, em fins de 1989 participei de um Festival das Luzes ou Hannukah numa eminente família judia em Nova Iorque e apreciei o clima de confraternização, congraçamento e união, lembrando o ambiente do tempo natalino. Fui muito bem acolhido naquela casa e minha participação na festa se deveu a meu espírito aberto à investigação, típica de todo bom pesquisador, modéstia à parte. E quem ganhou com a experiência fui eu, que aprendi um pouco com esse povo digno que lutou muito para manter suas tradições e sua fé, sendo esse um dos motivos por que quis me aprofundar no conhecimento da língua hebraica.
Apresento neste presente trabalho meu estudo sobre essa festa que já dura pelo menos dois milênios, esperando que seja esclarecedora também para você.
https://bragamusician.blogspot.com/2020/03/hanukkah-ou-festival-das-luzes.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
"Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive". (Fernando Pessoa)
Gratidão, paz, amor e saúde, tudo de bom, abraços.
Amigo,
que artigo interessantíssimo e rico.
Parabéns e obrigado,
Com Dom Bosco sempre
edu
Legal, vou ler. Qq. dúvida, falo com você. Tenho, também, muita admiração pelo povo judeu. Bj. Luiz
Excelente, Dr. Braga. Também sou católico e leio com muito gosto matérias sobre o judaísmo. O que se encontra disponível é, quase sempre, sobre estudos da tradição, ao passo que a sua matéria é sobre a contemporaneidade, iluminada, é claro, pela tradição.
Tenho bons amigos judeus aqui no Recife, em especial, entre os Grund e os Levi.
Abraços cordiais
José Fernando
Prezado amigo Braga,
É sempre um prazer ler seus artigos, pelos quais muito lhe agradeço.
Adorei este, em especial, sobre a origem do Hanukkah!
Muito obrigada.
Beijinhos para o senhor e sua esposa,
Sonia Maria Vieira
Bom dia
Prezado amigo Francisco.
Muito obrigado.
Abraço.
Diamantino
Mais uma vez parabéns pela suas idas às fontes, o grego clássico e o hebraico mais que bíblico.
Recebido obrigado, excelente blog, já está na lista de minhas preferências, cordiais saudações.
Legal, Francisco. Já tinha ouvido falar, mas não conhecia os detalhes. Parabéns pelo mais esse Belo trabalho.
Abraços,
Pepê
Prezado Francisco Braga,
Que relato precioso está a nos brindar em seu blog. Muito obrigado!
Academicamente,
Moises Mota
Presidente da ACLCL
Caixa Postal 111 - Cons. Lafaiete - MG
CEP: 36400-970
site: www.aclcl.org.br
Olá, Francisco e Rute! Parabéns com aquela bem sucedida experiência!
Pe. Jocy canta: "Deus quer ver todo mundo feliz,bem nutrido, gozando saúde......"
Boa caminhada, f. Joel. Grande abraço !!!
Caro Sr. Francisco,
Muito obrigado pela narração da festa judaica!
No seminário nós estudávamos sobre judaísmo também...
Uma saudacao de Porto Alegre - pe. Zdzislaw
Muito Bonito.
Admiro e respeito muito o povo judeu.
E esses eventos que resgatam tradições milenares mostram o valor das gerações que se sucedem unidos pela cultura de um povo forte.
Eu também sou Cristão e praticante do catolicismo. Mas sabemos que o sobrenome Carvalho também foi adotado por Cristãos Novos. Quem sabe?
Abraços
Roberto Carvalho
HANUKKAH!!! Luminoso o significado desse evento tão próximo do Natal. LUZ simboliza passagens de libertação, fé e clarividência. SHALOM! Sempre aprendendo com você. Abraço amigo. Gina
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