I. INTRODUÇÃO
IV. BIBLIOGRAFIA
O Vento nos Levará (1999) é um filme sublime, de uma poesia penetrante, com produção Irã/França, e uma obra prima na apaixonante filmografia do diretor Abbas Kiarostami (1940-2016). É considerado um dos filmes mais representativos entre outros produzidos por diretores iranianos, em língua Farsi (o persa ocidental) e com trilha sonora por Peyman Yazdanian ¹, refletindo as tendências gerais da sua cultura persa, com temas e tons distintamente filosóficos. Frequentemente seus filmes abordam questões como a vida, a morte e o significado da existência.
Quando indagado porque não abandonava o Irã e se instalava na Europa, onde costumava ser venerado como um semideus, Kiarostami respondia que um homem no exílio era igual a uma árvore trocada de lugar: conseguiria sobreviver em seu novo habitat, mas não daria frutos da mesma qualidade.
Kiarostami fazia um cinema metafísico, que buscava a transcendência nas pequenas coisas. Em O Vento nos Levará, por exemplo, não acontece quase nada naquela distante aldeia do Curdistão iraniano à qual se dirigiram Behzad e sua equipe de filmagem e, no entanto, esse quase nada é tudo. Kiarostami dizia que recusava um cinema que desse ao espectador uma única versão da realidade. Preferia oferecer-lhe várias interpretações possíveis, deixando-o livre para pensar e formular o sentido do seu filme.
Depois de Gosto de Cereja (1997), que lhe deu a estatueta de Cannes em 1997, e que transformou Abbas Kiarostami em um dos nomes de maior destaque do cinema autoral a nível internacional, seu filme O Vento nos Levará, escrito e dirigido pelo mesmo Kiarostami, vencedor do Prêmio Especial do Júri, no Festival de Veneza em 1999, e rodado com atores não profissionais, apresentou uma cinematografia evocativa do hinterland iraniano, utilizando a colaboração do cinegrafista, roteirista, diretor de cinema e fotógrafo iraniano Mahmoud Kalari e do diretor assistente Bahman Ghobadi.
II. SINOPSE DO FILME
O filme começa em super plano geral ² com longas tomadas à distância de um veículo off-road passando por estradas sinuosas através do interior iraniano, enquanto os três passageiros (engenheiro Behzad e sua pequena equipe munida de câmera) se entretêm numa conversa sobre o seu trajeto. O diálogo que o espectador ouve é dissociado da imagem. Aqui são utilizadas as técnicas do slow disclosure (literalmente: lenta divulgação), que Kiarostami explora ao extremo, e do familiar image. Há longa demora até que o espectador junte as peças e perceba qual o motivo disso. Aos poucos, é insinuado que os passageiros se dirigem a Siah Dareh, uma aldeia remota a 700 km de Teerã, encravada no lado de uma montanha no Curdistão iraniano, cercada por colinas ondulantes de verde e dourado.
Quando se aproximam da aldeia, recebem as boas vindas de um jovem escolar, Farzad, neto de uma idosa moribunda (Malek), esta última — o real motivo de sua vinda de Teerã à distante aldeia.
Esse garoto, principal guia e informante do engenheiro Behzad (e nosso) sobre a aldeia tem um papel marcante no desenrolar da trama. O espectador fica familiarizado com o dia a dia do escolar e se interessa pelo progresso dos seus estudos.
Logo fica claro para os forasteiros que a idosa Malek não está à beira da morte, demandando portanto que eles permaneçam na vila até o seu real passamento. Em certa passagem do filme constatamos, devido à demora de Malek exalar seu último suspiro, um desentendimento entre o engenheiro Behzad e sua equipe de filmagem ansiosa por breve retorno a Teerã.
A câmera de Kiarostami alterna entre planos conjuntos (long shots) do trajeto do engenheiro por estradas poeirentas de uma só pista e planos médios (medium shots) da sua subida em volta da aldeia quase vertical. O engenheiro ora está impaciente, ora fascinado com a simplicidade da vida no hinterland e procura se adaptar aos costumes da comunidade local, especialmente ao comportamento franco e direto de Farzad.
Os aldeões reagem à presença dos visitantes de forma reticente: seu primeiro instinto é acolhê-los, mas se perguntam sobre os reais motivos dos forasteiros (uns acham que são arqueólogos, outros, engenheiros de telecomunicações), ao mesmo tempo que o engenheiro Behzad decide não fazer qualquer comentário sobre as razões que os traziam à aldeia.
Nosso olhar está limitado quase exclusivamente àquilo que o engenheiro vê e ouve, e muitos dos atores do filme ficam ocultos da vista do espectador, tais como:
• a equipe do engenheiro (equipe de filmagem e sua chefia em Teerã)
• um misterioso homem (Youssef) que faz a escavação de um fosso no cemitério local no topo da colina que seria conhecida como Colina do Celular supostamente destinada à instalação de uma torre de telefonia móvel
• a amante furtiva de Youssef (Zeynab) que diariamente traz uma sopa a seu namorado, ocupado na tal escavação, e que é sempre vista correndo de volta à aldeia pelo engenheiro que também começa a ficar interessado por ela
• outra estranha personagem, a idosa senhora moribunda (Malek), cuja janela com moldura azul o engenheiro apenas contempla à distância.
A tarefa do engenheiro Behzad é registrar um ritual funerário tradicional que se seguirá à morte da referida aldeã idosa de 100 anos, o que se espera ocorra em breve, assunto que ele prefere manter em segredo até do neto dela (Farzad).
Pode-se supor que o resultado seja um documentário sobre o evento, embora em nenhum momento do filme seja visto qualquer equipamento cinematográfico, apenas a câmera fotográfica manual do próprio engenheiro Behzad. Como no Irã os funerais ocorrem logo após a morte, a equipe de filmagem tem que estar a postos e pronta no momento da morte.
Sempre que quiser falar com sua chefe em Teerã, o engenheiro Behzad tem que dirigir o seu veículo até o topo de uma colina, onde está localizado um cemitério, para conseguir um bom sinal de conexão para seu celular. Certo dia em que o engenheiro se dirige ao topo da colina para esse fim, Youssef, o homem misterioso que escava um buraco no cemitério local, o presenteia com um grande fêmur humano, que dali em diante e até próximo ao final do filme o acompanhará sobre o painel do veículo.
Por mais livre que Kiarostami queira deixar o público, essa particularidade passa obrigatoriamente por cenas como a da ordenha da vaca na semi-obscuridade do estábulo. Ali, temos o engenheiro querendo adquirir leite, recitando para Zeynab — a garota que ordenha, e que pretende um dia ser poetisa e que só é mostrada de costas, — um poema cujo último verso dá título ao filme. Eis o poema da poetisa Forough Farrokhzad (1935-1967) declamado pelo engenheiro no estábulo e traduzido aqui por este autor para o português, a partir da tradução inglesa de David Martin ³, reproduzido dentro do artigo "The Universe in a Cellar", por Jonathan Rosenbaum:
O VENTO NOS LEVARÁ
em minha pequena noite, ah
que crescente pesar!
o vento tem um encontro marcado
com as folhas das árvores
em minha pequena noite,
persiste um terror de ruína
ouve! escutas
o vento da escuridão soprar?
Observo sem fôlego
e com espanto esta felicidade como uma estranha
viciada em meu próprio desespero
ouve! escuta bem!
podes ouvir a escuridão
soprar? — o escuro inferno
— cortando caminho
com a foice em nossa direção?
na noite agora, há algo
passando
a lua está vermelha e inquieta
e sobre este teto — que
a qualquer momento
pode desmoronar —
nuvens como multidões de carpideiras
aguardam o instante da chuva
ruína
o instante
e então depois dele, nada.
atrás desta janela, a noite treme
e a terra para de girar
atrás desta janela, um desconhecido
teme algo por mim e ti
tu que és verde da cabeça aos pés!
põe tuas mãos
— como um souvenir
ardente dentro de minhas mãos amorosas —
mãos de amante!
confia teus lábios — teus lábios
como uma calorosa sensação de viver! —
confia — teus lábios às carícias dos meus
— lábios amorosos — lábios da amante!
o vento nos levará consigo
o vento nos levará consigo
Após tratar desses poucos elementos, vamos agora aprofundar um pouco o personagem Youssef, que representa um barqueiro dos infernos, dada a proximidade que ele mantém com a morte. Escondido o tempo todo no fosso do cemitério, nunca lhe veremos o rosto ou saberemos as razões exatas para o trabalho dele no cemitério, mas ficamos sabendo um pouco mais sobre sua namorada Zeynab, a jovem que lhe serve diariamente uma sopa e que, procurada por Behzad em busca de leite, o conduz ao estábulo na semi-obscuridade e lhe fornece leite de sua vaca, graciosamente. Kiarostami sabiamente mantém assim o casal Youssef-Zeynab em uma espécie de união secreta, para não dizer subterrânea, como os locais onde o filme os mantém ligados.
Além de trabalhar no cemitério, é das próprias mãos dessa espécie de barqueiro dos infernos que Behzad receberá o presente de um fêmur humano que o acompanhará sobre o painel do seu veículo off-road durante todo o filme. Na última cena do filme, Behzad acaba se livrando do osso como se se desligasse do que restava da morte.
O filme não informa muito sobre Youssef. Behzad, em busca do melhor sinal para seu celular, costumava trocar algumas palavras com ele, mas, num desses encontros, um desmoronamento do fosso foi percebido por Behzad que pôde acudir o pobre homem buscando resgate e socorro: por sorte, Behzad estava por perto e pôde pedir ajuda. Uma coalizão de solidariedade de aldeões se formou em torno da salvação de Youssef. Um médico idoso de campanha que passava por ali, apareceu de mobilete e pôde prestar-lhe assistência. Behzad aproveitou para pedir que, além do acidentado, o velho médico visitasse a senhora idosa. Mas, neste caso, não havia como trabalhar contra o destino.
E para finalizar:
Apresento aqui a transcrição da penúltima cena do filme O Vento nos Levará, onde Kiarostami teve a oportunidade de falar da morte para celebrar a vida. Nela, como vimos, a mobilete pilotada pelo idoso médico de campanha leva o engenheiro Behzad de carona atravessando um infinito campo de trigo.
O médico acabara de visitar a idosa moribunda e responde a Behzad sobre o estado de saúde da paciente, bem como opina sobre a vida e a morte, lembrando-lhe a importância de aproveitar a vida, pois o tempo a cada segundo faz o seu trabalho e nos aproxima da morte que ameaça, antes de declamar, para os ouvidos atentos do carona, um poema dos Rubayat de Omar Kayyâm (1048-1131), lançado ao vento:
Behzad: — O que o sr. diz, doutor? O que a idosa tem?
Dr.: — Ela não tem nada senão a velhice e a fraqueza: é um monte de ossos, e não vai tão bem.
Behzad: — A velhice é uma doença horrível.
Dr.: — Sim, mas há algo pior que isso: a morte.
Behzad: — A morte?
Dr.: — Sim, a morte é pior. Quando a gente fecha os olhos sobre este mundo, esta beleza, esta natureza bela e a abundância de Deus, é para não mais retornar...
Behzad: — Dizem que o outro mundo é mais belo do que este aqui.
Dr.: — Mas quem voltou de lá para dizer se é belo ou não?
Então o médico idoso declama a Behzad a seguinte estrofe dos Rubayat de Omar Khayyâm, enquanto o vento leva suas últimas palavras, à medida que a mobilete desaparece por trás do horizonte dourado dos campos de trigo:
Quando indagado porque não abandonava o Irã e se instalava na Europa, onde costumava ser venerado como um semideus, Kiarostami respondia que um homem no exílio era igual a uma árvore trocada de lugar: conseguiria sobreviver em seu novo habitat, mas não daria frutos da mesma qualidade.
Kiarostami fazia um cinema metafísico, que buscava a transcendência nas pequenas coisas. Em O Vento nos Levará, por exemplo, não acontece quase nada naquela distante aldeia do Curdistão iraniano à qual se dirigiram Behzad e sua equipe de filmagem e, no entanto, esse quase nada é tudo. Kiarostami dizia que recusava um cinema que desse ao espectador uma única versão da realidade. Preferia oferecer-lhe várias interpretações possíveis, deixando-o livre para pensar e formular o sentido do seu filme.
Depois de Gosto de Cereja (1997), que lhe deu a estatueta de Cannes em 1997, e que transformou Abbas Kiarostami em um dos nomes de maior destaque do cinema autoral a nível internacional, seu filme O Vento nos Levará, escrito e dirigido pelo mesmo Kiarostami, vencedor do Prêmio Especial do Júri, no Festival de Veneza em 1999, e rodado com atores não profissionais, apresentou uma cinematografia evocativa do hinterland iraniano, utilizando a colaboração do cinegrafista, roteirista, diretor de cinema e fotógrafo iraniano Mahmoud Kalari e do diretor assistente Bahman Ghobadi.
II. SINOPSE DO FILME
O filme começa em super plano geral ² com longas tomadas à distância de um veículo off-road passando por estradas sinuosas através do interior iraniano, enquanto os três passageiros (engenheiro Behzad e sua pequena equipe munida de câmera) se entretêm numa conversa sobre o seu trajeto. O diálogo que o espectador ouve é dissociado da imagem. Aqui são utilizadas as técnicas do slow disclosure (literalmente: lenta divulgação), que Kiarostami explora ao extremo, e do familiar image. Há longa demora até que o espectador junte as peças e perceba qual o motivo disso. Aos poucos, é insinuado que os passageiros se dirigem a Siah Dareh, uma aldeia remota a 700 km de Teerã, encravada no lado de uma montanha no Curdistão iraniano, cercada por colinas ondulantes de verde e dourado.
Quando se aproximam da aldeia, recebem as boas vindas de um jovem escolar, Farzad, neto de uma idosa moribunda (Malek), esta última — o real motivo de sua vinda de Teerã à distante aldeia.
Esse garoto, principal guia e informante do engenheiro Behzad (e nosso) sobre a aldeia tem um papel marcante no desenrolar da trama. O espectador fica familiarizado com o dia a dia do escolar e se interessa pelo progresso dos seus estudos.
Logo fica claro para os forasteiros que a idosa Malek não está à beira da morte, demandando portanto que eles permaneçam na vila até o seu real passamento. Em certa passagem do filme constatamos, devido à demora de Malek exalar seu último suspiro, um desentendimento entre o engenheiro Behzad e sua equipe de filmagem ansiosa por breve retorno a Teerã.
A câmera de Kiarostami alterna entre planos conjuntos (long shots) do trajeto do engenheiro por estradas poeirentas de uma só pista e planos médios (medium shots) da sua subida em volta da aldeia quase vertical. O engenheiro ora está impaciente, ora fascinado com a simplicidade da vida no hinterland e procura se adaptar aos costumes da comunidade local, especialmente ao comportamento franco e direto de Farzad.
Os aldeões reagem à presença dos visitantes de forma reticente: seu primeiro instinto é acolhê-los, mas se perguntam sobre os reais motivos dos forasteiros (uns acham que são arqueólogos, outros, engenheiros de telecomunicações), ao mesmo tempo que o engenheiro Behzad decide não fazer qualquer comentário sobre as razões que os traziam à aldeia.
Nosso olhar está limitado quase exclusivamente àquilo que o engenheiro vê e ouve, e muitos dos atores do filme ficam ocultos da vista do espectador, tais como:
• a equipe do engenheiro (equipe de filmagem e sua chefia em Teerã)
• um misterioso homem (Youssef) que faz a escavação de um fosso no cemitério local no topo da colina que seria conhecida como Colina do Celular supostamente destinada à instalação de uma torre de telefonia móvel
• a amante furtiva de Youssef (Zeynab) que diariamente traz uma sopa a seu namorado, ocupado na tal escavação, e que é sempre vista correndo de volta à aldeia pelo engenheiro que também começa a ficar interessado por ela
• outra estranha personagem, a idosa senhora moribunda (Malek), cuja janela com moldura azul o engenheiro apenas contempla à distância.
A tarefa do engenheiro Behzad é registrar um ritual funerário tradicional que se seguirá à morte da referida aldeã idosa de 100 anos, o que se espera ocorra em breve, assunto que ele prefere manter em segredo até do neto dela (Farzad).
Pode-se supor que o resultado seja um documentário sobre o evento, embora em nenhum momento do filme seja visto qualquer equipamento cinematográfico, apenas a câmera fotográfica manual do próprio engenheiro Behzad. Como no Irã os funerais ocorrem logo após a morte, a equipe de filmagem tem que estar a postos e pronta no momento da morte.
Sempre que quiser falar com sua chefe em Teerã, o engenheiro Behzad tem que dirigir o seu veículo até o topo de uma colina, onde está localizado um cemitério, para conseguir um bom sinal de conexão para seu celular. Certo dia em que o engenheiro se dirige ao topo da colina para esse fim, Youssef, o homem misterioso que escava um buraco no cemitério local, o presenteia com um grande fêmur humano, que dali em diante e até próximo ao final do filme o acompanhará sobre o painel do veículo.
Por mais livre que Kiarostami queira deixar o público, essa particularidade passa obrigatoriamente por cenas como a da ordenha da vaca na semi-obscuridade do estábulo. Ali, temos o engenheiro querendo adquirir leite, recitando para Zeynab — a garota que ordenha, e que pretende um dia ser poetisa e que só é mostrada de costas, — um poema cujo último verso dá título ao filme. Eis o poema da poetisa Forough Farrokhzad (1935-1967) declamado pelo engenheiro no estábulo e traduzido aqui por este autor para o português, a partir da tradução inglesa de David Martin ³, reproduzido dentro do artigo "The Universe in a Cellar", por Jonathan Rosenbaum:
O VENTO NOS LEVARÁ
em minha pequena noite, ah
que crescente pesar!
o vento tem um encontro marcado
com as folhas das árvores
em minha pequena noite,
persiste um terror de ruína
ouve! escutas
o vento da escuridão soprar?
Observo sem fôlego
e com espanto esta felicidade como uma estranha
viciada em meu próprio desespero
ouve! escuta bem!
podes ouvir a escuridão
soprar? — o escuro inferno
— cortando caminho
com a foice em nossa direção?
na noite agora, há algo
passando
a lua está vermelha e inquieta
e sobre este teto — que
a qualquer momento
pode desmoronar —
nuvens como multidões de carpideiras
aguardam o instante da chuva
ruína
o instante
e então depois dele, nada.
atrás desta janela, a noite treme
e a terra para de girar
atrás desta janela, um desconhecido
teme algo por mim e ti
tu que és verde da cabeça aos pés!
põe tuas mãos
— como um souvenir
ardente dentro de minhas mãos amorosas —
mãos de amante!
confia teus lábios — teus lábios
como uma calorosa sensação de viver! —
confia — teus lábios às carícias dos meus
— lábios amorosos — lábios da amante!
o vento nos levará consigo
o vento nos levará consigo
Após tratar desses poucos elementos, vamos agora aprofundar um pouco o personagem Youssef, que representa um barqueiro dos infernos, dada a proximidade que ele mantém com a morte. Escondido o tempo todo no fosso do cemitério, nunca lhe veremos o rosto ou saberemos as razões exatas para o trabalho dele no cemitério, mas ficamos sabendo um pouco mais sobre sua namorada Zeynab, a jovem que lhe serve diariamente uma sopa e que, procurada por Behzad em busca de leite, o conduz ao estábulo na semi-obscuridade e lhe fornece leite de sua vaca, graciosamente. Kiarostami sabiamente mantém assim o casal Youssef-Zeynab em uma espécie de união secreta, para não dizer subterrânea, como os locais onde o filme os mantém ligados.
Além de trabalhar no cemitério, é das próprias mãos dessa espécie de barqueiro dos infernos que Behzad receberá o presente de um fêmur humano que o acompanhará sobre o painel do seu veículo off-road durante todo o filme. Na última cena do filme, Behzad acaba se livrando do osso como se se desligasse do que restava da morte.
Na última cena do filme, Behzad se desfaz definitivamente do presente de Youssef, um fêmur humano, que bóia nas águas de um riacho |
O filme não informa muito sobre Youssef. Behzad, em busca do melhor sinal para seu celular, costumava trocar algumas palavras com ele, mas, num desses encontros, um desmoronamento do fosso foi percebido por Behzad que pôde acudir o pobre homem buscando resgate e socorro: por sorte, Behzad estava por perto e pôde pedir ajuda. Uma coalizão de solidariedade de aldeões se formou em torno da salvação de Youssef. Um médico idoso de campanha que passava por ali, apareceu de mobilete e pôde prestar-lhe assistência. Behzad aproveitou para pedir que, além do acidentado, o velho médico visitasse a senhora idosa. Mas, neste caso, não havia como trabalhar contra o destino.
E para finalizar:
Apresento aqui a transcrição da penúltima cena do filme O Vento nos Levará, onde Kiarostami teve a oportunidade de falar da morte para celebrar a vida. Nela, como vimos, a mobilete pilotada pelo idoso médico de campanha leva o engenheiro Behzad de carona atravessando um infinito campo de trigo.
Behzad: — O que o sr. diz, doutor? O que a idosa tem?
Dr.: — Ela não tem nada senão a velhice e a fraqueza: é um monte de ossos, e não vai tão bem.
Behzad: — A velhice é uma doença horrível.
Dr.: — Sim, mas há algo pior que isso: a morte.
Behzad: — A morte?
Dr.: — Sim, a morte é pior. Quando a gente fecha os olhos sobre este mundo, esta beleza, esta natureza bela e a abundância de Deus, é para não mais retornar...
Behzad: — Dizem que o outro mundo é mais belo do que este aqui.
Dr.: — Mas quem voltou de lá para dizer se é belo ou não?
Então o médico idoso declama a Behzad a seguinte estrofe dos Rubayat de Omar Khayyâm, enquanto o vento leva suas últimas palavras, à medida que a mobilete desaparece por trás do horizonte dourado dos campos de trigo:
"Me disseram que a morte é bela como uma húri ⁴ do paraíso!
Digo a mim mesmo que o sumo da videira é melhor.
Prefira o presente a essas boas promessas.
De longe é que um tambor parece melodioso."
¹ Trilha sonora do filme O Vento nos Levará, por Peyman Yazdanian:
Link: https://www.youtube.com/watch?v=NTskdryR-48
² SPG ou super plano geral tem como principal função descrever o cenário.
SLOW DISCLOSURE: a introdução gradual de informações pictóricas dentro de um só ou vários planos.
FAMILIAR IMAGE: uma imagem-âncora estabilizadora é periodicamente reintroduzida sem variação. Pode ser uma paisagem, um objeto ou atividade que se repete com pouca mudança durante um filme. A repetição tem um efeito subliminar, criando um pensamento abstrato visual. Pode ser usado como uma ponte estabilizadora a uma nova ação que ganhe significado com o avançar do filme.
PC ou plano conjunto apresenta um grupo de pessoas no cenário, permitindo reconhecer a movimentação em cena.
PM ou plano médio enquadra o ator em toda sua altura, permitindo que a ação tenha maior impacto na totalidade da imagem.
³ Tradução inglesa disponível em https://www.jonathanrosenbaum.net/2018/01/the-universe-in-a-cellar/
O poema faz parte da coletânea de poemas intitulada Outro Nascimento, publicada em Teerã, em 1963.
Na França, o poema constou da coletânea La Conquête du Jardin, trad. Jalal Alavinia, Paris: Lettres persanes, 2005, p. 135-136.
Cf. https://books.openedition.org/pur/76617
Observe que nessa tradução francesa há uma clara economia de versos em relação à tradução de David Martin acima transposta para o português. Apresento abaixo a minha tradução, para o português, do poema traduzido para o francês que constou da coletânea La Conquête du Jardin:
Na minha pequena noite, ah!
O vento tem encontro marcado com as folhas
Na minha pequena noite,
persiste a angústia da ruína
Escuta!
Ouves o sopro da obscuridade?
Eu porto um olhar estranho
sobre essa felicidade,
e eu me acostumo
a meu desespero.
Escuta!
Ouves o sopro da obscuridade?
Nesta noite algo se passa
A lua é vermelha, ansiosa
e sobre este teto
que corre o risco de desmoronar-se,
as nuvens, como uma multidão de luto,
parecem esperar o instante da chuva
Um instante
e depois, nada
Atrás desta janela,
a noite treme
e a Terra
para de girar
Atrás desta janela,
um desconhecido se preocupa comigo e contigo
Ó verdejante!
Põe tuas mãos
como um souvenir ardente
nas minhas mãos amorosas
e confia teus lábios
como uma sensação viva
às carícias de meus lábios amorosos
O vento nos levará!
O ventos nos levará!
⁴ Húris são, de acordo com a fé islâmica, virgens prometidas aos homens islâmicos bem-aventurados, isto é, seres antropomórficos perfeitos com que, como gratidão por suas boas ações em terra, os homens serão premiados no paraíso.
III. NOTAS EXPLICATIVAS
¹ Trilha sonora do filme O Vento nos Levará, por Peyman Yazdanian:
Link: https://www.youtube.com/watch?v=NTskdryR-48
² SPG ou super plano geral tem como principal função descrever o cenário.
SLOW DISCLOSURE: a introdução gradual de informações pictóricas dentro de um só ou vários planos.
FAMILIAR IMAGE: uma imagem-âncora estabilizadora é periodicamente reintroduzida sem variação. Pode ser uma paisagem, um objeto ou atividade que se repete com pouca mudança durante um filme. A repetição tem um efeito subliminar, criando um pensamento abstrato visual. Pode ser usado como uma ponte estabilizadora a uma nova ação que ganhe significado com o avançar do filme.
PC ou plano conjunto apresenta um grupo de pessoas no cenário, permitindo reconhecer a movimentação em cena.
PM ou plano médio enquadra o ator em toda sua altura, permitindo que a ação tenha maior impacto na totalidade da imagem.
³ Tradução inglesa disponível em https://www.jonathanrosenbaum.net/2018/01/the-universe-in-a-cellar/
O poema faz parte da coletânea de poemas intitulada Outro Nascimento, publicada em Teerã, em 1963.
Na França, o poema constou da coletânea La Conquête du Jardin, trad. Jalal Alavinia, Paris: Lettres persanes, 2005, p. 135-136.
Cf. https://books.openedition.org/pur/76617
Observe que nessa tradução francesa há uma clara economia de versos em relação à tradução de David Martin acima transposta para o português. Apresento abaixo a minha tradução, para o português, do poema traduzido para o francês que constou da coletânea La Conquête du Jardin:
Na minha pequena noite, ah!
O vento tem encontro marcado com as folhas
Na minha pequena noite,
persiste a angústia da ruína
Escuta!
Ouves o sopro da obscuridade?
Eu porto um olhar estranho
sobre essa felicidade,
e eu me acostumo
a meu desespero.
Escuta!
Ouves o sopro da obscuridade?
Nesta noite algo se passa
A lua é vermelha, ansiosa
e sobre este teto
que corre o risco de desmoronar-se,
as nuvens, como uma multidão de luto,
parecem esperar o instante da chuva
Um instante
e depois, nada
Atrás desta janela,
a noite treme
e a Terra
para de girar
Atrás desta janela,
um desconhecido se preocupa comigo e contigo
Ó verdejante!
Põe tuas mãos
como um souvenir ardente
nas minhas mãos amorosas
e confia teus lábios
como uma sensação viva
às carícias de meus lábios amorosos
O vento nos levará!
O ventos nos levará!
⁴ Húris são, de acordo com a fé islâmica, virgens prometidas aos homens islâmicos bem-aventurados, isto é, seres antropomórficos perfeitos com que, como gratidão por suas boas ações em terra, os homens serão premiados no paraíso.
JAHED, Parviz: Directory of World Cinema: Iran, vol. 10, Chicago: Intellect Books, 2012, 293 p.
Edição digital com páginas protegidas in https://books.google.com.br/books?id=Gqb1UFvdXhMC&pg
RAGEL, Philippe: Le film en suspens: la cinéstase, un essai de définition
Link: https://books.openedition.org/pur/76617 (disponibilizadas p. 19-83)
ROSENBAUM, Jonathan: The Universe in a Cellar (The Wind will Carry us), edição do jornal semanal Chicago Reader, datada de 8/12/2000
Link: https://www.jonathanrosenbaum.net/2018/01/the-universe-in-a-cellar/
15 comentários:
Só recentemente tive contato com o cinema iraniano, melhor representado pelo filme do diretor Abbas Kiarostami. Enquanto assistia ao filme Le Vent nous Emportera, em língua Farsi (persa ocidental), sem legenda, pensei:
Eis aí um filme que merece ser divulgado, para que outros tenham a oportunidade de conhecer sua lição de vida.
"Abbas Kiarostami ama a vida e a aceita tal qual é: visível mas tortuosa, à guisa desses caminhos traçados pela cultura humana. As imagens, dignas das mais belas pinturas de Van Gogh, são uma festa para a retina. A história é a de um fluxo permanente, dum percurso indo de um ponto a outro: tudo tem um começo e um fim. É profundo e simples, como a vida. Mais que um obra prima: uma Arte de viver."
https://bragamusician.blogspot.com/2020/03/o-vento-nos-levara-filme-de-abbas.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Boa tarde, amigo. Recebi. Grato. Luiz Solano.
Francisco Braga, boa tarde!
Esse é realmente um ótimo filme do diretor iraniano.
Mas procure ver do Abbas Kiarostami o filme CÓPIA FIEL,
estrelado por Juliette Binoche, e GOSTO DE CEREJA, só
com atores iranianos. Creio que você vai gostar muito
mais desse diretor extraordinário. Abraço. Taveira
Espero que o vento leve o coronavírus também...
Abs
Boa noite, Rute Francisco! Obrigado pelas suas informações! Será que já se encontra um DVD deste filme? Pelo jeito, valeria a pena vê-lo, ainda mais neste tempo em que ficamos confinados em nossa casa. 'Paz e Bem' para vocês!!!
Grande abraço. f. Joel.
Querido amigo!
Gosto muito do diretor Abbas Kiarostami.Parabéns pelo seu texto. Encaminhei para outras pessoas que também admiram AK.
Um forte abraço, Suely (estou na Austrália...)
Muito grata !
Abs.,
Eudóxia.
Prezado Braga, bom dia. Grato pelo envio. Estou aguardando o desdobramento da crise do coronavirus para a realização dos Colóquios Acadêmicos. Saudações amigas para você e Rute( os abraços estão vedados pela crise do coronavirus, não é?). Fernando Teixeira
Muito obrigado meu amigo. Boa semana.
Abraço,
Diamantino
Caro professor Braga;
Realmente um diretor e um cinema com personalidade artística própria, mais um gênio oriental de uma arte de matriz ocidental que se tornou universal e, assim, ainda mais rica e humana. Realmente são dignos desse seu destaque.
Por outro lado, meus sinceros parabéns pela sua admirável sinopse de qualidade literária dessa marcante obra cinematográfica.
Muito grato
Cupertino
Parabéns, mestre Braga!
Boa tarde Braga, recebido, obrigado, um abraço.
A matéria é interessante, de deixar o recluso virótico (ou o que quer signifique reclusão) a lamber os beiços.
Abraços
JF
Prezado amigo Braga:
A tradução do poema, a partir da versão inglesa, me parece mais bonita.
De fato: soprando na escuridão, em noites vazias, o vento parece sinistro.
Leva-nos a regiões misteriosas dos sentimentos, trazendo-nos o medo
pelo desconhecido.
Diferentes sensações quando, nas tardes luminosas, o mesmo vento -
agora gentil - canta e geme com a ramagem do bambuzal, em coloquial
cumplicidade.
Belíssimo comentário sobre esse filme (que não conhecemos). A música,
um tanto fúnebre, está bem de acordo com o ambiente emocional que persiste
nas cenas, principalmente aquela da jovem Zeynab no cemitério. As cores e as formas, realmente, têm semelhança com elementos da pintura de Van Gogh.
Obrigada por essas coisas tão bonitas que você nos envia.
Abraço. Gina
Caro amigo Braga
Acabo de encontrar – em local pouco provável em minha Internet ! – o seu e-mail de 22/03/2020 sobre o filme do diretor Abbas Kiarostami, “O vento nos levará”. Por isso só agora está sendo possível agradecer-lhe pelo envio, pelo que me desculpo.
Vou ler em seguida o seu artigo sobre este tema.
Forte abraço,
Mario.
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