quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A CRISE DE ENDIVIDAMENTO DA GRÉCIA (E DO SUL DA EUROPA)

 


Por María Negrepónti-Delivánis
 
Traduzido do francês por Francisco José dos Santos Braga



I. INTRODUÇÃO



A crise econômica da Grécia teve seu início a partir do final do ano de 2009 e início de 2010, quando várias agências de classificação de risco de crise detectaram e divulgaram evidências de crescimento do déficit público na Grécia o que significava que a Grécia aumentara suas dívidas e diminuíra sua arrecadação e alertaram sobre o não pagamento de sua dívida externa. Diziam que o risco de uma moratória (o não pagamento da dívida) poderia afetar toda a União Europeia-UE. 
Foi nesse contexto que a economista grega María Negrepónti-Delivánis, nossa hóspede no Blog do Braga há quase 3 anos, foi eleita membro honorário da Academia de Ciências da Romênia, sediada em Bucareste, no início de 2010, tendo proferido seu histórico discurso de estreia para seus confrades Acadêmicos. Portanto, o leitor do Blog conhecerá esse documento divulgado em língua francesa por essa expert em economia.
 
Academia de Ciências da Romênia, sediada em Bucareste
 
Com essa divulgação negativa por parte das agências, o governo grego, a partir do ano de 2010, anunciou a execução de um plano de austeridade, que consistiu em tomar medidas para controle de gastos públicos e aumento da arrecadação. Isso implicava na redução de benefícios (como a aposentadoria), de salários, no aumento de impostos e em demissões em massa em órgãos públicos. Diante disso, a população grega entrou em choque. 
O aumento do déficit público, entretanto, continuou aumentando. Assim, o governo da Grécia solicitou um empréstimo em abril de 2010 de 45 bilhões de euros para a União Europeia. No mês seguinte, o FMI (Fundo Monetário Internacional), a União Europeia e o BCE (Banco Central Europeu) anunciaram um empréstimo de 110 bilhões de reais, dividido em várias parcelas que seriam depositadas à medida que a Grécia cumprisse as exigências impostas por esses órgãos, como a implantação de novas medidas de austeridade. 
Essas medidas, então, revoltaram a população grega que foi às ruas em protesto contra a redução de salários, aumento de impostos, aumento da inflação e planos de privatizações. Muitas das manifestações acabaram em conflito com a polícia e geraram algumas mortes, o que ampliou a repercussão internacional sobre a crise. O desenrolar da crise grega todos já conhecemos.
 
 
   
População vai às ruas em protesto. Foto tirada
   
em 28 de julho de 2011 na cidade de Thessalônica
  






II. DISCURSO DE MARÍA NEGREPÓNTI-DELIVÁNIS NA ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA ROMÊNIA EM 01/02/2010

Caros colegas e confrades da Academia de Bucareste. Como esta é a primeira vez que estou me apresentando na qualidade de membro honorário da Academia de Bucareste embora minha entrada oficial ainda não tenha ocorrido gostaria de enfatizar quão profundamente esta eleição me honrou e quanto me alegra o pensamento que um vínculo estreito e qualitativo se soma àqueles, já numerosos, que me ligam à Romênia: este país que muito amo, que estimo infinitamente e onde tenho inúmeros amigos para a vida. Assim, direi um enorme obrigado à Academia de Bucareste, que quis tornar-me um dos seus, bem como àqueles que tomaram a iniciativa de me propor e que são queridos colegas e amigos fiéis. 

Para esta ocasião, então, tentei escolher um tema que interessasse aos nossos dois países, e não foi difícil encontrá-lo, já que a Romênia e a Grécia foram sangradas, desde alguns meses, sob o peso de suas dívidas, mas também e acima de tudo, sob o fanatismo ideológico extremo da UE e do FMI. Refiro-me às prescrições do neoliberalismo, que nunca foram verificadas, que provocaram a grande crise de 1929-32 e foram imediatamente abandonadas em seguida em favor do keynesianismo. Mesmo assim, essa balbúrdia, que insiste em se apresentar como sistema, soube, mais uma vez, se impor sobre o universo nos anos 80, promovida por sra. Thatcher e sr. Reagan a fim de conduzi-lo à segunda grande crise econômica mundial de 2007. Infelizmente, o pânico dos fanáticos neoliberais, de toda a parte do mundo, durou pouco e a arrogância logo voltou, primeiro dentro da UE. Como observou recentemente James Galbraith ¹

Toda a concepção da UE foi construída em torno das besteiras econômicas neoclássicas... e é por isso que a UE é economicamente mais neoliberal do que os EUA.
Quero deixar claro que a análise crítica que se segue praticamente não significa que sou contra uma Europa Unida ou mesmo contra a moeda única. Pelo contrário. No entanto, estou cada vez mais convencida de que, se a UE continuar no mesmo caminho escorregadio, em breve ela mesma e o euro serão lembranças remotas. É por esta razão que estou convencida de que todos nós, Europeus, devemos estar cientes dos perigos efetivos à volta da nossa querida Europa e ajudar a reformá-la. 

A crise grega, desencadeada em 2009, bem como a do conjunto do Sul da Europa embora menos grave no momento é, em grande parte, a consequência inevitável das escolhas de política econômica europeia. Estas, sob o peso da dupla crise mundial e grega puseram em relevo a profundidade das deficiências do sistema, que põem em perigo a sua sobrevivência e que impedem os países-membros de desempenhar um papel decisivo na cena internacional. A crise grega, por outro lado, demonstrou de forma dramática que o edifício da UE de forma alguma tinha previsto os meios necessários para lidar com crises; por outro lado, a concepção da UE ingenuamente se baseava na hipótese de que haveria apenas dias ensolarados pela frente. Esta é a razão pela qual a UE se apressou em apelar ao FMI para encararem conjuntamente a crise grega, apesar de ser a primeira vez que este organismo internacional iria lidar com um país-membro da zona do euro, e apesar de ser muito dolorosa a história das suas intervenções, uma vez que se interessa apenas pelos credores, ao mesmo tempo que afunda em angústia as populações dos países-vítimas. Na verdade, a comissão administrativa da UE ficou visivelmente em pânico com a exposição da Grécia à exploração implacável dos especuladores. Ela temia, e com razão, que a tempestade grega se espalharia para o resto das economias do Sul da Europa, ameaçando seriamente o euro. Para fazer face a isso, o comissão administrativa da UE convocou reuniões consecutivas dos funcionários europeus, a fim de os pressionar a tomar medidas urgentes e eficazes para evitar o aparecimento de tais crises no futuro. 

Foi então que a Grécia sofreu uma tempestade com o espantoso inchaço dos spreads, que aumentaram ainda mais o déficit orçamentário inicial, cujas dimensões nacionais, econômicas e políticas sem precedente ameaçam deteriorar, de forma dramática, o seu papel no cenário global, expondo seu povo a riscos e aviltamento de uma envergadura ainda desconhecida. No entanto, poder-se-ia expressar muitas dúvidas sobre se procedem desses rumores que anunciavam a morte iminente da economia grega, que diziam: já que a economia grega se acha em situação desesperadora, à beira da falência, correndo o risco de ser expulsa da UE, consideravam inevitável um controle rígido do FMI. Claro que essas dúvidas dificilmente se baseiam no pressuposto de que a economia grega esteja em perfeita saúde, mas antes no fato inegável de que suas dificuldades não são sem solução, que elas não surgiram repentinamente e que não se trata do único país europeu a ser confrontado com isso. Parece bem evidente que esta tempestade econômica nunca poderia ter estourado por conta própria, que nunca teria feito a primeira página da imprensa internacional, nem figurado entre as notícias mais importantes da mídia do mundo inteiro. A modesta dimensão da economia grega, que representa apenas 2,7% da economia da zona do euro e 4% do seu déficit global, nunca poderia ter atraído o interesse sombrio dos especuladores mais agressivos de todo o mundo ² em busca de uma nova presa, após a bolha dos imóveis se as autoridades da UE tivessem se dado ao trabalho de proteger a economia grega e de sufocar os rumores. 

Acrescentemos ainda que, se a economia grega está realmente em uma situação desesperadora, isso dificilmente é uma consequência conjectural, mas antes, e sem dúvida, estrutural; é por isso que as dificuldades da Grécia já deveriam há tempos ser conhecidas da UE, cujos executivos visitam a Grécia com frequência. 

Esta propagação desenfreada em todos os seus detalhes, centrada e insistindo na má, ou antes, trágica situação da economia grega, segundo as mídias sempre, fora um golpe ofensivo contra o nosso país, encorajou sobretudo a degradação em cadeia da nossa capacidade de endividamento pelas principais agências de classificação * americanas. Os erros muito graves dessas agências no passado levantaram suspeitas sobre informações internas, interesses particulares e jogos especulativos. Com base em critérios que creio objetivos, tenho a sensação de que este estado de pânico, a esta altura, dificilmente se justifica. Por outro lado, este estado de pânico, que durou muito tempo, permitiu a invasão de especuladores sobre os títulos do Tesouro gregos, garantindo-lhes assim lucros elevados, condenando, por outro lado, a economia grega a um retrocesso de dez anos, inchando ainda terrivelmente suas dívidas. É provável que a intenção da UE, tentando explicar sua passividade em face à difamação de um de seus membros, que expôs uma perigosa falta de coesão e coordenação entre os membros da UE e que, portanto, também a afeta gravemente, não fique alheia a seu desejo de preparar o terreno para a introdução de reformas que visem, sobretudo, restringir o setor público e, antes de tudo, o Estado Providência, assim como a elasticidade no mercado de trabalho

Neste clima de pânico generalizado, de especulação criminosa e de exageros em torno da situação econômica da Grécia, o jovem governo grego foi incapaz de coordenar sua defesa e estabelecer sua argumentação em favor de um plano de recuperação que seja o mais eficaz possível para o país. Por outro lado, confuso e intimidado por esta polêmica sem precedentes, ele se contentou com um esforço desesperado para persuadir a comissão administrativa da UE e perante todos os especuladores de que “a Grécia vai atender a todas as suas demandas. Que o governo dispõe de um programa abrangente que tire o país da crise”. Porém, o problema dificilmente é encontrar uma forma de satisfazer temporariamente aqueles que contestam nosso país, mas sim elaborar um programa capaz de tirá-lo dessa tempestade. E justamente, por inúmeras razões, deve a todo custo contestar a eficácia das medidas impostas pela comissão administrativa da UE e insistir no fato de que a expectativa de resultados positivos, à custa de nossos sacrifícios, pressupõe levar em consideração particularidades muito numerosas e muito importantes da sua economia ³

É por isso que me atrevo a sustentar que o problema primordial da Grécia, mas em certa medida também do Sul da Europa e das economias em transição, não é o que se apresenta agora, a saber, a dívida pública e o déficit orçamentário, ultrapassando em muito os critérios do Pacto de Estabilidade, mas a sua incapacidade de definir e aplicar medidas que lhe permitiriam enfrentar o impasse em que se encontra. É necessário, portanto, expressar certas verdades que automaticamente sobem aos lábios de cada um de nós, pois o risco das medidas inadequadas é grande demais. E, neste caso, fora o fato de que a economia grega estará condenada a uma recessão duradoura e qualquer outra economia em situação semelhante o pior seria que o objetivo principal, ou seja, a capacidade de controlar dívida e déficits não poderia ser alcançada por causa da redução dos recursos públicos. 

É óbvio que o fato de contestar as medidas que a UE impõe à Grécia - e noutros lugares - não significa de forma alguma que subestimamos a nossa adesão à zona do euro, nem o fato de não termos consciência dos erros que assolam o país. Mas se a Grécia está de fato em uma situação tão desesperadora quanto as mídias querem no-lo fazer crer, ela finalmente precisaria ousar enfrentar, e, em pé de igualdade, seus interlocutores na UE para lembrá-los de alguns fatos inegáveis, que vão diminuindo à medida que se afasta o momento do início da crise . Trata-se de: 

1. A imensa responsabilidade do neoliberalismo na eclosão da atual crise global , indiscutível, principalmente após a humilde confissão do prelado do sistema e não só ouço o ex-presidente do FED Sr. Alain Greenspan, segundo o qual “o contexto em que operávamos estava errado” . Então, é tolo, injusto e até mesmo criminoso que a Grécia se torne a vítima expiatória no altar das infelizes receitas neoliberais; é impensável que a Grécia e qualquer país do Sul seja privado de acesso a medidas de inspiração keynesiana, uma vez que essas medidas ajudaram e continuam a ajudar a economia mundial a sair da crise. Acrescentemos também que as poderosas economias europeias se permitem seguir políticas econômicas expansionistas, ignorando assim, por tão longo tempo que elas o considerem útil, as exigências do neoliberalismo extremo. Recordemos que este tipo de discriminação em relação aos países fracos da Europa era já há muito tempo costumeiro no domínio da aplicação do Pacto de Estabilidade

2. O Pacto de Estabilidade, imposto durante décadas, é, sem dúvida, o grande responsável pelos atuais sofrimentos da Grécia, acumulados por longo tempo e que agora está em erupção. Esta avaliação diz respeito certamente à Europa como um todo, mas no caso da Grécia as consequências negativas são acentuadas, devido a suas inúmeras fragilidades estruturais . Por outro lado, este Pacto foi igualmente fatal para o Sul da Europa e a Irlanda, que durante várias décadas exibia os no mínimo maravilhosos resultados da política macroeconômica europeia. Verifica-se, uma vez mais, o perigo de impor uma política macroeconômica comum a economias que passam por diferentes estágios de desenvolvimento

3. Dito isso, é evidente que a Grécia deve absolutamente colocar suas finanças em ordem e, como membro da zona do euro, deve cumprir seus compromissos. Entretanto, realmente não faria mal se, em vez de reduzir seu déficit orçamentário para menos de 3% de seu PNB, em 3 anos como ela agora está muito pressionada a fazer ela cumprisse essa tarefa em 6 ou 7 anos, desde que a cada ano consiga comprovar os avanços exigidos nesta área ¹⁰. Impõe-se uma prorrogação do prazo pois, do contrário, e apesar dos sacrifícios exorbitantes, sobretudo por parte dos mais desfavorecidos, a realização deste projeto se revelará impossível. Este fracasso, que infelizmente parece inevitável nas condições atuais, vai prendê-la em um círculo vicioso, agravando sua falta de credibilidade no plano internacional e intensificando as tendências especulativas contra ela. Trata-se certamente dum cenário altamente indesejável, não só para a Grécia, mas igualmente para a UE, e que é imperativo evitar a todo custo. 

É certo que a Grécia deveria ter-se engajado em sérias reformas estruturais há décadas atrás. No entanto, essas reformas não só não estão em vias de serem realizadas como, além disso, as modificações empreendidas neste domínio vão agravar gravemente a situação, pois elas estão no oposto do que é indicado. Estou a pensar sobretudo nesta gama de medidas, no mercado de trabalho grego e não apenas ¹¹, destinadas a torná-lo mais flexível ¹². Essas medidas, se continuam nessa direção, vão mergulhar o país no caos, uma vez que, no final das contas, elas se traduzirão em uma sangria muito maior de salários pelos lucros; ou seja, agravamento das desigualdades do modo de distribuição de renda, desorientação da demanda efetiva, intensificação do emagrecimento da economia real em favor da economia financeira, da especulação e da corrupção. 

As reformas estruturais precisam de tempo e também, para serem racionais, devem obedecer a uma hierarquia. A título de exemplo, vou recordar aqui que numa economia como a grega com baixa participação dos assalariados do setor privado no emprego total ¹³, qualquer crítica ao número excessivo de funcionários públicos deveria levar em conta o quadro que lhe é próprio, para que as soluções mais eficazes sejam adotadas. Com efeito, e é precisamente este o caso da Grécia, pode ser que o número excessivo de empregos no setor público seja a única forma de evitar uma taxa de desemprego desproporcionada, quando o setor privado não é capaz de criar empregos suficientes. Por conseguinte, expresso sérias reservas quanto às medidas que a UE pretende aplicar à Grécia, a saber, proceder a uma redução radical do número de funcionários públicos; pois é claro que tal diminuição em seu número deveria ocorrer e não preceder o aumento da capacidade de sua absorção pelo setor privado. 

Para fazer frente a seus problemas estruturais, que são certamente muito agudos, nosso país deveria ter um plano adequado às características específicas e às necessidades particulares de sua economia. Mas, acima de tudo, o país precisa de tempo. Três anos são inegavelmente insuficientes; são necessários pelo menos 6 ou 7 anos. Por outro lado, o real dilema da economia grega quanto às medidas desejáveis a tomar não se situa entre medidas duras ou medidas mais brandas, mas, pelo contrário, entre medidas ineficazes ou medidas eficazes. No que se refere ao caso grego, estou convicta de que deve ser feita a escolha que favoreça uma política expansionista e certamente não a favor de uma política restritiva. O que significa que os déficits devem ser considerados desde o início, com o auxílio de déficits ainda maiores, sem, obviamente, excluir, ao mesmo tempo, medidas restritivas complementares, se necessário. Muito brevemente: 

 a) Estou convencida ¹⁴ de que restringir salários e pensões rapidamente se mostrará um erro criminoso. Infelizmente, parece que o governo grego não pôde deixar de se curvar à pressão da comissão administrativa da UE e de determinados especuladores, anunciando sua intenção de tomar medidas duras ¹⁵. Lembremos simplesmente que a restrição dos salários reais na Grécia desde os anos 1980 é estimada em 13 unidades do PNB, e que é atribuída à extensão progressiva do trabalho elástico, ao sistema tributário extremamente injusto onde a fraude culmina, ao desemprego constantemente elevado, à pressão para a redução do nível dos salários, nomeadamente devido aos emigrantes ilegais, às deslocalizações mas também às ameaças de deslocalização de empresas, bem como à defasagem quase ininterrupta entre o nível salarial e a produtividade dos trabalhadores ¹⁶. Assim, o salário médio grego é de 65% do seu equivalente na UE dos 15, enquanto o nível de preços é praticamente o mesmo em ambos os casos. E no que diz respeito aos salários, na Grécia cerca de 70% dos aposentados recebem menos de 600 euros por mês. Portanto, esta medida totalmente inadequada acalmará as preocupações dentro da UE e provavelmente atenuará o interesse criminoso dos especuladores pelos títulos do Tesouro grego, mas vai, certamente, dar em resultados diametralmente opostos aos esperados: ou seja, uma queda acentuada dos recursos fiscais, devido ao agravamento da recessão e ao aumento excessivo do desemprego ¹⁷. Obviamente, eu deveria também mencionar o perigo, aliás óbvio, das agitações sociais, com o risco de ficarem fora de controle. Deveria estar claro que a economia grega, especialmente nos tempos atuais, precisa atingir um ritmo de crescimento superior ao de suas dívidas e déficits e que certamente não precisa de uma política restritiva. Uma tal evolução se mostra, de fato, como sua única chance de salvação. É por isso que é de vital importância intensificar a demanda interna, a produção nacional e as exportações. Nem é preciso dizer que, em meio a uma crise, um tal objetivo é difícil de alcançar, mas a Grécia não tem alternativa. A persecução deste objetivo exige naturalmente a realização de investimentos públicos, na maior escala possível, e que devem representar uma porcentagem suficientemente elevada do PNB. Por outro lado, se levarmos em conta as peculiaridades estruturais da Grécia, à realização desses investimentos públicos deve ser adicionada uma generosa redistribuição do capital ao trabalho, dos mais ricos aos mais pobres, a fim de restabelecer o equilíbrio perturbado pelas desigualdades acumuladas por tanto tempo. Graças a esse tipo de dispêndios, pode-se explicar o desenvolvimento extremamente rápido da China, apesar da crise, mas também a recuperação relativamente rápida dos EUA ¹⁸

b) A repressão à evasão fiscal e repressão à corrupção, pelo menos em parte, representam alvos extremamente importantes que, no entanto, não foram alcançados nas últimas décadas. É sem dúvida decepcionante que, de momento, o atual governo tal como os anteriores continue a dirigir os seus esforços para as vítimas habituais, isto é, para aqueles que não podem dissimular os seus rendimentos, a saber, os assalariados, os aposentados e os proprietários de imóveis. Mas agora está no limite uma drenagem suplementar desses mesmos contribuintes, achando-se, portanto, incapazes de oferecer soluções nesta área. É por isso que é essencial pegar os verdadeiros fraudadores, o mais rápido possível. A evasão fiscal na Grécia é de fato incompreensível, pois, fora a corrupção geral, é também consequência de uma distribuição problemática de empregos, pelo menos para um país suficientemente desenvolvido. Ouço dizer que a percentagem dos não assalariados no emprego total, na Grécia, é quase três vezes superior à média das restantes economias da UE dos 15. É, além disso, a razão pela qual a porcentagem de impostos diretos no PNB grego está entre os mais baixos nas economias da OCDE. Claro, existem maneiras de impedir a fraude e os fraudadores ¹⁹. Mas, para isso, é preciso ousadia, perseverança e força para resistir a pressões extremas, qualidades de que os ministros das finanças, por várias décadas, dificilmente pareciam serem dotados. Enfrentar a fraude tão arraigada na Grécia requer também nervos de aço para resistir às reações pérfidas e astutas daqueles que vivem no luxo, declarando uma renda de apenas... 800 euros por mês ²⁰

c) A limitação do desperdício no setor público é uma necessidade de primeira ordem e deveria ser seguida de medidas particularmente severas, mas ao mesmo tempo de difícil aplicação. Isso porque, durante décadas, os gregos nomeados para cargos importantes ou até menos importantes raramente pareciam capazes de discernir os limites entre sua missão e sua pessoa, deles se servindo para se afirmar. Este “modelo” é repetido por quase todos os funcionários do setor público. E, neste ponto, quero enfatizar que me parece que o problema com o setor público grego não é seu tamanho percebido como grande demais, mas antes sua ineficácia. É por isso que não acredito que apenas reduzir o número de funcionários públicos irá resolver o problema. 

d) O conjunto da carga tributária deve, sem dúvida, aumentar, pois, caso contrário, a Grécia não conseguirá sair do impasse. No entanto, o que importa é, primeiro, uma distribuição justa entre os diferentes grupos socioeconômicos, e, depois, o alargamento da base tributária, ou seja, a referência a um PNB crescente a um ritmo rápido. 

É muito lamentável que as relações da Grécia com a comissão de administração da UE tenham sofrido um golpe tão duro e que as duas partes continuem a ferir-se diariamente. De fato, a coesão entre os membros da UE deveria ser considerada um fator essencial, e sua comissão de administração deveria proteger seus membros, a tempo e a todo custo, contra os rumores infundados e as invasões especulativas ²¹. Nesse caso, seria inconcebível qualquer boato vindo do BCE sobre a não aceitação de títulos do Tesouro grego, justificado, digamos, pelo fato de que Moody's subestimou a capacidade dos gregos de tomarem empréstimos. Da mesma forma, qualquer discussão que sugira a expulsão da Grécia da UE deveria ser evitada, independentemente de, por uma série de razões no mínimo óbvias, tal probabilidade corre o risco de criar problemas insolúveis no contexto da UE. 

Assim sendo, é evidente que, sendo a Grécia membro da UE e da zona do euro, todo esforço para por fim à difamação internacional de que é alvo e à sucção por parte dos especuladores passa, forçosamente, pela comissão de administração da UE. Já não mais se pode contentar, à guisa de apoio e sobretudo depois do que vem de acontecer, com adotar medidas às cegas, que parecem completamente ortodoxas à primeira vista, mas que são altamente inadequadas no caso de Grécia. Por outro lado, a ajuda da UE à Grécia deveria, antes de tudo, poder garantir a ela um programa de recuperação eficaz e exequível. 

María Negrepónti-Delivánis

Doutora em Ciências Econômicas pela Sorbonne

Ex-Reitora e Professora da Universidade Macedônia de Thessalônica                                                       01.02.2010 




III. NOTAS EXPLICATIVAS

 

¹  Entrevista ao jornal grego Eleftherotypia, 23/11/2009 

²  Entre eles, grandes casas financeiras como Goldman Sachs, que no passado... 

*  Nota do Gerente do Blog: A classificação financeira da dívida ou "rating" é a avaliação do risco de solvência financeira duma empresa, dum Estado, duma coletividade ou ainda duma operação (empréstimo, operação de financiamento, etc.). Essa avaliação do risco se materializa pela atribuição de uma nota correspondente às perspectivas de reembolso para com os credores. A classificação financeira constitui então para esses últimos um critério preponderante da avaliação do risco que um investimento comporta. A atribuição de notas é geralmente confiada à Standard & Poors ou Moody's nos Estados Unidos. 

³  Vide M. Negreponti-Delivanis (2005), “Os Impasses da economia grega”, O Econômico, Atenas (em grego) 

A título de exemplo, lembro que na reunião de Davos do ano passado, a participação dos banqueiros, assustados pela sua responsabilidade nesta crise, era pouco numerosa, enquanto que, neste ano, ela foi muito numerosa. 

Como, aliás, da de 1929-32 

Vide Jeremy Cliff (2009): “Profiles psychologist Daniel Kahneman”, Finance and Development, September 

Vide M. Negreponti-Delivanis (2004): “A sorte do euro em seguida ao enterro do Pacto de Estabilidade”. Edições da Fundação Delivanis e de Kornilia Sfakianaki, Thessalôanica (em grego) 

Ibidem 

O fato de ter imposto outrora uma política macroeconômica comum a todos os membros da URSS é hoje reconhecido como uma das causas principais de sua dissolução. 

¹⁰ Eu me refiro aqui ao que Herbert Stein escreveu a propósito dos déficits públicos. Vide “Tax Policy in the Twenty First Century” (1998), editado por Herbert Stein, John Wiley & Sons, New York, p. 290: “Em muitos países os déficits são tão elevados que eles aumentam o quociente da dívida pública como porcentagem do PNB. Os economistas gostam de sustentar que isso não pode continuar indefinidamente. E como tenho dito - e não se trata da primeira lei de Stein, - se alguma coisa não pode continuar indefinidamente, ela vai parar. Entretanto, isso não significa que ela não possa prosseguir durante todo o século XXI”. 

¹¹ Vide N. Burgi (2009), “Des managers agressifs, des travailleurs en défense”. Eleftherotypia de Dimanche-Monde Diplomatique, 3.5 

¹² Vide M. Negreponti-Delivanis (2007), “Reformas: O holocausto dos trabalhadores na Europa”, Edições de Fundação Delivanis e de Livanis, Atenas (em grego) 

¹³ O que se explica pelo processo inacabado de industrialização na Grécia 

¹⁴ Com base em minhas pesquisas e publicações de longa data a respeito das especificidades da economia grega. Neste momento tenho simplesmente a esclarecer que no caso de uma economia como a Grécia, onde a parte dos assalariados no emprego total é muito baixa e, por outro lado, a dos trabalhadores por conta própria particularmente elevada e onde ainda a porcentagem da tributação no PNB está entre as mais fracas dos países da OCDE, as políticas restritivas não só não têm nenhuma chance de sucesso, mas, além disso, elas afundam a economia numa recessão de longa duração. 

¹⁵ Vide jornal Kathimeriní, 30-31.01.2010 01.2010 

¹⁶ Vide M. Negreponti-Delivanis (2010): “A crise criminal” (no prelo, em grego) 

¹⁷ E infelizmente os recursos públicos foram diminuídos em 3,4% durante o ano de 2009. Vide K. Pantazi: “Os recursos públicos são minimizados, os pagamentos são congelados” (2010), Jornal grego do Domingo-Proto Thema, 3.1 

¹⁸Obama lays out new spending despite fears over rising debt” (2009), The Associated Press-International Herald Tribune 9.12 

¹⁹ Vide M. Negreponti-Delivanis e colaboradores: “A indústria problemática grega e algumas de suas soluções” (1983) Edições Paratiritis, Thessalônica (en grego) 

²⁰ Este caso se anuncia de fato quase intransponível, se o julgarmos pelo que se passou, contra a lei referente à regulação das dívidas bancárias dos emprestadores em dificuldade (uma lei, aliás, preconizada a 100%)

²¹ Vide J. Stiglitz (2010): “A principled Europe would not leave Greece to bleed”, The Guardian, 26.01 

Fonte https://www.academia.edu/39699374/LA_CRISE_D_ENDETTEMENT_DE_LA_GRECE_ET_DU_SUD_EUROPEEN_Pittesti_01_02

8 comentários:

Francisco José dos Santos Braga (compositor, pianista, escritor, tradutor, gerente do Blog do Braga e do Blog de São João del-Rei) disse...

A presente publicação no Blog do Braga refere-se a uma tradução que fiz do francês para um discurso de estreia na Academia de Ciências da Romênia em 2010, proferido pela escritora, economista, professora, ex-reitora, palestrante e conferencista grega MARÍA NEGREPÓNTI-DELIVÁNIS. Anteriormente, há quase 3 anos atrás, da mesma autora traduzi do grego o instigante artigo "A corrente migratória para a Europa pode constituir a concretização de um plano tenebroso de 1922", publicado no Blog do Braga em 21/12/2017.
Sua prodigiosa produção intelectual, sempre trazendo novas luzes para os atuais temas econômicos que aborda, sua vasta erudição e sua fluência nas línguas francesa e inglesa, além do grego como idioma nativo, são fatores determinantes para sua grande projeção na Grécia e em todo o mundo.

Texto do discurso na Academia de Ciências da Romênia, em Bucareste: https://bragamusician.blogspot.com/2020/08/a-crise-de-endividamento-da-grecia-e-do.html

Breve biografia da autora: https://bragamusician.blogspot.com/2020/08/colaboradora-maria-negreponti-delivani.html

Cordial abraço,
Francisco Braga

Prof. Cupertino Santos (professor aposentado da rede paulistana de ensino fundamental) disse...

Caro professor Braga,
Grato por trazer esse material aos leitores em língua portuguesa, com a contribuição da emérita professora para a discussão do tema da crise continuada do sistema neoliberal no mundo capitalista, tanto mais nociva às populações dos países subalternos.
Cumprimentos.
Cupertino

Diamantino Bártolo (professor universitário Venade-Caminha-Portugal, gerente de blog que leva o seu nome http://diamantinobartolo.blogspot.com.br/) disse...

Boa Tarde
Amigo Braga.
Muito obrigado.
Bom final de semana.
Abraço.
Diamantino

Dr. Rogério Medeiros Garcia de Lima (professor universitário, presidente do TRE/MG, escritor e membro do IHG e da Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Estive na Grécia, pela primeira vez, em 2005.
Conversava com o taxista, no nosso mau inglês, do aeroporto ao hotel. Ele dizia que as Olimpíadas de 2004 quebraram o país.
Depois veio o desastroso governo de esquerda.
Parece um certo país tropical, que Olimpíada, Copa do Mundo e governos de esquerda levarão à bancarrota...
Abs

Frei Joel Postma o.f.m. (compositor sacro, autor de 5 hinários, cantatas, missas e peças avulsas) disse...

Olá, Rute e Francisco! E tal endividamento é um seriíssimo problema para muitos países neste mundo, que gastam fortunas para pagar empréstimos, deixando de financiar custos no próprio país! Quantas vezes rezamos:" Et dimitte débita nostra, sicut et nós dimíttimus debitóribus nostris..!" Bom fim de semana, irmão! Paz e Bem!! f. Joel.

Heitor Garcia de Carvalho (graduado em Pedagogia pela Faculdade Dom Bosco (1968), mestre em Educação UFMG (1982), Ph.D em Educational Technology - Concordia University (1987 Montreal, Canada); MBA Gestão Tecnologia da Informação, Fundação Getúlio Vargas (2004); pós-doutorado em Políticas de Ensino Superior na Faculdade de Psciologia e Ciências da Informação na Universidade do Porto, Portugal (2008); professor associado do CEFET-MG) disse...

Obrigadíssimo!!!
Vou repassar para os amigos
Heitor

Dr. Mário Pellegrini Cupello (escritor, pesquisador, presidente do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto de Valença-RJ, e sócio correspondente do IHG e Academia de Letras de São João del-Rei) disse...

Caro amigo Braga

Muito interessante e esclarecedor este post, desde a sua “Introdução” sobre a crise grega -- que acompanhamos pelo noticiário internacional -- até o Discurso de Maria Negropónti-Delivánis, na Academia de Ciências da Romênia, no início do ano de 2010.

Agradecemos pela gentileza do envio.

Abraços, de Mario e Beth.

Prof. Fernando de Oliveira Teixeira (professor universitário, escritor, poeta e membro da Academia Divinopolitana de Letras) disse...

Caro confrade Braga, muito grato pelo envio da matéria. Muita paz e todo bem. Fernando Teixeira