Por Marek Halter *
Traduzido do espanhol e comentado/ilustrado por Francisco José dos Santos Braga
Traduzido do espanhol e comentado/ilustrado por Francisco José dos Santos Braga
Em Praga nasceu o primeiro humanóide da história, o Golem, produto resultante de palavras e barro. Muito tempo depois da morte de seu criador, o grande Rabino Judah Loew Ben Bezalel (1512-1609) continua a inspirar temor.
Praga, a judia |
Em Praga, em frente à antiga Prefeitura Judaica, ergue-se a imponente estátua do grande Rabino Judah Loew Ben Bezalel (1512-1609), conhecido como MaHaRaL, o Cabalista.
Esta estátua representa a morte do grande Rabino Judah Loew ben Bezalel (o MaHaRaL), obra realizada por Ladislav Šaloun em 1910. A estátua fica na fachada da Prefeitura de Praga. |
A estátua do grande Rabino Loew em 1º plano |
A estátua tem mais de um século. Ninguém ousou destruí-la, nem os nazistas, nem os soviéticos, nem mesmo os grafiteiros de nossos dias. Lá está ele, imutável, protegido por sua própria lenda. Durante o processo de Slánský, movido em 1952 pelo poder stalinista contra espiões e cosmopolitas — isto é, os ex-líderes comunistas de origem judaica —, o governo instalou uma guarda no monumento para protegê-lo de possíveis ataques anti-semitas. Por que essa exceção? Por medo de uma maldição. Aqui nasceu, produto das palavras e do barro, o primeiro humanóide da história: o Golem. Muito depois de sua morte, seu criador continua a inspirar temor.
Os habitantes de Praga dizem que em 1941, Heydrich, recém-nomeado vice-governador do Reich na Boêmia-Morávia, propôs a seu amigo Himmler que usasse a força do Golem para vencer a guerra. Apaixonado pelo esoterismo, Hitler o aprovou. Faltava apenas decodificar as fórmulas cabalísticas que possibilitaram o aparecimento do prodígio, numa noite no ano de 1600, antes que uma multidão se reunisse ao pé da Sinagoga Velha-Nova em Praga.
Naquela época, a Europa estava em chamas: católicos e protestantes guerreavam entre si. Tudo os separava, exceto seu ódio aos judeus. As perseguições anti-semitas se multiplicaram. Os judeus se voltaram para seu rabino em busca de proteção. Ele hesitou e então recebeu milhares de baldes de barro da margem do rio Moldava, que atravessa a cidade. O rabino modelou com ele uma forma enorme com contornos quase humanos e deu vida a ela. E assim nasceu o Golem, pura força sem boca, pois o Verbo só corresponde aos homens. Esta espécie de bomba atômica intimidou os anti-semitas, mas poderia se voltar contra seus criadores da noite para o dia.
O monstro de argila garantiu a segurança da cidade judia e restabeleceu a paz e o bem-estar. Depois disso, o Golem deixou de ter utilidade e se viu relegado a obras de construção e tarefas vulgares. As crianças zombavam dele. As pessoas o insultavam. Um dia o Golem se rebelou e destruiu tudo em seu caminho. Alertado, seu criador, o grande Rabino Loew, teve que tirar a vida de sua obra: o Golem voltou a ser barro. Os habitantes da cidade, cheios de remorsos, transportaram esse barro para o porão da sinagoga Velha-Nova, a mais antiga da Europa.
Para trazer aquele monte de argila de volta à vida, o nazista Heydrich organizou uma unidade chamada "Comando Golem". Seu objetivo: encontrar os últimos oficiantes da sinagoga e, se necessário, torturá-los para obter as fórmulas necessárias para sua ressurreição.
Segundo os habitantes de Praga, o comando obteve as informações que procurava. Mas, como explica Rabi Haim, guardião da sinagoga, "por não conseguir descobrir a melodia que acompanhava as palavras ditas pelo MaHaRaL", ele não foi capaz de realizar o sonho de Hitler. Arno Parik, curador do Museu Judaico de Praga, cita David Gans, testemunha do prodígio: "Ninguém, exceto o MaHaRaL, era puro o suficiente para conhecer este segredo da Cabala."
MaHaRaL, o grande Rabino Loew, nasceu em 1512 em Worms, às margens do Reno, e veio para Praga com idade avançada e a pedido da comunidade judaica e do imperador romano germânico Rodolfo II. Ali ele permaneceu como grande Rabino até sua morte aos 97 anos, em 1609. Um Cabalista de renome, Loew também era apaixonado por Filosofia e Astronomia. Em Praga, ele fez amizade com Tycho Brahe e Johannes Kepler, os dois astrônomos famosos que, junto com Galileu e seguindo Copérnico, provaram que não apenas a Terra girava em torno do Sol, mas que uma infinidade de sistemas solares e planetas povoavam o céu infinito. Para os Cabalistas, não foi uma revelação. O Zohar, ou Livro do Esplendor, obra emblemática da Cabala, escrita, acredita-se, na Espanha do século XIII por Moisés de León, já tratava disso. Para os gentios, por outro lado, essa descoberta foi fulminante. Desde o início dos tempos, os homens estavam convencidos de que a Terra era o centro do Universo. Entre Deus e os homens, havia uma simples relação vertical: o homem estava embaixo; o Senhor, nos céus. Mas se o espaço acima de nossas cabeças, aquele espaço reservado para Deus, realmente tinha uma infinidade de estrelas e planetas, onde estava Sua morada? MaHaRaL responde: na linguagem. Não nos foi dito que no princípio era o Verbo?
Todo o mundo então se aproximou da Cabala. Sua estranha antecipação desta descoberta essencial lhe rendeu um interesse repentino e desenfreado que ultrapassou os círculos judeus.
Era uma aventura extraordinária para mim, natural de Varsóvia, percorrer as ruas onde o Golem voltou à vida. Unindo meus passos aos do MaHaRaL estava realizando um sonho de infância, um raro privilégio. Logo descobri, para minha surpresa, que o bairro antigo de Praga permanecia intacto, que suas sinagogas, sua prefeitura e seus cemitérios ainda continuavam lá. Isso me intrigou: minha cidade, a cidade judia de Varsóvia, desapareceu completamente.
Por que os nazistas respeitaram Praga? Por medo do MaHaRaL e do Golem? O próprio Goethe visitou a Velha-Nova sinagoga de Praga antes de escrever O aprendiz de feiticeiro. Golem de Gustav Meyrink (1915) foi um dos primeiros best-sellers da literatura mundial. Por outro lado, o fascínio que os judeus exerciam sobre Heydrich era tal que fez com que a Comissão de Avaliação Racial lhe entregasse um certificado que comprovava sua pureza de sangue: "Nem sangue de cor nem sangue judeu". Ele sempre carregou aquele documento junto do coração; também naquele 4 de junho de 1942, quando a resistência tcheca conseguiu abatê-lo. No entanto, antes, ele teve tempo de apresentar seu projeto a Hitler: transformar o bairro de Josefov de Praga no "museu exótico de uma raça extinta".
Já que era perigoso a Praga judia tocar a causa do MaHaRaL, o demiurgo do Golem, por que não transformá-la em uma espécie de Parque Jurássico no qual as gerações futuras pudessem contemplar os rastros de um povo maléfico, apagado para sempre da face do mundo? No número 1 da rua Staré Školy, em um belo edifício modernista no antigo bairro judeu de Praga se encontra o Museu Judeu. Seu historiador, Arno Parik, me explica que "sob o controle dos nazistas, 40 funcionários trabalhavam 12 horas por dia para refundar um museu em vez do nosso — encerrado em 1939 — que abriria suas portas em 3 de agosto de 1942. Para fazer isso, eles catalogaram mais de 200.000 objetos."
Naquela época, cerca de 120.000 judeus viviam em Praga. Hoje, são apenas 1.700. Seu bairro continua como então, com seus "cantos escuros, passagens secretas, janelas condenadas, pátios sujos, cervejarias barulhentas e pousadas sinistras", como Kafka o descreve. Salvo pelo medo que o Cabalista de Praga exercia e continua exercendo? Sob os auspícios da Sinagoga Klausen, a escola MaHaRaL descobriu o antigo cemitério judeu. Milhares de túmulos. Mais de 12.000. O tempo produziu múltiplas fissuras na pedra imponente sob a qual repousam o Grande Rabino Loew e sua esposa Perl.
Lápide do MaHaRaL no cemitério judeu de Praga em 2009. Obs: as pedras pequenas foram colocadas por visitantes de maneira ritual. |
Não me agradaria sair de Praga sem tornar a ver o MaHaRaL. Mas, seguindo a velha máxima iídiche, "nunca perguntes teu caminho a alguém que o conheça, pois poderias extraviar-te", eu me perco. Por engano, virei as costas para a estátua do grande Rabino Loew e estou novamente em frente da casa de Kafka, no 2B da rua Cihelná. Aqui, nada parece ter mudado. Com exceção de um café no térreo — o Café Franz Kafka, claro — e de uma loja onde se vendem canetas com a efígie do escritor e estatuetas de terracota representando o Golem.
Um casal de idosos hesita entre a caneta e a estatueta. Finalmente, eles compram 20 Golem's de uma vez; “são para presentes”, explica o homem de cabelos grisalhos em um inglês com forte sotaque alemão. Então, voltando-se para mim com o pequeno Golem na mão, ele acrescenta: "Será meu amuleto." Digo a mim mesmo que talvez não seja uma má ideia e também compro alguns.
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* Marek Halter é pintor e novelista francês de origem polaca. É mais conhecido por seus romances históricos, que foram traduzidos para inglês, polonês, hebraico e muitas outras línguas. Escreveu inúmeros romances históricos, a saber: O Cabalista de Praga, O Messias, A Rainha de Sabá, Os Mistérios de Jerusalém, O Vento dos Khazares, Khadija: A Mulher de Maomé, Fátima: A Filha de Maomé, Sara, A Bíblia no Feminino, A Rainha de Sabá, A Memória de Abraão, Memórias, etc.
COMENTÁRIOS SOBRE O CABALISTA DE PRAGA
Ele nasceu em 1512, dependendo das fontes, em Poznań no reino da Polônia ou em Worms no Sacro Império Romano. Na linha do tempo, seu nascimento ocorre cerca de 20 anos após a expulsão dos judeus da península ibérica e a descoberta das Américas. É o autor de uma obra abundante cobrindo a maioria dos domínios intelectuais da vida judia, pela qual realiza a passagem do pensamento judeu medieval à da Renascença. Distinguiu-se, além disso, por um conhecimento das ciências profanas de seu tempo, dentre elas, a astronomia e as matemáticas. Ele foi um rabino, talmudista, místico e filósofo do século XVI, geralmente associado à cidade de Praga.
Em 1553, ele se tornou o grande Rabino da Morávia, em Mikulov. Rabino Loew fundou e dirigiu a yeshivah de Praga de 1573 a 1584. Desde então deixou Praga até 1588. Comprovadamente despachou com o imperador Rodolfo II em fevereiro de 1592; na ocasião, estava acompanhado por seu irmão, Sinai, e seu enteado, Isaac Cohen. Ele deixou Praga novamente em 1592 para se tornar o grande Rabino de Poznań. Candidatou-se várias vezes ao posto de grande Rabino de Praga, mas só foi eleito em 1597, aos 85 anos. Ele morreu ali com quase cem anos, em 1609, cercado pela lenda de taumaturgo, e foi sepultado no cemitério judeu de Praga.
Seu nome tem sido associado à famosa lenda do Golem, uma criatura humanóide de argila que se move, caso se lhe afixe o nome inefável de Deus. Segundo alguns, teria sido criado pelo MaHaRaL para proteger os judeus do gueto contra os muitos pogroms ou, segundo outros, atendendo aos pedidos insistentes de seu amigo Mordekhaï Maisel, muito triste por não ter filhos.
8 comentários:
Consta que, historicamente, foi em Praga que nasceu no ano de 1600 o primeiro humanóide da história, o GOLEM, produto resultante de palavras e barro. Muito tempo depois da morte de seu criador, o grande Rabino Judah Loew Ben Bezalel (1512-1609) continua a inspirar temor.
Dizem que, por causa de sua fama e autoridade, até os nazistas pouparam Praga, respeitando os monumentos judeus mais representativos, em especial os que se referiam ao grande Rabino Loew.
Tenho o prazer de reproduzir no Blog do Braga minha tradução de um artigo de MAREK HALTER, o escritor que o publicou como colaborador do jornal argentino El País em 14/07/2010.
No ano imediatamente anterior (2009), tinha sido mundialmente comemorado o 400º aniversário da morte do grande Rabino Loew.
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2021/06/nos-rastros-do-cabalista-de-praga.html
Cordial abraço,
Francisco Braga
Praga, terra de Kafka.
Muito obrigado pelo relato, caro confrade Braga. História deveras muito interessante. Abraço fraterno.
Mario Pellegrini Cupello, Arquiteto, Escritor, Diplomado em Direito, Membro da Academia Valenciana de Letras, do IHG e da Academia Letras de Letras de São João del-Rei e da Fundação Oscar Araripe, em Tiradentes, entre outras instituições, disse:
Caro Amigo Braga
Que caso interessante, este do humanóide Golem!
Lemos sua refinada tradução com grande interesse e, ao final, ficamos pensando: quantas histórias existiram no passado e quantas se perderam, não fossem as pesquisas de antigos documentos, revelando mitos, acontecimentos e culturas antigas!
Parabéns, amigo e Confrade Maestro Braga, pela sua constante produção literária!
Abraços, dos amigos Mario e Beth.
Caro professor Braga
Interessante artigo ! Assisti ao filme "expressionista" alemão "Golem" - 1920 - na minha adolescência, há mais de cinquenta anos atrás, nos primórdios da TV Cultura de S.Paulo. A dificuldade em obter dados para o entendimento daquela obra era enorme. Grato pela oportunidade do acesso a mais essa contribuição para a discussão do tema .
Saudações
Cupertino
Bastante intrincados esses fatos relacionados ao Golem.De fato,o Verbo_ a palavra_ é que då vida ao barro.A palavra alinhava magia, mitos, lendas,fatos e vai conduzindo a linha da história universal. Assombroso! Maria Auxiliadora Muffato
Tenha sempre a minha gratidão, Francisco.Maria Aux.
Que maravilha, Caro Francisco!!!!
História espetacular!!
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