Dentre as mais distantes memórias de minha infância, destaca-se a do dia da morte fatídica do nosso Presidente Getúlio Vargas, às 8 horas da manhã do dia 24 de agosto de 1954. Ao tomar conhecimento do acontecido através do Repórter Esso, noticiário financiado pela multinacional Standard Oil, minha mãe Celina dos Santos Braga, alheia às perfídias palacianas, irrompeu no nosso quarto de crianças, totalmente perturbada, tomada de angústia, em pranto convulsivo e soluços lancinantes, diante do horrível quadro de nosso presidente morto, conforme noticiado pelo Repórter Esso, cujo slogan era "O Primeiro a Dar as Últimas" e "Testemunha Ocular da História", o mais famoso jornal radiofônico do País transmitido pela Rádio Nacional diretamente do histórico edifício "A Noite", na praça Mauá, no Rio de Janeiro, capital federal na época.
De forma contundente e sem preâmbulos, minha mãe acabara de ouvir o locutor Heron Domingues anunciando em edição extraordinária que o presidente Getúlio Vargas tinha cometido suicídio com um tiro no peito.
No quadro "O rádio faz história", do programa Todas as Vozes da jornalista Ana Baumworcel e estudantes da UFF, lançado em 2004, tomamos conhecimento das palavras do próprio Heron Domingues:
"Às 8 horas de 24 de agosto de 1954, eu tinha lido a edição normal do Repórter Esso. Trinta minutos depois, recebi um telefonema do diretor da Rádio Nacional, Victor Costa, que estava no Palácio do Catete. Victor, com voz 'totalmente alterada', contava que o presidente Getúlio Vargas acabara de cometer suicídio. Fiquei perplexo. Em seguida, entrei na sala dos diretores da emissora, mas não tive coragem de dar a notícia para eles, pois me dei conta de que muitos eram idosos e podiam não resistir ao impacto de algo tão bombástico."
Bem mais tarde (1987), trabalhando em Rondônia e em diversos encontros posteriores em Brasília, ouvi a mesma versão realística do Assessor do Presidente Getúlio Vargas, saudoso Deputado José Barbosa (✰ Cajurú-SP, 01/03/1917 - ✞ Rio de Janeiro, 23/06/2010), do PTB, testemunha ocular daqueles fatos históricos, pois testemunhou naquela madrugada que Vargas tinha concordado com um pedido de licença, como resultado de reunião ministerial em que os comandantes militares exigiam sua renúncia, e esteve em vigília durante toda a noite do dia 23 de agosto, ficando por perto, no aguardo de um chamado de Vargas, acompanhando a movimentação dentro do Palácio do Catete e pela manhã ainda cumprimentou o presidente, mantendo-se em guarda para evitar que se cumprisse a promessa dele de suicídio.
Getúlio registrou em sua agenda de compromissos, na página do dia 23 de agosto de 1954, segunda-feira:
"Já que o ministério não chegou a uma conclusão, eu vou decidir: determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui o meu cadáver."
"repercussão da leitura da carta-testamento de Vargas ao microfone das rádios foi o que realmente contribuiu para a modificação do quadro político". Ou seja, "foi o rádio que por meio da mensagem sonora fez "ver" a muitos o que se passava. O fato de ter sido a carta-testamento de Vargas escrita na primeira pessoa, possibilitou, no ato da escuta, a criação de uma identificação entre o locutor radiofônico e seu presidente morto. Também, ao ser lida ao microfone, estabeleceu-se um elo entre o que foi dito pelo locutor e o que foi escrito pelo autor. No imaginário social, seria como se os ouvintes sentissem a “alma sofrida” de Vargas através do que era narrado."
Há, no entanto, uma controvérsia quanto ao "furo" de reportagem. Teria sido a emissora estatal Rádio Nacional com seu Repórter Esso, ou teria sido a Rádio Globo, através da qual se manifestava Carlos Lacerda, o principal opositor de Vargas?
Leo Batista, com 22 anos na época, estava na Rádio Globo e reivindica a primazia no caso da reportagem que sacudiu o Brasil:
"... O pessoal da Aeronáutica trazia documentos para o Lacerda que sacudia na frente do microfone: “está aqui, está ouvindo o farfalhar dessas páginas”... o Lacerda estava, a noite toda, falando cobras e lagartos e denunciando e gritando... Eu tinha acabado de fazer O Globo no Ar... de repente o nosso repórter do Palácio do Catete começou a gritar: “Tira o homem do ar... Tira o Lacerda do ar, o homem se suicidou...” Aí eu corri também, eu falei: “Quem que se suicidou?” “O Getúlio, rapaz... deu um tiro no peito”. Eu falei: “Meu Deus! Então vamos dar uma edição extra...” Então cortamos o Lacerda... Ele nem tava sabendo de nada... tava xingando, o homem já tava morto... Aí entrou o prefixo... Eu dizia, eu me lembro até agora, foi assim lacônico: “E atenção, atenção senhores ouvintes. Atenção para essa edição extraordinária... Acaba de se suicidar no Palácio do Catete o presidente Getúlio Vargas. Repito...” Então, a primeira notícia realmente eu dei pela Rádio Globo, só que a Rádio Globo naquela época não era essa poderosa cadeia de rádio e televisão que é hoje."
"Victor Costa, por exemplo, havia posto seu trabalho à disposição de Vargas e até seu sangue se fosse preciso. O diretor geral da Rádio Nacional passou os últimos 20 dias do governo Vargas no Palácio do Catete acompanhando de perto a crise político-militar e privando da intimidade da família.
Segundo Carlos Lacerda, principal representante da oposição a Getúlio Vargas naquele período, a carta era lida de dez em dez minutos:
Um texto bastante agitador, em cima de um acontecimento que perturbou todo mundo. E aquilo era acompanhado com música de fundo, músicas tristes, marchas fúnebres, etc., e lido com a maior ênfase de dez em dez minutos (LACERDA:1978:147)
Carlos Lacerda, da UDN, percebeu a importância da carta-testamento, a repercussão que estava causando e alertou para o “perigo”, sugerindo que ela fosse retirada do ar:
O Café Filho assumiu imediatamente, mas largou as rádios de lado... Eu me lembro que telefonei, se não me engano, para o Odilo Costa Filho, que assumiu a direção da Rádio Nacional na ocasião, e disse: “Isso é uma loucura o que vocês estão fazendo! Vocês estão jogando o povo contra o governo Café Filho e daqui a pouco vai haver motins na rua. Vocês estão pondo o povo num estado de exasperação nervosa, e não há povo que aguente isso... Um povo emotivo e vocês deixam de dez em dez minutos isso ser irradiado acompanhado de música de fundo”. (LACERDA: 1978:147)
Na noite de 28 de agosto de 1954, Lacerda retornou ao microfone da Rádio Globo e voltou a falar da carta:
Constituía-se num evangelho maldito, de intriga, que visava desunir os brasileiros, lançando uns contra os outros (DULLES:1992:192)."
"De manhã cedo, o presidente Getúlio Vargas, de pijamas, sai do seu quarto no palácio do Catete, vai até o gabinete de trabalho e volta com um envelope. Pouco tempo depois, ouve-se um tiro. O filho, Lutero, corre para os aposentos do pai, seguido pela irmã, Alzira, e pela mãe, Darci. Encontram Getúlio caído na cama, com um revólver Colt calibre 32 perto da mão direita. Na altura do coração, um buraco da bala e uma mancha de sangue. Encostado no abajur, sobre o criado-mudo, estava o envelope contendo a carta que, datilografada na véspera por um amigo, explica o gesto — não é um lamento, mas um manifesto político.
A carta-testamento não deixava dúvida sobre como o suicídio deveria ser entendido: era uma reação a uma campanha subterrânea dos grupos internacionais, aliados aos grupos nacionais, para bloquear a legislação trabalhista e o projeto desenvolvimentista. “Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”, dizia a carta, que concluía: “Serenamente dou o meu primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar para a história.”
Naquele momento, seu maior adversário, Carlos Lacerda (UDN), ferido no pé dias antes no atentado da rua Tonelero, comemorava com champanha o golpe que parecia vitorioso.
Horas antes, uma reunião de oficiais de alta patente recusara a proposta de Getúlio de licenciar-se da Presidência enquanto se desenrolasse o Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o atentado. Brigadeiros, almirantes e generais foram taxativos: só aceitariam a renúncia."
Crédito: Panfleto do MOVIMENTO CÍVICO GETÚLIO VARGAS por doação do saudoso Dep. José Barbosa, dentro do qual vem estampada a carta-testamento |
II. BIBLIOGRAFIA
12 comentários:
1954: 24 de agosto.
Agosto, popularmente conhecido por "mês do desgosto". Consta que em Portugal, no século XVI, na época das grandes navegações, era em agosto que as caravelas eram preparadas para a grande aventura. Conta a história que as namoradas dos navegadores nunca marcavam a data do casamento em agosto e diziam que casar em agosto traria desgosto. Com o tempo, a frase foi resumida e até hoje permanece no inconsciente coletivo que acabou por se transformar, injustamente, em “agosto, mês do desgosto”. Prefiro interpretar que agosto é o "mês da mudança", em oposição à crença popular.
Por outro lado, um antigo dito popular castelhano costuma lembrar aos desavisados que "Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay".
Se não foi a bruxa a levar o Presidente Getúlio Vargas ao suicídio, o que poderia ter sido?
Leia a minha resposta, clicando no link abaixo:
Link: https://bragamusician.blogspot.com/2021/08/o-suicidio-de-getulio-vargas-sao-borja.html
Abraço cordial,
Francisco Braga
👏👏👏
Caro professor Braga
Com sua memória pessoal e apresentação de dados expressivos, um modo interessante de marcar essa efeméride de um tempo lamentavelmente conturbado.
Saudações,
Cupertino
Eu estava com 13 anos. É bom recordar.
Lembro-me perfeitamente, local, dia, hora... mas com sentimentos muito opostos... rss
Estava com minha pasta de escola, uniforme, na Rua Itajubá, em frente a uma barbearia, indo para o Grupo Barão de Macaúbas, onde teria aulas.
Um colega, voltando da direção do grupo, que fica na Av Assis Chatdeaubriand, na época chamada de Av Tocantins... disse todo contente:
-Não haverá aulas. Pode voltar para casa! Getúlio se suicidou!!!!
Muito interessante! Parabéns, Francisco!
Parabéns, caro amigo Braga,por mais esta obra memorialista, de grande valor histórico.
Abraços, meus e de Beth.
Mario.
Parabéns,mestre Braga!
A sua pena é como de habilidoso escritor e como poucos,sabes como transmitir mensagens de conteúdo histórico.
Temos muito a aprender com vossa senhoria!
Amigo Braga
Veja abaixo o que meu amigo João Risi escreveu sobre sua crônica.
Abraço
Amaro Alves
Obrigado, Amaro, e parabéns ao seu amigo Braga pelo excelente resumo noticioso sobre a morte de Getúlio Vargas. Lembro-me nitidamente daquele dia, e das circunstâncias que envolveram o episódio. Vivemos agora mais um momento conturbado da história do país, cabendo refletir sobre as frequentes oscilações da nossa mal nascida "democracia", que teve em Getúlio Vargas um de seus expoentes. Durante um quarto de século ele foi um líder proeminente, que transitou de chefe político da "república velha" a dirigente de uma ditadura de 15 anos, e ainda retornou como presidente eleito pelo povo. A sua trajetória política foi repleta de contradições, e a sua sagacidade se manifestou até no último gesto, que conseguiu reverter politicamente o que parecia caminhar para um final desonroso. Mas a sua figura não se consagrou definitivamente no imaginário popular brasileiro, ao contrário do seu equivalente na Argentina. Abraços.
Obrigado pelas informações.
Abrs.
BB
Felicito por este artigo tão autêntico e de reminiscência que, por incrível que pareça, reflete, quer saber, a atualidade política do país.
Getúlio Vargas que remonta à época da Revolução de 1930 ,em que ocorreu a última eleição presidencial da República Velha tendo sido eleito, disputada com Júlio Prestes, como é contumacia neste país, o seu perdedor desde já, não reconheceu ou aceitou sua Vitória, quando mais tarde,Getúlio Vargas, lutando com as denominadas "forças ocultas", também sofridas posteriormente por Jânio Quadros, acometeu-se ao extremo do suicídio.
Digo que é um quadro político tão atual que, por analogia, o nosso Presidente Jair Bolsonaro vem sofrendo essas mesmas forças demoníacas. A menos que ceda ao Sistema fétido que sempre reinou no Brasil , desde o Império.
Bom dia, caro confrade Francisco.
Estava no exterior. Por isso, só hoje li. Que relato didático e coerente com a fonte de informação existente. Muito bom!!!
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